sábado, 7 de setembro de 2019

Varal de Trovas n. 69


Humberto de Campos (O Pé e o Sapato)


Uma das novidades elegantes que mais têm merecido o meu aplauso, é a condenação das danças, dos bailes retumbantes e demorados, nas festas de casamento. A ligação de dois destinos constitui um ato tão solene, um acontecimento tão grave na vida das criaturas, que se lhes deve dar, a elas, todo o sossego, toda a calma, e o tempo necessário para que sintam, sem obstáculos nem constrangimentos, todas as suaves emoções desse dia.

E esse meu modo de pensar não data de hoje. Vem de longe, de onze anos atrás, do casamento do Dr. Otaviano Peixoto Ferreira, antigo juiz substituto em Barra Mansa, com a minha afilhada Odete Costa, do qual fui testemunha, por insistência imperdoável das duas ilustres famílias fluminenses.

O casamento, que se efetuou a 11 de Maio de 1090, na fazenda Água Funda, no município de Cantagalo, foi o mais suntuoso, talvez, e o mais bulhento, que já se realizou no Estado do Rio. Os convidados, vindos das fazendas e cidades vizinhas, subiram a centenas. E as danças prolongaram-se por dias e dias, que encheram, se bem me lembro, o vasto espaço de uma semana.

No dia seguinte ao do casamento, porém, sucedeu o desastre que dá motivo à minha prevenção contra os bailes em tais ocasiões: devido ao excesso das danças, das polcas, valsas, mazurcas e quadrilhas, dançados com o noivo, a moça amanheceu coxeando, doente do pé, de modo a locomover-se com enorme dificuldade. Penalizado, perguntei-lhe o que era:

- Então, afilhada, que é isso? Como foi? Quem lhe pisou o pé?

A pequena sorriu, pálida, cobrindo com as violetas das olheiras, os formosos miosótis dos olhos, e tranquilizou-me, triste:

- Não é nada, padrinho; não se aflija!

E explicou:

- É uma unha encravada...

Não obstante a festa haver continuado, a noiva, nesse dia, não dançou, nem no segundo dia, nem, mesmo, no terceiro. No quarto dia, porém, amanheceu inteiramente boa, voltando a valsar, alegre e jovial, contentíssima como se nada tivesse acontecido. Encontrando-a a deslizar, feliz, no calor de uma valsa, detive-a pelo braço, e indaguei, carinhoso:

- Então, está melhor do pé?

- Estou boa, já! respondeu-me, risonha.

- A unha desencravou?

- Não! - retrucou-me, vermelha, com o rosto em fogo.

E ao meu ouvido, rindo:

- O pé acostumou no sapato...

E, arrancando-se das minhas, mãos, desapareceu, num rodopio, no tumulto dos outros pares.

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze.

Luiz Damo (Trovas do Sul) III


Ao subirmos às montanhas
parece vermos o céu,
escalamos as façanhas
pra buscar nosso troféu.

As aves deixam seus ninhos
e neles voltam jamais,
vulneráveis passarinhos
se tornam presas fatais.

Essa vida não tem preço
pra ser comprada ou vendida,
tendo um único endereço
para Deus é remetida.

Fim de tarde, caminhamos,
ao repouso familiar,
Deus permita que tenhamos
um descanso peculiar.

Muitos sonhos permanecem
na clausura das gavetas,
nelas, presos não merecem,
longe ao toque das trombetas.

Ninguém acha o que procura
nem jamais pode encontrar,
se não fizer da aventura
uma meta a conquistar.

No teatro da existência
todos nós somos atores,
alguns com maior vivência
e outros simples amadores.

O grito será melhor
se de paz e construção,
não tem silêncio pior
do que aquele da omissão.

O homem comete loucuras
e depois fica assustado,
das pretensas aventuras
sem pensar no resultado.

Pai, figura tão brilhante,
que ilumina cada filho,
basta olhar no seu semblante
pra sentirmos todo o brilho.

Quem provar nada temer
não pode dizer que teme,
se o medo lhe faz tremer
nele até o gigante treme.

São tantas premonições
que a vida nos faz sentir,
sem mostrar as soluções
pouco vale as pressentir.

Se alguém diz que desconhece
o caminho a ser seguido,
veja e busque o que carece
pra torná-lo conhecido.

Toda vez que colocamos
em algo um ponto final,
já dizemos que acabamos
de entrar na fase outonal.

Fonte:
Luiz Damo. A Trova Literária nas Páginas do Sul. Caxias do Sul/RS: Palotti, 2014.

Woody Allen (A Rejeição)


Quando Bóris Ivanovitch abriu a carta e leu o conteúdo, ele e sua mulher, Anna, ficaram pálidos. Era uma rejeição de seu filho de três anos de idade, Mischa, para a melhor escola de educação infantil de Manhattan.

“Não pode ser", Bóris Ivanovitch disse, chocado.

"Não, não — deve ser algum engano", a mulher colaborou. "Afinal, ele é um menino inteligente, agradável e extrovertido, com boa capacidade verbal e facilidade com os creions e com o Sr, Cabeça de Batata."

Boris Ivanovitch se desligara e estava perdido nos próprios devaneios, Como podia encarar seus colegas de trabalho na Bear Stearns quando o pequeno Mischa não havia conseguido entrar numa pré-escola de prestígio? Já estava até ouvindo a voz gozadora de Siminov: "Você não entende dessas coisas. É importante ter contatos. Tem de rolar dinheiro, Você é tão grosso, Bóris Ivanovitch".

"Não, não, não é nada disso", Bóris Ivanovitch ouvia a si mesmo protestando. "Molhei a mão de todo mundo, dos professores aos lavadores de vidraças, mas mesmo assim o menino não conseguiu."

"Ele foi bem nas entrevistas?” Siminov ia perguntar.

"Foi", Bóris responderia, "se bem que teve alguma dificuldade para empilhar blocos..."

"Dificuldade com blocos". Siminov gemeu à sua maneira desdenhosa, "Sinal de sérias dificuldades emocionais. Quem vai querer um pateta que não é capaz de erguer um castelo?"

Mas por que haveria de discutir tudo isso com Siminov?, Bóris Ivanovitch pensou. Talvez ele nem esteja sabendo.

Na segunda-feira seguinte, porém, quando Bóris Ivanovitch entrou no escritório, ficou claro que todo mundo sabia. Siminov entrou, o rosto como uma nuvem de tempestade. "Você sabe", disse Siminov, "o menino nunca vai ser aceito em nenhuma faculdade decente. Na Ivy League com certeza que não."

"Só por causa disso, Dmitri Siminov? Será que a pré-escola vai ter um impacto na educação superior dele?"

"Não gosto de mencionar nomes", disse Siminov, "mas muitos anos atrás um renomado banqueiro de investimentos não conseguiu colocar o filho num jardim-de-infância de ampla distinção. Parece que houve algum escândalo com a capacidade do menino na pintura a dedo. Seja como for, o menino, recusado pela escola que os pais tinham escolhido, foi obrigado a... a..."

"A quê? Diga, Dmitri Siminov."

"Vamos dizer apenas q|ue quando completou cinco anos foi obrigado a frequentar... uma escola pública."

"Então, Deus não existe", disse Bóris Ivanovitch.

"Aos dezoito anos, todos os seus colegas de antes entraram em Yale ou Stanford", Siminov prosseguiu, "mas esse coitado, como nunca tinha obtido credenciais adequadas numa pré-escola de status... digamos,., adequado, só foi aceito na universidade de barbeiros.”

"Forçado a aparar bigodes", Bóris Ivanovitch gritou, visualizando o pobre Mischa de uniforme branco, fazendo a barba dos ricos.

"Sem nenhuma formação em decoração de bolinhos, nem na caixa de areia, o menino estava totalmente despreparado para as crueldades da vida", Siminov continuou. "Por fim, trabalhou em empregos menores, acabou surrupiando trocados do patrão para sustentar o vício do álcool. Nessa época, já era um bêbado sem salvação. Claro, surrupiar do patrão levou ao roubo e ele acabou assassinando e desmembrando a dona do apartamento. No enforcamento, o rapaz atribuiu tudo ao fato de não ter frequentado a pré-escola correta."

Nessa noite, Bóris Ivanovitch não conseguiu dormir. Ficava vendo a inatingível pré-escola do Upper East Side, com suas salas alegres, claras. Visualizou as crianças de três anos em roupinhas Bonpoint cortando e colando e depois tomando um lanche confortador — um copo de suco e talvez biscoitos Goldfish ou um Graham de chocolate. Se podiam negar isso a Mischa, então não havia sentido na vida, nem em toda a existência. Imaginou o filho, agora um homem, parado na frente do CEO de uma firma de prestígio, que estava testando os conhecimentos de Mischa sobre animais e formas, coisas de que deveria ter um profundo entendimento.

"Bom... é...", Mischa diria, tremendo, "isso é um triângulo... não, não, um octógono. E isso é um coelho… desculpe, um canguru."

"E a letra de 'Do you know the muffin man?'", perguntaria o CEO. "Todos os vice-presidentes aqui da Smith Barney sabem cantar isso."

"Para ser sincero, sir, nunca aprendi direito essa música", admitiria o jovem, enquanto seu pedido de emprego voava para a lixeira.

Nos dias seguintes à rejeição, Anna Ivanovitch ficou inquieta. Discutiu com a babá e acusou-a de escovar os dentes de Mischa para os lados e não para cima e para baixo. Parou de comer regularmente e chorava na pia. "Devo ter transgredido a vontade de Deus para provocar uma coisa dessas", choramingava. "Devo ter pecado além das medidas — sapatos Prada demais." Imaginou que um veículo Hampton Jitney tentou atropelá-la e quando Armani cancelou sua conta sem nenhuma razão aparente ela se trancou no quarto e começou a ter um caso. Isso foi difícil de esconder de Bóris Ivanovitch, uma vez que ele dormia no mesmo quarto e perguntava insistentemente quem era o homem deitado ao lado deles.

Quando tudo parecia estar na mais negra escuridão, o amigo advogado, Shamsky, telefonou para Bóris Ivanovitch e disse que havia um raio de esperança. Sugeriu se encontrarem no Le Cirque para o almoço, Bóris Ivanovitch chegou disfarçado, uma vez que o restaurante havia lhe recusado admissão quando saiu a decisão da pré-escola.

"Existe um homem, um certo Fyodorovitch", disse Shamsky, comendo uma colherada de seu crème brulée, "Ele pode conseguir uma segunda entrevista para seu rebento e, em troca, tudo o que você tem de fazer é mantê-lo a par de qualquer informação confidencial sobre certas companhias que possam fazer as ações subirem ou caírem dramaticamente."

"Mas isso é rompimento de sigilo", disse Bóris Ivanovitch.

"Só se você se restringe às leis federais", Shamsky observou. "Meu Deus, estamos falando de admissão a uma pré-escola exclusiva. Claro, uma doação também ajuda. Nada muito chamativo. Sei que estão procurando alguém para patrocinar um novo anexo."

Nesse momento, um dos garçons reconheceu Borís Ivanovitch por trás do nariz postiço e da peruca. Os funcionários caíram em cima dele em fúria e o arrastaram para fora. "Então!", disse o chefe dos garçons. "Achou que ia nos enganar. Fora! Ah, e quanto ao futuro do seu filho, estamos sempre precisando de ajudantes. Au revoir, babaca."

Essa noite, em casa, Bóris Ivanovitch contou à mulher que iam ter de vender a casa em Amagansett para levantar dinheiro para uma propina.

"O quê? Nossa adorada casa de campo?", Anna gritou, "Minha irmã e eu crescemos naquela casa, Nós tínhamos direito de servidão para atravessar a propriedade do vizinho para ir até o mar. O trajeto passava bem no meio da mesa da cozinha do vizinho. Me lembro de passar com minha família pelo meio das tigelas de Cheerios para ir nadar e brincar no mar."

Quis o destino que, na manhã da segunda entrevista de Mischa, seu peixinho morresse de repente. Foi sem aviso prévio, sem nenhuma doença anterior. Na verdade, o peixinho tinha feito um check-up completo e fora considerado nível A-1 de saúde. Naturalmente, o menino ficou inconsolável. Na entrevista, não tocou no Lego nem no Lite Brite. Quando a professora perguntou quantos anos tinha, ele disse, duro: "Que te interessa, balofa?". Foi rejeitado outra vez.

Bóris Ivanovitch e Anna, agora desamparados, foram viver em um abrigo para sem-tetos. Lá encontraram muitas outras famílias cujos filhos haviam sido recusados por escolas de elite. As vezes, repartiam a comida com essas pessoas e trocavam histórias nostálgicas de aviões particulares e invernos em Mar-a-Lago, Bóris Ivanovitch descobriu almas ainda menos afortunadas do que ele, gente simples que tinha sido recusada por juntas de condomínio por não ser suficientemente bem relacionada. Essas pessoas todas tinham uma grande beleza religiosa por trás de seus rostos sofredores.

"Agora acredito em alguma coisa", disse ele à esposa, um dia. "Acredito que existe um sentido na vida e toda essa gente, rica e pobre, acabará morando na Cidade Divina, porque Manhattan está ficando definitivamente impossível de se viver."

Fonte:
Nadine Gordimer (org.). Contando histórias.

sexta-feira, 6 de setembro de 2019

Paulo Leminski (XLVI) "Fechamos o corpo"


Silmar Böhrer (Lampejos) XXIV


Alcântara Machado (O Tímido José)


                                                                                                                                                                      (José Borba)

Estava ali esperando o bonde. O último bonde que ia para a Lapa. A garoa descia brincando no ar. Levantou a gola do paletó, desceu a aba do chapéu, enfiou as mãos nos bolsos das calças. O sujeito ao lado falou: O nevoeiro já tomou conta do Anhangabaú. Começou a bater com os pés no asfalto molhado. Olhou o relógio: dez para as duas. A sensação sem propósito de estar sozinho, sozinho, sem ninguém, é o que o desanimava. Não podia ficar quieto. Precisava fazer qualquer coisa. Pensou numa. Olhou o relógio: sete para as duas. Tarde. A Lapa é longe. De vez em quando ia até o meio dos trilhos para ver se via as luzinhas do bonde. O sujeito ao lado falou: É bem capaz de já ter passado. Medindo os passos foi até o refúgio. Alguém atravessou a praça. Vinha ao encontro dele. Uma mulher. Uma mulher com uma pele no pescoço. Tinha certeza que ia acontecer alguma coisa. A mulher parou a dois metros se tanto. Olhou para ele. Desviou os olhos, puxou o relógio.

- Pode me dizer que horas são?

- Duas. Duas menos três minutos.

Agradeceu e sorriu. Se o Anísio estivesse ali diria logo que era um gado e atracaria o gado. Ele se afastou. Disfarçadamente examinava a mulher. Aquilo era fácil. O Anísio? O Anísio já teria dado um jeito. Na boca é que a gente conhece a sem-vergonhice da mulher. Parecia nervosa. Abriu a bolsa, mexeu na bolsa, fechou a bolsa. E caminhou na direção dele. Ele ficou frio sem saber que fazer. Passou ralando sem um olhar. Tomou o viaduto. O bonde vinha vindo. O nevoeiro atrapalhava a vista mas parece que ela olhou para trás. Mais uns segundos perdia o bonde. O último bonde que ia para a Lapa. Achou que era uma besteira não ir dormir. Resolveu ir. O bonde parou diante do refúgio. Seguiu. Correndo um bocadinho ainda pegava. Agora não pegava mais nem que disparasse. Ficar com raiva de si mesmo é a coisa pior deste mundo. Pôs um cigarro na boca. Não tinha fósforos. Virando o cigarro nos dedos seguiu pelo viaduto. Apressou o passo. Não se enxergava nada. De repente era capaz de esbarrar com a mulher. Tomou a outra calçada. Esbarrar não. Mas precisava encontrar. Afinal de contas estava fazendo papel de trouxa.

Quem sabe se seguiu pela Rua Barão de Itapetininga? Mais depressa não podia andar. Garoar, garoava sempre. Mas ali o nevoeiro já não era tanto felizmente. Decidiu. Iria indo no caminho da Lapa. Se encontrasse a mulher bem. Se não encontrasse paciência. Não iria procurar. Iria é para casa. Afinal de contas era mesmo um trouxa. Quando podia não quis. Agora que era difícil queria.

Estava parada na esquina. E virada para o lado dele. Foi diminuindo o andar. Ficou atrás do poste. Procurava ver sem ser visto. Alguma coisa lhe dizia que era aquele o momento. Porém não se decidia e pensava no bonde da Lapa que já ia longe. Para sair dali esperava que ela andasse. Impacientava-se. BARBEARIA BRILHANTE. Dezoito letras. Se continuava parada é que esperava alguém. Se fosse ele era uma boa maçada. Sua esperança estava na varredora da Limpeza Pública que vinha chegando. A poeira a afugentaria. Nem se lembrava de que estava garoando. Pôs o lenço no rosto.

A mulher recomeçou a andar. Até que enfim. E ele também rente aos prédios. Agora já tinha desistido. Viu as horas: duas e um quarto. Antes das três e meia não chegaria na Lapa. Talvez caminhando bem depressa. Precisava desviar da mulher senão era capaz de parar de novo e pronto. Daria a volta na praça. Ela tinha tomado a rua do meio. Então reparou que outro também começara a seguir a sujeita. Um tipo de capa batendo nos calcanhares e parecia velho. Primeiro teve curiosidade. Curiosidade má. Depois uma espécie de despeito, de ciúme, de orgulho ferido, qualquer coisa assim. Nem ele nem ninguém. Cada vez apressava mais o passo. O tipo parou para acender um cigarro. Era velho mesmo, tinha bigodes brancos caídos, usava galochas e se via na cara a satisfação. Não. Isso é que não. Nem ele nem o velho nem ninguém. Nem que tivesse que brigar. Mas por que não ele mesmo? Resolveu: seria ele mesmo.

Via a ponta da pele caída nas costas. De repente ela parou e sentou-se num banco. Sentia o velho rente. E agora? Fez um esforço para que as pernas não parassem. A mulher virou o rosto na direção dele. Quem é que estava olhando? O velho? Mas a sujeita endireitou logo o rosto, abaixou a cabeça. Vai ver que o olhava sem ver. Passou como um ladrão, o coração batendo forte e sentou-se dois bancos adiante. Prova de audácia sim. Mas não podia ser de outro modo. O velho também passou, passou devagarzinho, depois de passar ainda se virou mas não parou. Tinha receio de suportar o olhar do velho. Começou a passar o lenço no rosto. Já era pavor mesmo. Por isso tremia. O velho continuou. Dava uns passos, virava para trás, andava mais um pouquinho, virava de novo. No fim da praça ficou encostado numa árvore.

A sujeita se levantou, deu um jeito na pele, veio vindo. Com toda a coragem a fixava. Impossível que deixasse escapar de novo a ocasião. Bastaria um sorrizinho. Mas nem um olhar quanto mais um sorriso. Mulher é assim mesmo: facilita, facilita até demais e depois nada. Só dando mesmo pancada como recomendava o Anísio. Bombeiro é que sabe tratar mulher. Já estava ali mesmo: seguiu-a. O velho estava esperando com todo o cinismo. O gozo dele foi que quando ela ia chegando pegou outra rua do jardim e o velho ficou no ora veja. Vá ser cínico na praia. Não é que o raio da sujeita apressou o passo? Melhor. Quanto mais longe melhor. Preferia assim porque no fundo era um trouxa mesmo. Reconhecia.

Ela esperou que o automóvel passasse (tinha mulheres dentro cantando) para depois atravessar a rua correndo e desaparecer na esquina. Então ele quase que corria também. Dobrou a esquina. Um homem sem chapéu e sem paletó (naquela umidade) gritava palavrões na cara da sujeita que chorava. À primeira vista pensou até que não fosse ela. Mas era. Dando com ele o homem segurou-a por um braço (ela dizia que estava doendo) e com um safanão jogou-a para dentro do portão. E fechou o portão imediatamente. Uma janela se iluminou na casinha cinzenta. Ficou ali de olhos esbugalhados Alguém dobrou a esquina. Era o velho. Maldito velho. Então seguiu. E o outro atrás.

Nem tinha tempo de pensar em nada. Lapa. Lapa. Puxou o relógio: vinte e cinco para as três. Um quarto para as quatro em casa. E que frio. E o velho atrás. Virou-se estupidamente. O velho fez-lhe um sinal. O quê? Não queria conversa. Não falava com quem não conhecia. Cada pé dentro de um quadrado no cimento da calçada. Assim era obrigado a caminhar ligeiro.

- Faz favor, seu!

Favor nada. Mas o velho o alcançou. Não podia deixar de ser um canalha.

- Diga uma coisa: conhece aquele xaveco?

Fechou a cara. Continuou como se não tivesse ouvido. Mas o homem parecia que estava disposto a acompanhá-lo. Parou. Perguntou desesperado:

- Que é que o senhor quer?

Por mais um pouco chorava.

- Onde é que ela mora?

- Não sei! Não sei de nada!

O velho começou a entrar em detalhes indecentes. Não aguentou mais, fez um gesto com a mão e disparou. Ouvia o velho dizer: Que é que há? Que é que há? Corria com as mãos fechando a gola do paletó. Só depois de muito tempo pegou no passo de novo. Porque estava ofegante a garganta doía com o ar da madrugada. Lapa. Lapa. E pensava: A esta hora é capaz de ainda estar apanhando.

Fonte:
Alcântara Machado. Laranja-da-China.

J. G. de Araújo Jorge (Inspirações de Amor) XXV


NAMORADOS

Um ao lado do outro, - assim juntinhos,
mãos enlaçadas num enlevo infindo,
- seguem... a imaginar que estão seguindo
o mais suave de todos os caminhos...

Com gravetos de sonho vão construindo
na terra, como no ar os passarinhos,
a esplêndida ilusão de um mundo lindo,
entre beijos, sorrisos e carinhos...

Nada tolda os seus olhos... Nem um véu...
Andam sem ver os lados, vendo o fim
e o fim que veem é o azul do céu...

Ah! se a gente, - tal como namorados,
pudesse eternamente andar assim
pela vida a sonhar de braços dados!..

NAQUELE DIA...

Não devia
ter-te encontrado em meu caminho
naquele dia...

Naquele dia
teriam gosto amargo os teus beijos mais doces
e por mais sincera e humana que tu fosses
no teu amor por mim,
havia de ferir-te com meu orgulho mordaz...

Perdoa, meu amor, naquele dia
todas as mulheres para mim
eram iguais...

NÓS

Afinal o que sinto
é o sofrimento atroz
de muito tarde descobrir que nunca falaremos
em nós...

Eu, serei eu, tu, serás tu,
e eternamente assim
nem nunca me terás como queres que eu seja
nem serás como eu quero que sejas pra mim...

Muito tarde... muito tarde...
- depois que assim te quero, e preciso de ti
como os pulmões precisam de ar
ou os olhos de luz,
é que vou descobrir que se ficarmos juntos,
eu poderia te odiar, tu poderias me odiar!
- Quem diria ao final, ao que o amor se reduz?!

Estraguei a tua vida e desgraçaste a minha
e fomos acordar, os dois, tarde demais...
Agora, eu sigo só,
tu, seguirás sozinha,
eu, fugindo; covarde!... a este amor que me espinha!
tu, querendo, - medrosa!... inutilmente a paz!

E o que é estranho afinal, é que nos amamos,
e sentimos no entanto que nos separamos,
cada um com a sua sombra dolorosa a sós...
- conformados, na dor cruel, nos convencemos,
de que nunca na vida, eu e tu...
seremos nós...

NOTURNO Nº 3

Sobre o teclado negro das montanhas
onde o sol, num incêndio de gazes e sombras
delira, em agonia,
uma palmeira pianista
com as longas palmas de seus dedos longos
de artista,
toca uma ave-maria...

NOTURNO Nº 4

Ah! só os meus ouvidos ouvem!
Cada estrela é uma nota nítida vibrando
como um toque de cristal,
na sinfonia azul da noite tropical
que superou Beethoven!

O LAGO

É um lago azul, tranquilo, pequenino,
sereno, cristalino,
bem ao pé da montanha distante, onde o vês...
Da sua superfície sempre calma
nada perturba a suave placidez

De súbito, uma pedra vem rolando
e sobre as águas cai...

Uma onda, uma outra mais se vão formando
e em círculos concêntricos crescendo, aumentando,
chegam até as bordas, e a primeira
transborda... e sai...

a alma da gente é assim, é como um lago
bem ao pé da montanha do destino,
com a sua superfície transparente...

Vem a pedra rolando e a água perturba,
os círculos se vão formando, vão crescendo,
e de repente,
as lágrimas transbordam uma a uma
pelos olhos da gente

ORÁCULO

Sinto que vens de longe, através das eras,
para um mundo profano, esquecido das olímpicas
belezas,
das mediterrâneas primaveras
e das perfeições supremas...

Eu sabia que vinhas, e por isso eu te esperava ...

Ressuscitarei em teu corpo a alma perdida e escrava,
e ao milagre da ressurreição,
vibrarão teus ouvidos com a música dos meus poemas
e os teus olhos com a fantasia da minha imaginação!

Despertarei em tua carne todos os gestos adormecidos
e ressoarão novamente em teus sentidos
acordes imortais de outros hinos de amor...

Soprarei a luz nas tuas órbitas frias e inanimadas
que não viram a marcha dos tempos,
e na superfície de cristal de tua beleza serena
acordarei repuxos de líquidos corpos
transparentes,
e mergulharei nas profundezas as minhas mãos nervosas
-as minhas mãos ardentes...

Depois... eu turvarei a pureza sem mácula
da tua alma presa
e adormecida,
trazendo-te do fundo de ti mesma, e entregando-te surpresa
a própria Vida ...

Libertarei o teu corpo feito de ritmos elementares
para a suprema celebração desse milagre criador...
E dos teus esponsais com o Poeta,
renascerão em tuas formas
todas as estátuas gregas,
e de teu ventre virá a luz que há de perpetuar a beleza
na imagem de um novo deus, filho do nosso amor!

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. Os Mais Belos Poemas Que O Amor Inspirou. vol. 2. SP: Ed. Theor, 1965.

Chico Anysio (Mestre-de-Obras)


31 de dezembro. Há 3 dias São Paulo não fala noutra coisa que a Corrida de São Silvestre.

— Deve ganhar um holandês desses...

Há corredores da Holanda, realmente, como os há da Bél­gica, dos EUA, da França, da Argentina. Até da Etiópia há um, que corre descalço. Um de cada país. Do Brasil há 75.

— Boa sorte.

Josué, um dos 75, agradece à namorada o que ela lhe deseja.

É um mulato atarracado, de pernas finas. Nordestino dos que ajudaram a construir São Paulo. Foi pedreiro em muitas obras, fiscal em tantas outras. Hoje, é Mestre, na construção de um prédio na Avenida Ipiranga.

— Obrigado.

Ele agradece à sua neguinha o desejo de boa sorte. Iolanda sorri e lhe põe um beijo na testa. Iolanda é cozinheira, no Morumbi. Conseguiu licença dos patrões para ver seu homem correr. Seria melhor ter ficado em casa, acompanhando pela televisão. Ali, verá a partida e nada mais. Mas achou que sua presença era muito importante. Assim como um estímulo para o namorado.

Josué aquece-se, balançando as pernas de músculos tão diferentes das pernas francesas, inglesas, holandesas, que se põem ao lado.

Mantém-se entre os primeiros no começo da maratona. Há dois louros na frente, além de um japonês pequenino, de sapatilha azul.

As pernas começam a pesar, tornam-se impotentes. O louro da Inglaterra parece máquina. Tum-tum... tum-tum... tum... tum... não muda o passo, não arrefece um segundo. Tem um francês nos seus calcanhares. Quinze metros atrás, o japonês calçado de azul, com muita torcida nas calçadas. Depois, Josué, com a camisa da Força Pública, esperança brasileira, na sua opinião.

— Manda brasa, baiano.

Josué, da Paraíba, tem melado na boca, o coração pulsa na veia do pescoço escondido. Josué sabe que o belga sabe que na hora em que desejar vai superá-lo. Pensa em Iolanda, tentativa de arregimentar forças.

Estão na subida da Rua da Consolação. Josué olha longe. A rua não tem os quilômetros que pensava, mas talvez mais de doze. Sente a perna grossa, os pés começando a doer.

O louro da Inglaterra já está pequenino, pela distância que aumenta. Na esquina da Caio Prado começam as cãibras.

— Pelo menos quinto...

Josué não tem grandes pretensões. Sabe que não come o que os outros comem, que não vive no mar de rosas dos estrangeiros. Ele é mestre-de-obras, trabalha pra ganhar a vida. E trabalha pesado, não vive em moleza.

O belga o supera. Josué percebe que o belga sorri quando lhe passa à frente. E já há um argentino e um venezuelano a persegui-lo de perto.

— Vamos, Josué.

Não sabe de onde partiu a voz, mas sente refrigério no incentivo que escuta. A subida é íngreme apenas para ele. Lá se vão os sul-americanos passando à frente. Calcula estar em oitavo lugar.

— Pelo menos décimo. . .

Josué tem as coxas medindo dois palmos de diâmetro. Dormentes, inclusive. Sente o cheiro do seu suor. Diferente do da obra. Agora, é um cheiro de atleta. Pensa um instante nos irmãos, em Sousa, na Paraíba, que nem sabem que ele é atleta. Pensa em Iolanda, certamente junto a um rádio. Será que estão falando o seu nome?

O sueco o suplanta, como também o holandês. Vão virar na Avenida Paulista.

A noite estava tão fresca, antes da corrida. Agora é esse inferno, essa sufocação que quase não o deixa respirar. Ele bufa a cada passo, morre um pouco a cada pisada. Passa por ele um brasileiro do Corinthians, bastante aplaudido.

— Nem o primeiro brasileiro eu vou ser.

Dobra na Avenida Paulista em vigésimo sexto. Mas há de chegar na frente de muita gente boa. Como estarão suas pernas amanhã? Josué sente o suor escorrer pelas coxas. Está cansado e sofrido. Padece mais, cada vez que um lhe passa à frente. Muitos, aliás, brasileiros. Passa Altamiro, também da Força Pública. Josué não percebe, mas já não corre, passeia. Vão passando muitos. O colombiano é o 78º a superá-lo.

— Subdesenvolvido como eu — pensa Josué, agora em frente do Conjunto Nacional.

Agora, tudo o que deseja é chegar. Qualquer coisa, menos parar no meio, como a maioria dos brasileiros. Chegar. Precisa chegar. Nem que seja em último Mas tem que ir até o fim. Falta quanto? Deseja tão pouco: chegar. Não pede demais, meu Deus do Céu.

— Andando, até eu.

A voz de gozo que sai da calçada o magoa. Pensa um palavrão que não pode falar. Da boca já sai, pelos cantos, uma espuma branca, um creme de cansaço. Faltam 400 metros. Chegar. Iolanda. Os irmãos na Paraíba. Chegar. Os amigos que arranjaram um jeito dele correr, defendendo a Força Pública. Iolanda.

Chegar.

Duzentos metros, Josué.

Continuam a passar por ele. Está incapacitado de saber em que colocação se encontra. Só saberá o lugar que tirou amanhã, pelos jornais.

— Corre, que dá pra tirar terceiro.

Zombam, na calçada. Josué pensa em lhes dizer que se ponham no seu lugar. Não é atleta, é mestre-de-obras, seus idiotas, que só sabem dizer besteira.

As pernas param de resistir. Faltam cem metros. Ele cai. O asfalto queima-lhe a cara. Retiram-no da avenida. Não há ar no mundo. Josué tenta o ar que não existe. A boca aberta, com dentes de ouro, busca o ar impossível. É tarde. O ar acabou, para ele, pelo menos.

No podium colocam uma coroa de louros na cabeça do inglês.

Fonte:
Chico Anysio. O Enterro do Anão.