domingo, 1 de dezembro de 2019

Arthur de Azevedo (Por não se Entenderem)


    O Zeca Borges, pequeno lavrador do Bananal, tinha um irmão cônsul na Alemanha, e, quando soube que esse irmão chegara ao Rio de Janeiro, com licença, ficou satisfeitíssimo, e ansioso por abraçá-lo, tanto mais tendo recebido imediata comunicação de sua residência, na Rua do Catete.

    O Zeca meteu-se no trem, e na manhã seguinte estava no Hotel dos Estados, onde se demorou apenas o tempo necessário para tomar banho, mudar de roupa, fazer a barba e almoçar.

    Depois do almoço, lá se foi ele a pé, Rua da Lapa acima, em busca do irmão saudoso.

    Na casa indicada estava à janela uma senhora loura e bonita.

    - Querem ver, pensou ele, que o Chico se casou na Alemanha com a filha do tal arquiteto, de quem tanto me falava nas suas cartas? Não foi outra coisa! o patife não me mandou dizer nada!...

    O Zeca Borges tirou o chapéu à senhora, que lhe correspondeu com um sorriso amabilíssimo.

    - Naturalmente conhece-me de retrato, pensou ele - e entrou.

    Ela esperava-o de braços abertos no tope da escada, e deu-lhe muitos abraços e muitos beijos.

    O paulista não estranhou a natureza de tão excessivas manifestações, que aliás nada tinham de fraternais; apenas achou, de si para si, que na Alemanha o sentimento da família estava mais desenvolvido que no Brasil.

    - O Chico? - perguntou ele - não está?

    Ela teve um olhar estúpido.

    - A Senhora não é a mulher do Chico, meu mano?

    Ela respondeu, com muita dificuldade, que não falava português.

    - É justo, cunhada, é muito justo, mas como também eu não falo alemão, não haverá meio de nos entendermos! Que pena o Chico não estar em casa! Olhe, o melhor é voltar logo!

    E deu um passo para a porta; mas a mulher passou-lhe um braço em volta ao pescoço, e levou-o até à porta da alcova, que abriu com um gracioso pontapé, mostrando-lhe a cama.

    Tudo isso pareceu muito esquisito ao Zeca Borges, mas como este era um rapaz inteligente, o que o leitor sem dúvida já percebeu, disse consigo que ela supunha, e com razão, que ele precisasse descansar porque vinha de viagem e passara, talvez, a noite em claro.

    E mais se convenceu de que tal era a intenção da cunhada, quando esta lhe desatou o laço da gravata e desabotoou-lhe o paletó e o colete.

    - Não! Isto agora é demais! Eu mesmo dispo-me! Pode ir! Pode ir!...

    Ela saiu muito risonha, sempre depois de lhe dar mais um beijo e de lhe recomendar, por gestos, que a esperasse (o irmão, ao que ele supunha) e o nosso Zeca, mal se apanhou sozinho, entendeu que o melhor que tinha a fazer era despir-se, deitar-se e dormir.

    Mas não havia três minutos que estava deitado, refletindo sobre o extraordinário desenvolvimento do sentimento da família na sociedade alemã, quando a mulher voltou e se dirigiu saltitante para ele, tendo vestida apenas uma camisola de seda escandalosamente diáfana.

    Calcule-se o espanto do paulista, que deu um pulo como se visse o demônio e foi agachar-se a um canto da sala, gritando:

    - Não se aproxime, cunhada, não se aproxime!...

    Ela convenceu-se então de que tinha em casa um doido e começou a gritar.

    Acudiram outras mulheres, que felizmente falavam português, e tudo se esclareceu. O Zeca Borges tomara um algarismo por outro, entrara numa casa de mulheres julgando entrar em casa do irmão.

    Houve grande risota entre o mulherio, e o próprio Zeca foi obrigado a rir da sua ingenuidade, oferecendo uma nota de cinquenta mil-réis à húngara, que não era alemã, e ainda menos sua cunhada.

    Meia hora depois abraçavam-se os dois irmãos. O cônsul estava ainda solteiro.

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos vários.

Olivaldo Júnior (Sonetilhos e Versos Afins)


SOLITÁRIA FLOR
(Ceciliana)


No jardim sem fim,
entre sonho e dor,
vive a flor em mim:
solitária flor.

No jardim - sem mar -,
entre pesca e amor,
vive alguém sem par:
solitária flor.

Pois, por ser assim,
tão sozinha e triste,
lembra até Cecília,

a Meireles, sim:
flor que só existe
para seu jardim.

SONETILHO DE NATAL Nº 01

Olho as ruas de noitinha,
penso em tudo que passou,
tanta luta que era minha
e, num vento, ao céu voou...

Olho as ruas em dezembro,
penso em todos que não têm
o Natal do qual me lembro,
com os presentes, paz e bem...

Olho as praças, minha mãe,
e me deixo ao meu destino,
panetone com champanhe!...

Sonho, enxergo enfim meu pai,
todo aflito, um pai menino,
que, em seu rosto, a chuva cai...

SONETILHO DE NATAL Nº 02
(O Natal daquela avó)


Na cadeira já vazia,
paira um novo conhecido,
cuja vã fisionomia
lembra bem a do marido...

Na poltrona sem ninguém,
sobem netos e bisnetos,
quando o sino, o de Belém,
reverbera sobre os tetos...

O Natal daquela avó
sai da "toca" com setembro,
dia a dia, mesmo só...

Logo vem - cocoricó! -
num trenó, já em dezembro,
o Natal daquela avó!...

SONETILHO PARA OS MÚSICOS
(22 de novembro: Dia do Músico)

Porque a música tem cheiro,
tem sabor e tem textura,
vejo e escuto o povo inteiro
dar-se à música: ternura.

- Porque a música tem jeito
de contar o que é que eu sinto,
sinto a música em meu peito
ser verdade enquanto eu minto...

Porque a música tem lábios
que não beijam já faz tempo,
beijo a boca de "mil" sábios...

Porque é mero passatempo,
já não vivo mais sem rádio,
pois sou músico: contemplo.

AS MIL FLORES DOS TEUS OLHOS

Vou fingir que não te amo até você acreditar no meu amor
(Eu mesmo)


Manhã cedo, colho as flores,
as mil flores dos teus olhos,
e as desmancho pela estrada
dos que, cegos, são o amor.

Manhã cedo, colho as flores,
as mil flores dos teus olhos,
e as disponho frente à casa
dos que, nômades, são sós.

Manhã cedo, colho as flores
para o enterro desse amor,
que agoniza seus rancores...

Manhã cedo, colho as flores
para um dia em novos nós,
os mil nós, amor, teus olhos.

A FLOR QUE APANHAS
(19 de novembro: Dia Internacional do Homem)

Sem que existam mais pedradas,
nem piadas, nem maldade
contra um parça de mãos dadas
com outro cara, na Cidade...

Sem que existam mais muralhas
entre os homens e as mulheres,
nem "machões" e nem canalhas,
que mastigam bem-me-queres...

Sem que existam tantos "ismos"
para os homens que são deuses,
mas se encontram nos abismos...

Sem que existam mais campanhas
pra que os homens sejam "deuses",
honre, amigo, a flor que apanhas.

SER GENTIL É SER PRESENTE
(13 de novembro: Dia Mundial da Gentileza)

Ante um homem do futuro,
com seu ar de indiferente,
que declaro ao pé do muro:
- Ser gentil é ser presente.

Ser gentil é não ser duro
quando o próximo, silente,
se fechar, for tão escuro
quanto o caos adolescente.

- Ser gentil é ser humano,
ser Carlitos com o garoto,
que resiste ao desengano!...

- Ser gentil é ser o "hermano"
de quem traz o olhar tão roto,
mas, presente, tem um plano.

MINHA LÍNGUA EM SUA VIDA
05 de novembro: Dia Nacional da Língua Portuguesa
 
Para o "Anjo de Lisboa"

Minha língua em sua vida
não importa nem um pouco,
mas eu driblo a despedida,
marco um gol e acabo rouco...

Uno as línguas que há no mundo
numa língua condoreira,
que, ao morrer no mar profundo,
funda a língua brasileira...

Feito um santo do pau oco,
canto versos para um "anjo"
que me deixa quase louco...

Anjo luso, de asas rubras,
traga paz a este marmanjo
e esta língua redescubras!

NOSSA LÍNGUA PORTUGUESA
05 de novembro: Dia Nacional da Língua Portuguesa

Deixe que lhe beije os lábios,
que não apenas os sábios
devem render-se à grandeza
de uma língua portuguesa...

Que essa língua portuguesa
faz minguar toda a tristeza
na crescente de um abraço,
maré cheia ante o cansaço...

Pois, nos braços dessa língua,
deixo as línguas do Brasil
e de toda e qualquer terra

que se rendam a essa língua,
lusa, louca, em pleno ardil,
que Camões, eterno, encerra.

À ESPERA DO CUPIDO
(Para o Dia dos Namorados)

Meu Cupido bonachão,
na "Quadrilha" de Drummond,
faz partir meu coração,
para eu ver o que é que é bom.

Na quadrilha da paixão,
perco o passo, baixo o tom,
sem saber que a solidão
não tem gosto de bombom...

Junho a junho, à luz da lua,
namorados sabem bem
o que é ter alguém "na sua"...

Namorado de ninguém,
inda espero, ao frio, na rua,
do Cupido, meu alguém...

Fonte:
Versos enviados pelo poeta.

sábado, 30 de novembro de 2019

Varal de Trovas n. 129


Carolina Ramos (Ronoel)


(Conto inspirado na frase de uma garotinha: "Tenho três pais!")

Roberto olhou-se no espelho, sorriu satisfeito. O travesseiro enrolado na cintura, as barbas brancas e o trajo vermelho, faziam-no a imagem perfeita do Papai Noel que todos os anos enfeita o Natal de crianças de qualquer idade.

Beirava já os cinquenta anos e a cegonha não lhe batia à porta, apesar dos esforços conjugados, dele e da esposa, para atraí-la. Confirmada a desesperança, tomara a decisão de fazer felizes as crianças que não sonhavam mais com a visita do Bom Velhinho, cada vez que os sininhos do Natal tilintavam e a cidade luzia, transformada por completo, adornada de estrelas e brilhos especiais.

E assim acontecia há vários anos. Roberto, mal anunciado o Natal, escolhia uma noite próxima, e, travestido de Papai Noel, saco nas costas, e com os braços cheios de presentes, semeava felicidade em doses diminutas, mas sempre muito bem recebidas. Fazia o que podia! Voltava de braços leves e coração mais leve, ainda!

Foi numa dessas noites, que os dois se encontraram. O destino talvez tenha engendrado a trama, ao desviá-lo do costumeiro caminho. Roberto notou o pequeno vulto encolhido à soleira de uma porta qualquer. Soube-o acordado, pelo brilho dos olhos e pela inquietação do cãozinho de duas cores, sentinela, ao seu lado.

— O que você faz aqui? — indagou surpreso.

— Eu vou dormir... durmo sempre aqui.

— Você não tem casa? Não tem mãe.,. não tem pai?!

— Eu tinha dois pais. O Pai do Céu, que mora muito longe... e o outro pai que sumiu de casa e foi morar no Carandiru. Nunca mais ele me visitou e minha mãe não deixava que eu fosse visitar ele. Depois, ele morreu... e minha mãe logo morreu, também... aí, eu fiquei na rua...

O ''Bom Velhinho" interrompeu o diálogo, sem disfarçar a lágrima que deixou rolar. Após alguns minutos de silêncio, indagou com voz emocionada: — Você quer ir morar comigo, na minha casa?

— O menino indagou com voz sumida: — Quem é você?!

— A resposta não poderia ser outra: — Eu sou Papai Noel! Você não me conhece?!

Os olhos do garoto cresceram: — O meu terceiro pai?!

— Como?!

–  É que minha mãe, quando meu pai morreu, me contou que, além do Pai do Céu e do meu pai que morava no Carandiru, eu tinha um outro pai, que se chamava Noel… mas esse pai nunca apareceu por lá… nunca veio me ver! Então, é você? Você é o meu Papai Noel?!

— Sim, filho… eu sou o seu Papai Noel! E como é que você se chama?

— Eu sou Juninho, filho do Toninho Boa Vida. Eu gosto do nome do meu pai, mas minha mãe não queria que eu usasse esse nome, por isso, só me chamava de Juninho.

Roberto entendeu o drama que envolvia a origem daquele menino. Drama que não seria menor do que aquele que lhe reservaria o futuro, caso não encontrasse alguém que o amparasse. Depois de alguns instantes de silêncio, Roberto, decidido, estendeu a mão ao garoto, que não desgrudava dele, os olhos interessados.

— Muito bem, Juninho. Vamos fazer um acordo. De agora em diante, você vai ter que mudar de nome. Seu nome vai ser Ronoel: — Ro de Roberto e noel de Noel? Está bem?

Um largo sorriso, onde faltavam dois incisivos, sendo que um deles já vinha a caminho, iluminou a face do menino:

— Quer dizer que... agora vou ter quatro pais?!

– Ei! Para com isso, garoto! Eu e Papai Noel somos a mesma pessoa — seu pai... um só pai!

O garoto, ainda intrigado, não insistiu. Era pegar, ou largar!

Agarrou a chance, com unhas e dentes!

Foi assim que Roberto driblou a cegonha, e ganhou, enfim, o filho que tanto esperara!

Juninho Boa Vida, ganhou, de presente, o seu terceiro pai, virando Ronoel J. da Silva. O Jota, não queria dizer nada, mas fora mantido para lembrar o nome Juninho, tão do agrado do menino e seu único
anterior patrimônio.

A felicidade, que espiava de longe, ao ver tanta alegria, arrumou a trouxa e, complementando o ansiado presente de Natal, veio morar, definitivamente sob aquele teto que, finalmente, abrigava uma família completa: — pai, mãe, e filho... e na qual não faltava, sequer, aquele cãozinho de duas cores!

Fonte:
Carolina Ramos. Feliz Natal: contos natalinos. São Paulo/SP: EditorAção, 2015.
Livro enviado pela autora.

Luiz Damo (Trovas do Sul) V


A alegria enquanto vige
rege a nossa caminhada,
leva, traz e à luz dirige,
cada passo nessa estrada.

A cada instante um passinho
e hei de passar para o além,
tal um simples passarinho
todos passarão também.

A escassez será sentida
com maior intensidade,
quando nos faltar à vida:
parte da felicidade.

Água pura, imaculada,
deslizando sobre o rio,
se em represa, acumulada,
segue a rota num desvio.

As duras penas impostas
aos autores dos delitos,
podem servir de respostas
aos insanos e malditos.

Cada flor com seu matiz
e seu perfume também,
torna um momento feliz
ao ser dada para alguém.

Caminhando pela vida
encontramos pouca cor,
mesmo não sendo florida
por si só se torna flor.

Deus não depende da gente
para o seu papel cumprir,
nós dele, constantemente,
dependemos pra existir.

É no entardecer dos passos
que a desilusão floresce,
velho sonho em descompassos
na noite desaparece.

Entre a multidão que grita
por socorro contra o mal,
a força que tanto agita
pode ser sentimental,

Estreitar os nossos laços
na mais profunda amizade,
é dever, em cujos braços,
fica a paz, fraternidade.

Gesto simples e bonito
com forças medicinais,
é combater o mosquito,
porque dengue: nunca mais!

Mesmo que digamos não,
desde o começo até o fim,
Deus, na grande mansidão,
nunca retira o seu sim.

Muitas oportunidades
que o mundo nos oferece,
pelas peculiaridades
raramente alguém esquece.

Muitos intentos na vida
nunca nos deixam vazios,
amar sempre sem medida
é o maior dos desafios.

Na pista da paz, estreita,
a vida tem preferência,
se o fim é vê-la perfeita
o restante é consequência.

No asfalto que serpenteia
vastos campos e montanhas,
o homem passa e delineia,
suas fúlgidas façanhas.

No que tange à segurança
não podemos esquecer,
jovem, adulto ou criança,
devem cumprir seu dever.

Nos campos da dignidade
brilhe sempre a luz divina
transformando a humanidade
numa nova lamparina.

Numa fração de segundo
posso esta vida deixar,
deixando também no mundo
lições para quem ficar.

O cinamomo descansa
na temporada do frio,
porém refaz a esperança,
na primavera com brio.

Olho à noite a imensidão
e vejo estrelas brilhantes,
a quebrar a escuridão
com seus raios cintilantes.

Para combater o mal
use o bem por armamento
e o bastardo que é anormal
mudará o comportamento.

Para o sul caminha, quem
quer algo que lhe conforte,
mas pode seguir também,
se preferir para o norte.

Pertinaz, ferrenha, inglória,
nunca seja a nossa luta,
mas um grito para a história,
viva voz pra quem escuta.

Plantas cobertas de folhas
nunca sós, lá no cerrado,
quem tiver muitas escolhas
quase sempre escolhe errado.

Por mais valente que for
nesta luta sem fronteira,
saiba suportar a dor
embora tê-la não queira.

Quando a Guerra dos Farrapos
pelo Duque veio a paz,
as intrigas com seus trapos
foram deixadas pra trás.

Quando o mundo se organiza
pode ser em mutirão,
lastimar ninguém precisa
pois tem logo a solução.

Que a luz da fé vigorosa
seja nossa vanguardeira,
nem verdade mentirosa,
nem mentira verdadeira.

Se a plantação for bem feita
na lavoura da esperança,
faz germinar a colheita
dando frutos de bonança.

Se a saudade já foi tanta
pela distância gerada,
deixe a fruta dessa planta
nos seus ramos pendurada.

Senhor, que à terra descestes,
muita paz vinde nos dar,
conforme nos prometestes
no céu dai-nos um lugar,

Se no mundo, porventura,
o amor nunca for plantado,
numa nefasta aventura
poderá ser transformado.

Se nós formos persistentes
frutos vamos coletar,
graças àquelas sementes
que ontem ousamos plantar.

Solidão e sofrimento
se confundem nos efeitos,
feridas de um ferimento
abertas só nos 'eleitos'.

Tantas cantigas suaves
nas florestas entoadas,
seus intérpretes, as aves,
são cantoras renomadas.

Toda vez que o ser humano
a ilicitude comete,
mesmo sendo por engano
seu futuro compromete.

Tristes troncos insepultos,
talvez natureza morta,
resultado dos insultos
que nem o tempo conforta.

Vida e morte são dois lados:
muitos tentam afirmar.
Podem nem estar errados,
só na fé pra confirmar.
******************
Fonte:
Luiz Damo. A Trova Literária nas Páginas do Sul. Caxias do Sul/RS: Palotti, 2014.
Livro enviado pelo trovador.

António Lobo Antunes (A Consequência dos Semáforos)


Odeio os semáforos. Em primeiro lugar porque estão sempre vermelhos quando tenho pressa e verdes quando não tenho nenhuma, sem falar do amarelo que provoca em mim uma indecisão horrível: travo ou acelero? travo ou acelero? travo ou acelero? acelero, depois travo, volto a acelerar e ao travar de novo já me entrou uma furgoneta (*) pela porta, já se juntou um monte de gente na esperança de sangue, já um tipo de chave-inglesa na mão saiu da furgoneta a chamar-me: “Seu camelo”. Já a companhia de seguros me propõe calorosamente que a troque por uma rival qualquer, já não tenho carro por uma semana, já me ponho na borda do passeio a fazer sinais de náufrago aos táxis, já pago um dinheirão por cada viagem e ainda por cima tenho de aturar o pirilampo mágico e a Nossa Senhora de alumínio do tablier (*), o esqueleto de plástico pendurado do retrovisor, o autocolante da menina de cabelos compridos e chapéu ao lado do aviso "Não fume que sou asmático", proximidade que me leva a supor que os problemas respiratórios se acentuaram devido a alguma perfídia secreta da menina que não consigo perceber qual seja.

A segunda e principal razão que me leva a odiar os semáforos é porque de cada vez que paro me surgem no vidro da janela criaturas inverossímeis: vendedores de jornais, vendedores de pensos (*) rápidos, as senhoras virtuosas com uma caixa de metal ao peito que nos colam autoritariamente sobre o coração o caranguejo do Cancro, os matulões (*) da Liga dos Cegos João de Deus nas vizinhanças de um alto falante sobre uma caminhoneta com um espadalhão (*) novo em folha em cima, o sujeito digno a quem roubaram a carteira e que precisa de dinheiro para o comboio do Porto, o tuberculoso com o seu atestado comprovativo, toda a casta de aleijões (microcefálicos, macrocefálicos, coxos, marrecos, estrábicos divergentes e convergentes, bócios, braços mirrados, mãos com seis dedos, mãos sem dedo nenhum, mongolóides, dirigentes de partidos políticos, etc.), sem contar o grupo de Bombeiros Voluntários que necessita de uma ambulância, os finalistas de Coimbra, de capa e batina, que decidiram fazer uma viagem de fim de curso à Birmânia e a rapaziada da heroína que não conseguiu roubar nenhum leitor de cassetes nesse dia.

Resultado: no primeiro semáforo já não tenho trocos. No segundo não tenho casaco. No terceiro não tenho sapatos. No quinto estou nu. No sexto dei o Volkswagen. No sétimo aguardo que a luz passe a encarnado para assaltar por meu turno, de mistura com uma multidão de bombeiros, de estudantes, de drogados e de microcefálicos o primeiro automóvel que aparece. Em média mudo cinco vezes de vestimenta e de carro até chegar ao meu destino, e quando chego, ao volante de um camião TIR (*), a dançar numas calças enormes, os meus amigos queixam-se de eu não ser pontual.
_____________________
Glossário:
Camião TIR – veículo motorizado de grandes dimensões usado para transporte internacional de cargas e mercadorias.
Espadalhão – grande e bom automóvel.
Furgoneta – van.
Matulões – indivíduos corpulentos de modos abrutalhados, rapagões, estróinas.
Pensos – absorventes higiênicos.
Tablier – Avental.

Fonte:
António Lobo Antunes. Livro de crônicas. Lisboa: Dom Quixote, 1998.

sexta-feira, 29 de novembro de 2019

Isabel Furini (O Menino Trabalhador)


Fonte:
Literatura de Isabel Furini 

(http://isabelfurini.blogspot.com)

Carlos Drummond de Andrade (Caso de Conversa)


A cozinheira abriu a porta da área de serviço. De cartão de identidade e talão de recibos em punho, o desconhecido ofereceu-lhe uma chance extraordinária:

— As empregadas domésticas não são sindicalizadas, não descontam para apês, não têm o menor amparo. Se adoecem, azar delas: o jeito é morrer à míngua. Mas com trezentos cruzeiros a senhora terá direito a hospital, operação, medicamentos e tudo mais. Hospital de propriedade exclusiva de domésticas, um estouro.

— Só trezentos cruzeiros?

— Bem, até o dia 30. Mês que vem em diante, custa dez mil cruzeiros. Aproveite enquanto o dólar está a mil e cem e assine este formulário de inscrição.

— Assinar o quê? Não sou escritora que nem meu patrão, que vive assinando livro na livraria. Eu mexo é com colher.

— Estou vendo que a senhora é desconfiada, no que faz muito bem. Hoje em dia nem na gente mesmo a gente deve confiar. Mas isto é diferente. Estão aqui as plantas, fotografias da maquete, nomes da diretoria, pessoal de responsabilidade.

— Hospital na planta, moço? É demagogia.

— Daqui a pouco vai existir em Coqueiros, sim senhora, e quero só ver o seu vexame quando passar por lá.

— Então me procura mais tarde, que agora estou muito ocupada lavando panela.

— Quando não tiver mais lugar de sócio fundador privilegiado, né? Está assim de candidato. A senhora se arrisca a ficar como sócia cooperadora não privilegiada, sem direito a acompanhante que não paga diária.

— Estou somando? Quem me acompanha é Deus, que nunca pagou diária.

— Quer dizer que é solteira.

— Com a graça de Deus.

— Me desculpe se estou avançando o sinal, mas não acho graça de Deus nenhuma nisso.

— Está desculpado. Acontece que não é da sua repartição.

— Eu sei. Falei porque desejo o seu bem-estar.

— ’brigada.

— Não tem de quê. Sendo doméstica e solteira, são duas razões pra se defender, assinando este papelzinho.

— Eu, hem? Então o senhor pensa que ilude assim uma mineira de Manhuaçu?

— Uai, a senhorita é mineira? Também sou de lá.

— De lá daonde?

— De Ubá.

— Ara, mineiro querendo tapear mineiro. Estou te estranhando, criatura.

— Credo: tapear, eu? E logo uma distinta patrícia da Mata. Até parece que foi a luz da minha finada mãe que me guiou até aqui.

— Pra eu te passar trezentos cruzeiros?

— Quem falou em trezentos cruzeiros? Ela ia lá fazer uma coisa dessas? Me guiou para meu bem, está na cara. No meio de mil empregadas do estado do Rio, do Espírito Santo, do Nordeste, por que é que eu vim procurar logo uma moça de Manhuaçu, terra da família de minha santa mãe, que está lá no alto? Me diga, se é capaz? Pra vender esse troço de cota de hospital que uma garota como você não precisa nem vai precisar nunca, e sei lá até se funciona ou se fica no vou-te contar? Não, ela não me fazia isso. Foi pra te conhecer e fazer nossa felicidade, bem. Mas como é mesmo o teu nome, anjo de Deus no Leblon?

Menos uma cozinheira.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas.

Silmar Böhrer (Divagações Poéticas) 2


Agitam-se os sinos-dos-ventos
numa algazarra musical,
ou serão talvez lamentos
de um funéreo missal?
_________________

Alguém pois imaginou
se fôssemos todos iguais,
a apregoar nossos ais
e alguma ilusão que vazou?
______________________

Algo mais sensacional
do que meus sacros versos?
Só lá no longe abissal
mundo dos universos.
_________________________________

Desconfias dos meus versos
e eu também desconfio . . .
Serão de outros universos
os versos do meu desvario?
_______________

Estudioso da vida
busco saber
por que estou aqui.
Donde vim?
Pra onde vou?
A que vim?
A que vou?
Sou ou não sou?
Eu.
Enfim.
____________________

Haverá, oh Prometeus,
algo de mais sacro intento
que os versos levados ao vento
rumando às mansões de Zeus?
_________________

Não se preocupe
com as margens.
Cuide do rio
que corre em você.
________________________

O Tempo
é cavalo xucro
mascando a rédea
desembestado.
Ninguém segura.
___________________

Para onde se vão elas,
nuvens sempre passageiras,
têm sido talvez aquelas
dos meus versos mensageiras?
___________________

Pessoas pensam
que são reis ou rainhas,
coitadinhas,
reis ou rainhas
somos nós,
sem picuinhas.
_____________________________

Será mesmo uma terapia
esse murmúrio do mar,
ou será alguma alquimia
que me põe a levitar?
__________________
 
Tenho andado distante
dos meus versos tão queridos,
andarão eles inibidos,
serei eu o retirante?
_________________________

tudo somos
e nada somos
mais do que
de nós mesmos
gnomos

Fonte:
Versos enviados pelo poeta.

Nilto Maciel (As Contas de Setidon)


Ao aparecer à porta, Setidon sorria cinicamente, como o fazia sempre. Um olhar de relance apenas, o suficiente para perceber sua presença. Sua inútil e insignificante presença. Logo perceberia nossa indiferença por sua pessoa e se retiraria. Com seu eterno sorriso imotivado. Tal não ocorreu, no entanto. E pior: lançou na direção de nossos pés uma porção de continhas. Jogou e riu ainda mais. O terço, ou rosário (imaginamos que o estranho objeto fosse um desses instrumentos), deslizou mansamente pelo assoalho e quase parou ao pé da mesa. Tivemos a clara impressão de que iria enganchar-se ali. E a brincadeira de Setidon teria um fim sem graça.

Porém, as contas não pararam, foram adiante, umas pela esquerda do pé da mesa, outras pela direita. Logo, o rosário (ou o terço) se partira em dois pedaços. Talvez ao se chocar contra o pé da mesa. Talvez muito antes, noutra brincadeira de Setidon. Ora, nem a cruz havia mais.

Com certeza, Setidon queria fazer raiva a sua mãe, destruindo-lhe o instrumento das rezas repetidas. Ou então nos dar um bom susto, na sua ingenuidade de idiota.

Além de parecer dividido em duas partes e de lhe faltar o crucifixo, o rosário não parava de se mover, arrastava-se pelo chão como um réptil, dando voltas ao redor da mesa e de nós. E só então compreendemos a verdadeira natureza das contas. Não, não se tratava de um rosário de contas, de um objeto, mas de um ser vivo.

Apavorados, olhamos para Setidon. Seu sorriso parecia perverso no rosto de idiota. E se pôs a dar gargalhadas. Sim, ele sabia a verdade. Sabia também de nosso imenso pavor.

Depois de dançar a valsa macabra por toda a sala, o bicho de contas se aproximou de nossos pés. Instintivamente, os levantamos. Setidon só faltava morrer de rir. Quando cuidei, as contas subiam por uma das pernas de minha cadeira. Dei um grito e corri. E o mesmo fez Posesa.

Corríamos em círculo pela pequena sala, a tropeçar nos móveis, bater nas paredes, tontos. Atrás de nós corria o bicho. Parecia uma enorme aranha, feita de partículas redondas como as contas negras de um terço.

Passados alguns minutos, o animal parou a um canto, possivelmente cansado da correria. Aproveitamos o intervalo (ele voltaria a nos perseguir, com certeza) para exigir explicações de Setidon. Afinal, aquilo era um ser vivo ou apenas um objeto animado? Deixasse de brincadeiras de mau gosto. O idiota, no entanto, não parava de rir, postado à porta, e nada dizia.

Enquanto eu procurava dialogar com o inimigo, Posesa sentou-se à janela e, num átimo, desapareceu, para logo reaparecer, de vassoura em punho. Setidon ainda tentou impedir o gesto fatal de Posesa. De um só golpe, ela espalhou as contas por toda a sala.

Liberto do medo, apressei-me a colher uma das continhas. O bicho não mais existia, desmanchara-se.

Armada, Posesa postou-se frente a Setidon. Ousasse enfrentá-la, reunir as contas. Fosse homem. Ele recuou, os olhos fitos nas partículas negras espalhadas pelo chão.

De posse de uma continha, examinei-a com os cinco sentidos. Nada de vida, de matéria orgânica. Uma simples conta de rosário. E me pus a rir, a pisar as bolinhas negras, vitorioso. Setidon, então, se deu conta do desastre e caiu em lamentações: vocês mataram minhas contas, vocês mataram minhas continhas! Exasperei-me. Como podíamos matar um simples objeto, um amontoado de partículas sem vida? Criasse juízo, deixasse de idiotices.

Posesa varria as contas para fora da sala, despreocupada, a cantarolar uma canção antiga. Precisava limpar a casa. Ao varrê-las, no entanto, as reunia, inconsciente. E, ao reuni-las, dava-lhes de novo vida. Sim, juntas as continhas fugiram ao controle da vassoura e rapidamente deslizaram, como um réptil. “Mate o bicho”, gritei, mais uma vez apavorado, enquanto subia a uma cadeira.

Setidon voltou a sorrir e depois a gargalhar. E, não fosse a coragem de Posesa, seu riso idiota nos dominaria. Uma segunda vassourada espalhou pela sala as continhas.

Fonte:
Nilto Maciel. Tempos de Mula Preta, contos. Secretaria da Cultura do Ceará: 1981.
Livro enviado pelo autor.

Concurso de Trovas de Natal/RN 2019 (Resultado Final)


NACIONAL

VETERANOS


Tema: CONDUTA (Líricas/Filosóficas)

VENCEDORES

1º Lugar
José Almir Loures
Astolfo Dutra/MG


Ante as procelas, persista,
mas, seja nobre na luta;
o que brilha na conquista,
é a retidão da conduta.

2º Lugar
Josafá Sobreira da Silva
Rio de Janeiro/RJ


Entre o discurso e a conduta   
de quem discursa bonito,
o tolo apenas escuta,
o sábio enxerga o conflito.

3º Lugar
Cezar Augusto Defilippo
Astolfo Dutra/MG


Na ingratidão que és capaz
tua conduta me diz:
- não passo de um “tanto faz”
para alguém que eu tanto fiz...

4º Lugar
Olympio da Cruz Simões Coutinho
Belo Horizonte/MG


Por mais que insistas, mulher,
minha conduta eu não mudo;
tu finges que não me quer,
mas teu olhar me diz tudo.

5º Lugar
Mário Moura Marinho
Sorriso/MT


Quem tem conduta ilibada...
moral, ética e atitudes,
se é pobre por não ter nada,
é muito rico em virtudes.

MENÇÕES HONROSAS

1º Lugar
Luiz Vieira
Irati/PR


Quem suou toda a camisa
pelo esforço da labuta...
certamente não precisa
do atestado de conduta.

2º Lugar
Arlindo Tadeu Hagen
Juiz de Fora/MG


Pautando a minha conduta,
quando tudo me faltar,
que não me falte, na luta,
a coragem de lutar!

3º Lugar
Renata Paccola
São Paulo/SP


Quem fala menos que escuta
acaba acertando em cheio,
pois traz na própria conduta
respeito ao direito alheio!

4º Lugar
Nadir Nogueira Giovanelli
São José dos Campos/SP


Dificuldades eu passo,
mas enfrento grande luta;
com firmeza no que faço,
sem desvio de conduta! 

5º Lugar
Maria Madalena Ferreira
Magé/RJ


Toda vez que eu ajo errado,
toda a culpa em mim recai
por jamais ter me espelhado
na conduta de meu pai.

MENÇÕES ESPECIAIS

1º Lugar
Sandro Pereira Rebel
Niterói/RJ


Da vida, em tua conduta,
hás de sempre bem cuidar,
pois ela é qual pedra bruta
que tens para lapidar.

2º Lugar
Cezar Augusto Defilippo
Astolfo Dutra/MG


Serve de exemplo na história
com grandeza habitual,
quem ao fracasso ou vitória
mantém a conduta igual!

3º Lugar
Célia Terezinha Neves Vieira
Irati/PR


Pela conduta dos filhos
avaliamos os pais...
cujos preceitos são trilhos
que não se esquecem jamais.

4º Lugar
A. A. de Assis
Maringá/PR


Meu coração bate certo;
conduta exemplar – eu penso.
No entanto, se estás por perto,
perde o compasso e o bom senso.

5º Lugar
Josafá Sobreira da Silva
Rio de Janeiro/RJ


Tem gente de má conduta
ouvindo o que não convém.
O ouvido é canal de escuta,
mas é um filtro, também!

NACIONAL

NOVO TROVADOR

Tema: CONDUTA (Líricas/Filosóficas)
 

VENCEDORAS

1º Lugar
Caterina Balsano Gaioski
Irati/PR


Uma conduta ilibada,
em qualquer situação,
é sempre considerada
carta de apresentação.

2º Lugar
Henrique Eduardo
Maracanaú/CE


Praticando sempre o  bem
pondo  amor  em  cada  ação
é  conduta  de  quem  tem
sempre  Deus  no  coração!

3º Lugar
Jair Zabotini
Bauru/SP


A todo instante, na vida,
cada minuto é de luta,
mas a batalha aguerrida
é a virtude na conduta.

4º Lugar
Max Reis
Belém/PA
Maestro move a batuta
traçando notas ao vento.
Na pauta escreve a conduta
que aflora do sentimento.

5º Lugar
Caterina Balsano Gaioski
Irati/PR


Mesmo com dificuldade
vence na vida quem tem
trabalho com dignidade,
conduta certa também.

NACIONAL

VETERANOS


Tema: FIGURA (Humorística)

VENCEDORES

1º Lugar
A. A. de Assis
Maringá/PR


A bela figura tinha
de um ricaço a proteção.
Nasceu-lhe uma figurinha
que é cópia do figurão...

2º Lugar
Arlindo Tadeu Hagen
Juiz de Fora/MG


Figura é minha vizinha:
toda vez que à praia vem,
põe biquini de bolinha,
mas não dá bola a ninguém.

3º Lugar
Mário Moura Marinho
Sorriso/MT


Minha sogra, que figura!
Fez "lipo", dou nota mil...
Com a sobra da cintura
ampliou o seu quadril.

4º Lugar
Lucêmio Lopes da Anunciação
Canela/RS


Passava horas no banho,
numa mania sem cura;
o seu gemido era estranho
olhando aquela figura.

5º Lugar
Massilon Silva
Poço Redondo/SE


Se caíres do cavalo
não farás bela figura.
Todos dirão num estalo:
que grande cavalgadura!

MENÇÕES HONROSAS

1º Lugar
Antonio Colavite Filho
Santos/SP


Tirando este gesto amargo,
meu avô é uma figura...
Provoca um sorriso largo
quando tira a dentadura...

2º Lugar
José Paulo Corrêa de Souza
Juiz de Fora/MG


Caolho, um certo fedelho,
vendo a figura invertida,
quebrou a porta de espelho,
pensando que era a saída.

3º Lugar
Cláudio de Cápua
Santos/SP

Maldosa como ninguém,
boa figura na igreja,
acrescenta sempre "Amém"
quando aos outros mal deseja…

4º Lugar
Ercy Maria Marques de Faria
Bauru/SP


De porre, vendo a figura
no espelho do armário antigo,
diz: - Nunca vi criatura
tão parecida comigo!

5º Lugar
Relva do Egypto Rezende Silveira
Belo Horizonte/MG


Vendo a sogra, uma figura,
João vem, à esposa, indagar:
- Meu bem, em data futura,
irás, também, me assombrar?

MENÇÕES ESPECIAIS

1º Lugar
Paulo Marcelo Ribeiro de Araújo
Barra do Piraí/RJ


Uma figura colada,
num idoso cachaceiro,
ao relento na calçada,
dizia: "Velho Barreiro"!

2º Lugar
Albérico Nunes
Serra/ES


Depois de todo arrumado,
meu avô é uma figura!
Vai pra rua perfumado
esquecendo a dentadura.

3º Lugar
Antônio Francisco Pereira
Belo Horizonte/MG


Velho ator que foi galã
fez uma triste figura.
Quis beijar a antiga fã
e perdeu a dentadura.

4º Lugar
Josafá Sobreira da Silva
Rio de Janeiro/RJ


Para agradar o cliente,
o dentista - uma figura -
dava um copo de presente
pra botar a dentadura.

5º Lugar
Andrade Lima
São José do Egito/PE


No reino dos animais
a coruja é a figura
que sempre vence as demais
em concursos de "feiúra"!

NACIONAL

NOVO TROVADOR


Tema: FIGURA (Humorísticas)

VENCEDORES

1º Lugar
Henrique Eduardo
Maracanaú/CE


Da figura vivem rindo,
estão sempre perguntando:
está chorando e sorrindo,
ou está sorrindo e chorando?...

2º Lugar
Max Reis
Belém/PA


Não tinha papas na língua,
só blá-blá-blá de bobagem.
No fundo vivia à míngua...
Figura? Sim, de linguagem.

3º Lugar
Alberto Valença Lima
Recife/PE


Na mata é uma figura
a pular na perna só
leva todos à loucura
faz arte de fazer dó.

4º Lugar
Caterina Balsano Gaioski
Irati/PR


É figura carimbada
o "bebum" da minha rua,
quando não cai na calçada,
faz serenata pra lua.

5º Lugar
Max Reis
Belém/PA


Morreu mais um desenhista
e eu fui velar na clausura.
Sorri, mas sem dar na vista.
O corpo era uma figura.

MENÇÕES HONROSAS

1º Lugar
Sílvio Romero Ribeiro Tavares
Campinas/SP


Na tela, figura linda,
paixão à primeira vista.
Ao vivo, não sei ainda
que apito que toca o artista!

2º Lugar
Henrique Eduardo
Maracanaú/CE


Dizem ser verdade pura:
Zeca – mosquito com asma –,
por ser tão feia a figura,
assusta qualquer fantasma!

3º Lugar
Maria Dulce Esteves da Carvalheira
Recife/PE


A figura dum anão
é motivo de galhofa
sentado no calçadão,
bebum, cuspindo farofa.

4º Lugar
Cícero Matos de Castro
São Gonçalo/RJ


Namorando essa princesa,
à boa figura indaga.
Minha vela está acesa,
e tão cedo não se apaga.

5º Lugar
Adilson Roberto Gonçalves
Campinas/SP


Não veja minha figura
como algo muito ruim
é simples caricatura
do tal gordo que há em mim.

MENÇÕES ESPECIAIS

1º Lugar
Alfredina Conceição Pascholatti
Londrina/PR


Tinha tudo pra ganhar
o concurso por postura,
mas só conseguiu mostrar
a sua hilária figura.

2º Lugar
Murillo Lino
São Paulo/SP


Decidiu seguir, então,
os prazeres dessa vida
só não ficou com Adão
que é figura repetida.

3º Lugar
Fábio Siqueira do Amaral
Bom Jesus Dos Perdões/SP


Conheço gente sem nexo!
Mas assim, igual à Ernesta,
triste figura do sexo,
nem “pra” capeta se presta!

4º Lugar
Artemiza Correia
Ocara/CE


Nem usa desfaçatez,
troca, vende, toca fogo,
a figura descortês
é cavalo até no jogo!

5º Lugar
Adilson Roberto Gonçalves
Campinas/SP


Que figura este moleque
trazendo "mercadorias"
na verdade quer que eu peque
ou vá em cana por dias.

ESTADUAL (Rio Grande do Norte)
 
VETERANOS
Tema: NOVIÇO(A) (Líricas/Filosóficas)

VENCEDORES


1º Lugar
Aline Ribeiro
Natal


Sou noviça, sou teimosa,
vivo a plantar esperança…
O tempo me fez idosa,
a vida me faz criança.

2º Lugar
Aline Ribeiro
Natal


Sem ver, do mundo, a maldade,
a cilada me aferrolha,
por ser madura na idade
e ser noviça na escolha.

3º Lugar
Mara Melinni Garcia
Caicó


Eu renovo, a cada dia,
cada esperança esquecida,
porque sou noviço e guia
dos sonhos da minha vida.

4º Lugar
Professor Garcia
Caicó


A noviça entre os seus véus,
confessa os pecados seus;
e, entrega o destino aos céus,
abraçada às mãos de Deus!

5º Lugar
Marcos Antônio Campos
Natal


Eu sou um rapaz no viço
dos belos versos de Safo,
na igreja virei noviço
nas estrofes desabafo.

MENÇÕES HONROSAS

1º Lugar
Professor Garcia
Caicó


A noviça, em noite calma,
Deus, ungindo os votos seus,
entrega seus dons e a alma
às bênçãos das mãos de Deus!

2º Lugar
Joamir Medeiros
Natal


Ante os tropeços prossigo
firme em minha caminhada...
Sou noviço, mas consigo
superar qualquer jornada.

3º Lugar
Francisco Gabriel
Natal


Driblando os meus desenganos,
ao meu pesar dou sumiço,
vencendo as dores dos anos,
tendo a verve de noviço.

4º Lugar
Joamir Medeiros
Natal


Noviço!... Planto a esperança,
planto amor, sigo sonhando...
Pois quem sonha, tudo alcança:
-  Como é bom sonhar trovando!!!

5º Lugar
Francisco Gabriel
Natal


O Noviço do além-mar,
Anchieta, o grande Pastor,
veio ao Brasil ensinar,
plantar sementes de amor.

MENÇÕES ESPECIAIS

1º Lugar
Rozanni Garcia
Caicó


Quando a paz sorri faceira,
e te mostra um novo ninho...
não te prendas por besteira,
sê noviço em teu caminho.

2º Lugar
Marcos Antônio Campos
Natal


Meu pai tinha um compromisso,
advindo da puberdade,
quando, ainda, era noviço
expressar sempre a verdade.

3º Lugar
Marciano Batista de Medeiros
Parnamirim


Um noviço, disse a madre:
- No mundo é triste o viver -
pois se um cresce e vira padre,
outro vive a padecer...

4º Lugar
Plácido Ferreira do Amaral Júnior
Caicó


O velho monge ajoelha
no altar de quem é devoto;
nele, um noviço se espelha
e faz, com fé, o seu voto.

5º Lugar
Valdemar Juvino de Araújo
Serra Negra do Norte


Buscando o primeiro emprego
vai a uma empresa o noviço,
sem grana, já sem sossego
ele consegue um serviço!

ESTADUAL (Rio Grande do Norte)

Tema: PINTO (Humorísticas)

VENCEDORAS

1º Lugar

Francisco Gabriel
Natal


Zé cortou “Pinto” do nome
por sentir-se incomodado,
e agora tem o cognome
de “Zé do Pinto Cortado”.

2º Lugar
Marciano Batista de Medeiros
Parnamirim


O pinto com lero-lero
foi namorar a pintinha,
mas ela falou: - Não quero,
só quando eu virar galinha!

3º Lugar
Francisco Gabriel
Natal


Posei de galo… não minto.
Mas, hoje, quase gagá,
me sinto igualzinho a um pinto,
fugindo de um carcará.

MENÇÕES HONROSAS

1º Lugar
Fabiano de Cristo Magalhães Wanderley
Natal


Um garoto, quase um pinto,
quis tirar onda de galo,
mas, o Pai, usando o cinto,
acabou com seu embalo.

2º Lugar
Professor Garcia
Caicó


É engraçado, o que se deu,
com o pinto no pé da porta:
o pinto quase morreu
quando viu a “pinta” morta!

3º Lugar
Antônio Rodrigues Neto
Natal


Um pintor muito perfeito
dizia sempre ao seu povo:
Eu só pinto satisfeito
quando pinto um pinto novo.

4º Lugar
Professor Garcia
Caicó


Já crescidinha e faminta,
à espreita de um novo grito...
O pinto chamava a pinta,
e a pinta escondia o “pito”.

MENÇÕES ESPECIAIS

1º Lugar
Plácido Ferreira do Amaral Júnior
Caicó


Um pinto verde surgiu
no galinheiro da granja
e o papagaio sumiu,
pois se não... seria canja!

2º Lugar
Marcos Antônio Campos
Natal


Pinto de uma perna só
tentou ciscar e caiu,
a galinha sentiu dó
e respondeu seu piu piu.

3º Lugar
Plácido Ferreira do Amaral Júnior
Caicó


Eu já sei porque Seu Pinto
consultou o urologista:
ironia de um instinto
de também ser masoquista...

4º Lugar
Aline Ribeiro
Natal

 
Pinto fraco e pequenino,
finda morrendo de fome.
Vai comer, fica mofino,
cheira o xerém, mas não come.

Fonte:
Resultado enviado por Alexandre Magno Oliveira de Andrade Reis

quinta-feira, 28 de novembro de 2019

Varal de Trovas n. 128


Arthur de Azevedo (O 15 e o 17)


(IMPRESSÃO DA LEITURA DE UM CONTO FRANCÊS)

- Com efeito, Francelina! Que tempo levaste para ires ali à venda! Querias lá ficar?.

- Não, senhora; é porque estas casas novas parecem-se todas umas com as outras, e por isso, em vez de entrar no 15, entrei no 17. Varei por ali adentro até a cozinha!

- Que estás dizendo?

- A verdade, patroa. De agora em diante não entro em casa sem olhar para o número da porta!

- Depois te habituarás. Isso aconteceu porque estás na casa há oito dias apenas. Bom. Compraste o que tinhas de comprar?

- Sim, senhora.

- Não falta mais nada?

- Não, senhora.

- Então, até logo. Fecha a porta da rua e trata de preparar o jantar. As cinco horas estarei de volta.

E D. Isabel, que já estava pronta para sair, passou para o corredor, desceu a escada e desapareceu.

A Francelina fechou a porta da rua, conforme a patroa lhe recomendara, e foi para a cozinha.

Não havia passado meia hora, quando a mulata (a Francelina era mulata) ouviu bater levemente à porta da rua. Correu à janela da sala de visitas para ver quem era, e deu com uma senhora idosa, bastante idosa, pequenina, curvada, esperando que lhe abrissem a porta.

A criada não a conhecia, mas pensou consigo que não haveria inconveniente em abrir a porta a uma velha, e por isso fez-a entrar.

- Ora, graças! Julguei que me deixassem ao sol durante uma hora! Dá cá a mão, rapariga! Ajuda-me a subir a escada! Bem sabes que já não tenho olhos!

- Que deseja a senhora? - perguntou Francelina quando chegaram à sala de visitas.

- Escusas de falar baixo! Bem sabes que já não tenho também ouvidos! Nem olhos, nem ouvidos, nem pernas! E por isso leva-me à cadeira de balanço. Onde está ela?... Já mudou de lugar! Que mania a de minha sobrinha! Está sempre com os móveis daqui para ali.

A Francelina levou a velhota para a cadeira de balanço, onde a instalou comodamente.

- Ora, espera! Parece-me que eu não a conheço! Você é nova na casa?

- Sim, senhora! Estou aqui há oito dias.

- Grite!

- Estou aqui há oito dias.

- Grite mais alto!

- Estou aqui há oito dias,

- Há oito dias? Então não me conhece, porque há um mês que eu cá não venho. Sou tia da sua patroa. Onde está ela?

- Saiu.

- Hem?

- Saiu.

- Mais alto!

- Saiu.

- Saiu? Também aquilo não faz senão saracotear! Então agora que veio morar na cidade! Olha, ó... como te chamas?

- Francelina.

- Hem?

- Francelina.

- Olha, Marcelina, vai buscar uma xícara de café bem quente, com uma gotinha de conhaque, mas antes disso descalça-me estas botinas, e traz-me os chinelos da sua patroa, e também um dos travesseiros da cama. Enquanto ela não vem, vou passar pelo sono.

A Francelina fez tudo quanto ordenou a velha, e deixou-a adormecida na sala, com os pés e a cabeça metidos nos chinelos e no travesseiro de D. Isabel.

Quando esta chegou da rua, às cinco horas da tarde, a criada disse-lhe:

A tia da patroa está dormindo lá na sala. A minha tia? Mas eu não tenho tia!

- Como não tem tia?

E a Francelina contou-lhe tudo quanto se passara.

- Ora essa! - exclamou D. Isabel, e correu para a sala, acompanhada pela criada.

A velha dormia profundamente.

- Mas eu não conheço, não sei quem é esta senhora! Que quer isto dizer?... Que mistério será este?... Vou acordá-la.

E D. Isabel começou a sacudir a velha, que não acordava.

A Francelina teve uma frase estúpida:

- Sacuda com força, patroa, porque ela é surda!

D. Isabel sacudiu com mais força, e nada!.

- Meu Deus! Esta rigidez!... Esta rigidez!...

E a dona da casa soltou um grito estridente.

- Que é, patroa?

- Esta velha está morta!

- Morta?!

Efetivamente, a pobre velhinha, durante o sono, sem se sentir, passara desta para melhor.

Imagine-se a aflição das duas mulheres diante daquele cadáver misterioso; mas D. Isabel, que era inteligente, pensou:

- Quem sabe se a velha não entrou no 15 pensando que era o 17?

E pelo muro do terraço chamou a vizinha:

- Ó vizinha? Vizinha?...

- Que é?

- A senhora não tem uma tia velha, surda e catacega*?

- Tenho, sim, senhora.

D. Isabel respirou.

- Pois mande buscá-la, porque ela está na minha casa. Entrou aqui por engano.

- Ela que venha; não é preciso mandar buscá-la.

- Isso é, porque está... doente... Adoeceu aqui...

Meia hora depois a pobre velha era removida.... para o Necrotério.
_____________________
Glossário:
Catacega - Diz-se de pessoa com dificuldades para ver nitidamente, que tem problemas de vista.
 
Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos Vários.

Gislaine Canales (Glosas Diversas) 12


JÁ NEM SEI…
Glosando Benedito Camargo Madeira

MOTE:
Viver assim… te adorando..
já nem sei o que fazer…
- Se é melhor viver te amando;
ou te deixar e… sofrer!


GLOSA:
Viver assim… te adorando..
é sempre tudo que eu quis,
é gostoso estar gostando,
pois te amando, sou feliz!

Mas quando aperta a saudade,
já nem sei o que fazer...
se sou feliz de verdade,
ou se te amar, faz sofrer!

Fico, então, me questionando,
responde, meu coração:
- Se é melhor viver te amando,
ou viver sem emoção?

Não sei se sigo a sonhar,
não sei que devo fazer,
se continuar a te amar,
ou te deixar e… sofrer!
______________

VERSOS DE AMOR
Glosando Cidoca da Silva Velho

MOTE:

Quando de mim te aproximas
com semblante sonhador,
minha alma flutua em rimas,
compondo versos de amor!


GLOSA:
Quando de mim te aproximas,
dispara o meu coração
e, vejo em tudo, obras primas
no meu mundo de emoção!

É lindo quando apareces
com semblante sonhador,
teus olhos me lembram preces,
preces de sonho e de cor!

Com teu jeitinho, me mimas,
trazes contigo a alegria!
Minha alma flutua em rimas,
num mar de pura poesia!

Tornas feliz meu viver,
por não conhecer a dor,
eu passo a vida a escrever,
compondo versos de amor!
__________________

ENCONTRO
Glosando Clênio Borges

MOTE:

Num encontro repentino,
sem promessa, nem espera,
tu foste o meu desatino
e nosso amor foi quimera…


GLOSA:
Num encontro repentino,
nós ficamos frente à frente;
nem sei bem como defino
esse encontro diferente!

Foi um encontro bonito,
sem promessa, nem espera,
em momentos de infinito
que lembrar, sempre, eu quisera.

Ouvi sons de violino,
enlouqueci de paixão,
tu foste o meu desatino
e a minha desilusão!

Foi assim o nosso amor;
que fosse real ,quem dera,
sobrou ilusão e dor,
e nosso amor foi quimera...
__________________________________

UM AMIGO
Glosando Clenir Neves Ribeiro

MOTE:

Amigo é o que na verdade
vendo fraco o seu irmão,
mostra a força da amizade,
e firme lhe estende a mão!


GLOSA:
Amigo é o que na verdade
fica sempre junto a nós
pois nossa emoção, invade!
E nunca nos deixa a sós!

Um amigo verdadeiro,
vendo fraco o seu irmão,
com um amor feiticeiro
faz feliz seu coração!

Com enorme lealdade,
ajuda, consola e anima,
mostra a força da amizade,
com sua força de estima!

Para amigo, não há hora,
em qualquer situação,
manda os problemas embora,
e firme lhe estende a mão!
____________________________________

NOSSOS ERROS
Glosando Clevane Pessoa

MOTE:

Nossos erros nos apontam
novas trilhas nos caminhos
e os acertos só despontam
se afastarmos os espinhos.


GLOSA:
Nossos erros nos apontam
a direção a tomar,
e muitas vezes, nos contam
o porquê do nosso errar!

Nós devemos descobrir
novas trilhas nos caminhos
para poder ir e vir,
evitando os descaminhos!

Quebra-cabeças se montam,
desafiando a razão
e os acertos só despontam
se ouvirmos o coração!

Seremos muito felizes,
não ficaremos sozinhos,
veremos novos matizes,
se afastarmos os espinhos.

Fonte:
Gislaine Canales. Glosas Virtuais de Trovas XXXIV. In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. http://www.portalcen.org. 2007.

Contos e Lendas do Mundo (Nação Tupinambá: Maire-Monan e os Três Dilúvios)


Os tupinambás creem que houve, nos primórdios do tempo, um ser chamado Monan. Segundo alguns etnógrafos, ele podia não ser exatamente um deus, mas aquilo que se convencionou chamar de um “herói civilizador”.

Deus ou não, o fato é que Monan criou os céus e a Terra, e também os animais. Ele viveu entre os homens, num clima de cordialidade e harmonia, até o dia em que eles deixaram de ser justos e bons. Então, Monan investiu-se de um furor divino e mandou um dilúvio de fogo sobre a Terra.

Até ali a Terra tinha sido um lugar plano. Depois do fogo, a superfície do planeta tornou-se enrugada como um papel queimado, cheia de saliências e sulcos que os homens, mais adiante, chamariam de montanhas e abismos.

Desse apocalipse indígena sobreviveu um único homem, Irin-magé, que foi morar no céu. Ali, em vez de conformar-se com o papel de favorito dos céus, ele preferiu converter-se em defensor obstinado da humanidade, conseguindo, após muitas súplicas, amolecer o coração de Monan.

Segundo Irin-magé, a terra não poderia ficar do jeito que estava, arrasada e sem habitantes.

– Está bem, repovoarei aquele lugar amaldiçoado! – disse Monan, afinal.

A história, como vemos, é tão velha quanto o mundo: um ser superior cria uma raça e logo depois a extermina, tomando, porém, o cuidado de poupar um ou mais exemplares dela, a fim de recomeçar tudo outra vez.

E foi exatamente o que aconteceu: Monan mandou um dilúvio à Terra para apagar o fogo (aqui o dilúvio é reparador) e a tornou novamente habitável, autorizando o seu repovoamento.

Irin-magé foi encarregado de repovoar a Terra com o auxílio de uma mulher criada especialmente para isto, e desta união surgiu outro personagem mítico fundamental da mitologia tupinambá: Maire-monan.

Esse Maire-monan tinha poderes semelhantes aos do primeiro Monan, e foi graças a isto que pôde criar uma série de outros seres – os animais –, espalhando-os depois sobre a Terra.

Apesar de ser uma espécie de monge e gostar de viver longe das pessoas, ele estava sempre cercado por uma corte de admiradores e de pedintes. Ele também tinha o dom de se metamorfosear em criança. Quando o tempo estava muito seco e as colheitas tornavam-se escassas, bastava dar umas palmadas na criança-mágica e a chuva voltava a descer copiosamente dos céus. Além disso, Maire-monan fez muitas outras coisas úteis para a humanidade, ensinando-lhe o plantio da mandioca e de outros alimentos, além de autorizar o uso do fogo, que até então estava oculto nas espáduas da preguiça.

Um dia, porém, a humanidade começou a murmurar.

– Este Maire-monan é um feiticeiro! – dizia o cochicho intenso das ocas. – Assim como criou vegetais e animais, esse bruxo há de criar monstros e Tupã sabe o que mais!

Então, certo dia, os homens decidiram aprontar uma armadilha para esse novo semideus. Maire-monan foi convidado para uma festa, na qual lhe foram feitos três desafios.

– Bela maneira de um anfitrião receber um convidado! – disse Mairemonan, desconfiado.

– É simples, na verdade – disse o chefe dos conspiradores. – Você só terá de transpor, sem queimar-se, estas três fogueiras. Para um ser como você, isso deve ser muito fácil!

Instigado pelos desafiantes, e talvez um pouco por sua própria vaidade, Maire-monan acabou aceitando o desafio.

– Muito bem, vamos a isso! – disse ele, querendo pôr logo um fim à comédia.

Maire-monan passou incólume pela primeira fogueira, mas na segunda a coisa foi diferente: tão logo pisou nela, grandes labaredas o envolveram. Diante dos olhos de todos os índios, Maire-monan foi consumido pelas chamas, e sua cabeça explodiu. Os estilhaços do seu cérebro subiram aos céus, dando origem aos raios e aos trovões que são o principal atributo de Tupã, o deus tonante dos tupinambás que os jesuítas, ao chegarem ao Brasil, converteram por conta própria no Deus das sagradas escrituras.

Desses raios e trovões originou-se um segundo dilúvio, desta vez arrasador. No fim de tudo, porém, as nuvens se desfizeram e por detrás delas surgiu, brilhando, uma estrela resplandecente, que era tudo quanto restara do corpo de Maire-monan, ascendido aos céus.
* * *
Depois que o mundo se recompôs de mais um cataclismo, o tempo passou e vieram à Terra dois descendentes de Maire-monan: eles eram filhos de um certo Sommay, e se chamavam Tamendonare e Ariconte.

Como normalmente acontece nas lendas e na vida real, a rivalidade cedo se estabeleceu entre os dois irmãos, e não tardou para que a fogueira da discórdia acirrasse os ânimos na tribo onde viviam.

Tamendonare era bonzinho e pacífico, pai de família exemplar, enquanto Ariconte era amante da guerra e tinha o coração cheio de inveja. Seu sonho era reduzir todos os índios, inclusive seu irmão, à condição de escravos. Depois de diversos incidentes, aconteceu um dia de Ariconte invadir a choça de seu irmão e lançar sobre o chão um troféu de guerra.

Tamendonare podia ser bom, mas sua bondade não ia ao extremo de suportar uma desfeita dessas. Erguendo-se, o irmão afrontado golpeou o chão com o pé e logo começou a brotar da rachadura um fino veio de água.

Ao ver aquela risquinha inofensiva de água brotar do solo, Ariconte pôs-se a rir debochadamente.

Acontece que a risquinha rapidamente converteu-se num jorro d’água, e num instante o chão sob os pés dos dois, bem como os de toda a tribo, rachou-se como a casca de um ovo, deixando subir à tona um verdadeiro mar impetuoso.

Aterrorizado, o irmão perverso correu com sua esposa até um jenipapeiro, e ambos começaram a escalá-lo como dois macacos. Tamendonare fez o mesmo e, depois de tomar a esposa pela mão, subiu com ela numa pindoba (uma espécie de coqueiro).

E assim permaneceram os dois casais, cada qual trepado no topo da sua árvore, enquanto as águas cobriam pela terceira vez o mundo – ou, pelo menos, a aldeia deles.

Quando as águas baixaram, os dois casais desceram à Terra e repovoaram outra vez o mundo. De Tamendonare se originou a tribo dos tupinambás, e de Ariconte brotaram os Temininó.

Fonte:
A. S. Franchini. As 100 melhores lendas do folclore brasileiro.

quarta-feira, 27 de novembro de 2019

Varal de Trovas n. 127


Humberto de Campos (A Noiva do Donato)


- Foi um caso espantoso, único, inacreditável, Sr, conselheiro, esse de que fui testemunha, e que eu lhe conto, embora o senhor já o tenha lido no "D. Quixote".

E puxando o relógio, para ver se ainda havia tempo, o ilustre advogado santista começou, em estilo rápido, vivaz, nervoso, pictural, a referir-me a horrível história, sob o alpendre da Central, à hora, quase, do noturno de luxo:

- "Era no sítio do "Pau d'Alho", em Vila Bela, onde se haviam casado, naquele dia, o Donato e a Rosinha. Um despotismo de gente, como o senhor não imagina. A Vila, as cercanias, a redondeza toda, no "Pau d'Alho". Até veio gente de Ubatuba! Calcule!"

Uma olhadela ao relógio, e continuou, telegráfico:

"Violeiro: o Chico Messias. Dança-se "baile" no terreiro. Chico Messias tira da toeira* uma coriza lacrimosa, de valsa sem motivo."

E acrescentou, num parênteses:

"O caiçara diverte-se sem sorrir. Diverte-se por obrigação. Sua alegria é uma hipótese triste, socavada de ancilóstomos*."

E reatou, descritivo, unindo o gesto à palavra, dando voltas no meio do alpendre:

- "Damas e cavalheiros vão e vem, e tornam a ir, e tornam a vir, e dão-se as mãos, e balanceiam, e remoinham, e desnalgam-se*, numa choréa que tem passos de lanceiros, atitudes de Pedowa e desengonços tupinambás."

Outra interrupção, para um surto histórico:

"D. Pedro Fernandes Sardinha, quando foi do seu caso com os Aimorés, devia ter assistido a paulovices muito semelhantes."

E tornando, com uma soberba vivacidade de descrição:

"Ela, a noiva, dentro do vestidinho clássico, de manzuk branco, o filó pendente da mão. Tem olhos baixos e constrangidos de protagonista. Ele, traz a fatiota* de elasticotine, que tem reflexos envernizados e o suplemento da gravata escura, de tricô frouxo, escorrida pelo "adão"*.

E descreve a festa:

- "Ambos assistem sem apetite o apetite dos convidados. Há um mastigo odioso de bocados grandes, e o cair do bocado, goela abaixo, com um rumor de rã assustada em pântano adormecido. Comem! E comem!

Nova consulta ao relógio, e a descrição despenhou-se, para ganhar tempo:

"Hora da sobremesa. O Inocêncio, professor publico, vai falar! Recuo de cadeiras; engolir de últimos bocados; bigodes engordurados que se chupam. - Atenção, senhores! O Inocêncio vai falar."

Como se estivesse na festa, eu próprio me empertigo, e o ilustre viajante repete, assombroso:

"Vai falar o Inocêncio. E começa tan, tan, tan, e meus senhores, e o himeneu, e a família, e o tugúrio*, e mais isto, e mais aquilo e... e.... e o Inocêncio perde o fio, e embrulha, enrola, engole, mastiga, encaroça, embatuca. Estende-se um vágado* coletivo, pesado como um paralelepípedo. O Inocêncio, que empunha o copo, guina a boreste gorgolões de cerveja."

Noutro parênteses, o meu amigo sentencia, outra vez:

- "Há situações que obstruem a vida como caroços de jabuticaba!"

E engatando, de novo, com os olhos no trem, desabou, história abaixo:

- "Coitado do Inocêncio! Felizmente, o Dito Pintassilgo, que lhe estava ao lado, encontrou uma saída. Levanta-se, sorri, braceja, e, alto e sonoramente:

- "Viva a noiva!

"O viva desonerou aquele constrangimento, como um laxativo. Um alívio geral.

- "Viva!...

"E o Dito prosseguiu, vitorioso:

- "Viva os óio da noiva!

- "Vivôooo!

- "Viva os dente biturado da noiva!

- "Viva!

- "Viva o pescoço da noiva!

- "Viva!

- "Viva os peito da noiva!

- "Viiiiva!

Tomando fôlego, o narrador continuou, elétrico:

- "Os vivas desciam, conselheiro, assustadoramente, noiva abaixo. O noivo, o Donato, piscou, por três vezes, os olhos, apreensivo. De repente, remexe-se, mergulha a mão pela cinta, toma da garrucha trochada*, coloca-a à sua frente, na mesa, e, com aquele sorriso seu, desdentado, e a vozinha gutural, oitava acima:

- "Oie, seus convidado: não é por nada: mas eu queria apreveni, que os "viva" que passá do imbigo da noiva pra baixo... eu sapeco!"

Último apito. Um pulo do meu amigo, um barulho de ferragens, um resfolegar fatigado de máquinas. E o trem desapareceu.
_____________________________
Glossário:
Adão -
(alquimia) pó medicinal considerado a quintessência do universo; adamo.
Desnalgam-se – remexem exageradamente as nádegas ou os quadris, especialmente ao dançar; rebolar-se.
Fatiota – traje; vestuário.
Socavada de ancilóstomos – escavada de vermes.
Toeira – corda de viola.
Trochada – diz-se de cano que foi torcido para ficar mais forte.
Tugúrio – abrigo; refúgio; casebre.
Vágado – vertigem.
(Dicionário Houaiss)

Fonte:
Humberto de Campos. Contos.

Luiz Gonzaga da Silva (Trova e Cidadania) 6 - Dor e Sofrimento


Parece que o homem é um ser destinado à dor e ao sofrimento. Não há vida sem sofrimento. Compreender isso é um passo no sentido de criarmos meios para minimizar o
destino humano. Somos jogados no mundo. A nossa primeira experiência é de desamparo. E é a partir desta experiência subjetiva que devemos nos superar e nos responsabilizar pelo nosso caminhar sobre a terra. O poeta pede mais compreensão para a dor e o sofrimento subjetivos.

Por que é que todo mundo
acha-se o mais sofredor,
se o sofrimento é profundo
e ninguém afere a dor?
Marcos Medeiros - RN

Quem me dera alguém pudesse
entender meu sentimento:
seria a trova uma prece
para o fim do sofrimento.
Neiva Fernandes - RJ

Não se mede facilmente
um sofrimento profundo,
porquanto o drama da gente
é sempre o maior do mundo!
Eduardo A. O. Toledo - MG

Para esse sofrimento subjetivo, eis um bom conselho:

Acenda a luz da esperança
ante a angústia de um momento.
Com revolta não se alcança
o cessar de um sofrimento.
Maria Antonieta B. Dutra - RN

Certamente não é possível fugir desse desamparo primordial, do nosso sofrimento subjetivo, mas ao menos devemos nos esforçar para evitar o sofrimento perpetrado pela ambição, pela desonestidade e pelas injustiças sociais,

Neste mundo, os desonestos
recebem palmas e flores
e o trabalhador, os restos,
o sofrimento e as dores.
Gonzaga da Silva - RN

Encenados, ao relento,
vejo com muita emoção
os "atos" de sofrimento
nos teatros do sertão!
Ademar Macedo - RN

Embora devamos ser proativos frente ao sofrimento causado pela maldade humana, o trovador tem razão quando expressa a triste realidade de um mundo cada vez mais cruel.

Num mundo sem soluções,
nestes tempos inclementes,
não vivem populações...
existem sobreviventes!
Sebas Sundfeld - SP


Fonte:
Luiz Gonzaga da Silva (org.). Trova e Cidadania. Natal/RN, abril de 2019.
Livro enviado pelo trovador.

Luiz Poeta (Escama e Pele)


Olhava a lâmpada. A cabeça apoiada sobre o travesseiro, recostada, o cigarro entre os dedos, a caneta indecisa, riscando o ar, paralítica.

No peito, um vácuo inexplicável, espécie de vazio inexprimível por gesto ou palavra; na cabeça, porção de coisas ora amorfas, vez nebulosas; noutras, vivas, móveis, sufocantes.

Na janela, mudez soturna, nudez sem medo das estrelas pálidas, trêmulas, fetos sozinhos no líquido amniótico de metileno, fundo, profuso, profundo, profanável somente por olhos maus, insensíveis, inumanos.

O vento assobiava silêncios e um inflexível veleiro de neve percorria-o, tornando fluvial cada ramificação de artéria, capilar ou veia, penetrando-lhe como um punhal, estalactite, adaga de gelo no mar sanguíneo das emoções que o inundavam.

Repentinamente, o sono e o sonho. Era um planeta longínquo, tonalizado de verde, dourado e azul. Na areia lívida das margens dos rios, o rastro, a pegada, o vestígio, o resquício da imagem que varou as águas no rumo da cachoeira... ele, fitando a escuma nas pedras escorregadias, aparando a eterna, misteriosa e mansa pressa das vertentes.

Num átimo, o salto de um impetuoso peixe assustando o seu sonâmbulo enlevo... Do peixe... a pele... o corpo, a humana forma de mulher que lhe cingiu o pescoço num toque mágico de braços longos, dedos finos, pernas infinitas... o tépido ventre na umidade do seu sexo... depois, os beijos de lábios que se percorriam mansos, macios, velozes, provocando a lágrima de felicidade de tão puros na sua essência e tão passional na sua prazerosa e sinestésica ocorrência.,.

Todavia, no mesmo torpor que saltara da alma do peixe e da ânsia do homem, os movimentos esfumaram-se lentos, esvoaçantes, voláteis, num surrealismo que se metamorfoseava em abstratas imagens... ele, desesperado, tentando conter a imagem que se diluía nebulosamente etílicas em suas mãos... numa loucura de ansiar um todo, percebeu-se fundamente solitário e triste, num abandono de grãos minúsculos que o vento frio da manhã arrebatou-lhe gelidamente, vindo talvez da nascente daquele planalto de picos solitários furando a eterna, insensível e metilênica pele do céu.

Despertou no quarto: a tela dos cavalos selvagens galopando eternamente em sua direção, a chama do cigarro ardendo-lhe nos dactilos e a caneta caída, inerte, sem perspectiva de poesia ou de palavras aleatórias confessando segredos inconfessáveis... o etéreo punhal eólico das nevascas rasgando-lhe as artérias nervosas como aquele rio onírico despejando corpos abstratos no espumante precipício de lágrima e de sangue...

Fitou o teto novamente. Uma aranha tecelã bordava silêncios no canto entre duas paredes e um inseto vulgar e inexpressivo bebia-lhe a expectativa bem próximo, pousado, despreocupadamente num lavar de patas aleatório ao perigo de viver num mundo limitado por territórios e revezes, como o dele. Aturdido ainda, tentou resgatar o êxtase produzido pelo sublime pesadelo, mas a metálica luz do sol provocava-lhe a vida existente em cada uma de suas sonolentas retinas. Dobrou caprichosamente o cobertor, guardou-o no armário junto com o travesseiro molhado pelo suor das ansiedades, alisou afetuosamente as dobras do lençol, cerrou a janela sobre os raios matinais tagarelando brilhos dourados. Enxugou uma lágrima das tantas que ainda choraria e saiu no rumo de uma vaga perspectiva desenhada pela trajetória dos sentimentos e cerrou cuidadosamente a porta.

Lembrava-a agora. Recordava o sonho, o rio, os grãos, o peixe tornado ela, neve na pele de sua solidão, fogo na lágrima descendo sinuosa, limpa à luz da lua espraiada sobre o espelho das poças, olho fundo, sugado pela insônia, mirando, pedindo, esperando, implorando o desespero do contato nervoso das peles.

Caminhava. Ruas entrelaçavam-se unidas pelo abandono, trançadas sob seus letárgicos passos, o coração batendo mais alto que o próprio rebuliço das calçadas repletas de transeuntes alheios ao seu silencioso abandono. Sem que se desse, estava na antiga casa. Parou. Percorreu-a com o olhar súplice de uma única presença. Arriscou um primeiro passo na direção do aparentemente imutável. Atravessou nostalgicamente o misterioso quintal verde-negro, protegido apenas por um portão de ferro, enferrujado como suas esperanças que rangiam desesperos, afastando, no caminhar, as ramagens pendentes dos velhos troncos de árvores seculares, fragilizadas pelas intempéries climáticas.

Num galope, o mesmo cão veio até ele receptivo. Era a realidade que latia exibindo um riso que se exprimia mais pelo abanar de uma cauda do que pela saliva pulando dos caninos. Um afago no animal em festa, uma melancólica alegria, e o sapato estalando esperanças, esmagando lentamente o tempo, no ritmo de cada passada embalada pelo fúnebre compasso do improvável...

Afastou as cortinas de mais uma lágrima, mirando a remota arquitetura da sua vida tão carente de companhia: a mesma janela do sobrado, o mesmo galho seco sobre a varanda... a mesma gaiola suspensa e o canário piando, buscando os acordes de um trinado sem perspectiva de um canto ideal.

Subiu. As solas dos sapatos tocavam cautelosamente o assoalho de cada um dos degraus de madeira. Contou-os um a um; eram doze... o mesmo número do dia em que se ausentou para uma nova vida que se tomou tão sem perspectiva.

Abriu a porta do quarto. Tropeçou na própria insegurança.

- Quem está aí? – Ela mirava-o com seriedade. O semblante percorrendo-o com perplexidade e mansidão.

Os olhos dele eram o limite entre o medo e a vontade. Um riso seminu afastou lentamente os lençóis da timidez. Com ele, uma minúscula gota de pranto parava no trampolim da emoção... mas... para onde saltar? O vago precipício da incerteza estava dentro dele... precisava escolher...

Na dúvida, veio-lhe o abismo passional. Suas lágrimas diluíram-se lânguidas nos olhos dela. Lábios e línguas não conseguiram conter a aflita volúpia mandibular, cujos dentes foram se tomando afetuosas adagas sangrando a víscera anímica de duas prazerosas bocas que se fundiam na epidérmica umidade dos desejos.

O peixe tornado mulher saltou novamente do rio e mergulhou com ele nas aquáticas turbulências da passionalidade... julgou que despertaria... que o sonho fugiria... e agarrou-se nele com força e afeto... a miragem foi desvanecendo gradativa, sonolenta... cósmica...

- Beije-me de novo! - ele suplicou.

Na manhã seguinte, no quarto onde dormira na casa dos parentes mais próximos, o grito da empregada, o desmaio da mãe, o vitupério do pai e... o bilhete: Papai e mamãe. Amo vocês. Suas bênçãos. Um dia volto. Quem sabe...

A motocicleta violentou a nebulenta mudez da madrugada. Ela presa nele, a mochila nas costas; o amor vibrando forte, superando o ronco do motor. Escama e pele voando no rastro da liberdade.

Sob a ponte, a cachoeira continuaria eternizando um espumante beijo de amor na epidérmica solenidade das pedras escorregadias.

Fonte:
Luiz Gilberto de Barros (Luiz Poeta). Canção de Ninar Estátuas. 1.ed. Ilhéus/BA: Mondrongo, 2014.
Livro entregue pelo autor.