sexta-feira, 28 de junho de 2019

António Nobre (Poemas Avulsos)


BALADA DO CAIXÃO

O meu vizinho é carpinteiro,
Algibebe de Dona Morte,
Ponteia e cose, o dia inteiro,
Fatos de pau de toda a sorte:
Mognos, debruados de veludo,
Flandres gentil, pinho do Norte...

Ora eu que trago um sobretudo
Que já me vai a aborrecer,
Fui-me lá, ontem: (Era Entrudo,
Havia imenso que fazer...)
- Olá, bom homem! quero um fato,
Tem que me sirva? - Vamos ver...

Olhou, mexeu na casa toda.
- Eis aqui um e bem barato.
- Está na moda? - Está na moda.
(Gostei e nem quis apreçá-lo:
Muito justinho, pouca roda...)
- Quando posso mandar buscá-lo?

- Ao pôr-do-Sol. Vou dá-lo a ferro:
(Pôs-se o bom homem a aplainá-lo...)
Ó meus Amigos! salvo erro,
Juro-o pela alma, pelo Céu:
Nenhum de vós, ao meu enterro,
Irá mais dândi, olhai! do que eu!

DA INFLUÊNCIA DA LUA

Outono. O sol, qual brigue em chamas, morre
Nos longes de água.... Ó tardes de novena!
Tardes de sonho em que a poesia escorre
E os bardos, a cismar, molham a pena!

Ao longe, os rios de águas prateadas
Por entre os verdes canaviais, esguios
São como estradas líquidas, e as estradas
Ao luar, parecem verdadeiros rios!

Os choupos nus, tremendo, arrepiadinhos
O xaile pedem a quem vai passando...
E os seus leitos nupciais, os ninhos
As lavandiscas noivas piando, piando!

O orvalho cai do céu como unguento.
Abrem as bocas, aparando-os, os goivos;
E a laranjeira, aos repelões do vento,
Deixa cair por terra a flor dos noivos.

E o orvalho cai... e a falta de água, rega
O vale sem fruto, a terra árida e nua!
E o Padre-Oceano, lá de longe, prega
O seu sermão de lágrimas à lua!

A Lua! Ela não tarda aí, espera!
O mágico poder que ela possui
Sobre as sementes, sobre o oceano impera,
Sobre as mulheres grávidas influi...

Ai os meus nervos, quando a lua é cheia!
Da arte novas concepções descubro
Todo me aflijo, lá fazem ideia...
Ai a ascensão da Lua em Outubro!

Tardes de Outubro! Ó tardes de novena
Outono! Mês de Maio, na Lareira!
Tardes.....

Lá vem a Lua, Gratia e plena
Do convento dos céus, a eterna freira!

LADAINHA

Teu coração dentro do meu descansa,
Teu coração, desde que lá entrou
Tem tão bom dormir essa criança,
Deitou-se, ali caiu, ali ficou.

Dorme, menino! Dorme… dorme...
O que te importa o que no mundo vai?
Ao acordares desse sono enorme
Tu julgarás que se passou num ai.

Dorme, criança! Dorme sossegada,
Teus sonos brancos ainda por abrir:
Depois, a morte não te custa nada,
Porque a ela te habituaste a dormir...

Dorme, meu anjo (a noite é tão comprida)
Que doces sonhos tu não hás-de Ter!
Assim, com o hábito de os Ter na vida
Continuarás depois de falecer....

Dorme, meu filho! Cheio de sossego
Esquece-te de tudo e até de mim.
Depois...de olhos fechados, és um cego,
Tu nada vês, meu filho e antes assim.

Dorme os teus sonhos, dorme e não mos digas,
Dorme, filhinho! Dorme, dorme "ó-ó"....
Dorme, a minha alma canta-te cantigas
Que ela é velhinha como a tua avó!

Nenhuma ama tem um pequenino
Tão bom, tão meigo; que feliz eu sou!
E tem tão bom dormir esse menino...
Deitou-se, ali caiu, ali ficou.

MENINO E MOÇO

Tombou da haste a flor da minha infância alada.
Murchou na jarra de ouro o pudico jasmim:
Voou aos altos céus a pomba enamorada
Que dantes estendia as asas sobre mim.

Julguei que fosse eterna a luz dessa alvorada,
E que era sempre dia, e nunca tinha fim
Essa visão de luar que vivia encantada,
Num castelo com torres de marfim!

Mas, hoje, as pombas de ouro, aves da minha infância,
Que me enchiam de lua o coração, outrora,
Partiram e no céu evolam-se à distancia!

Debalde clamo e choro, erguendo aos céus meus ais:
Voltam na asa do vento os ais que a alma chora,
Elas, porém, senhor, elas não voltam mais...

VOU SOBRE O OCEANO (O LUAR, DE DOCE, ENLEVA!)

Vou sobre o Oceano (o luar, de doce, enleva!)
Por este mar de Glória, em plena paz.
Terra da Pátria somem-se na treva,
Águas de Portugal ficam, atrás.

Onde vou eu? Meu fado onde me leva?
António, onde vais tu, doido rapaz?
Não sei. Mas o Vapor, quando se eleva,
Lembra o meu coração, na ânsia em que jaz.

Ó Lusitânia que te vais à vela!
Adeus! que eu parto (rezarei por ela)
Na minha Nau Catrineta, adeus!

Paquete, meu Paquete, anda ligeiro,
Sobe depressa à gávea, Marinheiro,
E grita, França! pelo amor de Deus!

VIRGENS QUE PASSAIS

Virgens que passais, ao Sol-poente,
Pelas estradas ermas, a cantar!
Eu quero ouvir uma canção ardente,
Que me transporte ao meu perdido lar.

Cantai-me, nessa voz onipotente,
O sol que tomba, aureolando o Mar
A fartura da seara reluzente,
O vinho, a graça, a formosura, o luar!

Cantai! Cantai as límpidas cantigas!
Das ruínas do meu lar desterrai
Todas aquelas ilusões antigas

Que eu vi morrer num sonho, como um ai....
Ó suaves e frescas raparigas,
adormecei-me nessa voz...cantai !

Malba Tahan (Mil Histórias sem Fim) Narrativa 10


História da filha mais moça do rei Ikamor, apelidada “A Noiva de Mafoma”.

Das Mil histórias sem fim é esta a décima!

Lida a décima restam, apenas, novecentas e noventa...

Das três filhas do rei Ikamor era eu a mais moça e devo dizer - sem pecar contra a modéstia - que minhas irmãs não levavam sobre mim vantagem alguma no tocante a  graças e encantos pessoais.

Monótonos e suavemente decorreram os primeiros anos de minha existência. Sem grandes alegrias - é verdade - mas também sem tristezas que abatem e afligem. Vivia fechada no rico e imenso serralho (1) real de Candahar, verdadeira fortaleza, onde meu pai, rei do Afeganistão, conservava não só a mim e minhas irmãs, como também suas esposas, em absoluta reclusão, conforme o tradicional costume do país.

Para o nosso serviço poderíamos dispor de várias e dedicadas escravas, muito embora os nossos passos fossem dia e noite vigiados por um grupo de guardas, vingativos e intrigantes, que à menor suspeita nos levavam ao terrível Abdalis - o chefe -, sujeito impiedoso que tinha autorização para punir-nos e até infligir-nos castigos corporais!

Abdalis (infame criatura!) era a personificação da perversidade; quando a sombra de sua agigantada figura aparecia no longo corredor, as mulheres de Candahar ficavam pálidas, em silêncio, e encolhiam-se sobre as almofadas, trêmulas de pavor.

Precisamente no dia em que eu completava dezesseis anos, meu pai viu-se obrigado a iniciar uma guerra de vida e morte contra o famoso xá Zemã, o Vingativo, que se dizia pretendente ao trono de Ikamor.

Para que uma derrota em tal campanha não trouxesse como consequência a ruína e a devastação do país, meu pai, que de poucos recursos militares podia dispor nessa época, achou que seria prudente e indispensável fazer uma aliança com o rei Barasky, soberano de Beluchistão.

Esse odiento monarca forçou-o a assinar um tratado no qual fez incluir algumas exigências vexatórias para os afegãos. Entre essas, uma havia menos absurda do que insultuosa: era eu obrigada a aceitar como esposo o indigno aliado do meu país!

Seja Alá testemunha da verdade do que vou dizer. Não conhecia o tal rei Barasky; ouvira, porém, de uma velha escrava persa vários e minuciosos informes que me levaram a concluir que ele devia ser, como o ignóbil Abdalis, velho, feiíssimo, excessivamente gordo e mau.

Como aceitar um noivo cuja simples evocação a minha alma repelia horrorizada? Implorei chorosa a proteção e o auxílio do velho Kattack, o astrólogo, único homem que tinha permissão para entrar (quando acompanhado por um guarda) no harém de Candahar.

O bondoso Kattack disse-me:

- Ó minha infeliz princesa! Bem negro é o vosso destino! Deixai-me ler nos astros a vossa sorte, sem o que nada poderei fazer.

Tais palavras encheram-me de esperanças o coração. Eu bem sabia que o meu venerável amigo era exímio em ler no céu os mistérios que os astros escrevem à noite com a luz que colhem durante o dia do infinito.

Dias depois meu pai procurou-me. Vinha agitado, nervoso, impaciente, e parecia que em seu espírito se digladiavam as mais desencontradas preocupações.

- Minha filha - disse-me, afagando-me carinhoso o rosto. - Sinto dizer-te que o casamento com o rei Barasky é impossível! O sábio Kattack acaba de ler no céu graves revelações a teu respeito!

- Dize, meu pai - implorei. - Que nova desgraça paira sobre mim?

- Desgraça? Longe de nós tal palavra! O teu futuro sorri a salvo de qualquer infortúnio. Bem sabes que, segundo uma velha lenda árabe, de cem em cem anos o profeta Mafoma (com Ele a oração e a paz) desce à terra a fim de escolher uma noiva entre as jovens mais formosas. Aquela que tem a felicidade de agradar ao Profeta é incluída no número das mulheres perfeitas (2) e só poderá casar com um homem qualquer se ao fim de três anos e onze dias o Profeta (a paz sobre Ele!) não vier buscá-la.

- Ó meu pai - balbuciei desolada. - Custa-me acreditar que seja verdadeira tão espantosa revelação celeste. Como poderia eu, feia e pouco gentil, despertar a atenção do Profeta de Alá?

A tais palavras, tão despidas de sinceridade, retorquiu meu pai:

- No que respeita aos teus dotes físicos, faltas pecaminosamente à verdade. A tua deslumbrante formosura é reconhecida e proclamada pelas filhas de meu tio. (3) Devo-te, porém, um aviso para o qual o prudente Kattack me chamou especialmente a atenção. Se durante o prazo de três anos e onze dias, por uma fraqueza de tua parte, traíres o voto de fidelidade ao Profeta, sofrerás um castigo terrível: terás amputadas ambas as mãos!

- Tranquiliza-te, meu pai - respondi. - Eleita do Profeta, ser-lhe-ei fiel não durante esse ridículo prazo de três anos e onze dias, mas durante meio século!

E terminei por declarar, com uma segurança que até a mim própria causou espanto:

- Se o Profeta não me vier buscar, ficarei solteira toda a vida!

A situação especial de ser noiva do Profeta facultava-me regalias excepcionais no serralho. Era-me permitido subir sozinha ao terraço, não só pela manhã, como a qualquer hora do dia ou da noite; e, acompanhada de uma escrava, tinha a liberdade de passear pelos jardins de Candahar, depois da última prece.

As outras mulheres do harém deitavam sobre mim olhares terríveis a que a inveja emprestava colorações estranhas.

Devo dizer, com sinceridade, que nunca dera crédito a essa lenda do noivado com Mafoma. Desconfiei desde logo - e mais tarde certifiquei-me da exatidão de tal desconfiança - que não passava o caso de um original artifício de que o ardiloso Kattack lançara mão para livrar-me do rei Barasky.

O bom astrólogo não tardou em fazer-me, a respeito, completas confidências:

- Minha linda princesa - disse-me uma noite, quando cavaqueávamos a sós no jardim -, bem sabeis que abusei da boa-fé do vosso pai, o rei Ikamor, fazendo-o acreditar nessas absurdas núpcias com o Profeta. Mas, se assim procedi, mereço perdão, dado o fim nobre que tinha em vista: queria livrar-vos das garras de um homem devasso e cruel! Passado, porém, o prazo de três anos e onze dias, a guerra estará terminada e o rei Ikamor, livre das exigências desse aliado indesejável, poderá repelir qualquer proposta menos digna que vise à tua mão.

E, assim conversando, chegamos juntos a um poço onde nadavam muitos peixes vermelhos.

- Que lindos peixes! - exclamei.

- Já conheceis, ó princesa! - perguntou-me o astrólogo -, a famosa lenda que explica a origem dos peixes vermelhos?

Respondi-lhe que não e que muito folgaria em ouvi-la.

O sábio Kattack contou-me então o seguinte:
___________________________
continua…
______________________________________
Notas
1 Serralho - palácio. Uma das partes do serralho é o harém; é constituído pelas salas e quartos destinados às mulheres.
2 As mulheres “perfeitas” são em número de cinco e todas aparecem citadas no Alcorão.
3 Maneira pela qual os árabes tratam as esposas.

Fonte:
Malba Tahan. Mil histórias sem fim. vol. 2. 

quinta-feira, 27 de junho de 2019

Baú de Trovas e Versos Afins n.4


SAUDADE
(1905)

Quando a aurora vem surgindo
pela floresta acreana,
brilha a estrela matutina
na minha pobre cabana.

Por entre as réstias das palhas
eu contemplo o belo céu,
a pobre estrela desmaia
envolta num denso véu.

O galo que então desperta,
canta alegre no poleiro,
soluçam as saracuras
no copado castanheiro.

Soltando ternos queixumes
geme na selva a cascata,
sussurra o vento que passa
no longo seio da mata.

Além das águas do rio
ouvindo longos bramidos
e nos leques das palmeiras
ouço da brisa os gemidos.

Sozinho, triste, exilado,
minh'alma sentida chora,
levanto, venho ao terreiro
contemplar do Acre à aurora.

Tão liso manto esmeraldo,
as verdejantes campinas,
onde pendidas nos galhos
brilham flores cristalinas.

Nas pétalas das brancas rosas
a minha lira desperta,
chorando, soluça, geme
a minha musa deserta.

Sentindo eternas saudades,
choro a quadra que perdi,
e os beijos de minha mãe,
e as plagas onde nasci.

Assim no Acre cismando,
passando as noites sofrendo,
sinto saudades infindas
quando a aurora vem rompendo.

Fonte:
Iba Mendes (seleção/organização). Trovas e Cantigas. São Paulo, 2019.

Arthur de Azevedo (História Vulgar)


Era a primeira vez que o Getúlio vinha ao Rio de Janeiro. Conquanto filho do barão de Batatais, lavrador abastado, jamais se divertira. Depois de formado em Direito, sabe Deus como, na capital de São Paulo, voltara para a fazenda do pai, onde nasceu, e onde esperava morrer.

Aos vinte e oito anos chegaram-lhe desejos de ver mundo. Falou ao barão de uma viagem à Europa. – Para que Europa? – disse o velho. – Vai ao Rio de Janeiro, que ainda não conheces, e é uma capital digna de ser vista. A Europa irás depois comigo, tua mãe e tua irmã se Deus nos der vida e saúde. – O bacharel contentou-se, pois, com o Rio de Janeiro.

Quando se despediu do filho, na plataforma da estação, o barão recomendou-lhe, pela centésima vez, que tivesse muito cuidado com as más companhias, o que não impedia que o rapaz, aqui chegado, se entregasse confiadamente ao Alípio.

É verdade que o Alípio tinha exterioridades que enganavam, e não vivia senão à custa delas. Delas e do próximo. Era um rapaz da moda, mas passou pelo serviço antropométrico e ainda hoje tem o retrato na polícia.

Ele e o paulista encontraram-se dir-se-ia que por acaso, sentados à mesma mesa, para tomar café, num botequim da rua do Ouvidor, e quando as duas colherinhas, batendo uma na outra, tiniram no açucareiro, o Alípio ergueu os olhos, apertou-os como para reconhecer o Getúlio, e disse-lhe:

– Cavalheiro, creio que já nos encontramos.

– É possível.

– Mas onde? Não me posso lembrar!

– Em São Paulo?

– Não, não creio.

– Talvez em Poços de Caldas. Estive lá duas vezes.

– É isso. Foi em Poços de Caldas! O cavalheiro é paulista?

– Sim senhor, e é a primeira vez que venho ao Rio.

– Tem gostado?

– Muito, mas ainda não vi nada; cheguei ontem.

– Conquanto não tenha a satisfação de o conhecer, ofereço-lhe os meus fracos préstimos.

– Muito obrigado, mas não venho aqui fazer outra coisa senão passear. Há sete anos que me meti na fazenda de meu pai; era tempo de espairecer.

– Ah! O cavalheiro é lavrador?

– Sim, senhor, formei-me em Direito, mas sou um simples fazendeiro, sócio de meu pai. O senhor nunca ouviu falar do barão de Batatais?

– Batatais? Pois não, doutor! Ora essa! É uma das primeiras fortunas de São Paulo!

– Pois é meu pai.

– Se o doutor vem ao Rio de Janeiro simplesmente para se distrair, razão de mais para aceitar os meus fracos préstimos. Sou carioca da gema, conheço toda a cidade como as palmas das minhas mãos, e posso mostrar-lhe o que ela tem de mais interessante.

– Oh! Senhor! Não sei a que deva…

– À simpatia. O doutor não imagina como simpatizei com a sua pessoa!

– Mas o senhor naturalmente tem mais que fazer do que me servir de cicerone.

– Que fazer? Eu? Ah, meu doutor, infelizmente a minha vida é  esta – andar pelos cafés, pelos teatros, pelos clubes, pelas casas de jogo, pelas alcovas – enfim, pelo monde ou l’on s’amuse! Não sei o que é trabalhar! E não tenho remorsos, porque meu pai trabalhou por si e por mim. O que faço é gozar o que ele não gozou, para que me não aconteça o mesmo.

– Então é rico?

– Tenho alguma coisinha, tenho…

Nesse mesmo dia jantaram juntos no Brito (o Alípio não consentiu que o Getúlio pagasse), e à noite foram ao Cassino, onde o paulista se divertiu a valer. Separaram-se amigos às três horas da madrugada, na rua Senador Dantas, concertando encontrar-se ao meio-dia para almoçarem
juntos.

Almoçaram, deram um longo passeio a Botafogo, e foram jantar numa casa de jogo, que o Alípio quis mostrar ao Getúlio, a título de curiosidade.

– Só a título de curiosidade – repetiu o carioca. – Eu jogo, mas não te aconselho que jogues. (Já se tratavam por tu.) O jogo é estúpido: tira sempre o necessário e não dá nunca senão o supérfluo. Tu alguma vez jogaste?

– Já, em Poços de Caldas, mas jurei que nunca mais jogaria! Perdi uma boa bolada, e o velho ficou furioso!

– Devo prevenir-te de uma coisa: esta casa de jogo é uma das mais decentes do Rio de Janeiro, mas tem cuidado. Aqui vem de tudo. Vês aquele sujeito gordo? É um magistrado integérrimo! Vês aquele sujeito magro? Tem o retrato na polícia!

Depois do jantar, que foi magnífico, regado por excelentes vinhos, aparelharam a roleta. O banqueiro, ex-advogado sem causa, tomou o seu lugar sobre um estrado, diante das fichas multicores alinhadas em ordem, formando pequenas colunas, e o pessoal do vício abancou-se em volta do tapete verde.

– Eu vou piabar – disse o Getúlio ao Alípio.

– Vê, vê só, não jogues! Eu teria remorsos se te trouxesse a esta casa para perderes dinheiro!

Começou o jogo. Depois das três primeiras bolas, o bacharel não resistiu: comprou cem mil-réis de fichas, que voaram logo.

O Alípio lançou-lhe um olhar repreensivo.

– Não posso ver defunto sem chorar – respondeu o outro, que insiste e em dez minutos perdeu oitocentos mil-réis.

Acendeu-se-lhe, então toda, a sua coragem de paulista, e fez a última parada, tão forte, que ressarciu todo o prejuízo e ganhou perto de um conto de réis.

O Alípio que, jogando, ou antes, fingindo jogar, examinava-o de soslaio, viu-o aproximar-se do banqueiro, receber um maço de notas, e arrumá-las na carteira, que guardou sorridente no bolso do peito.

– Vou-me embora – disse-lhe o Getúlio. – Preciso recolher-me hoje um pouco mais cedo: estou com dor de cabeça.

O Alípio deixou a sala do jogo para acompanhá-lo até o corredor, e perguntou-lhe indiferentemente, ajudando-o a vestir o sobretudo:

– Ganhaste?

– Alguma coisa.

– Pois sim, mas não tornes a jogar, vai com o que te digo! aconselhou, abotoando-lhe o sobretudo. – Levanta a gola, agasalha-te bem, não brinques com este clima. Eu ainda fico.

– Precisas de algum dinheiro?

– Não.

– Então até amanhã?

– Decerto. Irei buscar-te ao hotel às mesmas horas de hoje. Adeus!

O paulista desceu as escadas lépido e contente, foi para o hotel, que não era longe, entrou para o seu quarto, despiu-se e resolveu dar, antes de dormir, um balanço ao dinheiro para saber ao certo qual tinha sido o seu lucro. Foi ao bolso: a carteira lá não estava… Escusado é dizer que o Alípio nunca mais o procurou.

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos.

Affonso Celso (Poemas Avulsos)


ROSA

Rosa colhida, sozinha,
Lindas rosas no jardim
 E nas faces também tinha
Duas rosas de carmim.

Cheguei-lhe e disse-lhe:
-Rosa, qual destas rosas me dás;
As de face primorosa
Ou essas que unindo estás?

Ela fitou-me, sorrindo,
Inda mais enrubesceu
Depois, ligeira,fugindo,
De longe me respondeu:

-Não dou as rosas das faces
Nem as que tenho nas mãos;
Daria se me estimasses,
As rosas do  coração!

ANJO ENFERMO

Geme no berço, enferma, a criancinha,
Que não fala, não anda e já padece...
Penas assim cruéis por que as merece
Quem mal entrando na existência vinha?!

Ó melindroso ser, ó filha minha!
Se os céus ouvissem a paterna prece
E a mim o teu sofrer passar pudesse,
- Gozo me fora a dor que te espezinha.

Como te aperta a angústia o frágil peito!
E Deus, que tudo vê, não ta extermina,
Deus que é bom, Deus que é pai, Deus que é perfeito.

Sim, é pai mas – a crença no-lo ensina:
- Se viu morrer Jesus, quando homem feito,
Nunca teve uma filha pequenina!...

NA FAZENDA

Dorme a fazenda. Uniformes,
Com seu inclinado teto,
Têm as senzalas o aspecto
De um bando d´aves enormes.

Os cães, no pátio encoberto,
Repousam de orelha erguida;
São como oásis de vida
Da escuridão no deserto.

De vagos tons uma enfiada
Com o torpor luta e vence-o;
É no burel do silêncio
Franja sonora bordada.

Às vezes, da porta estreita
Sai um chorar de criança,
Chamando a mãe que descansa
Morta do afã da colheita.

Talvez no infantil assombro
Já se lhe antolhe mais tarde:
— O eito enquanto o sol arde,
E o peso da enxada ao ombro.

Os cães levantam-se a meio,
Geme a criança um momento
E, a pouco e pouco, em lamento
Sucumbe o isolado anseio.

Longe, na sombra perdido,
Há no perfil de um oiteiro
Algo de estranho guerreiro
Da cota de armas vestido.

Ao lado reluz a linha
De extensa e alvacenta estrada,
Como a lâmina da espada
Que lhe saltou da bainha.

E o disco da lua nova
No lar azul das esferas,
De nuvens que lembram feras,
Como um réptil sai da cova.

Ondula no espaço o fumo
De algum incêndio invisível;
Chora a criança, impassível
Prossegue a noite em seu rumo.

CCXIII

Nunca o teu corpo acostumes
Ao que de necessidade
Lhe ser estrita não vês.
Os vícios não lhe avolumes,
Porque é grave enfermidade
Cada vício que lhe dês.

CCXIV

Eu dizia não ter senso
Quem no amor inda confia;
E acabei afeto imenso
Dando a quem não merecia

CCXV

Não zombes da covardia
Deste peito a ti voltado
Que tanto mais te aprecia
Quanto mais menosprezado.

CCXVI

Não me creias fugidio
Que sempre te hei de buscar,
Como a água busca o rio,
Como o rio busca o mar.

CCXVII

Meu coração imprudente,
Quem é que tinha razão?
Eu te dizendo: "ela mente! "
Ou tu contestando: "não! "

CCXVIII

Do amor na escola inda aprendo,
Sou principiante;
Lições estou recebendo
Da minha amante.

Mas o aluno é tão ladino,
Tanto se adestra,
Que já não aceita ensino,
Fornece à mestra.

CCXIX

Faceira, entre as mais faceiras,
Toma sentido,
As horas correm ligeiras;
Talvez te seja impedido
Recuperar, quando queiras,
Tamanho tempo perdido.

Vinicius de Moraes (Seu "Afredo")


Seu Afredo (ele sempre subtraía o l do nome, ao se apresentar com uma ligeira curvatura: "Afredo Paiva, um seu criado..."), tornou-se inesquecível à minha infância porque tratava-se muito mais de um linguista que de um encerador. Como encerador, não ia muito lá das pernas. Lembro-me que sempre depois de seu trabalho, minha mãe ficava passeando pela sala com uma flanelinha debaixo de cada pé, para melhorar o lustro. Mas como linguista, cultor de vernáculo e aplicador de sutilezas gramaticais, seu Afredo estava sozinho. 

Tratava-se de um mulato quarentão, ultra-respeitador, mas em quem a preocupação linguística perturbava às vezes a colocação pronominal. Um dia, numa fila de ônibus, minha mãe ficou ligeiramente ressabiada quando seu Afredo, casualmente de passagem, parou junto a ela e perguntou-lhe à queima-roupa, na segunda do singular: 

- Onde vais assim tão elegante? 

Nós lhe dávamos uma bruta corda. Ele falava horas a fio, no ritmo do trabalho, fazendo os mais deliciosos pedantismos que já me foi dado ouvir. Uma vez, minha mãe, em meio à lide caseira, queixou-se do fatigante ramerrão do trabalho doméstico. Seu Afredo virou-se para ela e disse: 

- Dona Lídia, o que a senhora precisa fazer é ir a um médico e tomar a sua quilometragem. Diz que é muito bão. 

De outra feita, minha tia Graziela, recém-chegada de fora, cantarolava ao piano enquanto seu Afredo, acocorado perto dela, esfregava cera no soalho. Seu Afredo nunca tinha visto minha tia mais gorda. Pois bem: chegou-se a ela e perguntou-lhe: 

- Cantas? 

Minha tia, meio surpresa, respondeu com um riso amarelo: 

- É, canto às vezes, de brincadeira... 

Mas um tanto formalizada, foi queixar-se a minha mãe, que lhe explicou o temperamento do nosso encerador: 

- Não, ele é assim mesmo. Isso não é falta de respeito, não. É excesso de... gramática. 

Conta ela que seu Afredo, mal viu minha tia sair, chegou-se a ela com ar disfarçado e falou: 

- Olhe aqui, dona Lídia, não leve a mal, mas essa menina, sua irmã, se ela pensa que pode cantar no rádio com essa voz, 'tá redondamente enganada. Nem programa de calouro! 

E a seguir, ponderou: 

- Agora, piano é diferente. Pianista ela é! 

E acrescentou: 

- Eximinista pianista!

Fonte:

quarta-feira, 26 de junho de 2019

Baú de Trovas e Versos Afins n.3


A SOGRA
(1900)

Todo o moço que se casa
deve ter um pau no canto,
para benzer sua sogra
quando estiver de quebranto.

SEGREDOS
(1900)

Na campina verdejante,
vou colher mimosa flor,
para saber, minha amante,
se ainda tu me tens amor.

Do malmequer delicado,
sob as sombras do arvoredo,
hei de saber, bem amado,
este teu grande segredo.

NA RIBEIRA
(Trovas Portuguesas, 1905)

Ó moças andem ligeiras,
vão pedir a Santo Antônio,
que as ponha todas em linha
no livro do matrimônio.

Ó moças, que querem noivos,
vão esta noite à Ribeira,
que os moços em honra ao santo
vão armar uma fogueira.

Santo Antônio anima os mortos,
e dá saúde aos doentes;
não é muito que despache
mil sadios pretendentes.

Fonte:
Iba Mendes (seleção/organização). Trovas e Cantigas. São Paulo, 2019.