sexta-feira, 14 de junho de 2019

Malba Tahan (Mil Histórias sem Fim) Narrativa 5 e 6


Houve outrora, no país de Panjgur, na Índia, um rei que tinha três ministros.

Querendo um dia verificar o grau de estima e consideração em que era tido pelos seus três dignos auxiliares, ordenou o monarca fosse colocada no meio do grande parque do palácio real uma estátua (1) dele próprio e, escondido em discreto recanto, pôs-se à espera para observar o que fariam os ministros quando vissem inesperadamente aquele novo monumento.

O primeiro a chegar foi o ministro da Justiça. Ao defrontar com a estátua do rei no meio do arvoredo, parou muito sério, os braços cruzados sobre o peito, em atitude respeitosa, e examinou minuciosamente a obra de arte sem proferir uma única palavra, nem deixando transparecer a impressão que lhe causara o inopinado encontro.

Mal se retirara o primeiro ministro quando chegou o seu colega encarregado das Finanças e do Tesouro do país.

O digno tesoureiro do rei Malabã - assim se chamava o soberano de Panjgur - ao ver a nova estátua cobriu o rosto com as mãos e entrou a chorar desesperadamente como se grande desgosto o oprimisse.

Ao rei, que tudo observara, causou isto não pequena admiração.

- Por que teria o primeiro-ministro ficado tão sério ao ver a estátua, ao passo que para o segundo o defrontar com ela fora motivo de pranto desfeito?

Momentos depois chegou o terceiro-ministro. Era esse vizir encarregado unicamente de estudar as questões relativas às Forças Armadas e aos recursos militares do país.

O titular da Guerra, ao deparar-se-lhe a imponente figura do vaidoso monarca, entrou a rir com estrepitosas gargalhadas e de tal modo o dominaram os ataques de riso que chegou a cair de costas junto ao pedestal do régio monumento.

O rei Malabã, que além de orgulhoso era muito desconfiado - dois defeitos gravíssimos para um chefe de Estado -, ficou intrigadíssimo com a diversidade singular das impressões que sua imagem causara aos três dignos ministros de Panjgur.

A rígida gravidade do primeiro, as lágrimas do segundo e o louco gargalhar do terceiro eram enigmas que a régia sagacidade não podia decifrar, o que sobremodo o afligia.

Incapaz de refrear a curiosidade que o estranho caso lhe despertara, partiu o rei Malabã para o palácio e, tão depressa ali chegado, mandou viessem à sua presença os três ministros.

Contou-lhes o rei, sem nada ocultar, tudo o que observara e disse-lhes que queria saber o motivo por que ficara o primeiro-ministro tão sério, ao passo que o segundo chorara com abundância de lágrimas e o terceiro rira a ponto de perder os sentidos.

O ministro da Justiça, compreendendo que devia ser o primeiro a falar, assim começou, depois de saudar respeitosamente o rei:

- Deveis saber, ó rei magnânimo!, que ao ver aquela belíssima estátua, para mim até então desconhecida, lembrei-me de vós e dos grandes benefícios que tendes prestado ao povo, aos meus amigos, aos meus parentes e a mim em particular. Resolvi, pois, dirigir a Alá, o Altíssimo, uma prece, pela vossa saúde, prosperidade e bem-estar! Fiquei, como vistes, muito sério, ó rei generoso!, porque estava contrito em orações.

- Meu bom amigo! - exclamou o rei, abraçando-o. - Compreendo agora o quanto és sincero e dedicado! Jamais deixarei de retribuir a grande amizade que tens por mim.

E, voltando-se para o segundo-ministro, disse-lhe:

- Não compreendo, porém, ó vizir tesoureiro!, por que motivo a estátua pôde ser causa do teu grande desespero.

Assim interpelado, o ministro das Finanças, depois de prestar ao rei Malabã a sua homenagem humilde e respeitosa, começou:

- Cumpre-me dizer-vos, ó rei do tempo, que ao ver aquela bela estátua notei que ali estava a vossa majestosa figura posta no bronze pelo gênio incomparável de famoso artista. Este monumento é de bronze, pensei, e assim durará eternamente, ao passo que o nosso bondoso rei, na sua triste condição de mortal, não poderá sobreviver à própria efígie. Dia virá em que Hã-Ru, o Anjo da Morte, (2) na sua eterna faina, arrebatará a alma preciosa do nosso estremecido rei! E esses pensamentos cruéis, sem que eu pudesse impedir, apoderaram-se de mim e tal tristeza me trouxeram ao coração que, dando livre curso às lágrimas, chorei desesperadamente!

- Grande amigo! - atalhou o soberano hindu comovido. - Jamais me esquecerei da prova sincera de amizade que acabo de receber de ti!

E depois de abraçar afetuosamente o ministro da Fazenda, o rei Malabã voltou-se para o terceiro vizir e censurou-o com enérgico rancor:

- Nas tuas gargalhadas, porém, ó vizir!, próprias de um insensato, não vi mais do que um insulto e um escárnio à minha pessoa! Não compreendo como poderás explicar a tua atitude descabida e irreverente! Cabe-te a vez de falar! Dize-me onde foste buscar em minha estátua, perfeita e impecável, motivos para tamanha hilaridade.

Ao ouvir tais palavras, empalideceu o ministro da Guerra, sentindo que a falsa interpretação do rei punha a sua vida em grande perigo.

Sem perder, porém, a calma tão necessária em tais situações, o digno vizir do rei Malabã aproximou-se do trono e, depois de beijar humildemente a terra entre as mãos, assim falou:

- Rei generoso! Esteja o vosso nome sob a proteção dos deuses! Não sei mentir. Vou contar-vos a verdade, embora com sacrifício da minha vida, revelando-vos o motivo por que tanto ri ao topar com essa estátua! - E, diante do silêncio que se fizera, o terceiro-vizir começou: - Ao atravessar o parque do palácio, deparou-se-me um belíssimo monumento de bronze que representava a figura do glorioso sultão de Panjgur. Vendo a estátua lembrei-me, naquele instante, de uma história muito curiosa intitulada “O Beduíno Astucioso”, que ouvi contar, há dez anos, no interior da Arábia! Foi a lembrança dessa história que me fez rir daquela maneira!

- Que história é essa? - indagou o rei Malabã, tomado da mais viva curiosidade.

- É uma das lendas mais chistosas que conheço - explicou o vizir. - Ouvi-a de um velho árabe quando atravessava o deserto de Dahna! “Há, nesse deserto, uma gigantesca montanha de pedra lisa e acinzentada, que os árabes denominaram “A Sofredora”, já muitas vezes contornada pelas caravanas e varrida pelo simum. Ao norte dessa montanha agreste encontra-se pequeno e acolhedor oásis, com muita sombra e água fresca, onde florescem precisamente trezentas e trinta e três tamareiras. Dizem os caravaneiros que cada uma dessas trezentas e trinta e três tamareiras (com exceção de uma, e uma só) tem a existência ligada a uma lenda. Não há erro, pois, em afirmar que o número de lendas, nesse oásis, é igual ao número de tamareiras menos uma! A lenda da décima terceira tamareira é aquela que tem por título “O Beduíno Astucioso”. Houve mesmo um sábio matemático que calculou...

- Não me interessam os cálculos das trezentas e tantas tamareiras - interrompeu, com impaciência, o monarca. - Quero ouvir, sem mais delongas, a singular aventura do beduíno astucioso com todos os episódios, versos ou fantasias que estiverem com ela relacionados.

O rei, já meio agastado, exigia a narrativa. Era preciso obedecer ao senhor de Panjgur. O digno vizir concentrou-se durante breves instantes. Parecia coordenar as ideias e recordar os fatos que estivessem dispersos entre as brumas do passado. Decorridos, finalmente, alguns minutos, iniciou, com voz pausada, o seguinte relato:

Narrativa 6

Deveis saber, ó irmão dos árabes!, que existiu outrora, para além das montanhas de Kabul, um país muito rico e populoso chamado Kafiristã. O Kafiristã era, nesse tempo, governado por um soberano íntegro e sábio cujo nome a História registrou e perpetuou em páginas magníficas, para maior glória dos povos do Islã. Deveis saber também - pois bem poucos são aqueles que o ignoram - que esse monarca famoso, a que nos referimos, foi Romalid Ben-Zallar Khã.

Dando ouvidos aos conselhos de um vizir insidioso e bajulador, o rei Romalid (Alá o tenha em sua glória!) mandou erguer na grande praça da capital três belíssimas estátuas. (3)

A primeira era de bronze, a segunda de prata e a terceira - não obstante ser a maior - era toda de ouro. Todas representavam o rei em atitude de combate, a erguer ameaçador um grande alfanje recurvado.
Um dia, o vaidoso Romalid repousava descuidoso na varanda de marfim de seu palácio, quando notou que um velho beduíno, pobremente vestido, se aproximava do lugar em que se achavam os três monumentos. Ao ver a estátua de bronze, o árabe do deserto ergueu os braços para o céu e exclamou:

- Que Alá, o Exaltado, conserve o nosso rei! - Ao defrontar, logo depois, a estátua de prata, o beduíno riu alegremente e disse em voz bem alta: - Que Alá, o Altíssimo, abençoe o nosso rei! - Ao topar, porém, com o rútilo e áureo monumento, o beduíno atirou-se ao chão; como um louco, entrou a gritar, desesperado: - Que Alá, o Clemente, salve o nosso rei!

O sultão, que tudo observara, mandou que trouxessem o aventureiro desconhecido ao seu palácio e em presença dos vizires mais ilustres da corte, interrogou-o sobre a significação dos votos que proferira e das atitudes diversas e inesperadas que havia assumido diante de cada uma das estátuas.
O velho beduíno, homem inteligente e astucioso, interpelado pelo poderoso senhor do Kafiristã, inclinou-se respeitoso e exclamou.

- Allah alá tiac in manlei! (Que Deus conserve a vossa vida, ó rei!) Devo dizer, primeiramente, que o meu nome é Salã Motafa. Pertenço a um grupo de nômades do deserto que hoje, para breve repouso, acamparam junto às portas desta cidade. Há dez anos que não vinha ao Kafiristã e não conhecia os três novos monumentos ora erguidos ali no meio da praça. Ao ver a estátua de bronze compreendi que ela representava o nosso rei Romalid Ben-Zallar Khã, sultão magnânimo e afortunado. Prestei, pois, como humilde súdito que sou, minhas homenagens à figura imponente e respeitável do soberano, rei e senhor deste rico país. Pensei: “Se não houvesse um rei, justo e forte, para governar e dirigir o povo, este andaria na terra como, em pleno oceano, o batel sem piloto.”

“Ao avistar, logo depois, a estátua feita de prata pensei: ‘Se o rei mandou fazer uma estátua tão cara é porque tem as arcas do tesouro a transbordar de dinheiro. Há, portanto, notável e completa prosperidade no país!’ E este raciocínio trouxe-me ao espírito grande alegria, que externei, com a maior sinceridade, ao exclamar: 

‘Que Alá, o Altíssimo, abençoe o nosso rei e por muitos anos o conserve!’ ‘O que é muito puro de sangue, de linguagem e de conduta, o que é poderoso, reto e consumado político, é digno de reinar na terra.’

“Ao verificar, porém, que a terceira estátua era de ouro maciço, fiquei assombrado. ‘O rei enlouqueceu’, pensei. ‘Onde já se viu, em que terra e em que lugar, um soberano desperdiçar tanto dinheiro numa estátua de ouro quando há tanto benefício a fazer-se e tanta necessidade a remediar-se?! Pobre e desventurado rei! Está completamente dominado pelo delírio das grandezas!’ E esta triste conclusão afligiu-me de tal modo que de mim se assenhoreou grande e incontida aflição. Atirei-me desesperado ao chão, e implorei a proteção de Deus: ‘Que Alá, o Clemente, salve o nosso rei!’”

Achou o sultão muita graça na original explicação dada pelo inteligente forasteiro e perguntou-lhe:

- Acreditas, então, ó beduíno tão bem-dotado!, que eu poderia ficar louco sem que os meus súditos o percebessem?

- Acredito, sim, ó rei dos reis - afirmou o beduíno. - Não conheceis o caso ocorrido com o rei Talif?

- Não é possível, mesmo a um rei, conhecer os casos que se deram com todos os reis. Possivelmente, ignoro o que ocorreu com esse meu digno antecessor.

- Pois é a história mais espantosa de quantas tenho ouvido - respondeu o beduíno. - Trata-se de um rei que verificou ter acontecido, consigo mesmo, uma anomalia realmente fantástica; durante nove anos, apesar de completamente louco, governava tranquilamente um dos países mais prósperos e mais ricos do mundo! E houve ainda, no caso, uma particularidade notável. No dia em que o rei Talif achou que seria prudente enlouquecer ficou inteiramente curado da demência que o aniquilava!

- Por Alá! - exclamou o sultão. - Será possível que um rei demente possa governar com acerto um grande país? Conta-nos, ó Filho do Deserto!, conta-nos esta história que me parece curiosa!

- Escuto-vos e obedeço-vos - respondeu o nômade, beijando humilde a terra entre as mãos. - Conto com a vossa generosidade. O coração do bom, embora agastado, não muda. Não é possível aquecer a água do oceano com a luz de uma vela!

E na sua voz forte e cadenciada, como o andar de uma caravana, o astucioso beduíno iniciou a seguinte narrativa:
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Notas
1 A religião maometana proíbe a representação de animais, o uso de imagens e de figuras humanas. Na Índia, porém, muitos países estão inteiramente fora do Islã. 

2 Hã-Ru - Na mitologia hindu figuram nada menos de 17 deuses. Um deles, Siva, é o princípio destruidor e tem como auxiliar Hã-Ru, o mensageiro da Morte.

3 A religião maometana proíbe a representação de animais, o uso de imagens e de figuras humanas. Na Ásia, porém, muitos países estão inteiramente fora do Islã.
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continua…
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Fonte:
Malba Tahan. Mil histórias sem fim. vol.2

quinta-feira, 13 de junho de 2019

J. G. de Araújo Jorge (Inspirações de Amor) XVI


PAISAGEM DO SILÊNCIO

Tenho a janela para os céus aberta,
e entre a renda dos ramos da mangueira,
- timidamente a luz do luar se esgueira
e anda na sombra, vagamente, incerta.

A noite está de estrelas recoberta
e a "via-láctea..." a esparramar-se, inteira,
- parece uma florida trepadeira
abrindo os astros na amplidão deserta...

Sob a sombra das árvores, - no chão,
as rodelas de luz, tremeluzindo,
lembram moedas de prata em profusão...

É profundo o silêncio... tudo em calma...
Chego a ter a impressão de estar ouvindo
o rumor dos meus sonhos na minha alma!…

PAR CONSTANTE

Dia dois... uma festa... Era o mês de janeiro...
Festa da minha vida... A noite azul, brilhante...
Chegaste... E eu fui teu par... fui o teu par primeiro...
Dançamos... (como é bom lembrar aquele instante!)

Tu, tão linda, nem sei... Eu, feliz, petulante,
um pouco petulante, sim... mas cavalheiro...
Dançamos toda a noite... E fui teu par constante...
Nem só teu par constante... Eu fui teu par primeiro...

Quantas cousas te disse... E assim juntos, os dois,
com os meus olhos nos teus - afinal, quem diria
o mundo que ainda havia de surgir depois?

Quem diria ao nos ver, talvez, aquele instante,
que o nosso par  feliz, constante aquele dia,
seria a vida inteira e sempre um par constante!

PASSIONAL

És lânguida e amorosa quando estás sozinha
e em teu corpo perfeito este amor apoteosas!
Nos teus olhos distantes, tudo se adivinha
e há em teu beijo um sabor encarnado de rosas!

Nasceste com certeza para ser rainha,
e o serias na certa, das mais poderosas!
- no entanto, aqui te tenho escrava, e sendo minha
cabes toda e inteirinha em minhas mãos nervosas!

Os teus cabelos louros, soltos sobre o leito
espalham-se  em meu ombro, emolduram teu rosto,
e, quando assim te sinto abatida em meu peito

os teus olhos castanhos, místicos, oblongos,
vão morrendo em desmaios roxos de sol posto
sob a noite de seda dos teus cílios longos!

PENSANDO NELA
  
Neste instante em que escrevo, estou pensando nela,
longe de mim, no entanto, em que estará pensando?
- quem sabe se a sonhar, debruçada à janela
recorda nosso amor, a sorrir, vez em quando...

Ou terá tal como eu, esse ar de alguém que vela
um sonho que estivesse em nosso olhar flutuando?
Ou quem sabe se dorme, e adormecida e bela
o luar lhe vai beijar os lábios, suave e brando...

Invejaria o luar... É tarde, estou sozinho,
ela dorme talvez, e não sabe que ao lado
do seu leito, a minha alma ronda de mansinho...

Nem vê meu pensamento entrar pela janela
e ir na ponta dos pés murmurar ajoelhado
este verso de amor que fiz, pensando nela!

PÔR DE SOL
                                  ( Aquarelas )

Pelo vão da janela escancarada
Tenho os olhos pousados no horizonte,
até que atrás da terra o luar desponte
na noite só de estrelas pontilhada...

Lá embaixo - como a fita de uma estrada
sob a arcada mourisca de uma ponte
as águas cristalinas de uma fonte
são o espelho da tarde iluminada...

Há chilreios na sombra do arvoredo
e no ouvido das árvores passando
o vento diz baixinho algum segredo...

Multiplicam-se as sombras nas quebradas.
e as nuvens lembram na distância, um bando
de pétalas de luz, ensanguentadas!

PRESSENTIMENTO

O fim do nosso amor pressenti - na agonia
das tuas próprias cartas, rápidas, pequenas...
- se nem tantas, com carinho imenso te escrevia
tão poucas me chegavam por resposta apenas...

Nas cartas que a sofrer, te escrevia, às dezenas
adiava a realidade sempre, dia a dia,
procurando iludir em vão as minhas penas
muito embora eu soubesse o quanto me iludia!

Hoje... já não foi mais surpresa para mim,
dizes (como quem tem piedade), que é melhor
não continuarmos mais... e tens razão: é o fim...

Há muito eu o esperava e o pressentia no ar...
Chegou... que hei de fazer?... Foi bom... Seria Pior
se ele não viesse nunca... e eu ficasse a esperar…

PRIMEIRO AMOR

Quando te vi naquela tarde eu era
uma criança, talvez - tinha quinze anos;
- não sabia, da vida, os desenganos
que à nossa frente vão ficando à espera...

Estava no esplendor da primavera
e num mar de ilusões erguia planos...
No peito, não guardava estes profanos
sentimentos, que o mundo aos poucos, gera...

Foi assim que te vi... e então julgava
que a vida era melhor do que eu pensava
e me sentia mais feliz que um rei...

Mas um dia... Não sei por que... Partiste...
- E eu que era alegre, me tornei triste
e a tristeza em meus versos transbordei !

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. Os Mais Belos Poemas Que O Amor Inspirou. vol. 1. SP: Ed. Theor, 1965.

Vinicius de Moraes (Para uma menina com uma flor)


Porque você é uma menina com uma flor e tem uma voz que não sai, eu lhe prometo amor eterno, salvo se você bater pino, que aliás você não vai nunca porque você acorda tarde, tem um ar recuado e gosta de brigadeiro: quero dizer, o doce feito com leite condensado. 

E porque você é uma menina com uma flor e chorou na estação de Roma porque nossas malas seguiram sozinhas para Paris e você ficou morrendo de pena delas partindo assim no meio de todas aquelas malas estrangeiras. E porque você quando sonha que eu estou passando você para trás, transfere sua d.d.c. para o meu cotidiano e implica comigo o dia inteiro como se eu tivesse culpa de você ser assim tão subliminar. E porque quando você começou a gostar de mim procurava saber por todos os modos com que camisa esporte eu ia sair para fazer mimetismo de amor, se vestindo parecido. E porque você tem um rosto que está sempre num nicho, mesmo quando põe o cabelo para cima, como uma santa moderna, e anda lento, a fala em 33 rotações mas sem ficar chata. E porque você é uma menina com uma flor, eu lhe predigo muitos anos de felicidade, pelo menos até eu ficar velho: mas só quando eu der aquela paradinha marota para olhar para trás, aí você pode se mandar, eu compreendo. 

E porque você é uma menina com uma flor e tem um andar de pajem medieval; e porque você quando canta nem um mosquito ouve a sua voz, e você desafina lindo e logo conserta, e às vezes acorda no meio da noite e fica cantando feito uma maluca. E porque você tem um ursinho chamado Nounouse e fala mal de mim para ele, e ele escuta mas não concorda porque é muito meu chapa, e quando você se sente perdida e sozinha no mundo você se deita agarrada com ele e chora feito uma boba fazendo um bico deste tamanho. E porque você é uma menina que não pisca nunca e seus olhos foram feitos na primeira noite da Criação, e você é capaz de ficar me olhando horas. E porque você é uma menina que tem medo de ver a Cara- na-Vidraça, e quando eu olho você muito tempo você vai ficando nervosa até eu dizer que estou brincando. E porque você é uma menina com uma flor e cativou meu coração e adora purê de batata, eu lhe peço que me sagre seu Constante e Fiel Cavalheiro. 

E sendo você uma menina com uma flor, eu lhe peço também que nunca mais me deixe sozinho, como nesse último mês em Paris; fica tudo uma rua silenciosa e escura que não vai dar em lugar nenhum; os móveis ficam parados me olhando com pena; é um vazio tão grande que as outras mulheres nem ousam me amar porque dariam tudo para ter um poeta penando assim por elas, a mão no queixo, a perna cruzada triste e aquele olhar que não vê. E porque você é a única menina com uma flor que eu conheço, eu escrevi uma canção tão bonita para você, "Minha namorada", a fim de que, quando eu morrer, você se por acaso não morrer também, fique deitadinha abraçada com Nounouse, cantando sem voz aquele pedaço em que eu digo que você tem de ser a estrela derradeira, minha amiga e companheira, no infinito de nós dois. 

E já que você é uma menina com uma flor e eu estou vendo você subir agora - tão purinha entre as marias-sem-vergonha - a ladeira que traz ao nosso chalé, aqui nestas montanhas recortadas pela mão presciente de Guignard; e o meu coração, como quando você me disse que me amava, põe-se a bater cada vez mais depressa. E porque eu me levanto para recolher você no meu abraço, e o mato à nossa volta se faz murmuroso e se enche de vaga-lumes enquanto a noite desce com seus segredos, suas mortes, seus espantos - eu sei, ah, eu sei que o meu amor por você é feito de todos os amores que eu já tive, e você é a filha dileta de todas as mulheres que eu amei; e que todas as mulheres que eu amei, como tristes estátuas ao longo da aleia de um jardim noturno, foram passando você de mão em mão, de mão em mão até mim, cuspindo no seu rosto e enfeitando a sua fronte de grinaldas; foram passando você até mim entre cantos, súplicas e vociferações - porque você é linda, porque você é meiga e sobretudo porque você é uma menina com uma flor.

Fonte:

quarta-feira, 12 de junho de 2019

Benedita de Mello (Poemas Avulsos) 1


A BENJAMIN CONSTANT

Eu te agradeço, Benjamim Constant,
eu te agradeço todo o bem de outrora,
que há tantos anos feito, eu sinto agora
e sentirão os cegos do amanhã.

Toda a Luz do Saber, fulgente aurora,
com que me batizaste a alma pagã.
E os teus esforços que pusemos fora,
a troco apenas de promessa vã.

Eu te agradeço as expressões sinceras,
que dia e noite vens me repetindo,
certa de que és ainda o que antes eras.

Eu te agradeço o labutar infindo,
pelo qual te entendi e amei deveras.
E, sendo cega, pude ver-te lindo!

BENDITA CEGUEIRA

Não vi ciscar a terra o pintainho,
nem vi no lago espreguiçar-se a lua.
Não vi num ramo balouçar-se o ninho,
nem no dorso do mar vi a falua.

Não vi, em frente, o rumo ao meu caminho...
Vi ruidosa e deserta cada rua...
Meu ser em toda a parte vi sozinho...
Não vi o mato verde, a pedra nua...

Mas se não vi a graça de uma flor,
Nem  plumagem de pássaro cantor,
Bendigo o que não vi, para bem meu...

Não vi o olhar de quem renega...
E a dor de minha mãe ao ver-me cega...
E o rosto de meu pai, quando morreu...

INGRATA

Buganvília, minha amada,
onde pássaros cantores
vinham em tarde rosada
cantar cantigas de amores.

Foi junto ao muro plantada.
Guardei-a dos malfeitores.
Por ser assim, bem cuidada,
dava-me todas as flores...

E um dia fiquei tão triste,
Por ver que em tudo o que existe,
sempre existe a ingratidão!

Pela parede subiu,
e do outro lado floriu,
distante da minha mão.

MEU QUARTO DE BANHO

O meu quarto de banho era um riacho
que atrás do meu casebre se estendia
e ali formava um cristalino tacho
que a natureza cuidadosa enchia.

Ramalhada por teto, areia em baixo.
E paredes de palha luzidia
retirada ao coqueiro, ainda em cacho,
onde insistente um bem-te-vi mentia...

O cabide era o tronco dos ingás.
Sobre pedras, nas margens embutidas,
que sabonete bom, raspas de juás!

Esse rio em que virgem me banhei,
por entre as tranças de cipó floridas,
foi bem a pia em que me batizei.

MEUS VERSOS

Estes meus versos não terão beleza.
São versos pobres e descoloridos;
mortiça chama, sobre a campa acesa,
resto de instantes sem amor vividos.

Lembram grilhões a que tenho a alma presa;
morrão de cinza de meus tempos idos;
foram cantados a embalar tristeza,
não foram feitos para serem lidos.

São versos nossos, meus e teus somente.
Verdade nossa, muito nossa e crua.
Não pode ouvi-la, quem amor não sente.

História amarga que não foi contada,
e encerra apenas a minha vida e a tua.
Tu, menos eu, mais eu, sem ti. Mais nada.

MINHA ESCOLA

Minha escola! Existia só aquela
no tempo em que estudei. Jovem. Tranquila.
— Por sabê-la dos cegos — a pupila,
dia por dia se me fez mais bela.

Podem ir vê-la, porém nunca ouvi-la;
torce a verdade, é fina e tagarela,
com falar afetado, ela é singela.
Como eu a soube amar e sei senti-la!

Pintaram-lhe de rosa a alta figura.
Sofre, porém, de mal que não tem cura...
E’ velha já, cem anos faz agora.

Quanta alegria e garbo na fachada!
E lá por dentro, quanta dor guardada!
— Muita gente há feliz assim, por fora.

TREVA E LUZ

Quem diz que o cego não vê luz, não pensa
que o Pai dá tudo a todos igualmente;
que entre o vidente e o cego, a diferença
é que um vê tudo, e outro tudo sente.
  
A luz, com seu poder de onipresença,
a maior invenção do Onipotente,
vários efeitos de uma Causa imensa,
está em toda parte, em toda gente.

Não é por não ver luz que há gente cega;
mas por falhas de um órgão que a conquiste;
isto é verdade que jamais se nega.

Concordo que a cegueira é cruz pesada,
mas se alguém nada vê por não ter vista,
quem tem vista, sem luz, já não vê nada.

Benedita de Mello (1906 – 1991)


Nascida em 16 de março de 1906, em Vicencia, um lugarejo no sertão pernambucano, faleceu no Rio de Janeiro, 1991, cidade onde se radicou desde 1919. (Foi registrada como nascida no Rio de Janeiro, em 1905).

Cega de nascença foi possuidora de rara inteligência. Apesar de uma vida de sofrimentos, teve a felicidade de ser ajudada por pessoas amigas que a levaram para o Rio de Janeiro, matriculando-a no Instituto Benjamin Constant, permitindo-lhe estudar e se formar no Magistério, onde exerceu a função de professora de Português, por mais de 40 anos.

Encantava a todos com os seus versos. Mãos amigas ajudaram-na a publicar as suas poesias. Realizou inúmeras conferências e criou a Semana Social dos Cegos do Brasil, e fundou a Instituição Hellen Keller.

Autora de belos versos, deixou algumas obras como: "Lanterna Acesa"-1938 e "Sol nas Trevas"-1944. 

Primeira mulher, talvez, a ser cogitada para a Academia Brasileira de Letras.

Fonte principal:

Carolina Ramos (O Folião)


Santos. O bairro do Gonzaga respirava fundo. Depois de alguns anos, a folia do Carnaval, desta vez, teria por palco a Ponta da Praia. Do já famoso Carnaval santista, chegariam ao bairro anteriormente castigado e pisoteado, as ressonâncias dos surdos, o eco longínquo da batucada e a zoeira, bastante amenizada, da algazarra dos foliões. Longe ficava, também, o clarão exuberante das luzes da Av. Bartolomeu de Gusmão, transformada agora em passarela carnavalesca.

Entre os dois polos, o bairro do Boqueirão curtia a intermediação, como novidade, cujas consequências só poderiam ser avaliadas num após. Inclinados para a direita ou para a esquerda, como bons representantes da orla santista, os prédios de apartamentos serviam de arquibancada privilegiada, ou melhor ainda, de camarote, já que a infra-estrutura dos lares, por detrás de cada janela, garantia maior conforto.

A avenida praiana, recentemente recapeada, oferecia um tapete de asfalto impecável, lavado pelas copiosas chuvas de verão, bem propício à vibração dos passistas, na espera, indócil, do início do desfile.

Um a um, chegavam os carros alegóricos. Empíricos ainda, mostrando apenas a carcaça. A decoração acontecia no próprio local, a ritmo acelerado, e por ordem de chegada. Era ver um caminhão desovar pequena multidão à paisana e, num passe de mágica, vê-la caracterizada com as cores e brilhos exigidos pela ala à qual pertenciam os componentes. Logo, o asfalto era varrido pelas saias fartas e rodopiantes das baianas, chegadas em profusão, e pelos passos lépidos de mil e um figurantes, em trajes por vezes indefiníveis. Aconteciam excessos nessa ágil troca de roupas em local público? Certamente que sim! Aqueles que os viam, fingiam nada ver. E o assunto morria, E acabava por ser enterrado na cova rasa da cumplicidade carnavalesca que tudo perdoa e sepulta... pecadilho de carnaval, sem maiores consequências. Na maioria das vezes, quem chegava vestido, saía com bem menos roupas que era possível imaginar. Carnaval! Mesmo aqueles que se escandalizavam, mesmo aqueles que torciam o nariz aos desmandos e à semvergonhice liberada, não conseguiam ficar indiferentes à exuberância exibida pelos canais de televisão, embasbacados com a explosão colorida de beleza e sensualidade despejadas em enxurrada dentro de suas próprias casas, a um simples girar de botões. Carnaval!

Valdo prometera a si mesmo que, naquele ano, haveria de se esbaldar! Mal sentiu no ar os primeiros sintomas da síndrome carnavalesca, levou à risca a letra do velho sambão: — "vestiu uma camisa listrada..."

Largou-se. Fantasiado de povo, perdeu-se dentro dele. Tentara entrar numa das tradicionais Escolas de Samba, das mais categorizadas. Não tinha samba no pé. Muito menos na cabeça. Definitivamente reprovado, não desistiu. Dirigiu-se, cedo, para o Boqueirão, onde as Escolas ultimavam os preparativos para o desfile. Um camarim a céu aberto! Céu vestido de negro, de estrelas apagadas. Céu zangado com o que via lá embaixo! Valdo infiltrou-se aqui e ali, tentando ser útil. Ninguém precisava dele. Todo o mundo, atarefado, encarregou-se de fazê-lo ciente disso. Posto a escanteio, insistiu. Convidado, com maior veemência, a retirar os préstimos não solicitados, conformou-se, afinal. Não foi bem assim. Sentou-se no meio fio, aparentemente resignado, à espera do momento propício para voltar ao ataque.

Um frenesi muito especial correu ao longo da Escola perfilada, deixando antever que a hora da participação era chegada. Os carros alegóricos deram mostras de vida, deslizando de manso pela passarela, adornados convenientemente e com os destaques sambando nos devidos lugares.

Ensurdecedoras, as baterias faziam vibrar os prédios tortos da orla. Os cristais tiniam nas cristaleiras, quando ainda existentes.

A chuva fina, caída pouco antes, deixara o asfalto escorregadio, dificultando a tarefa de impulsionar os carros enormes, e suas frenéticas alegorias. Monumentos ambulantes! Alguns, envoltos ainda em plástico protetor. Presentes, bem embrulhados, para serem entregues aos olhos do públicos, no momento oportuno.

Não era fácil! Nem bem a faina do empurra-empurra começada, e já o cansaço ameaçava perturbar. Um dirigente de Escola descobriu Valdo, cabisbaixo, deprimido, sentado à beira da calçada.

— Ei, você aí…, quer dar uma ajudazinha?

Valdo olhou em volta, antes de responder. Era com ele mesmo. Coração aos pulos e olhos acesos, lançou-se à tarefa. Nascia naquele instante, um dos foliões mais ativos da
Avenida!

Madrugada a dentro, com ânimo insuspeitado, Valdo empurrou o imenso monumento, coberto de plumas adejantes, até a meta final.

Ao voltar para casa, pela manhã, exausto, encharcado de suor, comentava, com bravata, quase sem fôlego:

— Gente! Desfilei na maior!... Me esbaldei pra valer!...

Largou-se na cama.

Se à noite ajudara o diabo… de dia, dormiria como um anjo... feliz... feliz!...

Fonte:
Carolina Ramos. Interlúdio: contos. São Paulo: EditorAção, 1993.

Malba Tahan (Mil Histórias Sem Fim) Narrativa 3 e 4


Imedin Tahir Ben-Zalan conta sua vida e suas aventuras. Por que foi ele à casa do xeque Abder Ali Madyã e as pessoas que lá encontrou. O que disse o xeque a um velhote que oferecia um escravo e as peripécias que depois se seguiram.

Meu nome é Imedin Tahir Ben-Zalã e sou natural de Damasco.

Muito cedo tive a infelicidade de perder meu pai, e achei-me, com minha mãe e meus irmãos, em completo desamparo. Um bom mercador, que morava nas vizinhanças de nossa casa, tomou-me sob sua proteção. Graças ao inestimável auxílio desse generoso protetor, obtive meios que me permitiram estudar com os mestres e adquirir, assim, os variados conhecimentos que hoje possuo e de que me tenho valido nos transes mais difíceis da vida.

Há cerca de dois anos, mais ou menos, a marcha serena de minha existência foi perturbada por um acontecimento imprevisto. Salomão Moiard, assim se chamava o meu pai adotivo, obrigado a partir para Jerusalém, em virtude de um chamado urgente, deixou os haveres que possuía, inclusive uma pequena caixa na qual se guardavam mil sequins de ouro. Recomendou-me que zelasse com o maior desvelo pelos seus bens e riquezas, pois só ao fim de um ano talvez, liquidados os seus negócios na Palestina, poderia regressar dessa longa jornada ao país dos israelitas.

Jurei que tudo faria para corresponder à honrosa confiança que ele em mim depositara; e, na manhã seguinte, depois da primeira prece, (1) tive a tristeza de vê-lo partir com grande caravana de mercadores judeus.

O velho Salomão deixara, para as minhas despesas, quantia razoável com a qual eu poderia viver, sem privações, durante um ano. Resolvi, entretanto, auxiliar minha mãe, como sempre fizera - a fim de atenuar-lhe a penúria em que vivia -; deliberei obter um emprego que me permitisse, embora com sacrifício, aumentar-lhe os recursos pecuniários.

Naquele tempo vivia em Damasco um opulento mercador chamado Abder Ali Madyã, cujo nome brilhava à luz do prestígio que os muçulmanos atribuem aos que têm ouro em abundância, oásis e caravana. Informado de que o xeque (2) procurava um secretário, apresentei-me em sua nobilíssima residência, à hora marcada, esperançoso de obter o vantajoso emprego.

Recebeu-me à porta um escravo baixote, vestido à moda síria, e, tendo declarado a razão da minha presença, fui conduzido até um belo salão onde deparei várias outras pessoas que aguardavam a audiência do xeque. Entre os presentes, reconheci os incorrigíveis Annaf e Mohammed, “o gago”, escribas de poucas luzes, que se tornaram famosos entre os damascenos em razão da falta de discrição e honestidade com que desempenhavam as tarefas mais sérias de que se encarregavam.

A fantasia popular não exagerava ao atribuir ao poderoso Abder Madyã uma opulência quase lendária. A sua deslumbrante moradia, cuja construção obedecera ao plano de um escravo cristão, ostentava o luxo e a riqueza de um serralho imperial; havia por toda parte valiosas alcatifas, e no salão poligonal em que nos achávamos, as paredes internas eram cobertas por figuras geométricas coloridas, entrelaçadas em harmoniosas combinações. Menos deslumbravam os adornos e pedrarias do que a arte e o fino gosto com que tudo ali era arranjado.

Quando o xeque surgiu, como um príncipe das Mil e uma Noites, acompanhado de seus íntimos e auxiliares, levantamo-nos respeitosamente e fizemos o salã (3). Com um ligeiro aceno, o fidalgo agradeceu-nos a saudação.

Um velhote nervoso, de olhos embaciados, que se pusera a um canto, depois de curvar-se várias vezes desmanchando-se em repetidos salamaleques, aproximou-se do xeque e entregou-lhe um documento que trazia em rolo, preso por uma fita azulada.

O xeque tomou o pergaminho, desenrolou-o lentamente, e sobre os vagos caracteres ali traçados correu displicente o olhar.

Ualá! (4) - exclamou irritado devolvendo ao velhote o documento. - Não me convém a sua proposta. Acho-a irracional. Seria um absurdo que eu comprasse um escravo, por um preço elevado, sem adquirir nessa transação a pele desse escravo! Que disparate! Onde já se viu semelhante despautério?

- Xeque dos xeques! - acudiu pressuroso o velhinho, torcendo os dedos. - Trata-se, como já vos disse mais de uma vez, de um caso excepcional. A pele do escravo a que me refiro não lhe pertence. Posso contar-vos...

- Pelas barbas de Mafoma! - atalhou colérico o xeque. - Não me interessa saber como se chegou a essa situação inverossímil e anti-humana; não me animo, tampouco, a ouvir a história desse escravo martirizado pela servidão! Já estou farto de casos excepcionais! Qualquer mendigo da estrada, em troca de um osso, é capaz de contar vinte casos excepcionais! Os homens de imaginação baratearam o impossível. Só os fatos sobejamente vulgares e rotineiros é que a mim me parecem realmente excepcionais!

E, isso dizendo, voltou-se para um dos homens que se achavam perfilados, aguardando ordens, e murmurou secamente:

- Leva daqui este importuno!

Acompanhei, ainda, com o olhar, o velhote nervoso que se retirava aos trancos, levado pelo braço hercúleo de um guarda. Sua figura pareceu-me cheia de mistério. 

Que estranho caso seria aquele do escravo que não era dono da própria pele? Algum dia - pensei - mesmo que seja para tanto obrigado a contar todos os pelos de um camelo, hei de descobrir o paradeiro desse singular muçulmano para dele ouvir aquele “caso excepcional” a que o xeque não dera a menor importância. (5)

Tendo saído o velhote de roupa cinzenta, ficaram, apenas, aguardando a decisão do xeque, os que pretendiam o lugar de secretário. Éramos em número de quatro: eu, os dois escribas desonestos (aos quais já me referi) e um tipo pálido, alto como uma girafa e muito magro, que não cessava de sacudir a cabeça para baixo e para cima, como se quisesse, por antecipação, concordar com alguma coisa que ia ouvir de alguém.

- Sou avesso à prática da injustiça - começou o xeque - e não quero, pois, errar na escolha de meu novo secretário. Conforme costumo proceder em tais casos, vou submetê-los a uma pequena prova, que será simples e sumária. Aquele que se sair com mais brilho e revelar maior habilidade será por mim escolhido. Ali, sobre aquela mesa, está o material necessário. Cada um dos candidatos poderá escrever a seu bel-prazer o que muito bem entender, contanto que revele inteligência e cultura!

Ao perigoso Annaf, que se achava na frente, cabia, no caso, a iniciativa. Aproximou-se da mesa, tomou do cálamo e de uma folha em branco e, depois de sentar-se sobre uma almofada, escreveu várias linhas, pondo nessa operação os cuidados de um calígrafo.

- Leia! - ordenou o xeque.

O escriba, que usava habitualmente do cinismo como recurso seguro de êxito, leu com voz clara, numa cadência irritante, as linhas que traçara.

Glorificado seja Alá, o Altíssimo! No país do Islã (6) não há homem mais generoso, mais belo, mais sábio e mais valente do que o grande xeque Madyã! O nome desse genial 
muçulmano...

- Não me agradam - interrompeu com azedume o xeque - os elogios derramados como os que aí escreveste. Abomino os bajuladores. A tua gabação, envilecida pela sabujice, cai sobre mim como a baba de um camelo. Vai-te daqui e não me procures mais. Lembra-te de que eu sei fazer com que os impertinentes amarguem o arrependimento das importunações com que me irritam!

Regozijei-me intimamente com tal decisão. Foi o caviloso escriba agarrado, num abrir e fechar de olhos, e arrastado para fora do salão pela férrea musculatura de dois guardas autômatos. Percebi que houve, a seguir, um tumulto, acompanhado de ruídos surdos, no corredor; veio-me a espírito a suspeita de que ele teria sido impiedosamente espancado pelos numerosos servos. O regozijo, que a princípio sentira, transformou-se, por causa daquele sucesso, na mais grave apreensão.

Mohammed, “o gago”, foi o segundo a apresentar a prova exigida. Tendo escrito duas ou três linhas demonstrativas de sua capacidade, entregou-as ao xeque julgador.

Mal relanceara sobre elas os seus olhos espertos, enfureceu-se perigosamente o rico Madyã.

- Miserável, filho de miseráveis! - gritou enviperado. - Detesto, já o disse, a sabujice dos cínicos tanto quanto execro os tipos grosseiros e mal-educados! Isto que escreveste é uma estúpida infâmia! Por Alá! Vai-te, antes que eu perca por completo a calma.

O temido senhor não teve necessidade de repetir a ordem. Um agigantado cameleiro agarrou pelas costas o grosseiro candidato e, com um empurrão violentíssimo, atirou-o para fora da sala, sem cuidar da desastrosa posição que lhe remataria a queda. Ouvi novamente ruídos surdos e prolongados no corredor; desta vez, entretanto, não tive dúvidas sobre o tremendo espancamento com que os servos castigavam o segundo pretendente.

A má sorte de Annaf e Mohammed não perturbou a calma e a serenidade do tal homem pálido, magro, que sacudia a cabeça. Com penalizante humildade, sem desligar dos lábios um lastimável sorriso, que traduzia a mais profunda resignação, aproximou-se do xeque em cujas mãos depositou uma pequena folha, na qual rabiscara alguns versos de notável poeta árabe.

- Imbecil que és! - exclamou o xeque, depois de ler a prova e tomado de vivo rancor. - A tua ignorância é revoltante! Nos versos de Montenébbi (7) que aqui escreveste, há três acentos trocados e duas sílabas erradas! É incrível que um árabe tenha a ousadia de estropiar, assim, o mais admirável poema do Islã! - E a transbordar de empáfia, ajuntou: - Sei de cor os cinco mil versos de Antar, as canções de Nobiha, de Tarafa e Zobe. Já li cem vezes as obras dos antigos e modernos escritores árabes. Não posso admitir, portanto, que um imbecil, por ignorância, estropie torpemente as joias mais caras do grande Montenébbi!

E vi penalizadíssimo ser aplicado ao terceiro infeliz o mesmo tratamento brutal dispensado aos dois primeiros: seguiram-se, como das outras vezes, barulhentos distúrbios no fatídico e temeroso corredor. Voltou-se, a seguir, o xeque para os amigos que o rodeavam e proclamou com irritante prosápia:

- Viram a audácia deste chacal insolente que fiz expulsar agora de minha casa? Teve a petulância de me oferecer, como coisa sua, fruto de sua acanhada inteligência, um punhado de lindos versos que o imortal Montenébbi escreveu, em Chiraz, para obter a simpatia e proteção do poderoso Adod-ed-Daula. O infeliz plagiário não se lembrou de olhar para os seus pés antes de submeter a julgamento a sua desastrosa prova.

E o enfatuado xeque apontou para o grande e rico tapete azul-claro, adornado com legendas admiráveis, que cobria a parte central do aposento. Destacavam-se, no centro do tal tapete, versos admiráveis de Montenébbi:

Quis apossar-me do Tempo
 mas o Tempo, imaginário,
 não se deixou alcançar.
 Procurei a eternidade,
 pensando que, na Ciência,
 tudo pudesse encontrar.
 Mas voltei de mãos vazias,
 lamentando os dias meus,
 estudei e, logo, a Dúvida
 veio afastar-me de Deus... (8)

- Que tapeçaria magnífica! - comentou com voz amolentada um tipo gorducho, de rosto redondo, que parecia íntimo do xeque. - É de estranhar que o velhote não tenha reparado nela, depois de ter permanecido nesta sala, à nossa espera, durante tanto tempo.

- Isso acontece com os indivíduos vulgares, meu caro Rhaif - acudiu com vivacidade o xeque. - Olham, mas não veem; ouvem, mas não escutam; falam, mas não dizem nada; correm, mas não se afastam. Conheci, em Homs, um aguadeiro tão distraído que de uma feita, ao sair da mesquita, esqueceu as babuchas e enrolou os pés no turbante! Ao chegar a casa, a esposa espantou-se e disse: “Que loucura é essa, meu marido? Olha o que fizeste com o teu turbante!” Respondeu o aguadeiro olhando para os pés: “Foi distração minha! Pensei que tomara, por engano, as calças do velho cádi!”

A citação daquele caso - que me parecia uma frioleira sem sentido e sem cabimento - fez rir gostosamente o gordo Rhaif. Todos os outros xeques desmancharam-se, também, em estrepitosas risadas. Sentia-se que a intenção dos presentes era lisonjear e agradar o dono daquele palácio, o opulento xeque Madyã.

Que chiste poderia alguém descobrir naquela desenxabida anedota do aguadeiro? A minha atitude discreta e serena despertou a atenção do xeque.

Fitou-me muito a sério e, fazendo transparecer certa ironia em suas palavras, disse-me com voz pausada:

- Chegou, agora, a tua vez, meu jovem amigo! Que no insucesso e no lamentável fracasso de teus antecessores possas descobrir meio mais seguro de alcançar a vitória. Queira Alá que a tua prova seja satisfatória, pois os cameleiros que me servem já estão, com certeza, fatigados de castigar atrevidos e ignorantes audaciosos! Pela sagrada mesquita de Meca! Vamos à prova!

Narrativa 4

Continuação das aventuras de Imedin. O caso da palavra caucasiana que um filólogo de grande fama traduziu e explicou.

Vendo chegada a minha vez, invadiu-me invencível terror, como se houvesse surgido pela frente um fantasma de apavorante aspecto. Que deveria escrever para agradar ao incontentável xeque? Elogios? Nunca. Lembrava-me ainda do quanto penara o primeiro escriba. Insultos e grosserias? Muito menos. Trechos literários ou poesias? 

Seria uma imprudência de louco. Um engano numa frase, um descuido num verso, seria, para mim, desgraça completa.

Quis Alá que uma feliz inspiração me iluminasse o atribulado espírito. Tomei de uma folha de papel e nela escrevi uma única palavra: Mazaliche!

- Ma-za-li-che! - leu o xeque, vagarosamente, separando com cuidado as sílabas. Que quer dizer “mazaliche”?

Senti, naquele transe perigoso, que a minha salvação, no caso, dependia, exclusivamente, de um pouco de audácia. A palavra “mazaliche” tinha sido inventada, no momento, por mim; nada significava, não tinha sentido algum. Resolvido, porém, a levar até o fim a aventura iniciada de modo tão favorável, respondi com absoluta segurança:

- A palavra “mazaliche”, ó xeque generoso!, não é árabe, nem persa. É um vocábulo descoberto, faz muitos séculos, por um filólogo que estudou os vários dialetos falados pelos povos caucasianos. “Mazaliche” significa o que quiser!...

- Como assim? - interpelou-me novamente o xeque. - Qual é a tradução certa e exata para essa palavra?

- O que quiser! - reafirmei tranquilo. - Não vejo, senhor, como explicar, de outro modo, a significação de uma palavra para nós quase intraduzível. O sábio filólogo que viveu no Cáucaso...

- Basta - atalhou vivamente o xeque. Dispenso-te as explicações linguísticas. A lembrança que tiveste, ao condensar a tua prova numa única palavra, foi realmente original. Revelaste inteligência viva, cultura razoável e também muita presença de espírito. Creio que és digno de exercer as funções de secretário de um homem notável como eu!

Julguei, depois de ter ouvido tais elogios do imodesto xeque, passado inteiramente o perigo e definida, de modo favorável, a situação. Com grande surpresa, porém, o caso tomou, de repente, feição complicada e trágica.

Depois de pequeno silêncio, o xeque assim falou:

- Ser-me-á fácil verificar se disseste ou não a verdade em relação a essa palavra, “mazaliche”. Tenho aqui, em minha casa, como hóspede, há muito tempo, um filólogo eruditíssimo chamado Mostacini Thalabi, que conhece profundamente os mais complicados idiomas do mundo. Vejamos se esse sábio concorda com a tradução que apresentaste para a palavra caucasiana. Fica certo, porém, ó jovem, de uma coisa: se a tua prova, com a originalidade que parece ter, encerrar uma pilhéria, não sairás daqui com uma só costela em perfeito estado!

E depois de proferir tão grave ameaça, que me deixou estarrecido e tonto de pavor, o xeque chamou um escravo e disse-lhe:

- Que venha à minha presença o douto e eloquente filólogo Mostacini Thalabi!

Rápido como uma flecha o escravo desapareceu em busca do sábio.

“Estou perdido”, pensei. “O filólogo vai descobrir a minha audaciosa mistificação. Queira Alá valer-me nesta dependura.”

Momentos depois surge no salão, em companhia de um escravo, um homem de meia-idade, barbas castanhas, olhar muito vivo, rosto largo, a testa alta e mal disfarçada por um turbante farto e desajeitado, com uma grande barra verde. Era o recém-chegado o famoso filólogo Mostacini Thalabi, hóspede do palácio.

Depois de saudar delicadamente a todos os presentes, dirigiu-se ao senhor de Madyã e disse-lhe:

- Alá sobre ti, ó xeque! Que desejas de teu humilde servo?

Respondeu o xeque:

- Mais uma vez, meu bom amigo, vou apelar para os teus profundos conhecimentos linguísticos. Sei que os idiomas, vivos ou mortos, não possuem segredos que resistam à argúcia de teu espírito. Pois bem. Quero que me digas o que significa esta palavra e a língua ou dialeto a que pertence.

E o rico mercador passou para as mãos do filólogo a folha em que eu escrevera o ignorado vocábulo - Mazaliche.

Um sentimento de pavor invadiu-me o espírito e como que me petrificou. A máscara da palidez pesou-me sobre o rosto. Murmurei resignado: “Maktub! (9) Alá é grande! Seja feita a vontade de Alá.”

O sábio leu atentamente a palavra a que eu reduzira a minha prova. Passou a mão direita pela barba, alisando-a, displicente. Meditou alguns instantes como se procurasse coordenar ideias que pareciam quase esquecidas. E disse afinal:

- A palavra aqui escrita compõe-se de dois radicais distintos: mas ou maz, e aliche ou oiliche, da raiz de um verbo oili a que se liga o sufixo che, indicativo de futuro. Mazaliche é encontradiço num dialeto falado na região do Cáucaso. A palavra é, pois, caucasiana!

Quem poderia avaliar a intensidade do meu espanto ao ouvir aquela declaração? Feita pequena pausa, o filólogo continuou:

- Vou dar agora a significação da palavra “mazaliche”. A primeira parte, constituída pelo radical mas, significa “aquilo que”, “coisa”; a segunda, aliche, é um verbo: “querer”, “pretender”, “desejar”, “preferir no futuro”. A melhor tradução para mazaliche será, pois: “o que quiser.”

- Jovem - declarou então o xeque. - A tua prova acaba de ser confirmada pela voz autorizada do nosso grande filólogo. Nomeio-te meu secretário e de hoje em diante viverás neste palácio!

Recebi a seguir, de quase todas as pessoas que nos rodeavam, provas de afeto e simpatia. Cochichou-me um sujeitinho magro, que piscava continuamente os olhos:

- Foste de muita sorte. Com habilidade alcançarás aqui riquezas incalculáveis!

Compreendi que o sábio Mostacini, movido por um sentimento de incomparável bondade, deliberara salvar-me daquela emergência inventando para a palavra “mazaliche” a complicada etimologia que causara tanta admiração ao xeque.

“Serei grato a esse homem”, pensei. “A ele devo exclusivamente a vitória na prova. Quem o informara, porém, da significação que eu havia momentos antes atribuído ao vocábulo ‘mazaliche’?”

Naquele mesmo dia - ao cair da noite - fui aos aposentos do filólogo a fim de agradecer-lhe o precioso auxílio que me prestara.

O erudito Mostacini recebeu-me com indisfarçável alegria.

A sala que lhe fora destinada no palácio era larga e espaçosa. Pelo chão viam-se atiradas, ao acaso, ricas almofadas de seda.

- Já sei, meu amigo - disse-me o filólogo -, vieste aqui agradecer-me a solução engenhosa que dei hoje para o teu caso. O escravo que veio chamar-me é meu amigo e a ele devo inúmeros favores. Este escravo contou-me tudo o que se passara e solicitou o meu auxílio em teu favor. Prometi-lhe que tudo faria para salvar-te. Quando entrei, pois, no salão, já sabia o que devia responder ao xeque em relação à palavra que havias, por certo, inventado. Do contrário estarias irremediavelmente perdido.

- E esse escravo - perguntei - quem é? Por que veio ele em meu auxílio?

Respondeu-me Mostacini:

- Neste palácio vivem dezenas de indivíduos sem caráter e sem dignidade que exploram a vaidade doentia do xeque. A hipocrisia, a inveja e a perfídia se familiarizaram em todos os cantos desta casa, e o vaidoso xeque é a toda hora rodeado por cortesãos indignos, que tudo sacrificam pelo amor à cobiça. A única criatura sincera e leal que aqui conheço é esse escravo. Chama-se Meruã. É filho de um aguadeiro de Damasco e conheceu teu pai durante uma viagem que fez ao Cairo. Meruã é cristão e afirmou-me que se acha no dever de proteger-te. Se quiseres ouvir dele a narrativa de uma aventura estranha ocorrida no Egito ficarás conhecendo, de tua vida, um segredo tão estranho que talvez modifique por completo o curso de tua existência.

Tomado da mais viva curiosidade pelo caso, apertei o bom filólogo com um chuveiro de perguntas, ao que ele retorquiu sem se impacientar:

- Nada quero adiantar-te. Amanhã muito cedo mandarei chamar Meruã. E dele próprio ouvirás a mais espantosa narrativa de quantas correm no mundo. - E acrescentou: 

- Vou agora para o salão. O eloquente xeque-el-medah (10) acaba de chegar. Queres ouvir as narrativas desta noite?

Agradeci ao bondoso ulemá o convite; sentia-me fatigado. Preferia ficar ali, na tranquilidade daquele belo aposento, recostado nas ricas almofadas; não me interessavam, naquele momento, as histórias fabulosas cheias de aventuras trágicas e emocionantes.

Retirou-se o sábio, deixando-me sozinho na maior ansiedade.

Que relação poderia existir entre mim e o misterioso escravo? Que estranha aventura teria ocorrido no Egito com meu pai?

A meu lado achava-se um manuscrito que o filólogo ali deixara. Olhei sôfrego para a obra. Na primeira página li assombrado:

Não há no mundo ninguém sem alguma tribulação ou angústia, seja ele emir, rei ou califa.

E mais:

Prepara-te para sofrer muitas adversidades e vários desgostos nesta miserável vida; porque assim te sucederá onde quer que estiveres, e assim acharás, em verdade, onde quer que te esconderes.

Quem teria escrito aquelas impressionantes palavras? Que sentido teriam elas no enredo de minha vida?

Intrigado com o caso, tomei do curioso manuscrito e consegui, sem dificuldade, ler uma história que me deixou encantado e me fez esquecer os pensamentos confusos que me agitavam.

Eis a história que li:
____________________
continua…
___________________________________
Notas
1 As preces obrigatórias para os muçulmanos são em número de cinco. A primeira ao nascer do dia; a segunda ao meio-dia; a terceira às quatro horas da tarde, mais ou menos; a quarta ao pôr do sol, e a última à noite. A prece deve ser precedida de ablução (ghuci).

2 Xeque - termo de acatamento que se aplica em geral aos sábios, religiosos e pessoas respeitáveis pela idade ou pelos costumes. A denominação xeque é dada igualmente ao chefe de tribo ou agrupamento muçulmano.

3 Salã - quer dizer paz. É a expressão de que se servem os árabes em suas saudações.

4 Ualá! (por Deus!) - exclamação muito usada pelos muçulmanos.

5 A prodigiosa história desse escravo, e do velhote que o queria vender, aparecerá em outra parte desta obra.

6 O Islã, de modo geral, significa “conjunto de países que adotam a religião de Mafoma”. Atualmente esses países são: Turquia, Arábia Saudita, Irã, Afeganistão, 
Iraque, Iêmen, Marrocos, etc.

7 Montenébbi - poeta árabe de grande renome, nasceu em Kufa no ano de 905. Passou a sua infância na Síria e, durante vários anos, viveu entre beduínos do deserto. Muito moço ainda agitou a pequena cidade de Semawat, nas margens do Eufrates, fazendo-se passar como inspirado profeta que aparecia, no mundo, com a missão sublime de fundar uma nova crença religiosa. Fez crer a seus amigos e correligionários que recebia inspiração de anjos e espíritos ocultos e pretendeu elaborar um segundo Alcorão, que serviria de código religioso e moral para a seita revolucionária que pretendia implantar na Arábia e espalhar por todos os recantos do mundo. Foi preso pelas tropas Ikhechiditas de Homs, e só obteve liberdade depois de ter declarado que as suas ideias religiosas eram falsas e que a verdade estava contida unicamente no Islã. O apelido Montenébbi significa “aquele que pretendeu ser profeta”. Escreveu poemas admiráveis, até hoje lidos com entusiasmo pelos árabes. Foi, em seu tempo, o poeta mais popular da Arábia. Era admirado pelos caravaneiros e temido pelos príncipes.

8 Estes versos são do livro Pássaro de Jade, da poetisa brasileira Sônia Regina.

9 Maktub! – Estava escrito!

10 Chefe dos contadores de histórias.

Fonte:
Malba Tahan. Mil Histórias Sem Fim, vol.2.