quarta-feira, 27 de novembro de 2019

Luiz Poeta (Escama e Pele)


Olhava a lâmpada. A cabeça apoiada sobre o travesseiro, recostada, o cigarro entre os dedos, a caneta indecisa, riscando o ar, paralítica.

No peito, um vácuo inexplicável, espécie de vazio inexprimível por gesto ou palavra; na cabeça, porção de coisas ora amorfas, vez nebulosas; noutras, vivas, móveis, sufocantes.

Na janela, mudez soturna, nudez sem medo das estrelas pálidas, trêmulas, fetos sozinhos no líquido amniótico de metileno, fundo, profuso, profundo, profanável somente por olhos maus, insensíveis, inumanos.

O vento assobiava silêncios e um inflexível veleiro de neve percorria-o, tornando fluvial cada ramificação de artéria, capilar ou veia, penetrando-lhe como um punhal, estalactite, adaga de gelo no mar sanguíneo das emoções que o inundavam.

Repentinamente, o sono e o sonho. Era um planeta longínquo, tonalizado de verde, dourado e azul. Na areia lívida das margens dos rios, o rastro, a pegada, o vestígio, o resquício da imagem que varou as águas no rumo da cachoeira... ele, fitando a escuma nas pedras escorregadias, aparando a eterna, misteriosa e mansa pressa das vertentes.

Num átimo, o salto de um impetuoso peixe assustando o seu sonâmbulo enlevo... Do peixe... a pele... o corpo, a humana forma de mulher que lhe cingiu o pescoço num toque mágico de braços longos, dedos finos, pernas infinitas... o tépido ventre na umidade do seu sexo... depois, os beijos de lábios que se percorriam mansos, macios, velozes, provocando a lágrima de felicidade de tão puros na sua essência e tão passional na sua prazerosa e sinestésica ocorrência.,.

Todavia, no mesmo torpor que saltara da alma do peixe e da ânsia do homem, os movimentos esfumaram-se lentos, esvoaçantes, voláteis, num surrealismo que se metamorfoseava em abstratas imagens... ele, desesperado, tentando conter a imagem que se diluía nebulosamente etílicas em suas mãos... numa loucura de ansiar um todo, percebeu-se fundamente solitário e triste, num abandono de grãos minúsculos que o vento frio da manhã arrebatou-lhe gelidamente, vindo talvez da nascente daquele planalto de picos solitários furando a eterna, insensível e metilênica pele do céu.

Despertou no quarto: a tela dos cavalos selvagens galopando eternamente em sua direção, a chama do cigarro ardendo-lhe nos dactilos e a caneta caída, inerte, sem perspectiva de poesia ou de palavras aleatórias confessando segredos inconfessáveis... o etéreo punhal eólico das nevascas rasgando-lhe as artérias nervosas como aquele rio onírico despejando corpos abstratos no espumante precipício de lágrima e de sangue...

Fitou o teto novamente. Uma aranha tecelã bordava silêncios no canto entre duas paredes e um inseto vulgar e inexpressivo bebia-lhe a expectativa bem próximo, pousado, despreocupadamente num lavar de patas aleatório ao perigo de viver num mundo limitado por territórios e revezes, como o dele. Aturdido ainda, tentou resgatar o êxtase produzido pelo sublime pesadelo, mas a metálica luz do sol provocava-lhe a vida existente em cada uma de suas sonolentas retinas. Dobrou caprichosamente o cobertor, guardou-o no armário junto com o travesseiro molhado pelo suor das ansiedades, alisou afetuosamente as dobras do lençol, cerrou a janela sobre os raios matinais tagarelando brilhos dourados. Enxugou uma lágrima das tantas que ainda choraria e saiu no rumo de uma vaga perspectiva desenhada pela trajetória dos sentimentos e cerrou cuidadosamente a porta.

Lembrava-a agora. Recordava o sonho, o rio, os grãos, o peixe tornado ela, neve na pele de sua solidão, fogo na lágrima descendo sinuosa, limpa à luz da lua espraiada sobre o espelho das poças, olho fundo, sugado pela insônia, mirando, pedindo, esperando, implorando o desespero do contato nervoso das peles.

Caminhava. Ruas entrelaçavam-se unidas pelo abandono, trançadas sob seus letárgicos passos, o coração batendo mais alto que o próprio rebuliço das calçadas repletas de transeuntes alheios ao seu silencioso abandono. Sem que se desse, estava na antiga casa. Parou. Percorreu-a com o olhar súplice de uma única presença. Arriscou um primeiro passo na direção do aparentemente imutável. Atravessou nostalgicamente o misterioso quintal verde-negro, protegido apenas por um portão de ferro, enferrujado como suas esperanças que rangiam desesperos, afastando, no caminhar, as ramagens pendentes dos velhos troncos de árvores seculares, fragilizadas pelas intempéries climáticas.

Num galope, o mesmo cão veio até ele receptivo. Era a realidade que latia exibindo um riso que se exprimia mais pelo abanar de uma cauda do que pela saliva pulando dos caninos. Um afago no animal em festa, uma melancólica alegria, e o sapato estalando esperanças, esmagando lentamente o tempo, no ritmo de cada passada embalada pelo fúnebre compasso do improvável...

Afastou as cortinas de mais uma lágrima, mirando a remota arquitetura da sua vida tão carente de companhia: a mesma janela do sobrado, o mesmo galho seco sobre a varanda... a mesma gaiola suspensa e o canário piando, buscando os acordes de um trinado sem perspectiva de um canto ideal.

Subiu. As solas dos sapatos tocavam cautelosamente o assoalho de cada um dos degraus de madeira. Contou-os um a um; eram doze... o mesmo número do dia em que se ausentou para uma nova vida que se tomou tão sem perspectiva.

Abriu a porta do quarto. Tropeçou na própria insegurança.

- Quem está aí? – Ela mirava-o com seriedade. O semblante percorrendo-o com perplexidade e mansidão.

Os olhos dele eram o limite entre o medo e a vontade. Um riso seminu afastou lentamente os lençóis da timidez. Com ele, uma minúscula gota de pranto parava no trampolim da emoção... mas... para onde saltar? O vago precipício da incerteza estava dentro dele... precisava escolher...

Na dúvida, veio-lhe o abismo passional. Suas lágrimas diluíram-se lânguidas nos olhos dela. Lábios e línguas não conseguiram conter a aflita volúpia mandibular, cujos dentes foram se tomando afetuosas adagas sangrando a víscera anímica de duas prazerosas bocas que se fundiam na epidérmica umidade dos desejos.

O peixe tornado mulher saltou novamente do rio e mergulhou com ele nas aquáticas turbulências da passionalidade... julgou que despertaria... que o sonho fugiria... e agarrou-se nele com força e afeto... a miragem foi desvanecendo gradativa, sonolenta... cósmica...

- Beije-me de novo! - ele suplicou.

Na manhã seguinte, no quarto onde dormira na casa dos parentes mais próximos, o grito da empregada, o desmaio da mãe, o vitupério do pai e... o bilhete: Papai e mamãe. Amo vocês. Suas bênçãos. Um dia volto. Quem sabe...

A motocicleta violentou a nebulenta mudez da madrugada. Ela presa nele, a mochila nas costas; o amor vibrando forte, superando o ronco do motor. Escama e pele voando no rastro da liberdade.

Sob a ponte, a cachoeira continuaria eternizando um espumante beijo de amor na epidérmica solenidade das pedras escorregadias.

Fonte:
Luiz Gilberto de Barros (Luiz Poeta). Canção de Ninar Estátuas. 1.ed. Ilhéus/BA: Mondrongo, 2014.
Livro entregue pelo autor.

XXV Jogos Florais de Porto Alegre 2019 - Resultado Final


NACIONAL/INTERNACIONAL

TEMA: OURO (líricas/filosóficas)


VENCEDORES:

1º  lugar:
RENATA PACCOLA
São Paulo/SP

Busca primeiro a virtude;
teu ouro, busca depois.
Quem não toma essa atitude
acaba perdendo os dois!

2º lugar:
GILVAN CARNEIRO DA SILVA
São Gonçalo/RJ

Não há coroa que valha
mesmo em ouro cravejada,
aquele chapéu de palha
da pessoa boa e honrada.

3º lugar: 
JERSON LIMA DE BRITO
Porto Velho/RO

Somos almas garimpeiras
nessa vida de perigos
onde, em lavras rotineiras,
valem ouro os bons amigos.

4º lugar   
SÍLVIA MARIA SVEREDA
Irati/PR

O entardecer é tão lindo...
Ouro tingindo o arrebol
é a mão de Deus colorindo
a despedida do sol.

5º lugar:
RENATA PACCOLA
São Paulo/SP

Num labor que nunca encerra,
a lavoura é meu tesouro...
Minhas mãos sujas de terra
cobrem as tuas de ouro!

MENÇÕES HONROSAS:

A. A. DE ASSIS
Maringá/PR

Não é pelo ouro que ostenta
que a aliança tem valor,
mas sim quanto representa
a história de um grande amor.

CAROLINA RAMOS
Santos/SP

Nem sempre o silêncio é ouro.
Uma palavra sensata
pode valer um tesouro,
se for a palavra exata!

GILVAN CARNEIRO DA SILVA
São Gonçalo/RJ

Aos humildes nos convém
o mais respeitoso apuro;
é do cascalho que vem
as pepitas de ouro puro.

MARIA MADALENA FERREIRA
Magé/RJ

Em ser rica não me empenho!
- Ter um lar aconchegante
e os filhos de ouro que eu tenho...
...já é riqueza bastante!

NÉLIO BESSANT
Pindamonhangaba/SP

Não há, no mundo, desdouro,
mal maior ou mais profundo,
do que vender-te por ouro
à custa do mal do mundo.

MENÇÕES ESPECIAIS:

A. A. DE ASSIS
Maringá/PR

Luxo é bom, porém não muda
a verdade da pessoa.
- Garfo de ouro em nada ajuda,
se a comida não é boa.

A. A. DE ASSIS
Maringá/PR

Tolos tesouros humanos:
ouro, fortuna estocada...
Ao fim de oitenta ou cem anos,
o “dono” parte sem nada...

ELANA RIMENEZ
 Balneário Camboriú/SC

Nenhum ouro traz a glória
se um torpe caminho teço;
não há sucesso ou vitória
quando a ética tem preço.

ELANA RIMENEZ
 Balneário Camboriú/SC

A riqueza é uma jazida
cujo garimpo assim diz:
o achado de ouro da vida
é fazer o outro feliz.

MADALENA FERRANTE PIZZATTO
Curitiba/PR

De um ipê caem as flores,
e com toque de artesão,
Deus matiza as suas cores,
revestindo de ouro o chão.

NOVOS TROVADORES

TEMA OURO (líricas/filosóficas)


1º lugar: 
JOSÉ RUI CAMARGO
Taubaté/SP

Nem tudo que brilha é ouro,
riqueza é poder amar,
pois o meu maior tesouro
e o brilho do teu olhar.

2º lugar: 
ARCHIMINO BRAZ DE CAMPOS

 Balneário Camboriú/SC
Disse adeus: passou ligeiro
pela vida em tantas provas.
Não deixou ouro ou dinheiro,
mas deixou tão belas trovas!

3º lugar:
ARCHIMINO BRAZ DE CAMPOS
Balneário Camboriú/SC

Trovador, ouro polido,
vive em plena evolução;
vê que tudo está contido
entre o amor e a vocação.

NACIONAL/INTERNACIONAL

TEMA: BRONZE (Humorísticas)


VENCEDORES:

1º lugar:
JERSON LIMA DE BRITO
Porto Velho/RO

Faltou bronze ao escultor
que, sem outra solução,
resolveu, na praça, expor
a estátua do herói anão!...

2º lugar: 
JERSON LIMA DE BRITO
Porto Velho/RO

- Fui bronze! Missão cumprida!
Disse o sujeito aos parentes,
sem mencionar que a corrida
só tinha três concorrentes.

3º lugar: 
AILTO RODRIGUES
Nova Friburgo/RJ

Saltou com vara e foi bronze...
E o medalhista escancara,
que já conquistou mais de onze
sem deixar cair a vara!...

4º lugar: 
SÉRGIO FERRAZ DOS SANTOS
Nova Friburgo/RJ

Ganhei de bronze a medalha
“O mais feio do sertão”...
E, como a raça não falha,
a de” Ouro”...foi meu irmão!

5º lugar:
RENATA PACCOLA
São Paulo/SP

O lusitano espargiu
bronze por todo o quintal,
quando a mulher lhe pediu
bronzeamento artificial...

MENÇÕES HONROSAS:

ANA CRISTINA DE SOUZA
São Paulo/SP

Com seu bronze, ele exultou
ao vencer entre os novatos,
mas ele só não contou
que eram três...os candidatos...

ANTONIO COLAVITE FILHO
Santos/SP

Minha mulher me dá bronca
se eu durmo depois das onze.
- Tão alto é o som quando ronca,
bem mais que um sino de bronze...

HÉLIO CASTRO
São Paulo/SP

Já bem cheio de cachaça,
nos metais vê sua sorte...
- Que seja de bronze a taça,
pra pinga...ficar mais forte!

JERSON LIMA DE BRITO
Porto Velho/RO

Dolores, mulher de peito,
foi à praia e, que castigo,
em vez do bronze perfeito,
mancha clara até o umbigo!

MÁRCIA JABER
Juiz de Fora/MG

Tomou cascudo à vontade,
por ter olhado sem pena,
junto da cara metade,
para o bronze da morena.

MENÇÕES ESPECIAIS:

A. A. DE ASSIS 
Maringá/PR

Na praia, das oito às onze,
vovozinha ao sol se banha.
Quem sabe, pegando um bronze,
ao vê-la, o vovô se assanha!...

ELIAS PESCADOR
São Paulo/SP

O time de anões foi bronze,
com seus limites compete:
mesmo jogando com onze,
há quem diga que eram sete...

FRANCISCO GABRIEL
Natal/RN

Pra um prefeito imerso em rombos,
fiz de bronze um monumento,
depois deixei para os ombros
o resto do acabamento.

LUIZ MORAES
São José dos Campos/SP

De bronze ficou “maneira”,
a estátua do Nicolau,
antes fosse de madeira...
Ele era um cara de pau!

MARIA MADALENA FERREIRA
Magé/RJ

Foi contar atrás do “bronze”
umas “pratas” que roubou,
mas...só contou até onze:
- Logo a polícia o flagrou!...

ESTADUAL

TEMA: PRATA (líricas/filosóficas)


VENCEDORES:

1º lugar:
MARÍLIA OLIVEIRA
Porto Alegre

A humildade é este tesouro
em que a vida, autodidata   
sabe que antes de ser “ouro”,
 há de aprender a ser “prata”.

2º lugar:
LUIZ STABILE
Uruguaiana

Não tenho joias nem ouro,
mas nossa história me abrasa,
pois és meu grande tesouro,
a minha prata da casa.

3º lugar:
CLÁUDIO DERLI SILVEIRA
Porto Alegre

A menina que bailava
para os pássaros da mata.
a cada passo, sonhava
com sapatilhas de prata!...

4º lugar:
MARÍLIA OLIVEIRA
Porto Alegre

Se a vida é um matiz prateado
um novo viver proponho:
fecho os olhos e, ao teu lado,
dou cor à viva que eu sonho.

5º lugar:
FLÁVIO STEFANI
Porto Alegre

Quando o mal mostra as agruras,
maculando o paraíso,
eu busco em águas mais puras
a prata do teu sorriso!

MENÇÕES HONROSAS:

JAQUELINE MACHADO
Cachoeira do Sul

Esses cabelos de prata,
escondem a mocidade
que teu belo olhar retrata
da moldura da saudade...

LISETE JOHNSON
Porto Alegre

Apesar dos meus apelos
e ao tempo que me maltrata,
rendo-me ao ver meus cabelos
tingidos de pura prata.

LUIZ DAMO
Caxias do Sul

Dos arquivos do passado,
quem ama, um sonho resgata,
de preferência, dourado
 ou mesmo folhado em prata.

LUIZ STABILE
Uruguaiana

De nossa longa jornada,
não há lembrança mais grata
 que não seja superada
 por nossas bodas de prata.

LUIZ STABILE
Uruguaiana

Pelos anos de ventura
que nossa vida retrata,
hoje beijo com ternura
os teus cabelos de prata.

MENÇÕES ESPECIAIS:

ARY CARDOSO
Porto Alegre

Jogos Florais: fantasias,
verdades, cores, bravata...
UBT serve alegrias
em belas taças de prata.

ARY CARDOSO
Porto Alegre

Jogos Florais, labareda,
cinco lustros nesta data.
Nosso olhar vai como seda
lustrando a taça de prata.

CLÁUDIO DERLI SILVEIRA
Porto Alegre

O tempo tingiu de prata
 os negros cabelos meus
 tesouro, que bem retrata
 o poder da mão de Deus!...

LISETE JOHNSON
Porto Alegre

Não era leite, era prata 
que esguichava em raro brilho
dos seios da mãe mulata
amamentando seu filho.

LUIZ DAMO
Caxias do Sul

Duas décadas e meia
de uma união que retrata
o amor partilhado à ceia
 da eterna “bodas de prata”.

LUIZ DAMO
Caxias do Sul

O homem, por ciúmes, mata,
morre às mãos da má conduta,
longe do ouro, perde a prata,
por querer ser pedra bruta.

ESTADUAL

TEMA: JOIA (Humorísticas)


VENCEDORES:

1º lugar:
MARÍLIA OLIVEIRA

Porto Alegre
Sempre que a sogra me apoia,
agradeço-a e, na surdina,
a chamo de minha “joia”...
...minha  joia “made in China”…

2º lugar:
MARÍLIA OLIVEIRA
Porto Alegre

Minha sogra centenária,
e, por dentro, eu me deleito
por comprar, na funerária,
o “porta-joia” perfeito!

3º lugar:
FLÁVIO STEFANI
 Porto Alegre

- “Passa as joias”, vai dizendo...
E a cozinheira argumenta,
mas entrega, ainda tremendo,
dois vidrinhos de pimenta...

4º llugar:
FLÁVIO STEFANI
Porto alegre

Minha sogra, aquela “joia”,
dá veneno pro gatinho,
e já pensando em tramoia,
diz: - Vem cá, lindo genrinho...

5º lugar:
CLÁUDIO DERLI SILVEIRA
Porto Alegre

Pressente o assalto a guria...
De pronto e muito nervosa,
Expõe a bijuteria
e cobre a joia preciosa!...

MENÇÕES HONROSAS:

ARY CARDOSO
Porto Alegre

Joia e Joio se casaram
num “festerê” bacanal;
e os filhos proliferaram
no Congresso Nacional!

CLÁUDIO DERLI SILVEIRA
Porto Alegre

Pra afastar a concorrente,
ela diz que seu amor
tem um brinco que é indecente,
joia de pouco valor...

FLÁVIO STEFANI
Porto Alegre

Vende joias o ambulante,
pelas ruas da cidade,
mas não testa, nem garante,
nem dá nota...que maldade!

LUIZ STABILE
Porto Alegre

A joia com que eu sonhava
dia e noite...noite e dia,
não era quem eu pensava:
era pura fantasia...

ROQUE ALOÍSIO WESCHENFELDER
Santa Rosa

Tanta gente fica louca,
querendo tão cara joia,
mas com grana muito pouca
só se compra a paranoia.

MENÇÕES ESPECIAIS:

CLÁUDIO DERLI SILVEIRA
Porto Alegre

É a joia do meu amor
que eles cobiçam também.
Eu que sei do seu valor
faço tempo e cuido bem!!!

LUCI BARBIJAN
Caxias do Sul
Uma “joia preciosa”
é o que se dizia ser...
Falsa, chata e orgulhosa!
como tal, veio a morrer.

INTERNACIONAL : LENGUA HISPANICA

TEMA: ORO


VENCEDORAS
 
1o 
DÉLIA ESTHER FERNANDÉZ CABO
Uruguay


Oro del sol en el cielo
y del maizal en la quinta,
oro de hojas en el suelo
cuando el otoño las pinta.

2o
SUSANA ANGÉLICA ORDEN
Argentina

Oro , plata y vanidades
no orientaron mi camino
y buscando las verdades
he forjado mi destino.

3o
MARTA REGUEIROS DUEÑAS
EUA

De oro son todas las manos
que siempre entregan amor,
atributo en los humanos
que quieren dar lo mejor.

4o
MARIA ROSA RZEPKA
Argentina

El pan que llega a la mesa
es más valioso que el oro.
Hay quien llora de tristeza
por faltarle este tesoro.

5o
SUSANA ANGÉLICA ORDEN
Argentina

Más importante que oro
es la amistad compartida
y el más precioso tesoro
que nos regala de vida.

 MENCIÓN HONROSA

1o
JOSÉ LISSIDINI SÁNCHEZ
Uruguay

Si optas por deambular,
buscando tu gran tesoro,
valora siempre tu hogar,
muchísimo  más que el oro.

2o
VERÓNICA QUEZADA VARAS
Chile

Oro, metal codiciado,
en tiempos de la Conquista.
Tanto pueblo aniquilado
por ambiición egoísta.

3o
CRISTINA OLIVEIRA CHÁVEZ
EUA

Cuando el oro es codiciado
muchas tragédias arrastra,
es sortilégio dorado
que el buen sentimento, castra.

4o
SARA BACA VACA
México

El oro nos envilece
-- arsénico que envenena-
nuestra dignidad decrece
 y la vanidad nos llena.
 
5o
JOSÉ HÉCTOR CORREDOR CUERVO
Colombia

La guerra es de poderosos
que buscan oro y riqueza,
explotando a ambiciosos
de poder y de grandeza.

MENCIÓN ESPECIAL

1o
NELLY V. B. FORNI
Argentina

Mientras el hombre persiga
el hacerce rico en oro
y pecando lo consiga
pierde del cielo un tesoro.
 
2o
TERESITA MORÁN VALCHEFF
Argentina

No corras detrás del oro
y cultiva el desapego.
Con voluntad y decoro
podrás demoñar el ego.

3o
CRISTINA OLIVEIRA CHÁVEZ
EUA

El oro aun siendo brillante
es metal, sin  alma y frio
codiciado es, por su amante
que en común, tienen vacío.

4o
DÉLIA ESTHER FERNANDÉZ CABO
Uruguay

Dicen que no todo es oro
lo que en la vida reluce.
Talvez un falso tesoro
sea el que más nos seduce.

5o
MARTA REQUEIRO DUEÑAS
EUA

No es oro la divisa
con que ha de pagarse todo,
aveces una sonrisa
procede de mejor modo.

Fonte:
Resultado enviado por Alexandre Magno Oliveira de Andrade Reis para o blog Doce Aconchego das Trovas.

terça-feira, 26 de novembro de 2019

Varal de Trovas n. 126


Raul Pompéia (O Fruto da Formosura)


Em princípio, ele era pequenino; uma ligeira elevação de carne infantil, macia como a polpa de um fruto esquisito; tinha um biquinho, rubro como uma cereja microscópica; tinha dois anos, então: recebia as carícias maternas de uns lábios ardentes e amorosos.

Foi crescendo... crescendo...

Já lhe notavam tendências para a bela forma redonda. A carne branca, polpuda, elevava-se pouco a pouco.

Foram-no cobrindo, zelosamente de cambraias e fitas.

Em pequenino, andava tantas vezes nu, gozando o contato suave do ar livre e fresco a passar-lhe pela epiderme. Exatamente quando mais lindo ficava, é que o queriam esconder como uma coisa indigna.

Este escrúpulo avultava com o tempo.

Esconderam-no cada vez mais, e cada vez mais, do fundo do seu retiro de linhos e cambraias finíssimas, o indiscreto erguia-se, cercado de rubores incertos e nômades, que percorriam-lhe a epiderme, semeando calor; erguia-se como quem sabe que vai a fazer-se sedutor e deseja que o vejam e o adorem...

Mas a cruel cambraia subia também, com uma impertinência ciosa e avara; o pobre via-se condenado àquela prisão cálida e escura, que o sufocava ferozmente.

Ah! quem lhe dera sentir as auras frescas da tarde e os orvalhos da madrugada; viver à luz dos sóis e dos luares, despido, desembaraçado e nu, como os jambos rosados e venturosos!...

Despiam-no, é certo, mas unicamente para respirar o ambiente morno e viciado das alcovas.

Era nessas ocasiões que ele via como estava belo; mirava-se nas banheiras e nos espelhos, namorava-se como um narciso, o pobre...

E como torturavam-no, depois, aquelas faixas com que o comprimiam!

Parece que havia empenho em deformá-lo, contrariando a natureza que o aviventava. Entretanto, ele resistia e triunfava!

A delicada forma cônica dilatava-se-lhe, encurvava-se, sobressaía com a íntima energia de um botão de magnólia que vai desabrochar em largas pétalas. Sedutor cada vez mais.

Tornou-se tímido. O recato da cambraia que o contrariava agrada-lhe então.

O próprio ambiente morno da alcova parece feri-lo com um contato sacrílego.

O sofrimento que então o tortura já não é a contrariedade daqueles panos que o abafavam.

O sofrimento consiste em pancadas íntimas, violentas, que o agitam e mortificam.

Está amando, o pobre...

Por fim, expande-se.

Rasgam-se os linhos e as cambraias, e dois lábios impetuosos, sedentos, vão lá ao fundo violar o recato do amante misterioso e invisível.

Mudou-se-lhe de todo a natureza, ele engorgita-se em plena maturidade.

Uma criaturinha vem sofregamente sugar-lhe a seiva e nutrir-se dele como a parasita que vive da vitalidade alheia...
..................................................................

Então começa a decadência.

O belo seio, outrora rijo de virgindade e frescura, estremecendo às emoções elétricas do amor, desprende-se tristemente da antiga firmeza escultural e cai, como os frutos caem no fim do outono...

Em breve, há de apodrecer no campo, alimento dos vermes famintos, húmus fecundos da terra, como o fruto que o outono deixa, repasto das novas primaveras, vorazes, egoístas...

É quase a história comum de todos os frutos.

Fonte:
Raul Pompéia. Contos.

Odenir Follador (Poemas Avulsos) 2


ALMEJADA AMADA

Amar é sentirmos o coração
pulsar em nosso âmago, intensamente...
Inflar-se na volúpia da paixão
queimando toda alma, impetuosamente!

Um amor platônico que buscamos
encontrar, em nossa almejada amada;
e, sob as estrelas nos entregarmos
lascivos, à bruma da madrugada...

Cáustica chama do amor a sentirmos
no lampejo de uma nova alvorada!
E, num fiel anseio prosseguirmos...

Em desejos frementes, sensuais...
Entregarmo-nos à relva orvalhada
ao brilho das estrelas magistrais!

COMPARAÇÃO

Fazendo comparação
entre a canção e uma flor:
numa produz emoção
e noutra produz amor.

O momento encantador
ficará sempre guardado;
canção, amor e uma flor,
que oferece enamorado.

E o poeta à sua bela,
dedica-lhe com ternura
uma seresta à janela.

Brotando do coração,
lindos versos com candura
só de amor e sedução!

FOLHA DE PAPEL EM BRANCO

Em uma folha de papel em branco
eu escrevo contos e poesias;
descrevo a natureza e seu encanto,
inda as ocorrências do dia a dia!

Todas as folhas em branco contêm
muitos textos escritos ao leitor...
Cuja destinação vai muito além,
da mente criativa do escritor!

Folhas rabiscadas que não dão certo
são amassadas e vão para o cesto;
mas, uma irá ao leitor ou leitora...

Uma por todas e todas por uma,
diz-nos um adágio épico, em suma,
após muito trabalho... “A vencedora”!

NOSSA SENHORA DOS NAVEGANTES
E IEMANJÁ


A Nossa Senhora dos Navegantes,
Iemanjá, na fé afro-brasileira...
Cultuada por fiéis simpatizantes
praticando homenagem derradeira.

Seu dia é festejado em fevereiro
movimentando imensas multidões;
em muitas urbes do Brasil inteiro
festejam nas ruas em procissões!

Salve Nossa Senhora protetora...
Nos rios e nos mares és benfeitora
dos navegantes de nossa nação!

Também na crença afro-brasileira,
eles preparam a semana inteira
a festa de Iemanjá, com oblação.

O MAR

Observando o mar, o seu movimento...
O vai e vem das ondas agitadas
quebrando na praia, a todo momento,
esparramando espumas prateadas.

Avisto um pescador, que destemido...
Lança seu barco no mar agitado
com coragem,  não receia o perigo!
São suas redes que o tem sustentado.

Vejo gaivotas, com olhar atento...
A planarem sobre as ondas do mar,
ávidas, a procura de alimento!

À tarde, o sol deitava no ocidente,
derradeiros raios, para adornar
seus últimos brilhos, para o poente.

SALVADOR - BAHIA

Falam muito de ti frequentemente,
Salvador de belezas naturais...
Os poetas te exaltam fartamente
em versos, teus valores culturais!

Falam também de ti, principalmente:
do Dique Tororó , Orixás e Axé,
do Elevador Lacerda... , especialmente
das comidas: vatapá e acarajé!

Quisera decantar-te em muitos versos.
Exaltar toda a tua exuberância
do passado, e de hoje, os teus  progressos!

Quem já te conheceu, feliz professa...
Que cantará em versos tua importância
ao Senhor do Bom Fim..., Uma promessa!

SEU OLHAR

Uma breve esperança, em seu olhar,
simula apenas amar, e mais nada;
não é mais, que uma esperança, a brilhar,
por uma grande paixão, revogada.

O perene olhar, de um amor desfeito,
olhar que torna pura, a alma inquieta,
é um desejo feliz, meio sem jeito;
que arde, e queima, toda a alma, irrequieta.

E num olhar de amor, nós almejamos,
reatar a paixão, com que sonhamos,
íntegra, pura e branca em densas brumas.

E num olhar apenas, alcançamos,
a felicidade que nós deixamos
que voasse, como douradas plumas.

Fonte:
Sonetos enviados pelo poeta.

Alcântara Machado (Tiro de Guerra n. 35)


No Grupo Escolar da Barra Funda, Aristodemo Guggiani aprendeu em três anos a roubar com perfeição no jogo de bolinhas (garantindo o tostão para o sorvete) e ficou sabendo na ponta da língua que o Brasil foi descoberto sem querer e é o país maior, mais belo e mais rico do mundo. O professor Seu Serafim todos os dias ao encerrar as aulas limpava os ouvidos com o canivete (brinde do Chalé da Boa Sorte) e dizia olhando o relógio:

– Antes de nos separarmos, meus jovens discentes, meditemos uns instantes no porvir da nossa idolatrada pátria.

Depois regia o hino nacional. Em seguida o da bandeira. O pessoal entoava os dois engolindo metade das estrofes. Aristodemo era a melhor voz da classe. Berrando puxava o coro. A campainha tocava. E o pessoal desembestava pela Rua Albuquerque Lins vaiando Seu Serafim.

Saiu do Grupo e foi para a oficina mecânica do cunhado. Fumando Bentevi e cantando a Caraboo. Mas sobretudo com muita malandrice. Entrou para o Juvenil Flor de Prata F. C. (fundado para matar o Juvenil Flor de Ouro F. C.). Reserva do primeiro quadro. Foi expulso por falta de pagamento. Esperou na esquina o tesoureiro. O tesoureiro não apareceu. Estreou as calças compridas no casamento da irmã mais moça (sem contar a Joaninha). Amou a Josefina. Apanhou do primo da Josefina. Jurou vingança. Ajudou a empastelar o Fanfulla que falou mal do Brasil. Teve ambições. Por exemplo: artista do Circo Queirolo. Quase morreu afogado no Tietê.

E fez vinte anos no dia chuvoso em que a Tina (namorada do Linguiça) casou com um chofer de praça na policia.

Então brigou com o cunhado. E passou a ser cobrador da Companhia Autoviação Gabrielle d’Annunzio. De farda amarela e polainas vermelhas.

Sua linha: Praça do Patriarca – Lapa. Arranjou logo uma pequena. No fim da Rua das Palmeiras. Ela vinha à janela ver o Aristodemo passar. O Evaristo era quem avisava por camaradagem tocando o cláxon do ônibus verde. Aristodemo ficava olhando para trás até o Largo das Perdizes.

E não queria mesmo outra vida.

Um dia porém na seção "Colaboração das Leitoras" publicou A Cigarra as seguintes linhas de Mlle. Miosótis sob o título de Indiscrições da Rua das Palmeiras:

"Por que será que o jovem A. G. não é mais visto todos os dias entre vinte e vinte e uma horas da noite no portão da casa da linda Senhorinha F. R. em doce colóquio de amor? A formosa Julieta anda inconsolável! Não seja assim tão mauzinho, Seu A. G.! Olhe que a ingratidão mata…"

Fosse Mlle. Miosótis (no mundo Benedita Guimarães, aluna mulata da Escola Complementar Caetano de Campos) indagar do paradeiro de Aristodemo entre os jovens defensores da pátria.

E saberia então que Aristodemo Guggiani para se livrar do sorteio ostentava agora a farda nobilitante de soldado do Tiro-de-Guerra n. 35.

– Companhia! Per… filar!

No Largo Municipal o pessoal evoluía entre as cadeiras do bar e as costas protofônicas de Carlos Gomes para divertimento dos desocupados parados aos montinhos aqui, ali, à direita, à esquerda, lá, atrapalhando.

– Meia volta! Vol… ver!

O sargento cearense clarinava as ordens de comando. Puxando pela  rapaziada.

– Não está bom não! Vamos repetir isso sem avexame!

De novo não prestou.

– Firme!

Pareciam estacas.

– Meia volta!

Tremeram.

– Vol… ver!

Volveram.

– Abém!

Aristodemo era o base da segunda esquadra.

Sargento Aristóteles Camarão de Medeiros, natural de São Pedro do Cariri, quando falava em honra da farda, deveres do soldado e grandeza da pátria arrebatava qualquer um.

Aristodemo só de ouvi-lo ficou brasileiro jacobino. Aristóteles escolheu-o para seu ajudante-de-ordens.

– Você conhece o hino nacional, criatura?

– Puxa, se conheço, Seu Sargento!

– Então você não esquece, não? Traz amanhã umas cópias dele para o pessoal ensaiar para o Sete de Setembro? Abom.

Aristodemo deu folga no serviço. Também levou um colosso de cópias.

E o primeiro ensaio foi logo à noite.

Ou-viram do I-piranga as margens plá-cidas…

– Parem que assim não presta não! Falta patriotismo. Vocês nem parecem brasileiros. Vamos!

Ou-viram do I-piranga as margens plácidas Da Inde-pendência o brado re-tumbante!

– Não é assim não. Retumbante tem que estalar, criaturas, tem que retumbar! É palavra. Como é que se diz mesmo?… é palavra… ah!… onomatopaica: RETUMBANTE!

E o hino rolou ribombando:

… a Inde-pendência o brado re-TUMBAN-te! E o sol da li-berdade em raios ful…

De repente um barulho na segunda esquadra.

– Que isbregue é esse aí, criaturas?

Isbregue danado. O alemãozinho levou um tabefe de estilo. Onde entrou todo o muque de que pôde dispor na hora o Aristodemo.

– Está suspenso o ensaio. Podem debandar.

– Eu dei mesmo na cara dele, Seu Sargento. Por Deus do céu! Um bruto tapa mesmo. O desgraçado estava escachando com o hino do Brasil!

– Que é que você está me dizendo, Aristodemo?

– Escachando, Seu Sargento. Pode perguntar para qualquer um da esquadra. Em vez de cantar ele dava risada da gente. Eu fui me deixando ficar com raiva e disse pra ele que ele tinha obrigação de cantar junto com a gente também. Ele foi e respondeu que não cantava porque não era brasileiro. Eu fui e disse que se ele não era brasileiro é porque então era… um… eu chamei ele de… eu ofendi a mãe dele, Seu Sargento! Ofendi mesmo. Por Deus do céu. Então ele disse que a mãe dele não era brasileira para ele ser… o que eu disse. Então eu fui. Seu Sargento, achei que era demais e estraguei com a cara do desgraçado! Ali na hora.

– Vou ouvir as testemunhas do fato, Aristodemo. Depois procederei como for de justiça. Fiat justitia como diziam os antigos romanos. Confie nela, Aristodemo.

"Ordem do Dia

De conformidade com o ordenado pelo Exmo Sr. Dr. Presidente deste Tiro-de-Guerra e depois de ouvir seis testemunhas oculares e auditivas acerca do deplorável fato ontem acontecido nesta sede do qual resultou levar uma lapada na face direita o inscrito Guilherme Schwertz, n. 81, comunico que fica o citado inscrito Guilherme Schwertz, n. 81, desligado das fileiras do Exército, digo, deste Tiro-de-Guerra visto ter-se mostrado indigno de ostentar a farda gloriosa de soldado nacional Delas injúrias infamérrimas que ousou levantar contra a honra imaculada da mulher brasileira e principalmente da Mãe, acrescendo que cometeu semelhante ato delituoso contra a honra nacional no momento sagrado em que se cantava nesta sede o nosso imortal hino nacional. Comunico também que por necessidade de disciplina, que é o alicerce em que se firma toda corporação militar, o inscrito Aristodemo Guggiani, n. 117, único responsável pela lapada acima referida acompanhada de equimoses graves, fica suspenso por um dia a partir desta data. Dura lex sed lex. Aproveito porém no entretanto a feliz oportunidade para apontar como exemplo o supracitado inscrito Aristodemo Guggiani, n. 117, que deve ser seguido sob o ponto de vista do patriotismo, embora com menos violência apesar da limpeza, digo, da limpidez das intenções.

Aproveito ainda a oportunidade para declarar que fica expressamente proibido no pátio desta sede o jogo de futebol. Aqui só devemos cuidar da defesa da Pátria!

São Paulo, 23 de agosto de 1926.
(a) Sargento-Inspetor Aristóteles Camarão de Medeiros."

Aristodemo Guggiani logo depois apresentou sua demissão do cargo de cobrador da Companhia Autoviação Gabrielle d’Anunuzio. Sob aplausos e a conselho do Sargento Aristóteles Camarão de Medeiros. Trabalha agora na Sociedade de Transportes Rui Barbosa, Ltda.

Na mesma linha: Praça do Patriarca – Lapa.

Fonte:
Alcântara Machado. Brás, Bexiga e Barra Funda.

Projeto Apparere (Coletânea de Natal) Poemas Selecionados

Capa: Adriano Vox


Adnelson Borges de Campos – Nas trilhas dos carroções
Adriana Ferreira da Silva – Natal
Airton Rodrigues – O Gari
Antônio C. S. Santos - Meu primeiro Natal
Antonio Stegues Batista – Um Natal diferente
Aucenir Gouveia – Meditação Natalina
Brenda Sales – Papai Noel
Caio Fraga – Soneto de Natal
Caliel Alves – A cidade sem chaminés
Camila dos Santos Santana – Minha Festa
Cárlisson Galdino – Pesquisa Espacial
Carlos José Ferreira Lopes – Aldravias de natal
Carlos Marcos Faustino – Velhos Natais
Danilo de Oliveira Pessôa – Eu não gosto de Natal
Divino Antonio – Um conto de Natal - O retrato
Edilma Maria da Silva – Predestinado no Natal
Elio Moreira – É Natal
Fátima Alves – Nosso Natal ...
Garbo Nael – Pedido de Natal
Gil Nascimento – O Natal de Deus é assim!
Gilberto de Guedes Vaz – Quatro Jovenzinhos e o Dilema de Papai Noel
Ilma Pereira Nunes Moreira – 1000 dias para o Natal
Ivan de Oliveira Melo – Canto Natalino
Jairo Alves – Os Natais da Minha Vida
Jorge de Palma – A cantata natalina de Pedrinho Peixoto
José Feldman – Quase um Soneto: Mais Um Natal
José Luiz Teixeira da Silva – Noite de Natal
Júlio César Freid'Sil – Feliz Natal
Juna Guimarães – Presente de Natal
Kelly Cristina Araujo – Encontrando Noel
Kleyser Ribeiro – Natal de verão
Laércio Vieira – O Papai Noel Robô
Lenilson Silva – Espelho do Natal
Léo Guimarães – O antigo Natal
Leomaria Mendes Sobrinho - Natal
Luiz Loureiro – Conto de Natal
Marcelo Oliveira – Os Espíritos do Natal
Marilia de Souza Abduani – Natal
Mauricio da Costa Carvalho Vidigal – Natal e Carolinas
Miguel Jorge da Silva Fortes – Natal em família
Mirelle Cristina da Silva – Feliz
Neri França Fornari Bocchese – É Natal
Roberto de Jesus Moretti – Um conto PM de Natal
Roberto Minadeo – Natal no Hospital
Rodrigo Mendes – Um brinde ao renovo
Roger Ribeiro – Nada de Papai Noel
Rosa Acassia Luizari – Papai Noel contemporâneo
Sergio de Souza Merlo – Noel
Tainá Custódio – Visita inesperada
Tarique Layon Lima Vilhena – Renovação da Esperança
Thiago Sabino Leite – Ah Natal
Valéria Guerra Reiter – O Natal de Iniguaçu...

segunda-feira, 25 de novembro de 2019

Varal de Trovas n. 125


António Lobo Antunes (Elogio do Subúrbio)


Cresci nos subúrbios de Lisboa, em Benfica, então quintinhas (casa de campo), travessas, casas baixas, a ouvir as mães chamarem ao crepúsculo

- Víiíiíííítor

num grito que, partido da Rua Ernesto da Silva, alcançava a cegonhas no cume das árvores mais altas e afogava os pavões no lago sob os álamos. Cresci junto ao castelito das Portas que nos separava da Venda Nova e da Estrada Militar, num país cujos postos fronteiriços eram a drogaria do senhor Jardim, a mercearia do Careca, a pastelaria do senhor Madureira e a capelista Havaneza do senhor Silvino, e demorava-me à tarde na oficina de sapateiro do senhor Florindo, a bater sola num cubículo escuro rodeado de cegos sentados em banquinhos baixos, envoltos no cheiro de cabedal e miséria que se mantém como o único odor de santidade que conheço.

A dona Maria Salgado, pequenina, magra, sempre de luto, transportava a Sagrada Família, numa caixa de vivenda em vivenda, e os meus avós recebiam na sala durante quinze dias essas três figuras de barro numa redoma embaciada que as criadas iluminavam de pavios de azeite. Cresci entre o senhor Paulo que consertava com guitas e caniços as asas dos pardais, e os Ferra-a-Bico cuja tia fugiu com um cigano e lia a sina nas praias, embuçada de negro como a viúva de um marujo que nunca deu à costa. Os meus amigos tinham nomes próprios tremendos (Lafaiete, Jaurés) e habitavam rés-do-chão de janelas ao nível da calçada onde distinguiam aparelhos de rádio gigantescos, vasos de manjerico e madrinhas de chinelos. O cão da fábrica de curtumes acendia latidos fosforescentes nas noites de julho, quando o pólen me chovia nas pálpebras, eu, morto de amores pela mulher de Sandokan, descobria-me unicórnio trancado na retrete (vaso sanitário) da escola, e o brigadeiro Maia, de boina basca, descia à Adega dos Ossos a gesticular contra o regime. Na época em que aos treze anos me estreei no hóquei em patins do Futebol Benfica, o guarda-redes enchumaçado como um barão medieval apontou-me ao pasmo dos colegas

- O pai do ruço (grisalho, desbotado) é doutor.

No que constituiu de imediato a minha primeira glória desportiva e a primeira tenebrosa responsabilidade, a partir do momento em que o treinador, a apalpar-me os músculos com os olhos, preveniu numa careta de dúvida

  - Sempre estou para ver se lhes chegas, ó ruço, que o teu pai no ringue era lixado para a porrada.

   O dono da Farmácia União jogava o pau, a esposa do proprietário da Farmácia Marques era uma grega suntuosa de nádegas de ânfora e pupilas acesas, que me fazia esquecer a mulher de Sandokan ao vê-la aos domingos a caminho da igreja, o sineiro a quem chamavam Zé Martelo e que tocava o Papagaio Louro na Elevação da missa do meio-dia em vez do A treze de Maio obrigatório, possuía uma agência funerária cujo prospecto-reclame começava "Para que teima Vossa Excelência em viver se por cem escudos pode ter um lindo funeral?", e eu escrevia versos nos intervalos do hóquei, fumava às escondidas, uma das minhas extremidades tocava Jesus Correia e a outra Camões, e era indecentemente feliz.

Hoje, se vou a Benfica não encontro Benfica. Os pavões calaram-se, nenhuma cegonha na palmeira dos Correios já não existe a palmeira dos Correios, a quinta dos Lobo Antunes foi vendida, o senhor Silvino, o senhor Florindo e o senhor Jardim morreram, ergueram prédios no lugar das casas, mas eu suspeito que por baixo destes edifícios de cinco e seis e sete e oito e nove andares, num ponto qualquer sob marquises e sucursais de banco, o senhor Paulo ainda conserta, com guitas e caniços, as asas dos pardais, a dona Maria Salgado ainda trota de vivenda em vivenda com a Sagrada Família na sua redoma embaciada, o Lafaiete e o Jaurés jogam ao Virinhas na Calçada do Tojal cercados de vasos de manjerico e madrinhas de chinelos. Não há avezões nem cegonhas e contudo a acácia dos meus pais, teimosa, resiste. Talvez que só a acácia resista, que só ela sobeje desse tempo como o mastro, furando as ondas, de um navio submerso. A acácia basta-me. Arrasaram as lojas e os pátios, não tocam o Papagaio Loiro no sino, mas a acácia resiste. Resiste. E sei que junto do seu tronco, se fechar os olhos e encostar a orelha ao seu tronco, hei de ouvir a voz da minha mãe chamar - Antóóóóóóóónio!

E um miúdo ruço atravessará o quintal, com um saco de berlindes na algibeira, passará por mim sem me ver e sumir-se-á lá em cima no quarto, a sonhar que ao menos a mulher de Sandokan não o obrigaria nunca a comer purê de batata nem sopa de nabiças* durante o tormento do jantar.
__________________________
Nota:
Nabiça é a folha comestível de uma planta cuja raiz é o nabo.

Fonte:
António Lobo Antunes. Livro de Crônicas. Lisboa: Dom Quixote, 1998.

Professor Garcia (Trovas do Meu Cantar) III


Alguém me bateu no peito,
de um jeito tão sedutor..,
Que o coração, sem ter jeito,
virou mocambo do amor!

Ao ver tantos esplendores,
das nuvens brancas, ao léu...
Comparo a velhos pastores,
tangendo sonhos, no céu!

Ao ver-te, ó velha tapera,
senti, na dor dos teus ais...
Meus sonhos de primavera
e o silêncio de meus pais!

Canta Iguaçu!... Que os teus cantos,
feitiços das verdes matas,
afastam mágoas e prantos,
no canto das Cataratas!

Chega a idade!... E eu já sem graça,
na ousadia dos meus planos,
finjo que o tempo não passa
e escondo os meus desenganos!

Mãe que tem fé, não se esquece,
de orar pelos filhos seus!...
Pois, no silêncio da prece,
toda mãe fala com Deus!

Na manjedoura, em Belém,
nasce um mistério profundo:
Uma luz vinda do além,
que se fez a Luz do mundo!

Não há pior desconforto
nem um crime mais tirano,
que aquele, de um filho morto,
no ventre de um ser humano!

Nosso amor guarda, em segredo,
dois escrutínios fatais;
Na primavera, foi cedo,
no outono, tarde demais!

O amor guarda a sutileza,
de uma taça de cristal,
que quando trinca, a beleza
perde o encanto original!

O artista que a tarde pinta,
mostra aos ateus e ao descrente,
que alguém, sem pincel nem tinta,
pinta a cor do sol poente!

O beija-flor pequenino,
astucioso artesão…
Tece, no galho mais fino,
o altar de sua mansão!

O ocaso chega, de leve,
toda tarde, e vem me ver!...
Sutil, no meu peito escreve:
Ama o teu entardecer!

Prendi-me, aos braços da cruz,
por seus laços fui tomado,
tentando encontrar a luz
que ofusque a luz do pecado!

Quando enfim, tu te ajoelhas,
e o teu perdão te refaz:
Serás luz entre as centelhas
do fogo aceso da paz!

Rompe a aurora, o galo canta,
o sol põe riso na flor;
e o sabiá, da garganta,
liberta um hino de amor!

Se a brisa cai, sorrateira,
e arrasta a flor que morreu...
Deixa mais triste a roseira,
chorando a flor que perdeu!

Se a cruz redime o pecado,
seu peso, nos leva à Luz.,.
Eu quero o peso dobrado,
nos braços de minha cruz!

Se em silencio, ó primavera,
partiste, sem dar adeus...
Sei que o silêncio me espera,
no outono dos dias meus!

Tapera - foste o meu rancho!
E hoje, apesar da distância...
Tu guardas, num velho gancho,
molambos de minha infância!

Tenho um jardim diferente...
E entre nós, há uma aliança:
Por mais que eu mude a semente,
só nasce a flor da esperança!

Vejo, em dois braços abertos,
o meu viver peregrino:
Se um me aponta os rumos certos,
o outro indica o meu destino!

Venci marés violentas,
ondas e mares sem fim...
Só não venci as tormentas
que existem dentro de mim!

Vivi tão pouco ao teu lado!
Mamãe!... Contigo sonhei...
Devia ter te beijado,
bem mais do que te beijei!

Vivo entre a paz e o temor
de uma dúvida malvada:
Ter tudo, sem teu amor,
ou teu amor, sem ter nada!

Fonte:
Francisco Garcia de Araújo. Cantigas do meu cantar. Natal/RN: CJA Edições, 2017.
Livro enviado pelo autor.

Edwaldo Camargo Rodrigues (Passageiros da Noite)


    Desde que o sol se pusera, era o terceiro espírito errante com que se deparava naquela estrada maldita. Já nem se assustava mais, havia-se acostumado com o fenômeno. Mais esta vez, lívida, a aparição acenou, surgida como que do nada, interpondo-se de repente à frente dos cavalos, que estacaram em pânico, corcoveando. Relincharam dolorosamente e escarvavam com os cascos ferrados o solo duro e pedregoso, com fúria, até produzir faísca; mas foi em vão, tiveram enfim de acalmar-se e submeter-se, bufando, os olhos esbugalhados a brilharem na escuridão da noite.

    Este último, pelo menos, comportou-se educadamente, ao contrário dos anteriores, que simplesmente se apoderaram da brida com um gesto desabrido das mãos descarnadas, cujos ossos alvejavam à luz da lua para, em desabalada carreira, conduzirem eles próprios a parelha alvoroçada até onde lhes interessava, apeando em seguida sem proferir uma única palavra e desaparecendo em meio às trevas da noite, tragados pelas as portas do Inferno, talvez. Pois ele, ainda que o instigasse a curiosidade, prudentemente não os seguiu, a fim verificar seu fatídico paradeiro.

    - Em nome de Cristo, permita-me subir, meu senhor, pois vou cansado – solicitou, polido. – Minhas velhas pernas já não conseguem conduzir-me, e é imperativo que chegue a meu destino antes do alvorecer. – A voz gutural provinha de algum ponto qualquer situado entre as costelas agudas que o albornoz puído mal encobria e as vértebras expostas do longo pescoço, em torno do qual pendiam frouxos os restos encardidos de uma golilha de gorgorão*.

    Porém, seu aspecto geral não era melhor que o das almas penadas anteriores. Os olhos, amolecidos e pegajosos, flutuavam soltos, e seus movimentos descoordenados dentro das órbitas negras faziam lembrar gemas de ovos que se fritam em óleo, a contrastar com o fundo requeimado da frigideira. Era nojento.

    - Por favor... – respondeu entretanto o viajante. E suspirou conformado, desferindo palmadinhas sobre o assento do banco ensebado de madeira, indicando o lugar junto de si na boleia. – Desde que a Vossa Senhoria não aborreça sentar-se aqui comigo, ao lado deste homem rústico, já que a caçamba vai repleta de esterco para o replantio das cepas. – E acrescentou: – Minha viagem é longa e espero em Deus que o itinerário lhe seja conveniente, prezado andarilho. Pois é meu dever avisar que meu patrão não permite, em nenhuma hipótese, qualquer desvio na rota estabelecida por ele; muito menos toleraria atrasos que isto viesse acarretar a seus negócios, se o senhor me compreende. O homem é enérgico e não hesitaria em castigar-me, caso lhe desobedecesse.

    Aceita essa condição, o convidado acomodou-se e pôs-se logo à vontade. Descalçou as botas e arriou o capuz, que lhe velava parcialmente a carantonha* feroz. Que bruto camarada, louvado fosse o Senhor! A ossatura do crânio mostrava-se totalmente exposta e parecia esfarinhar. E por toda a superfície, viam-se interstícios esverdinhados, como se a criatura tivesse há pouco se erguido de um pântano qualquer em que se espojara, e através dos quais despontavam, aqui e ali, falripas mucilaginosas* com a aparência exata de algas apodrecidas. Quanto aos dentes então, restavam-lhe apenas alguns dos incisivos, o que lhe dava, em tudo, o aspecto de uma caveira de burro. E pior: emanava-se dele um mau cheiro execrável de ratazana apodrecida, que nem a brisa da noite que circulava ao redor e tampouco o movimento da velha traquitana* conseguiam dispersar por completo. De todos os seus passageiros, aquele, sem dúvida, prometia ser o mais incômodo, apesar dos modos corteses que exibia.

    Entretanto, uma vez instalado, suspirou e pareceu aquietar-se. – Chamam-me Dom Antônio Alonso – fez ele, estendendo a mão, gesto que o condutor, protegido pela obscuridade que os envolvia, afetou não perceber, hirto de pavor mediante a iminência de um contato com o sinistro desconhecido. Apenas um simples toque daqueles dedos de esqueleto poderia ser fatal, drenando-lhe a alma do corpo, sabia-se lá, e que Deus o protegesse ao longo daquela jornada.

    - Prazer... – gaguejou depois de algum tempo, sem afrouxar as rédeas, que empunhava com firmeza, e sem desgrudar os olhos da estrada, cuja superfície de cascalhos frouxamente embranquecida sob um luar indeciso serpeava adiante. – Meu nome é Pedro Valdez, conhecido também como Pedro, o Troca, pois que atualmente ando por este mundo a mercadejar. Na verdade, trabalho a soldo para um adelo* espertalhão; segundo comentam, um foragido da lei que se homiziou lá para as bandas do meu povoado, um fim de mundo esquecido por Deus. O biltre, apesar de paralítico e avarento, é mais ladino que uma raposa, que nem mesmo o diabo o engabela. Mas é a ele e mais ao meu suor que devo o pão do meu sustento. 

    E após pigarrear um pouco, informou ainda: – Outrora fui também tanoeiro*, ofício aprendido de meu falecido mestre e compadre, o artesão João Dorta, vassalo dos senhores de Valdez, proprietários das quintas de Valdez, e de quem adotei o nome ao sair evadido de seus domínios, lá nas províncias mais ao norte, já que o de um de pai ou de uma mãe não possuo, por desconhecer quem a mim me gerou. Em pequeno, fui colocado na roda, conforme se diz dos enjeitados.

    O homem tinha esse temperamento: quando tenso, disparatava; refugiava-se talvez no som da própria voz, sem conceder muita importância ao significado do que dizia. Não era seu intento falar tanto assim de si, revelar sua vida de supetão, despejando tudo mais ou menos sem propósito, quanto mais a um completo estranho. Amaldiçoou-se por isso, mas era tarde, cumpria conter-se dali em diante, e manter a boca fechada.

    Mas o outro não demonstrou a mais leve perturbação. Pareceu nada ter escutado de toda aquela eloquência despropositada. Aristocrático, com sua voz vácua e quase ininteligível, emitiu comentários imprecisos a respeito do clima, talvez para dissipar qualquer constrangimento pressentido entre os dois, conforme procederia um autêntico cavalheiro.

    Depois de perscrutar a paisagem, negra e indecifrável, prognosticou finalmente chuvas, a virem pela madrugada, com certeza. E assim, aprumando-se com galhardia, sem desmantelar-se aos solavancos do veículo, voltava a cada instante a cabeça para os lados e para o céu, aparentemente sem dar conta do incômodo rangido provocado pelas vértebras ressequidas que se atritavam com aspereza e que se repetia a cada movimento, enquanto falava.

    - Pouco além desta colina junto à qual agora passamos – disse e apontou com o indicador amarelecido, semelhante a uma antiga batuta entalhada em marfim, uma massa escura apenas perceptível em meio à vegetação intrincada que margeava o caminho –, avistaremos em seguida um frondoso sicômoro*. Rogo-lhe que paremos um pouco sob suas ramagens. De modo que os cavalos poderão descansar – justificou. Mas logo a seguir, inclinou-se para o outro, acrescentando em tom confidente, as mandíbulas trêmulas a tatalarem com enleio: – E é lá também que espero encontrar uma pessoa que me é muito cara, se o senhor não se opõe, é claro.

    Tão logo ali chegaram, abrigaram-se sob a vasta copa da árvore, pois, conforme previra a distinta assombração, uma tempestade ameaçadora, anunciada pelos graves ribombos das trovoadas, aproximava-se rapidamente. Sob os lívidos clarões de relâmpagos intermitentes, Pedro Valdez entreviu, em sucessivos relances, um vulto encaminhar-se em direção a eles. Pareceu-lhe uma mulher. Vinha trilhando uma vereda inculta, desviando-se de túmulos e capelas que mal se podiam distinguir, tal a confusão de urzes, heras e mandrágoras, que medravam por tudo, incontroláveis e bravias, compondo um cenário desolador de abandono e ruína.

    Os animais, que até então, aproveitando a pausa, roçagavam* a relva em sossego, pressentiram aproximar-se a desconhecida e assustaram-se novamente, reagindo irrequietos, nutrindo com sofreguidão desconfiada. – Calma, Penedo! Quieto Ferrabrás! – sofreava-os o dono, empunhando a brida com energia.

    - Permita-me que lhe apresente, senhor Valdez – interveio, nesta manobra difícil, o muito solícito Dom Antônio, exibindo a palma estendida num meneio gracioso, como quem oferece um ramo florido, amparando-o entre o polegar e o indicador –, eis aqui a senhora dona Risoleta Alonso y Olavarria, minha falecida esposa e companheira perpétua. – E, sem esperar por resposta, estendeu os braços, ajudando-a a embarcar, fazendo com que ela se sentasse, apertando-se, com artríticos estralejos*, no exíguo espaço que restava entre os dois na estreita boleia.

    Era arriscado supor que a mulher sorrisse, pois nenhum vestígio de pele se lhe restava aderido ao carão escaveirado, de forma que a única expressão facial possível para a infeliz era aquele esgar impudico a expor permanentemente os dentes arreganhados. Os quais, entretanto, permaneciam em excelente estado de conservação, condição que permitia com que a maxila e a mandíbula, quando unidas, se ajustassem mutuamente com admirável elegância, sem que se percebesse a mínima falha ao longo das arcadas.

    Em todo caso, relanceou o condutor e acenou altivamente com a cabeça, em cuja fronte, ocupando as cavidades que em vida contiveram olhos provavelmente belos, lampejaram momentaneamente, bem lá no fundo, dois minúsculos glóbulos esverdeados, ambos semelhantes a vaga-lumes feridos que agonizassem, quase ocultos em meio à vegetação sombria. E – mais inacreditável! – no cocuruto daquele crânio limpo e alvadio*, equilibrava-se uma touça* de cabelos ressequidos como palha, sobre a qual a vaidade feminina havia espetado um largo pente de tartaruga cujas pontas sustinham a orla de uma mantilha negra e rendada, que descia abundante e cascateava-lhe pelas costas e em redor da figura esquálida da morta, chegando-lhe às ancas, no melhor estilo andaluz, nobre e suntuoso.

    Uma vez colocados os três em seus respectivos lugares, nenhuma alternativa lhes restava senão espremerem-se entre si, caso desejassem prosseguir viagem. Apesar disso, a dama recuava tentando evitar a proximidade do humilde carroceiro, cujo contato parecia repugná-la. De modo que, com gestos impacientes de repulsa e desdém, cosia-se o mais possível junto ao marido, agarrando-se-lhe aos braços, inclinada sobre ele a protestar com um murmúrio cavo e continuado, que se escapava provavelmente através dos desvãos da grade torácica.

    - Não, vida minha – replicava-lhe o conciliador Dom Antônio aos cochichos, tentando a custo conter as diatribes da companheira e, ao mesmo tempo, não ser ouvido pelo outro –, desista, por favor, não é possível viajar lá atrás. Transporta-se estrume do gado, compreende?... Porque é assim mesmo, é a estação, é para o plantio das vides*... – E ensinava paciente: – Recorda-se de como acontecia em nossa herdade e na quinta de seu pai, no início da primavera? Pois é igual; acredito que as práticas não mudaram desde aquele tempo, e é com certeza o procedimento que ainda hoje utilizam os labregos* na lide das glebas.

    A mulher todavia inquietava-se, não compreendia, salmodiava sem parar sua queixa exaltada, quase incorpórea, provinda do além. – Você está confusa, meu bem – ponderava o esposo –; provavelmente ainda não despertou por completo de seu longo sono – cogitou ele, segurando-lhe carinhosamente o queixo pontudo. E esclareceu: – O homem não é um salteador, um birbante*... Trata-se apenas de um camponês, um trabalhador, e está nos ajudando sem nada exigir em contrapartida. Isto é mais do que se pode esperar de um rústico cristão.

    E, após ouvir-lhe uma modulação sibilante, que deveria expressar ainda alguma dúvida que a atormentava, garantiu-lhe em tom cabal, no qual se percebia uma leve ponta de contrariedade, o osso do polegar direito a indicar perfurante para trás: – Não, é claro... Não é dele. O cheiro provém do maldito carregamento que o coitado tem de distribuir por aí, pelos campos, por dever de ofício, conforme já lhe expliquei, ou por outras razões que apenas a ele dizem respeito, sei lá, mulher.

    Entrementes, seguia o grupo, madrugada adentro, assim composto: o arrieiro*, muito inteiriçado e esgazeado, e o heteróclito* casal entrelaçando reciprocamente as mãos alvacentas, ambos coniventes a respeito de seu destino sobrenatural, que somente eles conheciam. E seus corpos chocalhavam a cada solavanco da viatura, que rolava estrídula*, as rodas resvalando sobre a via tortuosa, atapetada de seixos irregulares. Era de admirar que as duas múmias não se desconjuntassem de todo, esfacelando-se de uma vez por todas, como um jogo de varetas sobre um tabuleiro, ou que se reduzissem finalmente a pó.

    Não obstante, passados alguns momentos, rouquejou o nobre, apontando os restos de uma edificação que se erguia um pouco recuada, apenas vislumbrada a assomar entre a vegetação espessa, talvez um antigo portal ou peristilo*, cujos fragmentos branquejavam ainda por um instante sob o luar evanescente da madrugada:

    - Eis acolá onde desejamos finalmente ficar, meu amigo; e o senhor, depois disto, poderá prosseguir em paz, sob as bênçãos do Céu.

    - Oooo! – Ouviu-se na paisagem silente. E, mais alguns passos, a parelha estacou, homem e bestas aparentemente aliviados.

    - Estamos muito agradecidos – disse o falecido, ajudando apear a sua cara metade, que, naquela simples operação, cambaleava a cada movimento, muito indecisa, enroscando-se na trama dos seus complicados véus. E, infaustamente, apesar das atenções e cuidados com que a cercava o devotado esposo, alguma coisa saíra errada, talvez que enganchasse os pés quebradiços no estribo enferrujado, resultando com que a infeliz tropeçasse e se estatelasse inteira contra a lama do chão, todo encharcado da chuva recente. A brava senhora reduziu-se instantaneamente a uma ruma* de ossos, de cambulhada* com rendas e tecidos que se esgarçavam desfibrados, tudo aquilo se confundindo numa patética mixórdia, asquerosa e irreconhecível.

    - Aqui residimos e vivemos os melhores dias das nossas vidas – explicou Dom Antônio, em sua fleuma incorrigível, acenando com um gesto abrangente a seu redor, tão amplo que então indicaria o próprio céu, estrelado e prenunciador da aurora. Porém, humilde, agachou-se em seguida, e via-se que tentava com seus dedos, quebradiços e desajeitados, organizar uma trouxa transportável daquela massa confusa que se espalhava pelo solo à sua frente, os despojos de sua amada. O companheiro fez menção de acudi-lo naquela tarefa penosa, porém o cavalheiro não lho permitiu. Afastou-o com um meneio da mão impositiva, declarando, formalizado: – Vou levá-la para nossa alcova, onde repousará – justificou, erguendo-se lentamente, a sobraçar com dificuldade o volume amorfo. – Lá, eu a recomporei, pedaço por pedaço, e ela ressurgirá da maneira exata como a conheci, tão jovem e fascinante, e cuja lembrança, passado tanto tempo, ainda agora me deslumbra e me faz perder o fôlego, emocionado. – E após um suspiro profundo, completou, contemplativo: – Seremos felizes novamente, pode ter certeza. A morte ainda não nos venceu, nem poderá separar-nos definitivamente.

    E, voltando-se, afastou-se com seu fardo precioso, penetrou entre as ramagens hirsutas dos tojos* retorcidos e das tanchagens* peçonhentas que bordejavam o caminho e foi corajosamente transpor a barreira formada por partes de empenas* e colunas que, em meio à penumbra indecisa da alvorada, divisavam-se além, derrocadas sobre a relva, espalhadas em confusão, e atrás da qual, amparando-se precariamente, desapareceu por fim, enquanto o pipilar dos primeiros pássaros despertados ecoava pelas frondes sombrias das árvores em redor.

    Pedro Valdez suspirou, uma comoção indefinível picou-lhe o coração piedoso. Desatrelou os machos e estapeou-lhes as ancas, amistosamente, dando-lhes liberdade, a fim de que debandassem e se apascentassem finalmente tranquilos, depois daquela noite extenuante.

    Um regato oculto entre a vegetação rumorejava por perto. Descobriu-o sem muito esforço. E, bebendo da água fresca, viu refletir-se na superfície encrespada que resvalava buliçosa sobre claros seixos, iluminado pelo sol da manhã, que surgia radiante, seu semblante cansado. Também este se desfazia, o rosto cadavérico parecendo diluir-se, puxado pelo movimento borbulhante da modesta corredeira.

    Lembrou de seu patrão, o Abílio Tornado, que lhe parecia o próprio demônio, da primeira mulher, a Aldonça, e dos filhos pequenos, cujos nomes restavam apenas nas lápides mesquinhas em que haviam sido talhados, em algum lugar, remoto e esquecido, e viu-se morto, de repente morto, só não sabia desde quando e por que ainda vagava sobre a terra.
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Glossário em Ordem Alfabética:
Adelo – aquele que compra ou vende roupas e objetos usados.
Alvadio – alvacento, esbranquiçado.
Arrieiro – arreeiro, tropeiro.
Birbante – que ou aquele que vagueia, sem pouso ou trabalho certos; vagabundo, viajante, vadio.
Cambulhada – reunião de coisas diversas; mistura.
Carantonha – cara fechada; cara feia; carranca.
Diatribe – discurso escrito ou oral, em tom violento e geralmente afrontoso, em que se ataca alguém ou alguma coisa.
Empenas – qualquer parede lateral, especialmente as construídas nas divisas do terreno.
Estralejo – o mesmo que estalejo, estalar.
Estrídula – som agudo, ruidoso, penetrante,
Falripas mucilaginosas – cabelos curtos e ralos viscosos.
Golilha – Gola.
Gorgorão – tecido encorpado de seda, com relevos formando finos cordões, originalmente fabricado na Índia.
Heteróclito – pouco comum; bizarro, extravagante, excêntrico, singular.
Labrego – certo tipo de arado, munido de um varredouro entre as aivecas com que limpa da terra as raízes.
Peristilo – pátio rodeado por colunas.
Plantio das vides – plantio das videiras.
Roçagar – passar levemente por; roçar, arrastar-se.
Ruma – pilha, montão.
Sicômoro – árvore de até 20 m (Acer pseudoplatanus) da família das aceráceas, nativa da Europa e Oeste da Ásia, de folhas com cinco lobos e flores pêndulas, cultivada como ornamental, pela madeira branca, especialmente usada em instrumentos musicais e mobiliário, como melífera, dando ao mel cor esverdeada, e pela tintura vermelha que se extrai da raiz.
Tanchagem – design. comum a diversas plantas do gênero Plantago, da fam. das plantagináceas, de ervas ou arbustos geralmente de uso medicinal e cujo pólen é notoriamente um causador da febre do feno.
Tanoeiro – aquele que fabrica tonéis, pipas, barris etc.; toneleiro.
Tojo – arbusto de até 2 metros.
Touça – conjunto, agrupamento.
Traquitana – automóvel velho, maltratado, de mau aspecto; lata-velha.
(Fonte do glossário: Dicionário Houaiss)


Fonte:
Texto enviado por João Libero

domingo, 24 de novembro de 2019

Varal de Trovas n. 124


Luiz Poeta (Texto para um Natal)


É tempo de Natal. Das vitrines mais sofisticadas aos ambulantes mais simplórios, os chamarizes natalinos convidam as pessoas que passam, para ornamentarem suas salas, ambientando-as para a celebração do nascimento de Jesus. Para os comerciantes, mais do que falar do nascimento do menino de Belém, é preciso vender porque, afinal, o cliente está com dinheiro e comprar é o verbo mais conjugado e qualquer presente orçamentário é sempre uma bênção.

As propagandas para fomentar a aquisição de produtos do gênero são específicas: ou exibem o glamour de uma delicatessen, cujas sofisticadas cestas de vime expõem gêneros importados sob o brilho de neon das luminárias cuidadosamente preparadas para esse fim, ou espalham-se pelos luminosos corredores dos shopping centers repletos de gorduchos e sorridentes papais noéis - artificiais - cujo movimento para trás e para frente, mecanicamente repetitivo, parece reverenciar o dinheiro do gastador compulsivo diante de tantas ofertas em cada uma das lojas.

Aleatórias à inteligente metodologia das vendas, do outro lado da rua movimentada, precisamente nas calçadas, as instigantes e estridentes vozes dos camelôs, mais do que convidar, intimam o comprador. Eles espalham seus produtos geralmente contrabandeados sobre enormes plásticos e dão logo o seu recado: - Aí, freguesa: Papai Noel a bateria! Pisca-pisca! Árvores de natal de todos os tamanhos! Leva duas e paga uma! Seu filho vai adorar!

Mas quando se trata de vender e comprar - ressalvada a natural hipocrisia para cada caso - povo é povo em qualquer situação. A premente necessidade de adquirir e exibir o objeto conquistado, mesmo quando os recursos são ínfimos, é irrevogável. É preciso mostrar mostrando-se, presentear e presenteando-se. O resultado das compras natalinas é diversificado, mas o cenário é único para cada celebração.

Nas casas mais luxuosas, os anfitriões exibem suas mesas enormes, modeladas caprichosamente por cozinheiros e maitres contratados, repletas de iguarias que parecem posar para o paladar mais exigente, num delicioso mosaico desenhado por talheres e travessas de prata e pratos de porcelana contendo o melhor bacalhau, perus, chesteres, pernis, tortas, bolos e pudins, além das cerejas, tâmaras, figos, pêssegos, nozes, castanhas, amêndoas, avelãs, frutas cristalizadas e afins, cujos nobres obeliscos de toda aquela deliciosa panorâmica da ceia são garrafas e cálices de vinhos do Porto e champanhas franceses.

Sem a menor cerimônia, dão-se ou trocam presentes valiosos: casas, carros, iates, colares de pérolas e diamantes, pingentes, cordões, anéis, alianças e pulseiras de ouro do mais nobre quilate, passagens para cruzeiros com destino às ilhas fiscais, além de uma infinidade de essências importadas, roupas, bolsas, cintos e sapatos de grife.

Sem grandes cômodos que possibilitem a movimentação natalina, um número expressivamente maior de cidadãos comuns comemora este evento à sua maneira, contentando-se com suas cervejas, feijoadas, farofas, refrescos, rabanadas, pastéis e aletrias, realizando seus alvoroçados e espumantes brindes às vezes no próprio quintal, onde é exibido um portentoso churrasco de asas e coxas de frango e carnes de segunda. Tudo é festa!

Sua troca de presentes é modesta: camisas, blusas, lenços, edredons, toalhinhas-de-mão, meias, perfumes baratos, panelas e móveis de questionável durabilidade, mas o que importa mesmo é a reciprocidade produzida pela alegria do dar e receber.

Porém, longe do fogo do carvão que assa carne ou da lareira que conforta os pés, tendo por cama apenas os papelões que embalam os melhores presentes, e por telhado o brilho das estrelas que desconhecem Belém, os ditos miseráveis amargam a solidão de mais um dia sem calendário, sem mesa posta... sem presentes, sem Natal.

Enquanto o Jesus verdadeiro teima em nascer sublimemente no melhor e mais fervoroso silêncio das pessoas mais sensíveis... em várias casas, no aconchego das líricas manjedouras, os aparentemente eternos sorrisos desenhados nos rostos de gesso e louça de diversos menino Jesus artificiais parecem demonstrar, em lugar da compreensão por cada um dos sentimentos humanos, um divino enlevo diante do atraente marketing produzido pelo premiadíssimo vendedor e simpaticíssimo herói natalino Santa Claus.

Fonte:
Luiz Gilberto de Barros (Luiz Poeta). Canção de Ninar Estátuas. 1.ed. Ilhéus/BA: Mondrongo, 2014.
Livro enviado pelo autor.

Baú de Trovas VIII


Benditos são os mecenas!
Não deixam a arte morrer!
São os pilares das cenas
na cultura e no saber!
Abílio Kac
Rio de Janeiro/RJ


Quem não aprende em menino,
tem que aprender na velhice,
que ter pai pobre é destino
mas sogro pobre é burrice!…
Aloisio Alves da Costa
Umari/CE, 1935 – 2010, Fortaleza/CE


Para que tanta igualdade
nesta partilha de amor?
- Fique com tudo: a saudade,
esta tristeza e esta dor!
Antonio Carlos Rodrigues
Rio de Janeiro/RJ

Diz o velhote à mocinha,
mal disfarçando o cansaço:
"Eu já te guardo, todinha,
no fundo do marca-passo!"
Antonio Carlos Teixeira Pinto
Brasília/DF


As paredes que sustentam
meus sonhos, meus ideais,
são tão sólidas que aguentam
os mais fortes vendavais!
Antonio Siécola Moreira
S. Rita do Sapucaí/MG


Esse mesmo pai que um dia
Deus me ofertou ao nascer,
é o pai que eu escolheria,
caso pudesse escolher!
Carolina Ramos
Santos/SP


Na esperança verde e bela
há o otimismo de luz.
Se a porta fecha, a janela
se abre em paz e o sol reluz!
Dinair Leite
Paranavaí/PR


Minhas mágoas disciplino
com a força da oração:
tenho um médico divino
que jamais deixa o plantão!
Elbea Priscila S. Silva
Caçapava/SP


Só se salva de verdade,
nesta enchente de amargor,
quem faz da fraternidade
o seu barco salvador
Flávio Roberto Stefani
Porto Alegre/RS


Qual um pastor diligente
cuidando do seu rebanho,
pastoreio no presente
minhas saudades de antanho!
Gutemberg L. Andrade
Fortaleza/CE


Galgo nuvens montanhosas,
sou na vida um alpinista;
mesmo em trilhas perigosas,
busco os sonhos da conquista.
Jessé F. Nascimento
Angra dos Reis/RJ

Sentimento? Que universo
de verdade e imaginário!
Mundo de verso e reverso;
formidável relicário!
João Bosco dos Santos
Salvador/BA


Sob a marquise silente
sem futuro, ao rés do chão,
dorme o menino carente,
sem lar, sem porvir, sem pão!
José Valdez C. Moura
Pindamonhangaba/SP


Queres definir o amar?
Dentro de minha visão
amar é não precisar
jamais pedir perdão!
Loris Turrini
Tremembé/SP


Cidade dos passarinhos,
Arapongas, Paraná.
Aqui se constroem ninhos
que a todos acolhem cá!
Maria Granzoto
Arapongas/PR


Quando novos, nós dizemos
que o tempo é detalhe à toa.
Só mais tarde percebemos
que ele passa...e não perdoa!
Maria Helena O. Costa
Ponta Grossa/PR

O presente mais bonito
fui eu mesma que me dei:
num momento de conflito,
dei-me a paz… e perdoei.
Maria Ignez Pereira
Mogi-Guaçu/SP


Volte agora com vontade,
ser o amor que me encantou.
traga consigo a saudade.
que ao partir, você deixou!
Maria Luíza Walendowsky
Brusque/SC

Paciência é necessário
quando meus versos escando:
os dedos viram rosário
e pensam que estou rezando!
Maurício Leonardo
Ibiporã/PR


Num relógio, vendo a hora,
no outono de minha lida,
vejo que não há demora
no ocaso de minha vida!
Mauricio N. Friedrich
Curitiba/PR


Quem tem coração de paz
vive de culpa liberto,
porque faz do bem que faz
um céu de sol mais aberto!
Nilton Manoel
Ribeirão Preto/SP

Revendo entulhos e tacos,
na tapera dos meus sonhos,
chorei por ver tantos cacos
dos meus dias mais risonhos!
Professor Garcia
Caicó/RN

No refúgio desmanchamos,
quando ficamos a sós,
esses nós que carregamos
no fundo de todos nós!
Selma Patti Spinelli
São Paulo/SP


No poente desta vida,
já sentindo os membros lassos,
eu desisto da corrida
e me abrigo nos teus braços.
Zeni de Barros Lana
Belo Horizonte/MG

Nilto Maciel (Eles têm Olhos Azuis?)


Eu lia Jorge Garstman, quando ouvi gritos vindos da rua. Preocupado, fechei o livro e, enquanto me dirigia à janela, repetia o nome de Jacó Rabbi, como se do outro lado da parede ele estivesse sendo assassinado. O doido Manuel açoitava o tempo com os braços, pregando à pequena multidão de moleques e vagabundos do bairro.

– Os holandeses vão chegar. Já estão nas proximidades de Jacaúna – bradava o orador.

Vaias estrondavam em meio a gargalhadas escandalosas e assobios estridentes. O pregoeiro ria um riso de satisfação, olhos além da plateia, do casario, como se alcançasse a praia distante, escondida pela cidade. Decerto orgulhava-se de ser o primeiro a dar a notícia.                         

Ao me avistar, aproximando em zum os olhos para pouco além do foco dos canalhas, avançou em minha direção, rompendo o cerco caçoísta.

– Você é filho do Clemente?

Disse sim e o convidei a entrar. Não me importava estivesse em dia de insânia. Ele sabia mais do que todos aqueles cegos que só viam guerras nos cinemas e o mar aos domingos. E eu nutria uma admiração estranha por aquele sábio menosprezado e insultado, aquele irmão vindo não sei de onde, talvez neto de cariris, de adoradores do Boi Santo, ensandecido por herança. Imagino seus ancestrais dizimados a ferro frio pelos Amaro Maciel Parente e caterva.

Dirigiu-se à porta, que fui abrir, apressado, como se atendesse ordem sua. A multidão acercava-se da casa, sequiosa de novo espetáculo, saudosa do palhaço fugitivo. Fechei porta e janela, ciumento daqueles olhos de esquina, daquelas bocas impiedosas.

Já sob a sombra de minhas telhas, o homem era outro. Transfigurara-se, branco feito vela, trêmulo como chama, nem louco nem Manuel.

– Marina, traz um copo com água para este senhor – gritei.

Indiquei-lhe a cadeira, retirando o livro do assento, enquanto tentava copiar-lhe todas as feições. Enganara-me, de fato – não se tratava do maluco do bairro, a alegria dos que dormiam na coxia e se embriagavam de música todo santo dia.

Marina trazia em uma bandeja um copo com água quente e, oferecendo-o a Manuel, cochichou ao meu ouvido:

– Quero ver se ele é doido mesmo. Eu estava ouvindo a lengalenga dele lá da cozinha.

Não recebeu o copo. Deixasse sobre a mesinha. Apanhou meu livro, abriu-o e dirigiu-se a mim:

– Quero ver se ela não esfria hoje.

Veio-me à cabeça, de imediato, a figura acesa de minha mulher, que logo apaguei, olhos na água.

Pôs-se a ler, em voz alta: "Os nativos dessa zona solicitaram ao Conde Maurício e ao Conselho que tomassem o forte português lá existente a fim de libertá-los da opressão em que viviam."

Eu quis dizer a Marina que ela estava enganada. Fosse buscar água gelada, deixasse de rir daquele jeito de moleca. Porém, ao olhar novamente para o homem, reconheci nele o doido Manuel. Para tirar as dúvidas, interrompi-lhe a leitura:

– Não serão os alemães?

– Holandeses – gritou, ferindo-me com seus olhos de mensageiro.

– Mas eles não vêm pelo ar?

Não me deu segunda resposta e continuou a ler e rir. Voltei-me para Marina e pensei em lhe pedir desculpas. Não, não estava enganada, deixasse a água quente ali mesmo, esquecesse a geladeira, risse à vontade, assobiasse, vaiasse, molecadamente.

– Acho que vêm de Recife – respondeu-me, por fim.

Em tom de brincadeira e para forçá-lo a dizer de que estava falando, imaginei um hippie nordestino:

– Na certa, são cangaceiros de cabelos oxigenados.

Pareceu não ouvir ou não aceitar minha provocação. E, como se desse por encerrada a conversa e se tratasse de velho amigo nosso, frequentador habitual de nossa mesa, parente muito próximo, levantou-se e dirigiu-se ao corredor, sempre a ler. Tropicou na mesinha, o copo rolou e espatifou-se ao chão, enchendo a sala de água. Nem sequer olhou para o estrago e muito menos pediu desculpas.

Marina levou as mãos à cabeça e ajoelhou-se, irritada. Queria impedir que os cacos de vidro se estilhaçassem ainda mais e a água inundasse toda a sala. Conteve-se e, olhos em mim, como a pedir perdão por ter agido ao primeiro impulso, falou em ir buscar uma estopa à cozinha.

Seguimos os três pelo corredor, ele à frente, seguido dela.

– Aqui está a notícia por inteiro – gritou o visitante, já pisando a sala de jantar. – “Fundeará amanhã na enseada do Mucuripe o navio Nieuw Nederlandt, trazendo índios pernambucanos, cuja missão será a de preparar o terreno para a tomada do Siará pelos batavos.”

Não tive mais dúvidas: estávamos com um louco dentro de casa. E, pior, na cozinha, perto do fogo e das facas. Pensei em pedir socorro a Marina, mas ela voltara à sala e, ajoelhada junto aos cacos de vidro, cantarolava, mirando-se na água, que não esfriava. Talvez fosse possível esconder facas, garfos e fósforos, e convencer Manuel a publicar sua notícia caduca na esquina.

Odiei-me, chamei-me ingênuo, apiedei-me de minha piedade por aquele pobre diabo, aquele maníaco que transformava bulas em tratados de teologia. Amaldiçoei meu cristianismo tantas vezes negado da boca para fora. Desesperado, desejei a invasão imediata de minha terra por tropas estrangeiras. De preferência, holandesas. E seu primeiro ato de brutalidade atingisse Manuel.

Assim pensando, não ouvi quando me pediu água gelada. E, como não lhe atendesse, escancarou a porta da geladeira e despejou goela adentro todo o conteúdo de uma garrafa, em tempo de a engolir.

Só alertei com o vozeirão do louco, livro aberto no rumo das bananeiras do quintal, biquinho, a recitar: “Monsieur le major Garstman, ci-devant commandant de la milice à Siara...”

Fonte:
Nilto Maciel. Tempos de Mula Preta, contos. Secretaria da Cultura do Ceará: 1981.
Livro enviado pelo autor.