quinta-feira, 7 de novembro de 2019

Contos e Lendas do Mundo (Portugal: Pedro e Inês)


Já lá vão muitos anos, mais de seiscentos, desde o trágico episódio dos amores de Dom Pedro, filho herdeiro do rei Dom Afonso IV de Portugal, e de Dona Inês de Castro, uma nobre castelhana chegada a Portugal na condição de dama de companhia de Dona Constança Manoel, filha do rei de Castela, cujo casamento com Dom Pedro fora combinado entre as duas famílias reinantes por razões de ordem política.

Assim que a viu, logo Pedro se enamorou de Inês e por esta foi correspondido. Corria o ano de 1340.  Após o casamento que legimitou a sua união com a filha do rei de Castela, o sucessor ao trono de Portugal prosseguiu a sua ligação amorosa com Inês de Castro, a mulher que ele realmente amava e de quem teve três filhos. Vários anos durou este romance de verdadeiro amor e paixão, para grande irritação do velho rei de Portugal.

De sua legítima mulher, Dona Constança, teve Dom Pedro vários filhos, que morreram ainda crianças, tendo apenas sobrevivido um, Fernando, que mais tarde sucedeu a seu pai no trono.  Entretanto morria Dona Constança.

Pedro e Inês viviam o seu romance conforme podiam, permanecendo algum tempo em vários dos muitos castelos reais existentes, tendo por fim fixado residência na cidade de Coimbra, no Palácio da Rainha, junto ao Mosteiro de Santa Clara, hoje chamado de Santa Clara-a-Velha.

Sabedor do paradeiro dos dois amantes, o rei envia Diogo Lopes Pacheco, homem da sua confiança, a Coimbra, com a missão de aí se encontrar com o seu filho e lhe pedir que reconsiderasse a sua atitude irresponsável e leviana e que tomasse a decisão de escolher uma princesa legítima de uma casa real e que com ela casasse, pois o seu romance com Dona Inês estava a causar escândalo entre os nobres, o clero e os bons burgueses do Reino de Portugal. Mas Dom Pedro mostrou-se desinteressado. Jamais voltaria a casar.

Enquanto os membros dos estratos sociais mais elevados do Reino e da Corte manifestavam junto do Rei a sua desaprovação pela felicidade que o infante Dom Pedro não escondia de ninguém, o povo português, aquele que trabalhava os campos, pescava, construía casas, amassava e cozia o pão, vendia e comprava nas feiras, o povo trabalhador que pagava os impostos que alimentavam o corpo e a ociosidade das classes superiores, esse povo adorava Dom Pedro, pois o futuro rei participava nas suas festas e romarias, e gostava de cantar e bailar com eles pelas ruas até de madrugada.

Dona Inês era para o rei de Portugal um problema político de difícil resolução, porque se o pequeno infante Dom Fernando, apenas com dez anos e não muito saudável, o único varão legítimo de Dom Pedro, nascido do seu casamento com Dona Constança, morresse antes de ter por sua vez um herdeiro legítimo, e Dom Pedro não tivesse outros varões legítimos, seria um dos filhos de Dona Inês, um Castro, um Grande de Espanha, a herdar o trono de Portugal.

Logradas que foram as tentativas de Dom Afonso IV para pôr fim aos amores de Pedro e Inês, o velho rei deslocou-se à cidade de Coimbra acompanhado de numeroso grupo de homens de armas, isto numa altura em que na Corte se sabia que Dom Pedro estava ausente, caçando ursos e javalis muito longe dali, mais para Norte.

Era a noite de 6 de Janeiro de 1355. Na cidade de Coimbra gerou-se um grande burburinho entre a população, que ficou temerosa do que poderia acontecer com a chegada do pai, precisamente quando o filho andava por fora. Dona Inês encontrava-se sozinha no palácio sem a proteção de Dom Pedro, o seu amado, o único capaz de fazer frente ao rei.

Nessa madrugada, sai Dom Afonso IV a cavalo acompanhado da sua comitiva e descem até à residência de Dona Inês, ao lado do Mosteiro de Santa Clara, junto ao rio. Os homens de armas forçam a entrada e todos entram de rompante no grande pátio interior. O rei manda chamar Dona Inês que surge acompanhada dos filhos. Logo o rei ordena ali aos seus homens que terminem com a vida daquela mulher, mas ela suplica ao velho rei que tenha piedade dela e das crianças, que são seus netos. Os filhos choram, assustados, agarrados às saias da mãe. As aias choram também e pedem piedade. Pedem àqueles homens de armas que deixem os da casa em paz e se vão embora. O rei acaba por se apiedar e cede. Dirige-se para a porta mas, ao passar a porta, três dos seus homens, Diogo Lopes Pacheco, Pero Coelho e Álvaro Gonçalves, de novo insistem com ele para que ordene a morte de Inês, ao que o rei acaba por responder

- Fazei lá o que quiserdes.

Estes voltam para trás, gerou-se grande confusão no pátio do palácio, e os homens do rei decapitaram Inês de Castro diante dos filhos e dos criados de sua casa, que choravam e gritavam.

Assim que um mensageiro comunicou a trágica notícia a Dom Pedro, a sua dor e fúria foram indescritíveis, mas estando vivo o rei ainda não era chegado o momento de dar livre curso à sua fome de vingança.

Algum tempo depois morreu o velho rei e Dom Pedro ocupou o seu lugar no trono de Portugal. Não perdeu tempo a sentenciar os assassinos da sua amada Dona Inês.

Junto a uma das portas da cidade havia sempre um pobre cego a quem Diogo Lopes Pacheco costumava dar esmola, e que ao sentir que este regressava a casa o avisou para que fugisse, que os soldados de Dom Pedro o estavam procurando, certamente para o prenderem, e assim Diogo Lopes Pacheco se salvou.

Pero Coelho e Álvaro Gonçalves foram menos afortunados. Trazidos à presença de Dom Pedro, este os executou por suas próprias mãos. Empunhando o seu punhal, Dom Pedro a um arrancou o coração pelo peito e ao outro fez o mesmo pelas costas, mordendo-os de seguida. Era este um costume ancestral dos antigos Celtas. Morder o coração do inimigo, para se assegurar de que este está efetivamente morto.

Segurando o coração de Pero Coelho na ponta do punhal, gracejou, cheio de ódio, pedindo aos presentes que lhe trouxessem azeite e vinagre para temperar o coelho.

Vingada a morte da sua amada, o rei mandou então que procedessem à transladação dos restos mortais de Dona Inês do local onde se encontrava sepultada, em Coimbra, para um magnífico túmulo construído para o efeito no Mosteiro da Batalha, túmulo esse que ainda hoje lá se encontra e que é considerado uma obra-prima da escultura tumular medieval.

O cortejo fúnebre percorreu a pé os mais de cem quilômetros que separam Coimbra da Batalha, a urna de Dona Inês carregada em ombros por homens de armas. Ao cair da noite punham-se a caminho, alumiados por centenas de archotes empunhados por outros tantos criados e escudeiros e só paravam para descansar quando a linha do horizonte começava tenuemente a aclarar. Várias noites durou a caminhada, contornando montes, descendo vales e atravessando florestas.

Chegados a Alcobaça, Dona Inês foi sentada num trono e Dom Pedro fê-la coroar rainha. Toda a Corte ajoelhou e beijou a mão da sua rainha, Inês de Castro, um cadáver em decomposição.

Dom Pedro ainda reinou durante vários anos, amado por uns, odiado por outros. Dava largas ao seu gosto pelos festejos populares onde aparecia para alegria do povo, sempre acompanhado dos seus amados e fiéis companheiros de armas.

Fonte:
David Martins. Histórias e Lendas de Encantar.

Carlos Drummond de Andrade (Conversa de Casados)


Ora, dá-se que o jovem casal completou trinta e seis anos de união, e eu resolvi entrevistá-lo. Quem sabe se os dois teriam alguma receita de felicidade? Levei um questionário indiscreto. Primeira pergunta:

— Como é que vocês conseguiram passar tanto tempo juntos?

Os dois, a uma voz:

— Não foi tanto assim. Um terço (doze anos), dormindo oito horas por dia.

— Mesmo assim, meus caros!

Ela esclareceu:

— Havia o trabalho dele, que nos separava durante a maior parte do dia.

— E ela passou a maior parte da vida no cabeleireiro — completou ele.

Eu: — Cabeleireiro, trabalho e sono: será isso a vida em comum?

— Não — disse ela sorrindo. — Há os intervalos.

— De qualquer maneira, trinta e seis anos! É um latifúndio.

Ela: — Bem, brigamos o necessário. — Está satisfeito agora?

Eu: — Ainda não. Brigas feias, dessas de atrair vizinho?

Ele ponderou: — Como quer você que uma briga seja bonita? Brigamos como foi possível. Confesso que a iniciativa geralmente era minha. Ela, porém, provocava sempre.

— Ele trazia os motivos da rua, às vezes bem visíveis — informou ela.

— Outras vezes, os motivos vinham da cozinha — emendou ele. — O homem gosta de variar, pelo menos de sobremesa.

— Mas depois das brigas… — insinuei.

— Sim, era bom — admitiram ambos.

E cada um por sua vez:

— Nos primeiros tempos, ele punha bilhetes debaixo do travesseiro, pedindo perdão. Tenho um arquivo.

— Ela, de desgosto, jejuava. Gostando tanto de bife!

Ficaram recordando.

— Ele mentia muito.

— Ela me chamava de mentiroso justamente quando eu falava verdade.

— Ele era impaciente.

— Ela fazia de boba, me enervava.

— Ele tinha ódio de me ver doente. Embora sentindo pena, e querendo ajudar, virava onça.

— Eu também não podia adoecer, os cuidados dela eram excessivos. Doente precisa de paz.

— Algum dia, no íntimo, você pensou em matar sua mulher? — arrisquei.

— Mais ou menos. Quando ela comprou um tapete horroroso.

— E você já pensou em envenenar seu marido?

— Nunca. Mas tinha medo de que outra mulher o fizesse.

— Vocês discutiam por causa de dinheiro?

Ele, satisfeito: — O dinheiro não dava para isso.

Ela: — Não posso me queixar. Ele nunca me negou nada.

— Ela teve a esperteza de nunca me pedir nada que eu não pudesse dar.

— Que foi que preservou o lar de vocês, nos momentos difíceis?

Ela: — O tricô, que apura as virtudes femininas, e o hábito.

Ele: — A poltrona, o cãozinho, o hábito.

Eu: — Só isso?

Os dois: — E tudo mais.

— Quanto tempo leva para um se acostumar ao outro?

Ele: — Uma semana. Mas durante os primeiros vinte anos, uma vez ou outra, a gente se estranha ao acordar. E isto salva da rotina.

— Qual o papel dos filhos no casamento?

Ele: — Educar os pais. Poucos o conseguem.

— Vocês se educaram?

Ele: — Não. Continuamos a achar nossa filha mais moça do que nós. A verdade é que, nascendo depois, ela sabe muito mais. Os pais são rebeldes ao ensino.

Ela: — Ele é sofisticado. No fundo, coruja como os outros.

— Qual foi o presente de aniversário que ele deu a você?

— Um colar de pérolas barrocas.

Ele: — Para me fazer lembrado. Ela diz que sou uma pérola — mas barroca, isto é, imperfeita.

Ela: — E eu dei a ele um barbeador elétrico. Para lembrar que marido não deve ficar com a barba crescida quando não sai de casa.

— Vocês se casariam de novo?

Como resposta, beijaram-se. Não aprendi nenhum segredo, mas afinal o segredo de todos os casais antigos deve ser mesmo esse.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas.

quarta-feira, 6 de novembro de 2019

Varal de Trovas n. 109


Álvaro Posselt (Contos Minimalistas)

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ENTRADA SECRETA

- Como você entrou aqui? - perguntou-me o diabo.
- O cabo do elevador se rompeu!
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O AVARENTO

Detesto dever para alguém, mais ainda para um avarento. O vendedor de coxinhas ia toda tarde na firma. Fiquei devendo dois reais a ele.
Morreu. No velório, O filho da mãe de olhos abertos me secando.
Agora não devo mais nada. Peguei duas moedonas e pus nas vistas dele.
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DE GUDE

O netinho tem uma coleção de bolinhas. Tem buricão, carambola, acinho, chazinha e leitosa.
Agora apareceu com uma tal de caolhinha.
Fez sucesso no jogo de búrico até a mãe descobrir onde foi parar o olho de vidro do avô.
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BICHINHO DE ESTIMAÇÃO

Ela sempre vai à frente, acompanha-o em todos os lugares. Dormem juntos; ela gosta de ficar de lado e não em cima, seu dono ronca muito.
Outro dia, ele se sentiu mal do coração e teve de ir ao médico. A velha amizade ficou ameaçada.
- Vai ter que perder essa barriga! - o doutor sentenciou.
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SANTINHO

Dentes perfeitos no sorriso lindo. Tão bonita e infeliz nos relacionamentos. Até fez a simpatia do Santo Antônio emborcado no copo d'água.
Cupidos não faltavam entre os amigos.
Na festa de aniversário, levaram um bolo surpresa. Comeu um pedaço e sentiu um estranho estalo. O dente da frente quebrou-se ao morder a estatueta do santo casamenteiro.
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COMÉDIA DIVINA


Fora um homem de bem. Na entrada do céu, refletia sobre sua passagem. Estava certo de que merecia um lugar naquele paraíso. Tinha se livrado de tudo o que era material: relógio, anel de casamento e carteira. "Não vou precisar dessas coisas" - pensou.
A fila era grande. Sentiu um cutucão no ombro:
- Tem ingresso sobrando? Eu compro! - disse o cambista.
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O AFIADOR DE FACAS

Tocou o telefone:
- O senhor afia em domicílio?
- Sim. Qual o endereço?
No tal lugar, atendeu-me um cavalheiro de terno, chapéu e bengala. Serviço rápido.
Pagou-me muito bem, apesar de eu nunca ter afiado um tridente antes.

Fonte:
Alvaro Posselt. A Brisa é você, disponível no Recanto das Letras

Jessé Nascimento (Poemas Avulsos)


A DECISÃO

Criança triste, eu quisera alegrar-te,
secando as lágrimas dos teus olhinhos,
mas o que fazer para transformar-te
e trazer risos para os teus caminhos?

E foi assim que um dia te encontrei,
chorando das mazelas da pobreza;
quantas crianças mais sofriam, sei,
das mesmas dores, eu tenho certeza.

Como ver os rostinhos sorridentes?
Esquecendo-me dos meus próprios ais,
vi solução das mais surpreendentes;

e decidi, sem muito estardalhaço,
sem querer ver tristeza nunca mais,
que eu seria desde então um PALHAÇO!

A LIÇÃO DA VIDA

Quantas vezes chorei
por qualquer dor,
quando outros,
mais sofredores e conformados,
sorriam.
Aprendi a lição.
E agora,
cada vez que choro
vou subtraindo
mais uma lágrima.
Cada vez que sorrio
vou acrescentando
mais um motivo.
A vida
é um eterno sorriso
lubrificado
por algumas lágrimas.

A LUZ NO TÚNEL

Via uma luz
no fim do túnel.
Ainda via.
Agora procuro
a luz,
não mais a vejo.
Nem mesmo o túnel…

IDEAIS E VITÓRIAS

Um novo ano, novos desafios,
novos projetos, sonhos renovados
e a esperança a remexer meus brios
de ver meus ideais concretizados.

Não me acovardo ante às intempéries
que a vida impõe a cada um de nós;
se as lutas me atropelam, vêm em séries,
sigo em frente, valorizando os prós.

Sou um soldado e estou em plena guerra,
na árdua briga por uma vitória,
no dia a dia que a batalha encerra;

e assim prossigo conquistando sonhos,
sem almejar os louros de uma glória,
apenas viver momentos risonhos...

NUVENS

As nuvens
passaram
enxotadas
pelos ventos.
Mas fizeram
caretas
em forma
de coisas e animais…

QUISERA

Eu quisera afastar toda tristeza
e ter belo sorriso permanente;
igualmente acabar com a incerteza,
mantendo a fé e a esperança somente.

Quisera também saber perdoar,
toda a maldade do mundo esquecer;
e ao meu próximo jamais magoar,
guerreiro pela paz quisera ser.

Como quisera tudo transformar,
fazendo dominante o verbo amar,
tornando a existência apetecida.

Que tudo eu faça e tudo suporte,
sei que não posso acabar com a morte,
mas posso, sim, valorizar a vida!

SOLIDÃO

Antes só do que
mal acompanhado?
Pois sim.
Antes mal acompanhado
do que só.
É terrível
a solidão!

TECLADO DE AMOR *

Querido amigo premiou-me, um dia,
com belo livro "Teclado de Amor";
Li e reli, sentindo o que é Poesia,
o que é inspiração do Criador.

Lamento, sim lamento, ó poetisa,
não tê-la conhecido por mais anos;
sua poesia é  leve como a brisa
e tão profunda quanto os oceanos!

Sua visão, como eu quisera ter,
e porta-voz como eu quisera ser
de um mundo de dor, também de alegria.

Quisera ter a sua vocação,
seu talento e divina inspiração
pra recriar a vida na poesia!

* soneto dedicado à poeta e radialista paulista Maria de Lourdes Macedo.

Fonte:
Recanto das Letras do Poeta

Giuseppe Bezzi (Mel)


Mel, a cadela de um amigo meu,
Depois de anos de amizade e amor,
Partiu pra sempre, voou para o céu
Enchendo o triste coração de dor.

Do José, o dono. Agora se perdeu
No espaço etéreo o tênue rumor
De suas unhas no piso e se rompeu
O sentimento de alegria e o clamor

Que, após a longa espera atrás da porta,
Ela fazia quando José voltava,
Feliz de vê-lo novamente em casa.

Ela está livre, agora ela tem asa,
Não fica alegre e não fica brava:
A doce amiga ora repousa, morta.
–––––––––––––––
(Poesia em Italiano)
MEL

Mel, la cagnetta di un amico mio,
Dopo tanti anni di amicizia e amore,
È partita per sempre, ha detto addio
A questo mondo, lacerando il cuore.

Di José, il suo padrone. Il calpestio
Delle sue unghie non fa più rumore
Sul pavimento; non più il turbinio
Festoso e il mugolar danno il sentore,

Dopo un lungo aspettar dietro alla porta
Quando José rientrava dentro casa,
Della felicità immensa e vera,

Dell`amicizia pura e sincera.
L`anima dal suo corpo è uscita, è evasa:
La dolce amica ora riposa, morta.

Fonte:
Poema em português e italiano enviado pelo poeta

Machado de Assis (A Mão e a Luva)


Resumo:

Afilhada de uma rica baronesa, pela qual era sustentada em um colégio para professores, Guiomar era uma moça simples que ficou órfã logo cedo, mas tinha consigo uma força de lutar pelo que pretendia. Usava a razão para controlar seu coração. Tendo uma beleza e um jeito de ser atrativo, despertou interesse de 3 homens: Estevão (sentimental), Jorge (calculista) e Luís Alves (ambicioso).

Estevão era sentimental, leviano, ingênuo, superficial, inseguro, porém sincero. Amaria qualquer mulher que despertasse algum interesse nele. Não dava nenhum valor a si mesmo e por isso mereceu a preferência de Guiomar. Os dois chegaram a ficar juntos por algum tempo, até que ele vai estudar Ciências Jurídicas e Sociais em São Paulo. Neste período ele sofreu muito pensou até em se matar, e após um devido tempo já em São Paulo achou que iria esquecer de Guiomar, foi onde se enganou.

Após ter se formado, voltou e ficou na casa de Luís Alves. Certa manhã os dois se reconhecem e trocam algumas palavras. Mas o destino não pertencia a ele.

Jorge era fraco de caráter egoísta e orgulhoso de si mesmo. Era sobrinho da madrinha de Guiomar. As vantagens econômicas lhe atraiam a ela.

Luís Alves era frio e fechado, não contado seus sentimentos e vontades a ninguém. Era calculista, esperava o momento certo para dar uma cartada. Era amigo de Estevão e vizinho de Guiomar. Ele se decide por Guiomar, mas apenas quando tem certeza que não vai ser descartado. Os dois se casam.

Embora nitidamente romântico, A Mão e a Luva é um romance sóbrio. Seu ponto alto são as personagens femininas: Guiomar pela complexidade de seu caráter, Mrs. Oswald pela astúcia e verossimilhança.

O romance gira em torno de um caso complicado - mas de solução simples e previsível - de namoro dentro dos mais rigorosos esquemas burgueses.

O nome do livro se dá devido ao casamento de Guiomar e Luís Alves que se encaixam
como uma mão dentro de uma luva, sendo um feito especialmente para o outro.
 
Análise

A novela a Mão e a Luva (1874), de Machado de Assis, é uma das narrativas iniciais do Bruxo do Cosme Velho, ainda sob a influência do romantismo e do convencionalismo oitocentista. Por isso, é caracterizada como da primeira fase do escritor carioca, juntamente com as obras Contos Fluminenses (1870), Ressurreição (1872), Histórias da Meia-Noite (1873), Helena (1876) e Iaiá Garcia (1878).

Tais obras primeiras, ainda com um Machado em idade prematura, inocente, imbuído dos ideais românticos de sua época, não rompem de vez com o costume da sociedade e pretendem acariciar as leitoras suspirantes, que ruborizam com os apelos do coração, e a crítica ainda afeita aos traços românticos.

É nesse mister que Afrânio Coutinho informa na Introdução da obra: “Caracteriza-a uma narrativa monolinear, com intriga sem maiores complicações, crescendo em ordem cronológica, em torno de pequeno número de personagens. A ação simples, diz o autor na advertência de 1907, serve ‘apenas de tela em que lancei os contornos dos perfis’. (p. 17)

Assim, passamos a analisar os aspectos formais de A Mão e a Luva, como texto narrativo que se propõe.

ENREDO


O enredo de A mão e a Luva pode ser facilmente identificado com uma marcação um tanto quanto fixa:

a) A exposição ou a apresentação: no capítulo inicial os personagens principais Estevão, Guiomar e Luís Alves são mostrados e descritos, no ambiente e no tempo em que a estória se desenrola.

b) A complicação: os conflitos da novela se dão quando o amor que Estevão sente por Guiomar não é correspondido, os problemas começam a surgir daí.

c) O clímax: há alguns picos de tensão em A Mão e a Luva, quando Estevão decide se declarar pela segunda vez a Guiomar, quando Luís Alves fala para o amigo que ela o ama e vão se casar, mas o principal é quando Guiomar tem que decidir entre dois pretendentes: Luís Alves ou o primo, Jorge.

d) O desfecho: o final da novela se dá com os preparativos do casamento de Luís Alves com Guiomar, com um Estevão covardemente assistindo a tudo da praia, tentando em vão se suicidar.

PERSONAGENS

Pode-se analisar os personagens do livro quanto ao papel desempenhado no enredo:

a) Principais: Guiomar, Luís Alves e Estevão.

b) Secundários: a baronesa, a inglesa Mrs Oswald, Jorge e mais alguns poucos que frequentavam as festas em casa da baronesa.

Pode-se também analisar os personagens quanto à caracterização que têm no romance:

a) Esféricas ou cíclicas: apenas Luís Alves tem essa característica, pois é um personagem que é deixado de lado, sem descrições, paira sempre um mistério sobre ele e a sua índole. No entanto, no final da novela ele dá uma reviravolta e casa-se com a outra personagem principal, Guiomar.

b) Personagens planas: como já foi afirmado acima, todos os outros se caracterizam por ter uma índole mais ou menos previsível, atitudes e nuances que fazem supor as suas ações no desenrolar do romance, não trazendo nenhuma reviravolta ou surpresa.

FOCO NARRATIVO

Ainda sob a influência do romantismo, Machado cria um narrador que tenta buscar o leitor o tempo todo, tal qual um contador de história que necessita da atenção dos leitores. Poder-se-ia afirmar que o narrador é em terceira pessoa, narrador-observador ou onisciente, que conta a estória como se estivesse assistindo-a de longe, vendo os fatos se desenrolarem.

No entanto, ele também é um narrador intruso, como podemos ver nessas passagens: “e que o leitor saberá daqui a pouco” (p. 27), “Demos-lhe razão ao despeito com que fechou e atirou ao chão” (p. 44), “estas minúcias que aqui lhes aponto, em desempenho deste meu dever de contador de histórias” (p. 45), etc.

TEMPO

O lapso temporal do romance são de dois anos e poucos meses, tempo em que, cronologicamente, Estevão tem uma desilusão amorosa com Guiomar, forma-se em bacharel em São Paulo e retorna à corte. Daí os fatos vão acontecendo e sendo descritos pelo narrador: “Claro é que dous anos depois, quando tomou o grau de bacharel(...)” (p. 37)

Não há praticamente tempo psicológico, somente quando Estevão tenta a todo custo sobreviver das lembranças do amor ou do carinho que Guiomar tivesse dado a ele no passado, quando do primeiro flerte. São raros flash-backs apenas para acentuar o amor/a dor da personagem: “Estevão tinha-a visto pela primeira vez, seis meses antes, e desde logo sentiu-se preso por ela (...)” (p. 30)

ESPAÇO

A estória está ambientada no Rio de Janeiro, como quase em todos os romances de Machado, mais especificamente no bairro do Botafogo, onde Luís Alves e a baronesa são convenientemente vizinhos de chácaras ou sítios. Os lugares, assim como as paisagens, são pouco descritas, exceto no capítulo II (Um Roupão) e no III (Ao Pé da Cerca), quando Estevão se depara com Guiomar em um ambiente bucólico (a chácara da baronesa) e faz sentido com o ambiente interno, romantizado, que o primeiro vive.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Mão e a Luva, considerado um livro menor de Machado de Assis, por não ter rompido com o convencionalismo romântico faz com que o(a) leitor(a) sinta empatia com Luís Alves, não considerando-o um vilão, assim como a Estevão, representativo do amor visceral, romântico, à moda de Werther (referência dentro do livro de Machado), que caracterizava a época. É o que parece concordar o crítico Helio de Seixas Guimarães:

“(...) é pelos olhos do personagem (Estevão) que o leitor assiste à vitória de Guiomar e Luís Alves, assim como é o seu sofrimento que apela à simpatia do leitor, ainda que se dê em registro cômico. A comicidade associada ao personagem tem um objetivo: despertar a identificação do leitor com Estevão para corrigir, pelo riso, as ideias que o leitor eventualmente compartilhe com o personagem, caracterizado por Machado como quintessência do romantismo” (grifo nosso, p. 143)

Da mesma forma, o livro supracitado de Machado foi composto para agradar a críticos e a leitores que não viram o anterior, Ressurreição, com bons olhos:

“As referências, embora negativas e associadas a uma visão de mundo e a um gosto manifestadamente retrógrados, são apresentadas de modo bastante simpático, fazendo de Estevão o principal foco de identificação do leitor e quem sabe da própria crítica que, diante de Ressurreição, cobrara de Machado um romance mais ortodoxo” (idem, p. 143-144)

Podemos ver que, mesmo atrelado ainda aos traços estilísticos da sua época, com José de Alencar, Manuel Antônio de Almeida, Joaquim Manuel de Almeida, entre outros, Machado se destacava com um estro particular, diferente dos demais. Isso se dava por não atribuir aos personagens características marcadamente tropicais (MIGUEL-PEREIRA, p. 62-3), ou seja, ele os universalizava, tanto que em pleno século XXI continua sendo clássico e atual.
Em relação à novela A Mão e a Luva, podemos ver que os personagens principais (Guiomar, Estêvão e Luís Alves) são cidadãos urbanos, de classe média (Estêvão) e classe alta (Luís Alves e Guiomar, de origem simples, mas criada pela madrinha baronesa), bacharéis (os homens) e vivem um romance que tanto poderia se passar no Brasil como no Canadá ou na Inglaterra.

Ao mesmo tempo, Machado não pintou os personagens acima sendo marcadamente protagonistas e antagonistas, bons e maus, mocinhos e bandidos (Idem, p. 62-3). Guiomar quer um marido forte emocionalmente, viril e sensível, para isso nega o amor de dois dos seus pretendentes que não atendiam a esse apelo e opta por Luís Alves; Estêvão é o romântico da vez, adorna-o um amor juvenil por Guiomar, uma paixão forte, irresistível e da mesma forma de caráter fraco, covarde; e Luís Alves, valoroso, bom caráter, honesto e também frio, ambicioso, interesseiro e que não respeitou a dor do amigo, vindo a se casar com Guiomar.

Vê-se, portanto, que as personagens de A Mão e a Luva, assim como de Ressurreição, Helena e Iaiá Garcia, não são marcadamente heróis, totalmente bons, nem maus. São pessoas que mais se aproximam da realidade, da gente que povoa o planeta, ao contrário das tendências romantizadas que desejavam o bem supremo (inocente) contra o mal (vilania, amor não correspondido, etc).

Tais características distinguem Machado de Assis dos escritores românticos tradicionais e também lançam, ainda que incipientes, os germens que farão ele se tornar um dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos.

O rompimento de Machado, no entanto, com as correntes literárias românticas e o que era considerado “normal” literariamente na sua época só vai se tornar efetivo com a publicação de Memórias Póstumas de Brás Cubas, em 1881. Mas aí já é uma outra história.

Fontes:
Análise do Prof. Gustavo Atallah Haun, disponível no O Blog de Redação, com o título Reminiscências românticas em Machado de Assis
Resumo: CD Rom Digeratti CECOOO1

terça-feira, 5 de novembro de 2019

Varal de Trovas n. 108


Nemésio Prata (Chocolatando)


Por mais que ele me maltrate
vez por outra sou tentado
a "papar" um chocolate...,
pense num sujeito errado!

Com diabete não "dê mole"
pois a "bicha" é sorrateira,
se não queres que ela o esfole,
beber... só chá de cidreira!

Também vivo esse dilema
de combate ao diabete,
porém, só tem um problema:
não posso ver um tablete!

Fonte
Trovas enviadas pelo autor

Renato Benvindo Frata (Coisas da Vida)


Genécio é funcionário há trinta anos.

Cansado da burocracia.

Há mais de dois anos sem ter aumento.

Governo sacana.

Família passando necessidade.

Filhos em escola pública.

Apenas Glorinha, a mais velha, conseguiu se formar.

Professora e enfermeira.

Luta dura.

Dois empregos.

De tarde na escola ensinando criança, à noite no hospital de acidentados.

Um horror.

Bonita, é verdade, mas não vai querer se casar.

Prendada.

Talvez por causa da dureza de casa.

Uma noite, voltando do maldito serão, encontra um amigo que há muito não via.

Cumprimentam-se, conversam, riem dos velhos tempos, até que o chegado a convida a um drink, num desses barzinhos de ponta de rua, onde o trotoir corre solto.

Reluta a princípio, mas diante da insistência, aceita.

Entram.

Glorinha é a cafetina,

Fonte:
Renato Benvindo Prata. Azarinho e o caga-fogo. Paranavaí/PR: Eg. Gráf. Paranavaí, 2014.
Livro enviado pelo autor.

Cruz e Sousa (Poemas Humorísticos e Irônicos) III


PIRUETAS

Finou-se um tal inglês
Gastrônomo e patife
Que tanto — de uma vez
Comeu, comeu e esparramou-se em bife;
Que um dia de jejum,
Pela pança rotunda e quixotesca,
Teve um parto... comum,
Um feto original... de carne fresca.

[NUNCA SE CALA O CALLADO]

Nunca se cala o Callado
E sempre o Callado, fala
Callado que não se cala,
Nunca se cala o Callado,
Callado sem ser calado,
Callado que é tão falado...
Nunca se cala o Callado
E sempre o Callado, fala.

[NAS EXPLOSÕES DE BONS RISOS]

Nas explosões de bons risos
Os triolés petulantes
Chocalhem, tinam, precisos
Nas explosões de bons risos,
Tilintem como mil guisos
Sonoros, raros, vibrantes
Nas explosões de bons risos,
Os triolés petulantes

[PRESO AO TRAPÉZIO DA RIMA]

Preso ao trapézio da rima
Triolé — pega estes zotes
E dá-lhes de baixo acima
Preso ao trapézio da rima
Na mais artística esgrima
D’estouros e piparotes,
Preso, ao trapézio da rima
Triolé — pega estes zotes.

[DA LUA AOS RAIOS PRATEADOS]

Da Lua aos raios prateados
Que no horizonte se espargem,
Como fulguram os prados
Da lua aos raios prateados,
Há vagos silfos alados
Do rio azul pela margem
Da lua aos raios prateados
Que no horizonte se espargem.

[TEUS OLHOS BELOS POR DENTRO]

Teus olhos belos por dentro
De grandes colorações,
Parecem ter pelo centro
Teus olhos belos por dentro
A luz vital onde eu entro
E saio imerso em clarões...
Teus olhos belos, por dentro
De grandes colorações.

[ENQUANTO ESTE SANGUE FERVE]

Enquanto este sangue ferve
Com força, com toda a força,
Palpite a fibra da verve
Enquanto este sangue ferve
Esmague-se o que não serve
Na treva o Mal se contorça,
Enquanto este sangue ferve,
Com força, com toda a força.

[À SOMBRA ESPESSA DE UM ÁLAMO]
 

À sombra espessa de um álamo
Quando nasceu-me a paixão,
Crescendo aos beijos do tálamo
À sombra espessa de um álamo
Que de harpas senti, que cálamo
Por dentro do coração
À sombra espessa de um álamo
Quando nasceu-me a paixão.

[QUANDO ESTÁS DE LAÇAROTES]

Quando estás de laçarotes
E de plissês e fichus,
De rendas e de decotes,
Quando estás de laçarotes,
Toilette de chamalotes,
Quanto esplendor, quanta luz,
Quando estás de laçarotes
E de plissês e fichus

Fonte:
Cruz e Souza. Poemas Humorísticos e Irônicos de Cruz e Souza. DF: MEC.

segunda-feira, 4 de novembro de 2019

Varal de Trovas n. 107


Rachel de Queiroz (As Menininhas)

    
Elas têm entre dezoito e vinte e cinco anos. Usam calça Lee, fumam desesperadamente, dizem palavrão. Cursam o científico ou a universidade, muitas possuem o seu Fusca ganho de presente. Em casa ninguém mais as controla, mesmo que o tentem; pelo menos é o que elas blasonam*. E com a liberdade de ir e vir, dia e noite, com a liquidação do tabu da virgindade, com a fácil aquisição da pílula, as menininhas, além da liberação da autoridade doméstica, também se consideram libertas sexualmente.

O curioso é que essas almas livres, estudantes que são, não cogitam em liberdade econômica, Mesmo as diplomadas perdem-se em vagos cursos de pós-graduação, aulas de línguas e arte — no que lhes possa dar por mais tempo a irresponsabilidade estudantil.

Afetam grande desenvoltura, mostram-se extrovertidas e conversadeiras; algumas declaram que já puxaram erva, não sei. Aliás, as que entraram por essa senda sinistra já não são as nossas, fazem parte de outra história. Aqui se fala das menininhas que estão conosco a toda hora, colegas e possíveis namoradas dos nossos meninos.

E acontece que a petulância assumida é leve máscara que mal lhes esconde os problemas — e quantos. Pois são as menininhas em verdade extremamente vulneráveis e inseguras; e os meninos seus parceiros, muito mais imaturos que elas, a pouca habilitação que têm para a vida é dentro dos velhos padrões do machismo — incompatíveis de todo com os novos padrões das moças.

Eles se declaram partidários dos ideais da permissividade moderna, mas, por uma questão de perspectiva pessoal, as menininhas hão de ter da permissividade uma visão muito diversa da visão dos rapazes. Para eles, permissividade é permissividade mesmo — eu te gosto, você me gosta, então que é que tem, acabou sai pra outra, não há grilo. Enquanto elas, ainda trazem no sangue, nos ossos e nas suas entranhas de mulher, a convicção de que aqueles começos são as primícias de uma relação recíproca e durável. Quase nenhuma aceita com plenitude a ideia da simples fornicação lúdica, sem compromisso ulterior. Ou pelo menos, passadas as curiosidades da fase de descoberta, quase todas caem no velho trilho de sexo-filho-casamento, que aliás é o verdadeiro, porque é o chamado da espécie. Só de fingimento elas se prestam ao jogo de pega-e-larga e, depois de cada experiência, saem frustradas e profundamente ressentidas; frustradas até mesmo com a ideia de sexo em si, que sempre lhes foi descrito como algo sublime e maravilhosamente gratificante. Mas que elas foram conhecer através de exercícios improvisados, com parceiros pouco hábeis, em condições de desconforto e sem higiene, consumado às pressas em locais de acaso; não admira que isso tudo as deixe decepcionadas e, pior, assustadas, porque há sempre as consequências a temer.

Algumas que falam comigo mostram-se sempre inquietas, vulneradas, magoadas. Sente-se que o seu padecimento básico é uma perigosa insegurança — quanto a si, quanto ao mundo, quanto aos namorados. Tão insatisfatórios os pobres garotos, igualmente assustados com o que fizeram, passada a hora primeira e irresistível. Sabem os meninos que, até por razões biológicas, elas são muito mais maduras do que eles, o que ressentem; e então partem para as promessas de casamento, prematuros e impraticáveis; ou saem para o cinismo e para a fuga — e é aí que as menininhas procuram um ombro compreensivo onde possam se apoiar e chorar. Ou, fartas dos garotos, se atiram às aventuras com homens mais velhos, experientes e estabelecidos na vida.

Em ocasiões raríssimas têm sorte, o homem se apaixona e transforma o caso em casamento. Ou, o que é mais geral, elas vão passando de mão em mão, se desgastando, se decepcionando cada dia mais fundo; as que podem pagar se atiram ao divã dos analistas, e é comovente e grotesco vê-las disputar entre si quem tem mais anos de análise! As que têm vocação artística ou profissional, salvam-se da solidão e do desespero por esses caminhos; e se não contam com tal saída, resta-lhes mesmo a que ainda se chama a mais velha das profissões. Umas dão para beber, outras se suicidam, é forçoso constatar, embora não se queira forçar a nota da tragédia. Porque em verdade tudo é mesmo uma tragédia. As menininhas, por mais atrevidas, são pateticamente frágeis, pela sua própria condição de mulher, dentro do mundo que as espera.

Seus meninos namorados não têm a necessária segurança para lhes dar, tão inseguros eles próprios, coitados.

Ah, a vida é difícil, uma aventura arriscada. Com todas as garantias tradicionais que tinham outrora, já as meninas naufragavam; que dirá agora, que se atiram à correnteza sem barco nem corda, só dispondo dos braços e do lindo corpo, contra a onda tão funda, tão bruta.
_________________________
Vocabulário:
Blasonar – agir ou expressar-se com orgulho ou vaidade a respeito de algo, ou para chamar a atenção sobre si, especialmente alardeando qualidades, virtudes, feitos etc., de modo mentiroso ou exagerado


Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. RJ: J. Olympio, 1976.

Nilto Maciel(O Homenzinho Alado e Suas Lucubrações)


Transformado em pássaro, o homenzinho não conseguia lembrar exatamente o momento em que lhe nasceram asas. E ora repousava nos galhos mais grossos das árvores, ora aproveitava o dia para voar ao lado da passarada miúda.

Decididamente, sua memória não andava em ordem. Talvez em consequência da grave transformação física sofrida. Não se lembrava até mesmo se percebera logo a novidade, se sentira medo, alegria ou desespero, se experimentara voar imediatamente após se sentir alado. Recordava apenas de se ter perguntado onde se achavam seus braços, até se convencer da simples conversão deles em asas.

Não conseguia esquecer, no entanto, o momento em que sobrevoava um extenso parque, em voos rasantes e lentos, como um planador, deliciado com o panorama visto do alto. Avistava uma clareira e sentia vontade de repousar, voltar a terra, pousar no chão. Além do mais, duas figuras minúsculas, talvez presas fáceis para aves de rapina, se mantinham entretidas uma com a outra, sentadas à borda de uma grande pedra.

Feito um bem-te-vi, o homenzinho sustentou-se acima das cabeças das duas criaturas terrestres e, a muito custo, conseguiu reconhecê-las. Sim, podiam ser Eduardo e Batista, dois de seus melhores amigos, companheiros inseparáveis de ideias e ações.

Os dois rapazes conversavam e conversavam, e nem se davam conta da presença daquela figura maiúscula sobre suas cabeças, como uma ameaça. Nada percebiam e nada perceberam, nem mesmo quando o homenzinho alado pousou diante deles e recolheu as asas. Com certeza, não o viam, pois nem sequer se assustaram, nem sequer interromperam a conversa.

Por um minuto, o homem de asas imaginou estarem cegos seus ex-amigos. Sim, talvez não enxergassem mais e só se comunicassem pela fala. E resolveu dirigir-lhes a palavra: "Vocês me viram voando?" Nenhuma resposta. “E como estão vocês aqui na Terra?” Nada ouviam, além das próprias vozes. A conversa entre os dois não tinha fim. Falavam de transformações sociais.

O homenzinho não perdeu a paciência. Eduardo e Batista teriam ficado surdos. Não, não podia ser isto. Ora, se fossem surdos, não conversariam um com outro. Mais provavelmente não conseguiam ouvir a sua voz de pássaro humano, talvez baixa demais, talvez excessivamente alta. Sim, os ouvidos deles ouviriam outros sons. Como o bater de asas. Sobretudo asas grandes, como as suas. E pôs-se a bater as asas, como um galo a cantar. Nada cantou, porém. E nem os rapazes notaram o seu esforço.

Decepcionado, dirigiu-se de novo a seus antigos companheiros, agora aos gritos: "Vocês estão perdendo tempo." Encheu os pulmões e voltou a gritar: "Isto não leva a nada, meus amigos." E era como se ninguém estivesse diante deles, como se um micróbio declamasse versos em latim.

Com certeza, Eduardo e Batista não tomavam conhecimento da presença de seu ex-amigo. Ou os ausentes seriam eles? E se os dois não acreditassem na sua existência? Sim, corria um boato segundo o qual ele fora morto. Ou os inexistentes, os mortos seriam os outros dois?

O homenzinho se afastou, a passos lentos, dos rapazes. Continuassem a conversa. Transformassem o mundo, tudo. E não acreditassem nunca na possibilidade da existência de um homem alado. Esquecessem todas as lendas, todos os mitos estudados na escola.

E alçou voo, deixando para trás o bosque, os antigos amigos, a cidade, e foi pousar num matagal distante, depois de longas horas de vadiação pelo céu. Feito um animal lendário, mitológico.

Fonte:
Nilto Maciel. Tempos de Mula Preta, contos. Secretaria da Cultura do Ceará: 1981.

domingo, 3 de novembro de 2019

Varal de Trovas n. 106


Isabel Furini (Semelhante)


Renato Benvindo Frata (O Amigo)

Ajeita a tralha e latinhas no isopor, a vara no bagageiro da Brasília. Pescaria promete.

Dia com sol, bonito, vento fraco.

Telefone toca, é Maurício dizendo que não vai.

"Que pena". Amigo bom taí, deu as cervejas, não pode pescar.

"A que horas volta?"- mulher pergunta.

"Seis, ou mais"- é a resposta.

Se apressa.

Chega no rio. Joga a isca na água.

Anzol enrosca numa rede.

Puxa devagar.

"Tá cheia". 32 lambaris, 9 bagrinhos, vivos.

Rede rodou à noite.

"Que sorte!”

Não vê ninguém que possa ser o dono.

Põe no embornal e sai,

"Amigo deu as cervejas, darei a peixada".

Chega, entra, nota silêncio e fogão frio,

"Será que foi almoçar na mãe?"

Escuta ruído.

Abre a porta do quarto, mulher trêmula na cama.

Debaixo, parte de perna.

Manda sair.

É o Maurício.

Fonte:
Renato Benvindo Prata. Azarinho e o caga-fogo. Paranavaí/PR: Eg. Gráf. Paranavaí, 2014.

Livro enviado pelo autor.

Luiz Gonzaga da Silva (Trova e Cidadania) 1 - Conceito de cidadania


 
Nota do blog:
Esta semana recebi do trovador potiguar Gonzaga da Silva o livro Trova e Cidadania, onde ele organiza uma compilação de trovas de trovadores de diversas regiões referentes a tópicos que envolvem a Cidadania. A partir de hoje coloco no blog, periodicamente alguns tópicos em trovas do excelente livro deste trovador. Contatos com o autor podem ser realizados em gonzagadasilva.natal@gmail.com

________________________________________________
CONCEITO DE CIDADANIA

O termo cidadania deriva do latim civitas, cidade. O conceito tem origem na Grécia antiga e designava o exercício dos direitos e deveres de cidadão, ou seja, do sujeito que vivia na cidade e que participava ativamente dos negócios e das decisões políticas. Entretanto, mesmo na Grécia, nem todos eram considerados cidadãos, ficando excluídos desta categoria os escravos, as mulheres, as crianças e os estrangeiros.

Atualmente, o termo cidadania está mais relacionado ao exercício dos chamados direitos fundamentais ou direitos humanos, previstos nos Tratados internacionais e nas Constituições dos estados. Mas esta previsão não assegura, por si só, o direito de cidadania.


Neste mundo de defeito,
no perpassar destes anos,
vivemos sem ter direito
aos tais "direitos humanos"!
Aloísio Bezerra - CE

Para os que seguem sozinhos,
descalços e combalidos,
que importa ter mil caminhos
se todos são proibidos?
Amália Max - PR

É necessário um esforço contínuo dos cidadãos para que os seus direitos sejam efetivados e respeitados. Nossos trovadores dizem o que é cidadania e como ela pode ser exercida.

Cidadania é civismo;
sobretudo é comunhão:
é ajuda mútua, é altruísmo,
partilha Justa do pão!
A. A. de Assis - PR

Exerce a cidadania
quem faz valer seu direito
e luta, no dia a dia,
por um mundo mais perfeito!
Renata Paccola - SP

Exercer cidadania,
em meio à desigualdade,
é conquistar, dia a dia,
um quinhão de liberdade!
Marisa Vieira Olivaes - RS

Exercer cidadania
é postar-se vigilante,
e com serena ousadia
lutar pelo semelhante.
Gonzaga da Silva - RN

Cidadania é o dever
do ser humano exemplar
gritar, com o seu poder,
por quem não pode gritar!
José Valdez de Castro Moura - SP

Com sentimento profundo
de pura cidadania
é que um povo afirma ao mundo
a sua soberania.
Sandro Pereira Rebel - RJ

Cidadania, em seus pleitos,
toda a grandeza contém
no conjunto dos direitos,
mas de deveres também.
Alonso Rocha - PA

Cidadania se exerce
com consciência e respeito,
pois se assenta no alicerce
do dever e do direito...
Élbea Priscila Souza e Silva - SP

Fonte:
Luiz Gonzaga da Silva (org.). Trova e Cidadania. Natal/RN, abril de 2019.
Livro enviado pelo autor.

Malba Tahan (Parábola das Mães Felizes)



(De um poema árabe do século XII)

Jovem mãe ia, enfim, iniciar a grande jornada pela estrada incerta da vida. E perguntou, muito tímida, ao Anjo Bom do Destino:

- É longo o caminho a percorrer, Senhor? Serei feliz com meus filhos que tanto amo e estremeço?

Paciente e benévolo e com voz cheia de meiguice, respondeu-lhe o Anjo Bom do Destino:

- O caminho, que se abre diante de ti, é longo muito longo, semeado de angústias, recortado de dores e atapetado de fadigas. Antes de alcançares a curva extrema, virá a impiedosa velhice ao teu encontro. Ainda assim, asseguro-te que os teus derradeiros passos serão mais cheios de alegria e ternura do que os primeiros.

E a jovem mãe partiu. Sentia-se extremamente ditosa em companhia de seus filhinhos. 

- O caminho, que se abre diante de ti. é longo, muito longo, semeado de angústias, recortado de dores e atapetado de fadigas.
    
A existência lhe decorria sob o véu de um delicioso encantamento. Brincava com os pequeninos; colhia para eles, unicamente para eles, as mais lindas flores que adornavam os caminhos do mundo. E o sol brilhava, inundando a terra com a bênção de suas torrentes de luz.

E o dia se escoava tão sereno, que a jovem mãe murmurou, fitando, enternecida, o céu azul:

- Nada haverá, Senhor, de mais belo! Jamais serei, na companhia de meus filhos, mais feliz do que o sou agora!

A noite veio, porém, alongando sobre a terra o seu manto pesado e sombrio. Nuvens disformes amontoaram-se no firmamento; desabou o temporal. O vento norte uivava como um chacal faminto correndo tonto pelos areais sem fim. Os pequeninos, tolhidos de frio, trêmulos de medo, soluçavam. A jovem mãe destemida aconchegou-os a si, agasalhando-os sob sua túnica; e as crianças, bem abrigadas e protegidas, murmuraram docemente, docemente murmuraram:

- Ó mãezinha querida! O medo já não se abriga em nossos corações! A teu lado, mãezinha adorada, nenhum mal nos alcançará!

E a jovem mãe exclamou num ímpeto de alegria:

- Isto para mim, ó Deus! É mais belo e grandioso do que a jornada pelo caminho tranquilo, sob o esplendor do dia! Sinto-me, realmente, feliz! Mais feliz do que ontem! Contra a tormenta protegi meus filhos e lancei, para sempre, em seus corações, a semente do destemor, da confiança e da coragem!

Passou a noite. Louvado seja Deus! A noite passou. Raiou, esplêndida e balsâmica, a alvorada. A estrada, naquele terceiro dia, se estendia, ladeirenta, pelo dorso de uma montanha alcantilada e perigosa. Era forçoso subir. Subir muito. Os pequeninos sentiam-se fatigados. A jovem mãe, quase desfalecida de sede e de cansaço. 

Fazendo, porém, das fibras coração, mostrava-se animada, e, sem cessar, dizia aos filhos:

- Vamos! Para cima! Breve chegaremos ao alto! Vamos! Subamos sempre! Subamos!

E essas palavras multiplicavam energias que o esforço constante e excessivo queria aniquilar. E as crianças iam subindo, subindo... Chegaram, finalmente, ao cimo da montanha. A jovem mãe os enlaçou, então, em seus braços carinhosos. E eles lhe disseram:

- Ó mãezinha querida, sem ti não teríamos conseguido vencer estas escarpas, contornar estes abismos e levar a bom termo esta jornada. Sem o teu auxílio incomparável  sucumbiríamos em meio da escalada. Sabemos, agora, como superar os grandes obstáculos da sorte!

E a delicada mãe, ao repousar naquele dia, semimorta, exclamou arrebatada:

- Ó Deus, clemente e justo! O dia de hoje foi para mim melhor ainda do que o de ontem! Sinto-me mais feliz! Mais feliz do que nunca! Ensinei meus filhos a enfrentar bravamente os revezes e as tristezas da vida!

No quarto dia, estranhas nuvens cor-de-chumbo cruzaram o céu. Um rugido surdo, que parecia partir das profundezas ignoradas da terra, enchia o ar soturnamente. De súbito, a imensa montanha tremeu; rochas descomunais desprenderam-se e rolaram com estrondo para os abismos apavorantes.

Era o cataclismo que começava. Tão altas e densas erguiam-se as colunas de pó, que chegavam a cobrir a face do sol. E as trevas da noite desceram sobre a terra em pleno dia. A morte, com suas garras de fogo, rondava por toda a parte. Nem tenda havia nem caverna ou abrigo, onde um ser humano pudesse ter segura a curta vida. 

As crianças, presas de cruciante pavor, choravam. E a jovem mãe, serena e forte, lhes dizia:

- Em Deus confiai, meus filhos! Olhai para cima! Deus não nos abandonará!

E os pequenos confiaram em Deus. E Deus os livrou da fúria infrene. Ao findar aquele dia a mãe exclamou, em Êxtase, erguendo humilde para os céus os seus olhos cheios de gratidão:

- Este foi o dia melhor da minha vida. Senhor! Ensinei a meus filhos a crer em Vós, a confiar em Vós, só em Vós, ó Deus misericordioso!

Amontoaram-se os dias: sucederam-se os meses; os anos passaram. E a mãe, toda entregue à felicidade e ao bem-estar dos filhos, não sentiu o rolar intérmino do tempo. Os seus formosos cabelos fizeram-se brancos como a neve; o brilho desapareceu-lhe dos olhos; a face tracejou-se-lhe de rugas. Era, enfim, a velhice. Mas, que encanto para sua vida de mãe! Os filhos crescidos, fortes, cheios de alegria, pareciam redobrar neles a boa seiva que dela partira. Ela, a mãe feliz, curvada ao peso da vida, já mal podia caminhar. Os filhos, porém, ali estavam, a seu lado, para servi-la, honrá-la e obedecer-lhe!

O mais velho dizia-lhe, carinhoso e com desbordante afeto:

- Mãezinha! Quero hoje carregar-te em meus braços! Estás tão fraca e cansada!

Protestava o mais moço com entusiasmo:

- Que egoísmo é esse, meu caro! Hoje é meu dia. Eu, sim, é que irei carregar a mãezinha querida!

E a mãe feliz sorria a um, abraçava a outro; beijava a ambos.

Que bons e dedicados lhe eram os filhos. Sim, para o coração materno, fizera pausa o tempo. Eles eram ainda os seus filhinhos, os filhinhos ternos, estremecidos... E ela sentia-se tão feliz, tão feliz, que não achava palavras com que agradecer a Deus!

Um dia, afinal, a mãe ditosa reuniu os filhos e disse-lhe, num fiozinho de voz:

- A minha tarefa está finda, meus filhos. Vou deixar-vos. Irei para longe, para muito longe daqui ...

O mais velho acudiu logo, carinhoso:

- Pois iremos contigo, mãezinha! Ninguém nos poderá separar de ti!

Ela não sustentou as lágrimas e deixando-as deslizar, insistiu com meiguice:

- Não, queridos. Desta vez terei de ir só. Sozinha partirei.

E eles, afeitos à obediência, mais uma vez obedeceram. E a boa velhinha partiu. Foi indo, vagarosamente, toda encurvada, trêmula...

Diante dela, no extremo do caminho, abriram-se dois largos portões que refulgiam cheios de luz. Entrou. Uma voz, que mais parecia um cântico de glória, lhe dizia com infinita mansuetude:

- Vinde a mim, ó mãe feliz! Vinde a mim!

Os filhos, que a vigiavam de longe, viram-na de repente desaparecer:

- Ela partiu para sempre! Não a veremos nunca mais! Nunca mais! - exclamaram emocionados. - Mas a santa lembrança dessa mãe querida viverá para sempre em nossos corações! Eduquemos nossos filhos como ela nos educou: na bondade, na obediência, no amor...

E no silêncio da tarde que caía, lentamente, ouvia-se o sussurro de um chorar longínquo. Calaram-se todos.

Que seria? 

Era o filho mais moço. O rosto entre as mãos, inconsolável, soluçava de joelhos, à margem da vida, com a dor da saudade a negrejar-lhe o coração:

- Minha Mãe! Minha Mãe querida!...

Fonte:
Malba Tahan. Os Segredos da Alma Feminina nas Lendas do Oriente.