sexta-feira, 31 de maio de 2019

Carolina Ramos (A Hora)


Sentiu-se perdido! Encurralado!

Tentou prolongar o túnel, escavando-o com empenho desesperado, Usaria as unhas... usaria os dentes se os tivesse!

A tensão roubava-lhe o fôlego e as derradeiras forças.

Pouco antes, ouvira vozes abafadas. Confabulavam, lá fora. Tramavam-lhe o fim.

— "Com esta, não escapa!" — diziam. A sonda metálica, introduzida no túnel, cada vez mais perto.

A hora se aproximava. Quem não via?! Hora? — Otimismo! — Não teria, quem sabe, um mísero minuto de vida!

E a vida era tão boa... em que hora o reconhecia!

Sentiu revolta interior... amarga e doída! Jamais fizera mal a alguém. Pelo menos, conscientemente. Ambições? — Tão pequenas! — Não invejava. Não criava conflitos... Por quê?! Por que fora cair em tal enrascada?!

Ouvira cochichos... deixara rastros. Isto! Deixara rastros! Idiota! — Deveria ter engolido até os resíduos! Agora... fácil seguir-lhe as pegadas!

Desarmado! Indefeso! Ali estava, absolutamente à mercê do que desse e viesse. E só viria o pior!

Sentia-se um verme nojento. Nojento e impotente... pronto a ser esmagado!

O instinto, animal, de conservação, mais forte quanto maior o perigo, deu base à última arremetida. Impulsionado pelo pavor, atirou-se violentamente contra a parede que o bloqueava.

— Inútil! Algo compacto, frio... duro como aço, lhe truncava os passos. Coisas... coisas, adversas e intransponíveis, decidiam seu destino!

E outra coisa, extremamente ameaçadora, chegava através da sonda maldita. Alguma coisa terrível! — Desagradável, a princípio. Sufocante, depois! Agora, tóxica! Letal!

Sentiu-se flutuante... Com náuseas... As entranhas enovelaram-se. Vomitou... uma, duas vezes... vomitou a alma!

Quis gritar: — Não tinha voz. Debater-se: — Não tinha braços!

Coleou, desesperadamente... lembrando minhoca imunda, no seu túnel de lama.

Sentiu-se viscoso... frio... Estrebuchou... Amoleceu... Morreu!...

Morreu, maldizendo o destino que o fizera nascer cupim.

Cupim indefeso. Débil!,.. Condenado! Cupim impotente, ante a técnica dos homens. Homens-vermes que, através dos tempos, nunca se entenderam, a não ser... para matar!

Fonte:
Carolina Ramos. Interlúdio: contos. São Paulo: EditorAção, 1993.

Vinicius de Moraes (Morrer num Bar)


Na morte de Antonio Maria

Aí está, meu Maria... Acabou. Acabou o seu eterno sofrimento e acabou o meu sofrimento por sua causa. Na madrugada de 15 de outubro em que, em frente aos pinheirais destas montanhas queridas, eu me sento à máquina para lhe dar este até-sempre, seu imenso coração, que a vida e a incontinência já haviam uma vez rompido de dentro, como uma flor de sangue, não resistiu mais à sua grande e suicida vocação para morrer.

Acabou, meu Maria. Você pode descansar em sua terra, sem mais amores e sem mais saudades, despojado do fardo de sua carne e bem aconchegado no seu sono. Acabou o desespero com que você tomava conta de tudo o que amava demais: o crescimento harmonioso de seus filhos, o bem-estar de suas mulheres e a terrível sobrevivência de um poeta que foi o seu melhor personagem e o seu maior amigo. Acabou a sua sede, a sua fome, a sua cólera. Acabou a sua dieta. Aqui, parado em frente a estas montanhas onde, há trinta anos atrás, descobri maravilhado que eu tinha uma voz para o canto mais alto da poesia, e para onde, neste mesmo hoje, você deveria chamar porque (dizia o recado) não aguentava mais de saudades - aprendo, sem galicismo e sem espanto, a sua morte. Quando a caseira subiu a alegre ladeirinha que traz ao meu chalé para me chamar ao telefone - eram nove da manhã - eu me vesti rápido dizendo comigo mesmo: "É o Maria!" E ao descer correndo para a pensão fazia planos : " Porei o Maria no quarto de solteiro ao lado, de modo a podermos bater grandes papos e rir muito, como gostamos…" E ainda a caminho fiquei pensando: "Será que Itatiaia não é muito alto para o coração dele?..." Mas você, há uma semana - quando pela primeira e última vez estivemos juntos depois de minha chegada da Europa, numa noitada de alma aberta - me tinha tranquilizado tanto que eu achei melhor não me preocupar. Eu sabia que seu peito ia explodir um dia, meu Maria, pois por mais forte e largo que fosse, a morte era o seu guia.

Outra noite, pelo telefone, ao perguntar eu se você estava cuidando de sua saúde, você me interpelou: "Você tem medo de morrer, Poesia?" "Medo normal, meu Maria", respondi. " Pois olhe: eu não tenho nenhum" retorquiu você sem qualquer bravata na voz. "Só queria que não doesse demais, como na primeira crise. Aquela dor, Poesia, desmoraliza."

Mas como eu descesse - dizia - para atender à sua chamada, e atravessasse o salão da casa-grande, e entrando na cabine ouvisse (como há 14 anos atrás ouvi a voz materna) a voz paternal de meu sogro que me falava, preparando-me: "Você sabe, Antônio Maria está muito mal...": e eu instantaneamente soubesse... - justo como naquela época soube também, quando a voz materna, em sinistras espirais metálicas, me disse do Rio para Los Angeles: "Sabe, meu filho, seu pai está muito mal…", o nosso encontro marcado deu-se numa dimensão nova, entre o mundo e a eternidade: eu aqui; você... onde, meu Maria? - onde?

Ah, que dor! Agora correm-me as lágrimas, e eu choro embaçando a vista do teclado onde escrevo estas palavras que nem sei o que querem dizer…

Há uma semana apenas conversamos tanto, não é, meu Maria? Você ainda não conhecia minha mulher, foi tão carinhoso com ela... Tomamos uma garrafa de Five Stars no Château, depois fomos até o Jirau e terminamos no Bossa Nova. Eu ainda disse: "Você pode estar bebendo e comendo desse jeito?" "Por que, Poesia? Não há de ser nada... Qualquer dia eu vou morrer é assim mesmo, num bar..."

Eu só espero que não tenha doído muito, meu Maria. Que tenha sido como eu sempre desejei que fosse: rápido e sem som. Mas é uma pena enorme. Você tinha prometido à minha mulher, a pedido dela, que recomeçaria hoje, nesta quinta-feira do seu recesso, no seu "Jornal de Antônio Maria" o seu "Romance dos pequenos anúncios", que foi uma de suas melhores invenções jornalísticas e onde eu era personagem cotidiano: você sempre a querer fazer de mim, meu pobre Maria, o herói que eu não sou...

Mas por outro lado, sei lá... Você disse nessa noite, à minha mulher e a mim, que nem podia pensar na ideia de sobreviver às pessoas que mais amava no mundo: sua mãe, seus dois filhos, suas irmãs e este seu poeta. "E Rubem Braga…", acrescentou você depois, brincando com ternura, "Eu não queria estar aí para ler quanta besteira se ia escrever sobre o Braguinha..."

Não irei ao seu enterro, meu Maria. Daria tudo para ter estado ao seu lado na hora, para lhe dar a mão e recolher seu último olhar de desespero, de maldição para esta vida a que você nunca negou nada e o fez sofrer tanto. Daqui a pouco o sino da casa-grande tocará para o almoço. Verei minha mulher descer, triste de eu lhe ter dito (porque ela dorne ainda, meu Maria...) e de me deixar assim sozinho, sentado à máquina de escrever, com a sua morte enorme dentro de mim.

Fonte:
Vinicius de Moraes. Para uma menina com uma flor.

quinta-feira, 30 de maio de 2019

Trova 354 - André R. Rogério


João Líbero (A Gargalhada do Morto)


Antigamente o velório era feito em casa. Punha-se uma mesa na sala (a mesma das refeições!) E o caixão com o defunto em cima. Amarrava-se um pano do queixo até a cabeça, para o defunto manter a boca fechada!

Lembro de um velório que eu fui, que a netinha do morto perguntou: "o vovô tá com dor de dente, mãe?!".

Bom, essa introdução foi pra contar o velório do Adamastor!

Adamastor era técnico na Estação de Transmissão da Light. Ganhava bem e estava próximo da aposentadoria, apesar de ter só 45 anos (começou como aprendiz com 16 anos). Adamastor saia do trabalho e parava  nos botecos pelo caminho bebendo em todos. Ele era o rei da manguaça. Daqueles que ia pra casa no piloto automático. Uma vez, dona Carlota, sua vizinha, ao voltar da igreja, deu com o pinguço dormindo no seu sofá! Naquele tempo não se trancava a casa!

Ele fazia tanto isso, que os vizinhos mais próximos começaram a trancar o portão ao entardecer! Diziam que era a "hora Adamastor"!

Além disso, diziam que era jogador inveterado. Saia duas noites por semana pra jogar baralho e voltava tarde e bêbado. Geralmente perdia dinheiro.

Tinha a mulher, Guilhermina, que todos chamavam de Mina. E tinha um casal de filhos adolescentes. Mina ficava possessa quando ele dizia que tinha perdido no jogo, de novo!

Enfim, um dia Adamastor bateu as botas! No velório, Mina, sentada ao lado do caixão, estava inconsolável, chorava copiosamente. As más línguas diziam que ela esfregou pimenta nos olhos para lacrimejar, e que por dentro estava festejando! Se livrou de um traste, ia receber um seguro de vida muito bom e uma gorda pensão, além da casa que era deles.

Tudo corria dentro do esperado. Até as famosas frases de velório:-

- Coitado, era tão bom!

- Trabalhador!

- Bom pai, ótimo marido!

Mina pensava, nada disso. O filho da mãe era vagabundo, pingaiada, saia do serviço pra beber, mulherengo, morreu bêbado!

Ela soube pelo Cirilo, o melhor amigo dele (outro pinguço), que o encontrou caído na praça e chamou a ambulância e o levou ao pronto socorro, mas, já não puderam fazer nada. Foi infarto fulminante!

Por volta da meia noite, irrompeu na sala, soluçando, aos gritos, a Celina, uma conhecida biscate do bairro!

- Mastô, Mastô, meu lindo, me perdoe, me perdoe, e se jogou em cima do caixão quase o derrubando!

Mina só olhava,  olhos arregalados, e de repente se deu conta do que estava acontecendo,!

Celina, descontrolada gemia:-

- Nunca vou te esquecer meu lindo, você morreu fazendo amor comigo, seu último suspiro foi para mim, nunca vou esquecer isso!

Cirilo, que estava sóbrio, desesperado, puxou Celina de cima morto, mas não foi rápido o suficiente. Mina já pulava em cima da outra, se atracando com ela berrando:

- Sua biscate, vagabunda, era com você que ele andava gastando dinheiro, e eu pensava que perdia no jogo!

A mesa era velha, cambaia, e com o peso do defunto mais o das duas mulheres, cedeu e o caixão caiu! O morto rolou, com as duas mulheres se estapeando em cima dele. Celina abraçada nele e Mina dando porrada nos dois!  Na confusão, o pano que segurava o queixo de Adamastor, se soltou e a boca abriu, dando a impressão que ele estava dando uma gargalhada.

Mina vendo aquilo, começou a socar o rosto do morto:

- Você está rindo do quê, seu desgraçado? Sorte sua que já está morto, senão eu mesma te matava.

Alguém puxou Mina para fora da sala, Cirilo levou Celina embora

Alguém trouxe dois cavaletes, onde puseram o caixão com o morto. Só não conseguiram fechar a boca dele novamente e lá ficou o Adamastor dando sua última gargalhada, até a hora de fechar o caixão!

Fonte:
O Autor

Caldeirão Poético XXII



DOROTHY JANSSON MORETTI
Três Barras/SC (1926 – 2017) Sorocaba/SP


Tempo


O tempo apaga um sonho já desfeito
na aridez de uma vida mal traçada,
uma paixão que se evolou do peito
como essência do frasco evaporada.

Tudo finda, como água já passada
que não retorna nunca mais ao leito:
do tempo que se foi não resta nada,
é verbo no pretérito perfeito.

Mas no incontido caminhar dos anos,
paciente, a transportar os desenganos,
ele ameniza o nosso sofrimento.

Lava que esfria e se transforma em rocha,
se algum desgosto ainda nos arrocha,
o tempo é o óleo bom… do esquecimento.

FRANCISCO NEVES MACEDO
Natal/RN, 1948 – 2012

Desistir, Jamais!


Escalava a montanha novamente…
E, alpinista de amor enlouquecido,
chegaria a um lugar desconhecido,
jamais imaginado pela mente.

Eu sentia o infinito a um batente,
e, jamais eu teria desistido!
Mas, por forças humanas, impedido…
- E a chegada tão perto, um pouco à frente.

Um grande sonhador, não fica triste,
de alcançar o ideal, jamais desiste,
quer sempre ir mais à frente, e, se cansado…

Ele tenta vencer o seu limite,
buscando o inalcançável, ele admite,
que se jamais chegar… Terá tentado!

GERSON CESAR SOUZA
São Mateus do Sul/PR

Extremos


Somos assim, estranhamente extremos,
gostos opostos, sonhos discrepantes,
somos canção de acordes dissonantes,
há divergência em tudo o que queremos…

Só defendemos pontos concordantes
até entender que não nos entendemos,
e esclarecendo aquilo que dissemos,
dizemos sempre coisas conflitantes…

Tu, me querendo, dizes que eu não presto,
e ao te querer, sempre de ti reclamo,
mas tu me chamas, disfarçando o gesto,

e entre protestos eu também te chamo,
pois, mesmo amando tudo o que eu detesto,
tu és na vida aquilo que eu mais amo!


JOÃO JUSTINIANO DA FONSECA
Rodelas/BA, 1920 – 2016, Salvador/BA

O Soneto Moderno


O soneto renasce, e a todo pano,
transita pelos mares da poesia.
é clássico ou moderno, em confraria,
navega ao vento norte ou ao minuano.

É discriminação e puro engano,
dizer que a rima é velha e sem valia.
O belo é sempre belo, na poesia,
na pintura, na música… E que dano

causa o antigo teatro, o enceno, a mímica,
que afaga o espírito e ilumina a química,
do riso alegre, da tranquilidade?

Renascendo o acadêmico soneto,
traz um sentido novo, e, em branco e preto,
tem gosto e aroma de modernidade!

RAUL DE LEONI
Petrópolis/RJ, 1895 – 1926

História Antiga

No meu grande otimismo de inocente,
Eu nunca soube por que foi… um dia,
Ela me olhou indiferentemente,
Perguntei-lhe por que era… Não sabia…

Desde então transformou-se de repente
A nossa intimidade correntia
Em saudações de simples cortesia
E a vida foi andando para a frente…

Nunca mais nos falamos… vai distante…
Mas, quando a vejo, há sempre um vago instante
Em que seu mudo olhar no meu repousa,

E eu sinto, sem no entanto compreendê-la,
Que ela tenta dizer-me qualquer cousa,
Mas que é tarde demais para dizê-la…

SYLVIO VON SÖHSTEN GAMA
Maceió/AL, 1923 – 2013

Abandonei


Abandonei a infância,
ainda cedo,
porque me fiz precoce.

Abandonei a adolescência
na excelência
de seu pleno gozo,
porque ao meu destino quis dar posse.

Abandonei a luta pela vida
quando senti cansaço.
E quanto a esta velhice?
Que é que eu faço?
Se a abandono…
Da vida passo.

Fábulas (Vicente, O Pardal Carente)


Vicente era um pardalzinho muito carente, que queria sua mãe sempre por perto, tomando conta dele. Dona Áurea, a mãe de Vicente não tinha um minuto de sossego, pois ele ficava o dia inteiro pedindo colo. Quando não era atendido, ele começava a suspirar, cada vez mais alto, até fazerem o que ele queria.

Com os amiguinhos na escola era a mesma coisa. Quando ele não era escalado como titular do time de futebol, ele suspirava tanto, que o professor, com pena, acabava colocando-o para jogar como zagueiro. Vicente já estava tão acostumado em conseguir tudo que queria, que ele achava que todos tinham a obrigação de agradá-lo. Mas aos poucos os seus amiguinhos foram se cansando e os suspiros não faziam mais o efeito desejado por Vicente. Ele então passou a tossir, cada vez mais alto, para chamar sempre a atenção para si mesmo. Sua mãe, preocupada com sua tosse, estava sempre inventando xaropes de diversas ervas receitadas pelas amigas e vizinhas. Mas nada fazia efeito. Vicente tossia sempre que alguma coisa não saía conforme ele desejava.

Preocupados com sua tosse, seus pais consultaram vários médicos, que reviraram Vicente do avesso, mas nada encontraram. Até que Dona Áurea resolveu chamar Doutor Iran Raposão, especialista em doenças difíceis.

Doutor Iran logo percebeu as artimanhas de Vicente e preparou um xarope inofensivo à base de mel e agrião. Depois o deu para Vicente dizendo que, caso ele não melhorasse em dois dias, eles teriam que operar para abrir o pulmão e verificar o que estava ocorrendo, pois podia ser algo muito grave. No primeiro dia Vicente tomou o xarope e continuou tossindo, satisfeito por ser o centro das atenções de sua família e de toda a floresta. Mas, ao final do segundo dia, começou a ficar preocupado vendo sua mãe preparar a mala para levar para o hospital. Logo depois Doutor Iran Raposão chegou em sua casa de ambulância dizendo que ele iria primeiro tomar umas injeções e soro em sua asa para depois ir para o hospital para ser logo operado. Vicente então percebeu que tinha ido longe demais e ficou muito arrependido. Parou imediatamente de tossir e prometeu ao médico que nunca mais iria abusar da boa fé da sua família e amiguinhos.

Doutor Iran, satisfeito porque o seu truque tinha dado certo, logo deu alta ao pardalzinho mas o advertiu de que ficaria de olho nele e, na primeira recaída, ele voltaria com a ambulância. Dona Áurea, muito agradecida, comemorou fazendo um enorme bolo de fubá e convidando todos os amiguinhos de Vicente para lanchar.

Fonte:
Universo das Fábulas

terça-feira, 28 de maio de 2019

Silmar Bohrer (Gamela de Versos) 1

Fonte:
Livro enviado pelo autor
Silmar Bohrer. Gamela de Versos. Caçador/SC: Ed. do Autor, 2004.

Malba Tahan (A Noiva de Romaiana)

   

Na opulenta cidade de Badu, na Índia, vivia, faz muitos anos, um rico brâmane, chamado Romaiana, que possuía as cinco virtudes desejáveis e era, além disso, destro e valente no manejo dos corcéis de combate.

Três encantadoras donzelas - Nang, Laira e Lamit - requestavam (1) o coração do garboso e gentil Romaiana. Cada uma delas parecia exceder as demais em beleza de formas, lustres de avós e graças de gestos e sorrisos.

Não sabendo o generoso Romaiana qual das três deidades escolher para esposa, procurou um velho sacerdote, chamado Vidharba, que morava na cidade - pediu ao bom guru que lhe indicasse um meio seguro e discreto de averiguar qual das três raparigas seria a mais prendada.

- Aconselho-te um artifício extremamente simples - acudiu o sábio brâmane ao jovem namorado. - Dá a cada uma das jovens um prato de arroz, no meio do qual terás, previamente, ocultado um brilhante, e pede-lhes que te preparem um gostoso manjar.

Depois de aprontar cuidadosamente os três pratos, conforme determinara o sacerdote, Romaiana tomou-o sob as amplas vestes, foi à casa da formosa Nang, e disse-lhe, apresentando-lhe um deles.

- Venho pedir-te, minha querida, que me prepares, tu mesma, com este arroz, um manjar. Virei, dentro de sete dias, saborear a iguaria que fizeres!

Idêntico pedido fez Romaiana, logo depois, a Laira e a Lamit, deixando-lhes os dois pratos restantes.

No dia marcado, ao cair da tarde, foi o moço brâmane, em companhia do judicioso Vidharba, à casa de Nang.

A jovem conseguira, com o alvo cereal que lhe dera Romaiana, um manjar finíssimo e saboroso.

- Como és habilidosa, ó bela Nang! - exclamou o moço, cheio de entusiasmo. - Feliz o mortal que hás de eleger para esposo!

O velho guru disse, porém, baixinho, ao discípulo:

- Esta jovem é, realmente, como disseste, bastante habilidosa, mas não te poderá servir para esposa. É desonesta, e egoísta, pois, tendo encontrado o brilhante no meio do arroz, guardou-o sem nada dizer-te!

E prosseguiu:

- A mulher desonesta e egoísta, conforme li no Hitopadexa (2) - é como o tigre faminto da floresta, que tanto devora um ladrão como um santo!

Romaiana e seu mestre despediram-se de Nang, e dirigiram-se, em seguida, à casa em que morava Laira.
      
Não menos delicioso estava o pudim que esta idealizara. Ao prová-lo, Romaiana ficou maravilhado:

- Não há elogios dignos deste apetitoso prato! Jamais me foi dado saborear iguaria tão fina! Estou encantado.

- Mais encantada estou eu ainda - retorquiu a jovem - pois no meio do arroz achei um valioso brilhante, com o qual mandei fazer, para mim, este lindo anel!
    
E estendendo a mão fina e perfeita, mostrou ao namorado a riquíssima joia que lhe cintilava no dedo esguio e branco.

Mas, sem que Laira o ouvisse, o sacerdote murmurou ao ouvido do jovem brâmane:

- Esta moça é prendada, é honesta, mas tem, a meu ver, um grave defeito: é egoísta! A mulher egoísta - conforme nos ensina o Hitopadexa - é como o pássaro que devora a semente para que ninguém possa aproveitar o fruto!

E rematou, em voz baixa:

- Deixemos esta casa. Vejamos como vai receber-nos a formosa Lamit!

Romaiana seguiu, no mesmo instante, para a casa de sua terceira apaixonada.

Acolheu-o Lamit com grande satisfação, oferecendo-lhes um lauto banquete.

- Que vejo! - exclamou Romaiana. - Pedi-te que me fizesses, apenas, um manjar com a pequena porção de arroz que te dei, e encontro iguarias tão diversas e tão finas que só mesmo na ceia de um príncipe poderiam figurar!

- Pois tudo isso que aí está - retorquiu a jovem - preparei apenas com o arroz que me trouxeste!

- Como foi possível tal milagre?

- Nada mais fácil - explicou Lamit. - Ao examinar e lavar o arroz, achei um brilhante. Se esse brilhante veio com o arroz - pensei - deve contribuir para a preparação dos pratos! E. assim, resolvi empenhar o brilhante. Com o dinheiro obtido comprei vários ingredientes para as demais iguarias que aí estão. Mostrei-os às minhas vizinhas que, encantadas, me pediram lhes ensinasse a tão bem fazê-los. Aquiesci, recebendo, de cada uma, dois thalungs (3) de ouro. Foi com esse dinheiro que consegui retirar o brilhante do penhor!

    E entregando a Romaiana a preciosa gema, disse:

- Aqui está o brilhante! Guarda-o, que ele é teu!

O sábio bramarxi (4), conduzindo o rapaz para o canto da sala, segredou-lhe:

    - Casa, meu filho, une-te hoje mesmo a esta meiga e preciosa menina! Ela é, a meu ver, habilidosa, honesta, boa e econômica!

E concluiu, com firmeza, que os anos e a experiência lhe garantiam:

- A mulher econômica, segundo diz o Hitopadexa, é como a formiga que nunca leva fora de sua vivenda os grãos preciosos de seu celeiro.

Romaiana seguiu, sem hesitar, o conselho do sábio Vidharba, e viveu, muitos anos felizes, sem jamais esquecer os profundos ensinamentos do Hitopadexa:

- "Em verdade, quem não tem, procure adquirir; adquirindo, guarde sem desperdiçar; guardando, aumente convenientemente; aumentando, despenda nos lugares sagrados!"
_______________________________
Notas:
1 - Requestar - 1. Solicitar de modo insistente; requisitar ou suplicar; 2. Almejar ou intencionar as boas graças de alguém; 3. Ação de cortejar ou namorar.

2- Hitopadexa - Livro composto de uma coleção de fábulas, contos morais e apólogos. O Hitopadexa é muito usado na índia para a educação dos meninos.

3- Thalung - Moeda antiga do Sião.

4- Bramarxi - Brâmane dotado de grandes virtudes. Santo da casta bramânica.


Fonte:
Malba Tahan. Os Segredos da Alma Feminina nas Lendas do Oriente.

Aurineide Alencar (3º Colar de Trovas)


Organização: Aurineide Alencar - MS

Tema: Primavera

01

A primavera ao chegar,
trazendo perfume e cor,
faz toda a Terra cantar:
“Louvado seja o Senhor!”
MARIINHA MOTA - MG

02    
Louvado seja o Senhor,

para além de qualquer era,   
pois nos faz bem seu calor,  
no inverno ou na primavera
ANTÔNIO CABRAL FILHO - RJ

03
No inverno ou na primavera

seja em qualquer estação,
a felicidade impera
no peito de cada irmão.
ADRIANO BEZERRA – RN

04
No peito de cada irmão

Floresce uma utopia
Brota em nosso coração
Um jardim de fantasia.
GILBERTO CARDOSO  – RN

05
Um jardim de fantasia

cultivo em meu coração,
nasce assim grande alegria
como flor, em minha mão.
AURINEIDE ALENCAR – MS

06
Como flor, em minha mão,

jardim com pétalas mil,
grande fé no coração
E sem pensamento vil.
PROF. ROQUE - RS

07
E sem pensamento vil

olhemos mais para as flores,
pelos jardins do Brasil
no chão, de todas as cores.
ADRIANO BEZERRA – RN

08
No chão de todas as cores

quando chega a primavera,
é lindo vermos as flores
sorrindo pra mais uma era!....
LUIZ CLÁUDIO – RN

09
Sorrindo pra mais uma era,

sempre aguardando o verão,
 junto a uma feliz espera,
que alegra o seu coração.
MADALENA CORDEIRO – ES
                                
10
Que alegra o seu coração

é vê um chão vicejado,
n'uma tão bela estação
separa o seco  e o molhado.   
FRANCISCO QUEIROZ – RN

11
Separa o seco e o molhado,

é rica em seu ministério,
faz cético apaixonado,
distinta em cada hemisfério.
ANTÔNIO DE PÁDUA ELIAS DE SOUZA – MG

12
Distinta em cada hemisfério,

vai por aí minha lira,
segue sem criar mistério,
certa que quem lê delira.
ANTÔNIO CABRAL FILHO – RJ

13
Certo que quem lê delira

e quem vê não desespera.
Abre a janela e respira
o aroma da primavera.
ANTONIO FRANCISCO PEREIRA – MG

14
O aroma da primavera

deixa a terra perfumada,
e o sutil vate assevera
no cantar da passarada!...
LUIZ CLÁUDIO – RN

15
No canto da passarada,

no cheiro da primavera,
recordo a velha morada
voltar para lá, quem dera!
ADRIANO BEZERRA – RN

16
Voltar para lá quem dera!

Cheiro de terra molhada,
sentir de novo quisera
e a vida manifestada!
ANTÔNIO DE PÁDUA ELIAS DE SOUZA – MG

17
E a vida manifestada

Ávida se manifesta,
nos sapos na invernada
pulando e fazendo festa.
GILBERTO CARDOSO – RN

18
Pulando e fazendo festa

em torno de açude cheio,
vendo na nuvem aresta
pra escapar de tempo feio.
PROF. ROQUE – RS

19
Pra escapar de tempo feio

sai espalhando suas flores,
nos jardins, está no meio,
a primavera é só cores.
AURINEIDE ALENCAR – MS

20

A primavera é só cores
de nada tenho receio,
meu país é multicores
pois, canto sem arrodeio!...
LUIZ CLÁUDIO – RN

21
Eu canto sem arrodeio*

os ventos que vêm do mar,
esperando em meu anseio
a primavera ao chegar.
AURINEIDE ALENCAR – MS
_____________________
Nota:
*ARRODEIO: 1. Fazer o caminho mais longo. 2. Dar a volta. 3. Ser prolixo. 4. Percorrer o trajeto em torno de.

Fonte:
Antonio Cabral Filho. Trovadores do Brasil

Carlos Drummond de Andrade (Três Homens na Estrada)


O encarregado do posto de lubrificação, sozinho àquela hora, estranhou os vultos que vinham a pé, na estrada. O sol nascia; apenas alguns caminhões passavam, transbordando de legumes. Os três homens caminhavam sem pressa, no leito da rodovia, indiferentes ao risco. Motoristas jogavam-lhes palavrões, sem que eles se importassem. Estavam vestidos de maneira inabitual, um de vermelho, outro de verde, outro de roxo; as roupas se assemelhavam a túnicas, dessas que o rapaz da lubrificação estava acostumado a apreciar em filmes de Victor Mature e vira uma só vez na vida real, quando passou por ali, rumo a São Paulo, o carro do embaixador da Índia, e uma jovem morena descera para contemplar a paisagem.

Como os estranhos parassem diante do posto, teve vontade de aproximar-se e perguntar o que desejavam. Mas deteve-se. Eram três, ele estava desarmado, não sabia que espécie de gente era aquela.

O mais alto deles ficava ainda mais esguio olhando para o céu, como quem indaga o tempo. Os outros miravam um ponto vago, esperando decerto que ele comunicasse o resultado da inspeção. Não houve palavras, entretanto. O homem comprido, de vermelho, baixou a cabeça e fitou por sua vez os companheiros. Entendiam-se pelo olhar, era evidente. Não careciam de palavras, ou temiam empregá-las. Tratava-se, realmente, de indivíduos suspeitos. Mas a suspeição que irradiavam era de natureza especial. O rapaz do posto — já é tempo de chamá-lo Marcos, pois assim fora batizado e registrado — imaginara no primeiro instante que fossem ladrões. Depois, pela excentricidade dos trajes, supusera-os simplesmente loucos. Agora percebia neles a majestade, ao mesmo tempo gloriosa e simples, de personagens de histórias da infância, no Nordeste, quando Carlos Magno ia com ele morro abaixo, morro acima, e Rolando e d. Pedro I enchiam o ar com o retintim de espadas românticas.

Não sabendo como falar-lhes, nem recebendo deles qualquer pedido, Marcos estendeu-lhes um copo d’água, que um bebeu devagar, embora o rosto fosse sede pura. Os outros dois fizeram o mesmo, sucessivamente. Agradeceram com os olhos, e foram-se.

Ao chegarem os colegas de trabalho, Marcos, pressentindo a importância do encontro, não quis contar-lhes nada. E eles vinham justamente fazendo troça dos tipos encontrados em caminho, que davam dor de cabeça aos motoristas. Nunca se xingara tanto numa estrada do Rio. Pois os três caminhavam para o Rio de Janeiro, sempre consultando o espaço.

O ônibus freou brusco, para não amassá-los. O motorista quis descer justamente para amassá-los, na raça. Entre os passageiros, as definições variavam: eram contratados de casa comercial, em promoção de festas; tinham bebido demais e erravam a esmo; não, são figuras de rancho ensaiando para Carnaval; ou palhaços de circo, descansando. Fugiram do hospício; são doidos mansos; pois sim, experimenta bulir com eles. Desceram do foguete interplanetário, numa praia fluminense. Marcianos? Isso não: uniformes russos,
meu velho.

Marcos trabalhou o dia todo com o pensamento naqueles três homens diferentes que, sem nada falar, lhe insinuaram muitas coisas. Não eram propriamente nobres, se bem que na poeira das vestes se entre-mostrasse nobreza. Em seu entendimento singelo, Marcos apreendia o recolhimento deles, sentia-os empenhados numa busca infatigável e serena, que não se faz por meio de perguntas. Eram ridículos talvez, exatamente porque não tinham qualquer relação com o lugar por onde passavam, não se serviam de nada que hoje em dia se usa para viajar. De onde vinham, por que vinham, o empregado de um posto de gasolina seria incapaz de saber. Mas sabia intuitivamente que levavam consigo uma alta obrigação.

No dia seguinte, Marcos leu no jornal que foram presos na Penha três indivíduos trajados de modo grotesco, ao atravessarem a linha férrea. Pareciam estrangeiros, nada carregavam, nada souberam responder. O delegado solicitara um intérprete da Polícia Técnica, mas não fora atendido porque era meio feriado, com expediente suspenso para que toda gente fosse assistir, no Maracanã, com a presença das autoridades, à festa da recepção simbólica aos Três Reis Magos.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Historinhas.