segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

Nilto Maciel (O Julgamento de Rui)


Quando ela chegar em sua carruagem de névoa, estarei pronto para a partida. Terei arrumado as malas, tomado banho, trocado a roupa. Tudo estará em ordem: móveis, papéis, semoventes. Abraçarei parentes e amigos, e, sereno, caminharei até a sege. O cocheiro, impaciente, olhará para trás. À janelinha, direi adeuses. E, talvez chorando, partirei.

         Sim, logo chegará minha vez de partir. Antes, porém, quero deixar anotadas algumas recordações. Não para o público, que não sou escritor, mas para meia dúzia de parentes.

         Não falarei de minha infância nem de minha mocidade. Não é aquele passado tão remoto o que me interessa e atormenta. Principiarei do meio do caminho. Depois de juiz, casado e pai.

         Minha intenção é recordar Cândida, seu tempo. Talvez para esquecer sua tragédia, seu fim. No entanto, não poderei falar dela, sem lembrar-lhe a morte.

         Encontraram o corpo de minha filha a boiar num poço do rio das Lajes. Havia ferimentos na cabeça, nos braços, nas pernas. E rasgões no vestido.

         O achamento do corpo se deu graças a uns meninos. Costumavam tomar banho naquela parte do rio. Pulavam de cima das pedras.

         Os exames médico-legais não foram conclusivos. Cândida poderia ter escorregado nas pedras e se afogado. No entanto, ela sabia nadar. Além disso, nunca tomava banho em rio. Talvez nem conhecesse aquele rio.

         Falaram em suicídio. Padre Divino repeliu de pronto tal hipótese. Fez-nos ameaça: não daria sepultamento cristão à morta, caso tivesse havido suicídio.

         Não, Cândida não tinha razões para se matar. Todos falavam de sua beleza. Não aquela beleza cinematográfica. Talvez beleza angelical. Nenhum problema para atormentar-se, quer de saúde, quer financeiro.

         Havia ainda a hipótese de homicídio. Quem faria isso? A menos que um louco a tivesse encontrado às margens do rio.

         Ainda hoje guardo alguma suspeita de Rui de Alencar. Não há, porém, nenhuma prova a incriminá-lo. Não foi sequer indiciado, apesar de seu comportamento esquisito.

         Diziam nutrir ódio a Cândida. Por não dar ela a menor importância a ele. Segundo outros, sentia ciúmes insuportáveis. A própria Cândida dizia, no entanto, ter ele inveja dela. Desde os tempos de menina. De suas tranças balouçantes, de seus pulinhos na calçada, de seu riso exuberante.

         Aos 15 anos se elegeu Rainha do Partido Azul, nas festas da padroeira da cidade. A mocinha do Partido Vermelho, ou Encarnado, quase morreu de indignação. Teve médico à cabeceira. E reza prolongada dos pais. Retornou à vida dias depois, completamente sem cor.

         Para comemorar o feito, realizou-se outra festa no Clube Esportivo de Palma. Algumas brigas entre os rapazes. Todos disputavam o amor da bela filha do juiz.

         A beleza de Cândida chamou a atenção de homens e mulheres desde seus primeiros anos. “Parece um anjo do céu”, diziam. Referiam-se às figuras pintadas na cúpula da igreja matriz.

         A comparação se tornou mais crível no dia da primeira comunhão dela. Trajada de anjo, com asinhas e vestido longo, encantou meia cidade. A outra metade não saiu de casa, não foi ver a cerimônia.

         Nesse dia Rui sofreu como nunca. A beleza da menina o martirizava. E esse martírio se desenvolveu ao longo do tempo. Quanto mais Cândida crescia, mais Rui se atormentava.

         Embora não tenham sido sequer namorados um do outro, Rui vivia espionando Cândida. Certa feita, ao flagrá-la em beijos com outro rapaz, aprontou um memorável escândalo. Toda a cidade comentou o espetáculo. Ora, circo só aparecia de ano em ano, e ninguém se afoitava a sair da linha. A não ser durante bebedeiras. Mas bêbados se repetiam, e ninguém mais os achava escandalosos. Mesmo quando caíam ou urinavam nas ruas.

         A fúria do rapaz parecia incontrolável. Sentia-se ultrajado. Sobretudo porque chegou a seu conhecimento que Cândida o chamara de besta. E o insulto teria sido pronunciado em local público, diante de várias pessoas, a plenos pulmões.

         Se o “besta” tivesse sido circunstancial, em razão do beijo, Rui talvez tivesse esquecido logo o insulto. Porém, Cândida o considerava besta por muitos outros motivos e momentos. Como por ele se vangloriar de ser advogado, orador, poeta, professor e futuro vereador. O homem mais importante de Palma. Um petulante!

         Se ela apenas visse defeitos nele – presunção, por exemplo –, Rui ainda poderia ter esperanças de enamorado. Na verdade, ele significava um defeito ou os defeitos. Em consequência, ela não gostava nada dele. Nunca aceitou os galanteios dele. Se pudesse, nem sequer o veria. Quando para ele olhava, seu olhar refletia desdém. Como o espelho do punhal à luz do sol reflete luz. E cega, fere, mata.

         Ó amor-próprio ferido! Pois quantos sonetos ele rabiscou, burilou, soletrou para ela!

         Um deles, de uma pieguice imensurável, ela rasgou, queimou, jogou ao lixo. E mandou recado: faria o mesmo a tantos quantos ele enviasse.

***

         Até no cabaré de Ana Souto se soube da beleza de Cândida. Para desespero de Rui, as raparigas constantemente traziam à baila o nome dela e sua formosura. Chamavam-na de “tua namorada”, “tua amada”, quando com ele falavam. Ele se zangava. Não queria o nome “dela” ali, naquele ambiente de pecado, devassidão, sujeira.

         Desesperado, chegou a culpá-la de tão constrangedora situação. Se fosse mais recatada, menos mostrada, exibida, espevitada, seu nome não estaria na boca de todos. Até das raparigas.

         E para que escrever versos e publicá-los no jornal? O cúmulo da vaidade! De fato, Cândida havia rabiscado uns versinhos, coisa bem ingênua e sem nenhuma poesia. Umas quadras cheias de flores e amores. Dei-lhes retoques, impus métrica e as mandei para a folha do comendador Jeremias.

         Não saíram maus versos. Como os de minha juventude. Sim, aos vinte anos fui poeta. Não sei o destino de tantas odes e cantigas. O tempo, o casamento, a magistradura, tudo se encarregou de sepultá-los.

         Talvez Rui não tivesse gostado da concorrência. Poeta só ele em Palma.

         Motivos não faltaram, pois, para que Rui desejasse a morte de Cândida. O mais grave deles talvez tenha sido a suposta platônica paixão dela pelo tenente Benévolo. Alguém deve ter cochichado horrores aos ouvidos dele. Sim, aquilo cheirava a sem-vergonhice. Pois o delegado tinha esposa e filhos, além de ser muito mais velho que ela.

         E uma agravante – ele, poeta, ser trocado por um soldado!

         Por tudo isso, não me convenço da inocência de Rui. Sobretudo por ter sido visto, naquela tarde, nas proximidades do rio das Lajes.

         Regressava ao cento da cidade, a pé, quando testemunhas o avistaram. Parecia nervoso, agitado, além de ter as roupas molhadas e sujas de lama.      E aquela gota de sangue coagulado no rosto? Só pode ter sido provocado por unha. Porém, Rui negou tudo. Não gostava de rios, mal sabendo nadar. E naquele dia, bem longe do rio, escorregara numa poça de lama, daí os leves ferimentos e a roupa suja.

         Testemunhas afirmam ter visto o rapaz nas proximidades do local onde o corpo de Cândida foi encontrado. No entanto, o delegado chamou-as de mentirosas. Ameaçou-as de prisão e tortura. Como costumava agir. Os gritos dos presos assustavam as crianças à noite.

         Benévolo não escondia sua simpatia pela pena de morte. Antecedida de prolongada tortura. E não foram poucos os presos mortos nas celas da Delegacia. As conclusões eram sempre duas: suicídio e assassinato (cometido por outro preso). E logo o “outro preso” também amanhecia morto.

         Como Cândida conseguiu gostar de tão feio carniceiro? Águeda me falava desse amor, dessa paixão. A menina sonhava com o monstro. Em seus sonhos ele virava cavaleiro andante, salvador de donzelas, amante fiel, herói insuperável.

         Casado, pai de quatro ou cinco meninos, Benévolo vivia no cabaré de Ana Souto. A pretexto de fazer ronda, não perdia oportunidade de se deixar arrastar para a cama das raparigas.

         Conquistador bem sucedido, não desprezava também as empregadas domésticas e as moças mais pobres.

                                                        ***

         Cinco foram as paixões de Rui.

         A primeira aconteceu aos oito aninhos de Cândida. Brancas pernas roliças, longos cabelos castanhos, peraltice pelas calçadas, parecia a dona do país das maravilhas. Lá fora, no entanto, reinava o terror. O governo cassava deputados, feito gato atrás de ratos. Rui, sempre solteiro, ria dos ratos, perseguia Cândida com olhos de gato. E tinha 34 anos de solidão.

         Alguns anos depois, mataram Lamarca. Minha filha fazia 13 anos. Atolado na dor, Rui andava pelas ruas de Palma feito sonâmbulo. Acontecia sua segunda paixão. As pernas de Cândida estavam mais roliças e tentadoras, seus cabelos lembravam o vento, seus olhos pareciam cisternas profundas.

         Mais uma vez Cândida não tomou conhecimento de nada. Nenhuma paixão a visitava. Nenhum terror a martirizava. Tudo nela devia ser cor-de-rosa.

         A terceira paixão de Rui se deu em 73. Acabava de entrar na casa dos quarenta, um ou outro cabelo branco a surgir na vasta cabeleira. Seus versos falavam então de adolescência, flor desabrochada.

         Mais dois anos, e uma quarta paixão feria seu já gasto coração. No dia da morte de Herzog, bebeu em demasia e terminou numa das camas de Ana Souto. Começou louvando a morte de todos os comunistas e acabou chorando aos pés de uma rapariga, que confundiu com Cândida.

         E veio a última das paixões. Minha filha chegava perto dos vinte anos e havia concluído o curso de normalista. Parecia mais bela que nunca. Rui e outros a chamavam de deusa, ninfa, graça. Nas grandes cidades, multidões se manifestavam nas ruas, pedindo liberdade. Rui se irritava com aquilo, e mais seus cabelos embranqueciam.

         Dias depois o governo fechou o Congresso. E Cândida apareceu morta.

***

          Menina-moça, Cândida já ouvia falarem de seu casamento com Rui. As amiguinhas brincavam: já nasceu com casamento pedido. Pois toda  Palma sabia da paixão de Rui por minha filha. E o tempo passando, ele envelhecendo, enchendo-se de rugas e cabelos brancos.

         Se se referiam à sua solteirice prolongada, ele se zangava. Quando encontrasse a moça ideal, anunciaria o noivado a todos. Daria uma grande festa no Clube. Publicaria notícia no jornal do comendador.

         Por que não se casava logo? Por que não se casara ainda, se havia tantas moças solteiras em Palma?

         Como se acusado de grave falta, ele se defendia com unhas e dentes. Não ia casar-se com qualquer uma. Casamento para ele só com amor. Mas tivessem paciência: um dia a mulher de seus sonhos surgiria.

         Às escondidas riam dele. Pelo jeito casaria com a morte.

                                                        ***

         Houve quem duvidasse da virilidade de Rui. Exatamente por sua solteirice crônica. Porém, ele frequentava com assiduidade o cabaré de Ana Souto. Não toda noite, é certo, mas pelo menos uma vez por semana. Nunca aos sábados e domingos. Detestava disputar as mulheres. E a companhia de bêbados.

         Rui e Ana mantinham uma espécie de pacto. Ele não dava dinheiro às raparigas com quem se deitava. Em troca, se obrigava a dormir na cama dela uma vez por mês.

         Conheciam-se desde a primeira mocidade dela. Nesse tempo já navegava Ana na barca dos cinquenta anos. E já administrava, com sabedoria de vestal, sua casa repleta de mocinhas.

         A fama do cabaré de Ana se mantinha desde os primeiros tempos. Lá viviam as mais novas e bonitas raparigas de Palma. O plantel se renovava constantemente. Coitada de quem adoecesse, engravidasse, abortasse. Nenhuma chegava aos trinta anos. Casa respeitada e frequentada pelos mais importantes homens da região. Desconhecido de Ana não punha os pés no batente de sua casa. Só se conduzido e apresentado por algum amigo.

         Assim, nunca o cabaré foi palco de qualquer briga. Além do mais, a polícia garantia a ordem na casa. Benévolo e seus soldados davam proteção a Ana e suas “meninas”. Em troca, não pagavam nada. Bebiam à vontade, dançavam e podiam escolher a mulher que lhes apetecesse.

         Sempre bem vestidas, pintadas, perfumadas, as raparigas de Ana gozavam da mais alta admiração de todos. Seus nomes andavam de boca em boca e até nos versos de Rui.

         Também Ana frequentava a pena do poeta, como no poema intitulado “Caftina”, que apesar de versos assim e das noitadas no cabaré, havia quem afirmasse nunca ter Rui tocado uma só das mulheres de Ana. Outros se faziam menos cruéis. Ia para a cama, sim, mas após muita insistência. E, para não sair falado, mostrava-se o mais competente dos machos. Capaz de deixar cansada a mais calejada rapariga.

         Finda a pândega, corria para casa, feito rato assustado. Como se tivesse enfrentado o mais temível dos gatos. De tão angustiado, não conseguia dormir. E só faltava supliciar-se ante as imagens dos santos. Rezava infinitas orações, ajoelhado, quase a chorar, coração a explodir de dor. E se banhava, uma, duas, três vezes. Cobria-se de espuma, gastava sabonetes e sabões, a água gelada a lavar-lhe o corpo pecador.

         Nos dias seguintes, transfigurado, quase branco, cheirando a santo, lia seguidamente a Bíblia e vidas de santos e mártires cristãos. Rezava a mais não poder, assistia a todas as missas, confessava-se a cada madrugada, engolia hóstias atrás de hóstias. E ninguém via nisso exageros ou loucura. Padre Divino mostrava um riso contínuo, como o de algumas imagens da Igreja.

         Na sequência do delírio, Rui cantava intermináveis hinos, em casa, na rua, na igreja. E não só cantava, escrevia-os. E não só hinos, como salmos e versos religiosos da mais variada métrica.

         Passados dias, semanas, meses nessa prática de asceta, Ana Souto enviava-lhe embaixadas. Aparecesse, fosse dizer umas poesias, alegrar a casa. Ele inventava doenças, viagens, afazeres muitos e inadiáveis. A Prefeitura, onde trabalhava, não lhe dava um dia de folga. Vida de cachorro!

         Na verdade, nem ia trabalhar. Finda a fase de beato, desterrava-se em sítios de parentes ou continuava em prisão domiciliar. Quando ressurgia, gordo e cheio de novidades, apresentava uma das duas explicações: viajara ou estivera doente. Preferia, no entanto, as viagens, os lugares mais exóticos do mundo. Na terra dos anões, por exemplo...

         Apesar disso, nunca o prefeito o censurava. No máximo, esperava uma explicação razoável. E o rol das doenças de Rui não parava de crescer. A primeira fora caxumba. Por causa dela quase não pôde comemorar a morte de Stalin.

         Simples amanuense, passava os dias datilografando ofícios e carimbando documentos. Emprego arranjado pelo comendador Jeremias. Para pagar votos conseguidos pelo pai de Rui. Além do mais, o “menino” tinha estudos, quase chegara a padre. Recém saído do seminário.

         Com o tempo, novas tarefas lhe foram impostas. De amanuense passou a assessor. Dos ofícios chegou aos discursos, aos relatórios. E tinha estilo – diziam.

         Não demorou, tornou-se intelectual, poeta. Deixou crescerem bigode e cabeleira, arranjou roupas mais decentes, passou a carregar debaixo do braço sempre um livro diferente.

         Para completar a figura, deu para beber. Poeta de respeito devia viver na boêmia. Logo, porém, mudou de ideia. Os mais velhos não gostavam de bebarrões. E passou a beber com moderação, quase nada. Para não cair aos pés dos postes e não causar escândalos. No entanto, bastava uma cerveja e se punha a discursar. Sempre em defesa da moral burguesa e cristã, do ideário político do comendador, do lindo pendão da esperança...

         A afeição de Jeremias por Rui levou-o a abrir as portas de seu jornal ao jovem intelectual. E mensalmente A verdade trazia versos, crônicas e artigos do ex-seminarista.

         Ler tornou-se um vício para Rui. Aos vinte anos já havia decorado meia Bíblia, duzentos sonetos parnasianos, uma infinidade de salmos e orações. Preso nessa babel, às vezes rezava apaixonados versos de Castro Alves. Outras vezes, bêbado, misturava o Pai-Nosso a versos de Casemiro de Abreu.

         Gostava também Rui de jornais e revistas. Mesmo velhos. A morte de Stalin frequentou suas conversas até os anos 70. Sempre calcado na notícia que leu num jornal de 1953.

         Sem jornal, revista ou livro, não ia à latrina. Sem eles, nem sequer conseguia defecar. Prisão-de-ventre durante dias. Em compensação, um salmo longo lhe proporcionava a melhor das evacuações. Chegava a dar louvores a Deus, aos berros.

         Outra mania de Rui: narrar num caderno seus sonhos noturnos. Espécie de diário do inconsciente. Acordava, corria à escrivaninha e se punha a escrever. Se ocorria esquecer trechos do sonho, inventava-os.

         Alguns dos sonhos se repetiam sempre. Como aquele em que Cândida, ainda menina, fugia para o campo e se perdia no mato.

         Nada irritava tanto Rui, afora esquecer seus sonhos, do que sentir quebrada sua rotina. Como não sair de casa após o jantar. Ou deitar-se por volta das 23 horas. Quando bebia ou visitava o cabaré de Ana – exceções em suas noites – sentia-se transtornado. Toda a rotina dos dias subsequentes se quebrava: não conseguia ler na latrina, adoecia, deixava de ir à Prefeitura...

         Rotineiramente jantava à hora do ângelus, perfumava-se, trocava de roupa e saía. Às segundas ia direto a casas onde houvesse moças. Sentados à calçada, lia ou recitava versos seus ou de outros. Sempre poesias líricas. Às terças procurava amigos mais velhos, para falar de política. Às quartas jogava bilhar. Às quintas percorria as ruas da cidade, a passo lento. Às sextas visitava parentes. Aos sábados vestia o terno de linho branco e sumia. Uns diziam que ia namorar, porém nunca se disse o nome da moça. Outros falavam de encantamento – Rui virava lobisomem. Aos domingos se dedicava a Deus: participava de terços, novenas etc. Se nada disso acontecesse em Palma, circundava a igreja matriz até alta noite.

***

         Rui sempre foi de poucas amizades. Mesmo quando mais jovem. Mesmo ao tempo de colégio. Contavam-se nos dedos. E os anos se encarregaram de afastar dele aqueles poucos amigos. Um morreu, outro foi embora de Palma, fulano constituiu família, e assim por diante.

         Súbito sentiu-se só. Os pais mortos, e sumidos os irmãos e amigos de infância e adolescência. Ninguém com quem conversar. A não ser os desconhecidos ou antigos desafetos.

         Apegou-se, então, a pessoas como o comendador Jeremias, o padre Divino e eu. Pessoas socialmente importantes: o chefe político, o chefe religioso, o chefe da lei.

         Nem sei como tudo começou. Talvez num julgamento de réu sem advogado. Haviam me falado de certa eloquência, de alguma leitura, de umas crônicas do jovem José de Deus, então rebatizado para Rui de Alencar. Em conversa com o comendador, confirmaram-se os predicados do rapaz.

         Vieram as primeiras audiências. Nomeado defensor de réus pobres, mostrou algumas aptidões. Porém, desconhecia leis e doutrinas jurídicas. Mesmo assim, nossa rabulice não podia exigir nada além do palavreado de Rui.

         Por uns tempos chamaram-no de Doutor Rui. E muitos até acreditavam tratar-se do famoso orador baiano. Outros, embasbacados, diziam: parece um padre. E realmente suas defesas orais lembravam sermões.

         Rui quase chegou a padre. Pela vontade de D. Maria das Dores, o filho seria um apóstolo de Cristo. Não por promessa, apesar de muito carola. O rapazinho, porém, cedo demonstrou falta de vocação para o sacerdócio. Aquela vida de recluso não o cativava. E, mal lhe nasciam pelos na cara, regressou ao lar materno. Voltou sombrio, solene e sábio. Falava com desembaraço e escrevia como ninguém na cidade. Até mesmo poesia. E logo o chamaram de poeta. Às vezes de padrezinho.

         Nos quatro anos passados junto aos jesuítas, leu quase tudo, exceto romances realistas e naturalistas. E escreveu os primeiros versos. Chegou a receber elogios dos padres pelo poema “Desembarque na Normandia”. E contava apenas 12 anos de idade.

         Às vésperas de deixar o seminário, soube do assassinato de Gandhi. E perpetrou um soneto, cujo primeiro quarteto dizia:

         O grande Gandhi – luminoso guia
         da paz na Terra – que se foi agora,
         criou no Ganges longo a utopia
         que o Ocidente nega, enquanto adora.


         Não podendo estudar junto às normalistas e não querendo transferir-se para cidade maior, onde pudesse cursar o científico ou o clássico, abandonou os estudos. Não, porém, as letras, os versos. E logo todos o chamavam de poeta. Inclusive os comerciantes. E era como se o chamassem de louco, vagabundo, joão-ninguém.

         Apesar de tudo, Rui se sentia poeta mesmo. Sobretudo quando outros rapazes o procuravam para mostrar-lhe seus versos. Sentia-se o mestre deles.

         Na verdade, Rui conhecia toda a poesia brasileira. Pelo menos até os princípios do século XX. E tentava imitar ora Castro Alves, ora Raimundo Correia. Para mim não passou de um parnasiano retardado e sem talento.

         Assim mesmo, elegeram-no o príncipe dos poetas de Palma. Por maioria absolutíssima. O segundo colocado recebeu apenas três votos e havia escrito até então somente algumas quadrinhas.

         Toda a cidade participou da eleição. Como se escolhesse prefeito e vereadores.

         Surgia o mito Rui.

         A partir de então alguns rapazes passaram a bajulá-lo e imitá-lo. Até no modo de andar, nos gestos mais comuns, no jeito de ser.

         Dezenas de mocinhas se apaixonaram por ele. Menos Cândida.

         E faltava a Rui exatamente isto – o amor de Cândida. Além de outro sonho literário: publicar livros e fundar uma academia de letras em Palma. Tornar-se um pequenino Machado. Um Machadinho de Assis.

         Para realizar mais este sonho, contava ele com o incentivo do comendador Jeremias. Sim, continuasse a escrever. O primeiro livro logo seria editado. Porém, o velho morreu antes do esperado. Em consequência, o jornal também deixou de existir. Assim mesmo, Rui continuou a escrever. Por algum tempo mais. Até perder completamente o interesse pela poesia e dar por encerrada a carreira de poeta.

         Apesar disso, parte de sua obra sobreviveu a esta drástica decisão. É o caso da “Ode à cabra”, recitada em lares e praças, bares e becos.

         Orgulhoso desse feito, planejou uma ode ao bode. No entanto, não foi além dos três primeiros versos. Ficou num elogio aos chifres.

O melhor de Rui nunca foi publicado. Trata-se de uma quadra biográfica, cujo original ainda guardo:

         Se eu fosse Rui de Alenca
         e não de Alencar o Rui,
         era como se fosse avenca
         – aquilo que nunca fui.


         Rui também gostava de paródias. Um de seus sonetos começava assim:

         Arma minha viril que te partiram
         qual seda em festa no sertão mais quente,
         repousa lá no céu de minha gente
         e viva eu cá no chão dos que mentiram.

         Embora lesse desde os tempos de seminário, Rui passou a ler muito mais após o desaparecimento do jornal do comendador. E como não houvesse livraria e biblioteca públicas em Palma, poucas eram suas chances de ler. Na verdade, tirante a biblioteca do colégio dos salesianos, só duas casas abrigavam livros: a minha e a do comendador. Salvo algum clássico que me restou dos tempos de estudante, só havia em minha estante literatura jurídica. Assim mesmo, Rui devorou tudo.

         Dos padres e de Jeremias leu vidas de santos, missais, alguns filósofos e uma enciclopédia.

         Quando leu tudo, ainda andava na casa dos vinte anos. Viciado, apegou-se a jornais e revistas. Sempre com muito atraso. Alguns bodegueiros lhe vendiam ou davam restos de periódicos. Em algumas bodegas desfrutava o direito de escolher o que levar. Gato doméstico à caça de ratos.

         De tanto ler, Rui estragou a visão. Quase não enxergava nada. E passou a usar óculos de grossas lentes.

         Assim como a morte do comendador matou em Rui a vontade de escrever, propiciando-lhe o vício da leitura, este causou-lhe miopia e, em consequência, despertou-lhe o vício da fala. Tornou-se orador.

         Se me fosse lícito elaborar uma análise psicanalítica do rapaz, eu diria

         À falta de ouvintes, Rui falava aos ventos, às estrelas, à lua. Até descobrir o silêncio dos sepulcros. Todas as noites refugiava-se no cemitério e se punha a pregar aos mortos.

         Descoberta sua nova mania, aconselhou-o padre Divino a fazer discursos fúnebres à hora dos funerais. Agradaria às famílias enlutadas e possivelmente aos recém-falecidos, sem precisar se expor aos fantasmas noturnos.

         Nascia o primeiro necrologista de Palma.

         Mal acordava, saía à rua. Queria saber das novidades. Que novidades? Se havia defunto novo na cidade. Se não, acabrunhava-se e até perdia a vontade de trabalhar. Caso contrário, corria à casa do morto para os pêsames e para colher informações biográficas sobre o cujo. Depois, à beira do túmulo, emocionado, choroso, tristíssimo, pronunciava o mais belo discurso fúnebre de sua vida.

         Afastado das lides poéticas, aproveitava as exéquias para enxertar nos discursos seus versos mais piegas. Os parentes chorosos do morto só faltavam morrer de emoção.

         O próprio orador não se continha e chorava feito um desgraçado. Mesmo não conhecendo o falecido e sua família.

         Obcecado pela morte (dos outros), Rui amanhecia contando sonhos terríveis: acidentes, assassinatos, suicídios... Talvez pretexto para falar de morte. “Sonhei que Jonas morreu afogado no Rio das Lajes. Será verdade?”

         Terminou amigo do mestre carpina. Vez por outra visitava a carpintaria de Seu José. Admirava a arte daquele homem rústico. Só um artista podia fazer móveis tão belos. Especialmente caixões. Que magníficos ataúdes!

         Passava horas alisando a tampa, pegando nas alças. Sim, logo estaria ajudando a carregar aquele precioso esquife. “Tomara que seja defunto maneiro.”

         Talvez essa fosse a esquisitice mais repelente de Rui. Porque admirar outras terras, o estrangeiro, ser quase um xenófilo não me parece grande defeito. Pois o poeta conhecia toda a geografia política da Terra. Cidades, montanhas, rios, tudo ele conhecia. Falava com desembaraço dos lagos Baikal e Malavi, do rio Murray, do Pântano de Kutch, de Odessa, Addis Abeba, os cafundós de judas. Porém, isso não significava xenofilia. Pois conhecia também o Brasil, desde as maiores cidades até os sertões mais desertos, a Amazônia, o Pantanal. Falava de São Paulo, suas ruas, seus bairros, como se falasse de Palma.

         Muita gente acreditava ter ele viajado pelo mundo. Pois, quando reaparecia após prolongadas ausências, dizia ter viajado. E contava casos vividos ou presenciados em Fortaleza, Manaus, Livramento etc.

         Tudo mentira. Nunca saiu de Palma. O resto do Brasil e do mundo ele conhecia de livros, revistas, jornais, mapas, cartões postais e toda sorte de informativos.

         Pobre homem! Sim, Rui não passou de um sonhador e um derrotado. Sonhou ser poeta. Nunca escreveu poesia de verdade. Sonhou viagens. Nunca foi além dos sítios de Palma. Sonhou ser vereador, prefeito, deputado. Talvez governador. Talvez Presidente da República.

         Candidatou-se diversas vezes à Câmara Municipal. Fazia comícios, redigia e distribuía manifestos, criava slogans estapafúrdios, prometia mundos e fundos. Um aeroporto. Voos diários para todas as capitais do país e até para o exterior. Os amigos e vizinhos batiam palmas, gritavam “está eleito”.

         Concluídas as apurações, revoltava-se. Não conseguia sequer uma  suplência.

         Talvez fosse sua a culpa pelo fracasso. Precisava então mudar de tática. Deixar o local e atingir o nacional e mesmo o universal. Em vez de chafarizes, jardins, aeroportos – a pátria forte, o heroísmo, uma ideologia.

         E apegou-se ao integralismo. Andava de camisa verde, colava retratos de Plínio Salgado, explicava o significado do sigma.

         Com a derrota de seu candidato, virou janista. Quando Jango assumiu, organizou uma passeata em defesa da liberdade, contra o comunismo.

         Convidou-me a participar da marcha. Recusei. Sendo juiz, não tinha o direito de estar ao lado deles. Seria estar contra a lei. Embora não simpatizasse nada com Jango e seus aliados.

         A passeata percorreu as ruas de Palma. À frente iam Rui, o comendador, padre Divino. A seguir, beatas e carolas. Carregavam estandartes e bandeiras de todas as cores e desenhos. Parecia uma palhaçada.

         A última campanha eleitoral de Rui deu-lhe meia dúzia de votos. Dizia-se democrata. Prometia a mais autêntica das democracias. Se eleito, faria da pesquisa de opinião pública a ponto de partida para a elaboração das leis. Se a maioria quisesse mudar o nome da cidade, Palma teria outro nome.

         Seriam feitas perguntas que poderiam mudar os rumos da Ciência: se o Brasil era mais populoso que a China; se a Terra era maior que o Sol; se o homem havia pisado o solo lunar...

         O povo decidiria tudo.

                                                        ***

         José de Deus Evangelista. Esse o nome oficial de Rui de Alencar. Imposto por D. Maria das Dores, sua mãe. A contragosto de Seu Augusto. Para ele o nome do filho seria Isidoro ou Artur. Em homenagem à Revolução Constitucionalista, de que era fervoroso adepto. Por inspiração do comendador Jeremias Coqueiro, seu chefe. Desde aqueles belicosos tempos.

         Três vezes prefeito, dono de inúmeras casas, sítios, tipografia, jornal, Jeremias mandava e desmandava em Palma. O vigário, o delegado e o juiz eram por ele indicados. Quando a indicação não partia dele, o nome do indicado precisava do seu aval. Minha nomeação demorou a sair exatamente porque o comendador não simpatizou com meu currículo. Na juventude fui poeta e socialista.

O tormento demorou. Só após muitas ponderações resolveu dizer sim. No entanto, outro tormento sobreveio. Porque interminável. Passei a ter sonhos horríveis. O comendador seduzia Cândida, violentava-a. Eu acordava desesperado. Águeda se assustava, queria saber de meus pesadelos. Eu calava, mentia, falava de monstros. Ela culpava a bebida. Sim, eu gostava de cerveja e cachacinha. Para suportar aquela vida apagada numa cidade de dez mil idiotas. E ainda ter de prestar contas de meus atos a Jeremias. Não só isso – decidir segundo a vontade dele. Só me faltou mandar prender vítimas.

         À noite o comendador virava bicho, lobisomem, fauno, o diabo. Às vezes se confundia com o delegado. Outro sem-vergonha. No entanto, Cândida gostava do tenente. Águeda me relatou as confidências que nossa filha lhe fizera. Vivia sonhando com o homem. E não conseguia se livrar desses sonhos. Mesmo sabendo de seu estado civil. E pior: de sua extrema rudeza, de seu caráter de bandido, de seus hábitos de mulherengo.

         Rui nunca soube desses sonhos de Cândida. Se tivesse sabido, como teria reagido? Talvez a matasse, se é que não a matou.

         E o que sonhava Rui, vivendo tão triste, tão solitário?

         Apesar de ser um dos mais velhos da família, terminou ficando só com os pais. Os irmãos mais novos foram aos poucos saindo de casa, por se casarem ou buscarem outras cidades. Dois deles faleceram ainda jovens.

         O velho Evangelista morreu quando gargalhava. Assistia a uma novela de televisão – O Bem-Amado.

         Viviam os dois em constantes rusgas. O pai chamava o filho de preguiçoso e indolente. 40 anos e ainda sem família, sem casa própria, sem nada, a não ser o empreguinho na prefeitura.

         Mesmo assim, Rui chorou muito e quase conseguiu escrever uma elegia para o pai.

         Restavam a mãe e Totonha, a criada negra que tudo fazia na imensa casa. Desde os tempos do casamento de Augusto e Maria.

         O pior aconteceu três anos depois – a mãezinha também se foi.

         Macambúzio, ao voltar do enterro encontrou a velha criada morta.

         Definitivamente só, pensou em vender a casa, os móveis antigos, a prataria, e fugir para São Paulo, onde moravam alguns irmãos. Porém, o rádio anunciou a explosão de uma bomba na Rua Isidoro Dias Lopes. Lembrou-se do pai e chorou mais uma vez.

                                                        ***

         Lembro-me bem do nascimento de Cândida. Tempos difíceis, de seca e fome. Havia, porém, alegria no país. Na Suécia nossa seleção de futebol ganhou a Taça. Eufórico, Rui declamava nas esquinas versos de louvor a Garrincha, Didi, Pelé, cada um dos campeões. Eu também me sentia feliz. Nunca tinha sido pai. E o bebê parecia tão cândido! No entanto, viveu tão pouco minha filha!

         Ou não morreu de verdade? Terá sido apenas um sonho ruim? Terei imaginado aquela morte horrível? Ou tudo inventei?

         Não, lembro-me com nitidez do velório, das rezas, do padre Divino, da tristeza de todos. Depois o caixão sendo conduzido ao cemitério. Eu segurando uma das alças. Era de tarde. Rui chorava. Parecia desesperado. Em dado momento tomou a palavra e pôs-se a discursar:

         Ó cândida menina de meus sonhos,
         ó tu que para a eternidade partes...


         Naquele momento eu ainda não suspeitava dele. E o aplaudi.

         Agora não sei mais o que pensar, dizer.

         Talvez esteja enlouquecendo. Ou indo ao encontro dela – a Morte.

Fonte:
Nilto Maciel. Vasto Abismo, contos. Brasília: Códice, 1998.

domingo, 12 de janeiro de 2020

Varal de Trovas n. 160


Silmar Böhrer (Divagações Poéticas) 4


Vivo vida de opulência
impregnado de poesia,
e vida melhor quereria,
eu e as musas em essência?
* * * * * * * * * * * * * *

Nós, seres humanos, somos como
viajantes que vogamos sobre o eterno
rio do Tempo, que embarcamos em certo
ponto e desembarcamos em outro, a fim
deixar lugar aos que, rio abaixo,
esperam a sua vez de subir a bordo.
navegue em águas tranquilas.
* * * * * * * * * * * * * *

Mágicas mádidas manhãs.
Cálidas calendas calcificantes.
Serenos sábados sorridentes.
Vidas vívidas vivificando.
Verão. Vereis vós. Verão.
* * * * * * * * * * * * * *

Ler
escrever
respirar
pensar
caminhar.
Como vou parar ?
* * * * * * * * * * * * * *

De onde é que têm surgido
os teus versos, oh vivente,
não serão algum prurido
que carregas na tua mente ?
* * * * * * * * * * * * * *

As minhas:
gavetas diurnas
sempre
abertas
albergando
versos.
* * * * * * * * * * * * * *

O que se gasta para viver
nesta vida de sobrevivência,
se o ideal é apenas o ser,
por que tanto querer-demência ?

* * * * * * * * * * * * * *

Todos
podem
devem
escrever
des(a)fiar
perenizar
a arte.
Eu lavro
minha parte.
* * * * * * * * * * * * * *

Palavras são sementes
geradoras
de sonhos
de caminhos
de ideias
de ideais
de vidas
* * * * * * * * * * * * * *

De onde será, veio o veio,
o veio dos ventos uivantes,
será que veio de abrantes,
em redemoinhos ele veio ?
* * * * * * * * * * * * * *

Não discuto com a vida
varamos silêncios
em luta renhida
* * * * * * * * * * * * * *

Sou eterno aprendiz,
sabendo que a vida
é mesmo assim:
o aprendizado
não tem fim.
* * * * * * * * * * * * * *

Sabiás voando rasantes
no "bosco", na galharia,
serão pensares passantes
na sabatina sombria ?
* * * * * * * * * * * * * * 

Fonte:
Versos enviados pelo autor.

Carlos Drummond de Andrade (O Ladrão)


O bloco passava lá fora, “experimentando” o Carnaval. Minha amiga foi atender o telefone, e ao voltar viu que sumira o relógio de pulso, deixado sobre a mesinha de cabeceira. Abriu a gaveta e examinou a caixa de joias: vazia. Nada de preço, mas de estimação: colar de pérolas cultivadas, anéis, broches, essas coisas. Cada peça lhe viera de uma pessoa querida, e era como se os ofertantes vivessem ali, disfarçados e condensados pelo ourives. Minha amiga ficou aborrecida. Não que participasse do horror capitalista a ladrões. Sem capital, achava exagerado esse sentimento. Nas vezes em que discutira o problema, opinara quase favoravelmente aos gatunos. Coitados, não tiveram boa formação familiar; a miséria é grande e espalhada, o corpo social se caracteriza pelo egoísmo. Erraram, apenas. E depois, tanto ladrão gordo por aí, recebido em sociedade, incólume, benemérito!

Por isso mesmo, sentia-se chocada com o acontecimento. Por que lhe faziam uma dessas? Pedissem qualquer coisa razoável, daria. Se não tinham coragem de pedir, se eram pobres envergonhados, que diabo, levassem objetos caseiros, sem história. É certo que ladrão não pode saber se um objeto está carregado de afetividade, e que dinheiro nenhum o compra.

Foi ao andar de cima conferenciar com o vizinho. Ele nada percebera, mas armou-se de pistola e resolveu caçar o ladrão, que pelo visto descera do morro próximo. Sempre desconfiamos do morro, como se esse acidente geográfico retivesse propriedades maléficas, extensíveis aos indivíduos que o habitam. Mas enfrentar o morro, àquela hora da noite, seria temeridade. Já ao transpor a porta da rua, o vizinho decidiu ficar por ali mesmo, pistola em punho, vistoriando os suspeitos que passassem, e não passaram.

Na noite seguinte, passou foi a patrulha de Cosme e Damião, que, inteirada do fato, pensou logo em Curió.

— Curió hoje de tarde estava querendo vender uns troços de ouro, umas correntinhas.

— Então me tragam o Curió que eu quero conversar com ele. Mas por favor, não o maltratem, hem — pediu minha amiga.

Curió apareceu pela manhã, encalistrado, com os policiais. Pequeno, modesto, simpático. O vizinho correu para apanhar a arma. “Não faça isso — ordenou-lhe minha amiga. Vamos conversar sentados no chão, que é melhor.”

Cosme e Damião preferiram ficar de pé, Curió não se fez de rogado, e o vizinho adotou o figurino.

— Curió, foi você quem levou minhas joias de estimação?

De cabeça baixa, Curió admitiu que sim. Passara por ali, à hora em que o bloco descia, viu luz acesa, nenhum movimento, janela baixa, e tal, ficou tentado. Conhecia de vista a moradora, até simpatizava com ela. Mas praquê deixar tudo aberto, exposto, provocando a gente?

Lealmente, ela aceitou a censura, reconhecendo que não cuidara.

— Você fuma, Curió?

— Aceito, madame.

Cigarro ajuda a resolver. Cheio de boa vontade, Curió não podia restituir tudo. Parte dos objetos fora vendida, os brincos ele dera a uma senhorita. O colar, o relógio e dois broches, sim, devolveria se madame quebrasse o galho — e apontou para Cosme e Damião.

— Estão aí com você?

— Não, madame, mas pode fiar do meu compromisso.

O vizinho ia exclamar: “Essa não”, porém minha amiga pediu-lhe que se abstivesse de comentários. Continuaram negociando amigavelmente. Aquela fora a primeira vez, Curió vive de biscates, vida apertada, madame compreende.

No outro dia voltou com as joias, menos as vendidas, e prometeu tomar os brincos à namorada. Minha amiga achou que não valia a pena magoar a moça, e louvou o desprendimento de Curió. E agora sua casa tem, numa só pessoa, encerador, bombeiro e cão de guarda, procurados há muito. O vizinho é que, indignado, e dizendo-se sem garantias, pensa em mudar-se.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas.

Edy Soares (Cristais Poéticos) I


ILHA MALDITA
Quem já nasce em prisão perpétua,
Raramente tem salvação,
Ou se rende a seu carrasco,
Ou se arrisca em evasão,

Pelo destino, já condenado
A viver em troca do pão,
Tem dono, é desgraçado
Por um diabo sem coração.

Na farsa de ser um herói,
Seu dono sufoca e prende,
Não conhece o que é liberdade
E de tanto sofrer se rende.

Sua pátria é Seu cativeiro,
Sua vida, por pouco é ceifada.
Melhor não tivesse nascido,
Já que a morte é desejada.

Fingindo-se Deus, o diabo aparece
Em discursos tão planejados!
Quem aplaude o faz com desdém;
Quem não o faz já fica marcado.

Ó povo de alma mansa,
A ti me rendo em homenagem.
Eu sei que não há esperança,
Nem tampouco adianta a coragem.
* * * * * * * * * * * * * *

MEUS MEDOS, MINHAS DORES

Eu tenho medo!
Mas, sem meus medos,
Não conheceria os limites da minha coragem.
Eu tenho dor!
Mas, sem minhas dores,
Não teria conhecido a transição de uma perda.
Conhecendo meus medos, me fortaleci
Para as novas batalhas,
Conhecendo a dor da perda,
Eu conheci a saudade
E aprendi a valorizar mais
O que ainda me resta.
* * * * * * * * * * * * * *

MINHA “ROSA”

Quando vacilo,
Tu me arranhas, ó Rosa!
Mas mesmo assim não deixas de ser rosa.

Tens espinhos, mas és perfeita;
Perfuma todo o jardim e enfeita,
Inspiração dos meus versos e prosas!

Sem ti eu não sobreviveria, minha Rosa.
Lembro-me do dia que te colhi,
Flor linda que me fez sorrir;
Perfume que embriagou minh'alma.

Eras linda flor cheirosa;
Tens ainda a mesma beleza
E continuas bela e formosa.
* * * * * * * * * * * * * *

O CHORO

Ah, eu já chorei!!!
Chorei de tristeza
Na despedida,
Na partida de alguém,
Por perdas de pessoas queridas.
Já chorei por derrotas, vitórias.
Chorei de alegria, também.
Aprendi chorar por chorar,
Porque chorar, às vezes faz bem.
O choro não é o inverso do riso;
É apenas uma forma diferente
De expressar sentimentos que a gente,
por vezes, nem sabe que tem.
É bom chorar
Por amor,
Pela dor
Por quem for,
Por alguém.
No choro
O coração se acalma,
Apascenta-se a alma,
O choro é a manifestação de quem nasce,
A última expressão por quem parte,
A saudação de quem chega,
O adeus de quem vai,
E quiçá, a forma de amor mais sincera
Que do âmago sai.
* * * * * * * * * * * * * *

SONO BOM

Às vezes sorrateiro chega,
Desprevenido me pega,
Me afaga, me apaga,
Me desliga do mundo.

Traz a calma
Que acompanha minha alma,
Descansa meu corpo
Do cansaço profundo.

Quando de volta,
Entrega-me a consciência,
Um novo dia começa.
Continuidade da vida!

Alternando
Entre noites e dias,
Você me vigia
E me descansa da lida.

Quando enfim,
De mim não se apartar
E eu não mais despertar,
Terei cumprido minha sina.

Será em você
Meu eterno descanso.
E que seja calmo e manso,
Pois será o fim dessa vida.
* * * * * * * * * * * * * *

VAGA-LUME

Flashes no meio da noite,
Lampejos esparsos de luz,
Desvio do desatento,
Carrega-me noite adentro,
Pra onde quer me conduz.
Não vê que a noite escura,
Pra quem não brilha vira tortura
E nem todo ser reluz.
Me ensina uma boa prece
Pois quando desapareces
Meu corpo tremula e sua,
Ou então fique aqui por perto
Clareando o caminho certo
Até clarear a rua,
O sol que virá ardente
Ou ela agora ausente
A minha companheira lua.
Aí então pode ir vaga-lume!
Riscando a noite escura,
Vestindo sua armadura,
Já que você não tem medo.
Eu não tenho seus artifícios,
Se não posso tirar seus vícios
Eu guardo nossos segredos.
* * * * * * * * * * * * * *

VIDA PLENA

Eu não quero deixar de viver plenamente essa vida,
Na esperança de ganhar outra vida mesmo que eterna.
Se no presente o presente que ganho é a vida,
Que ela seja vivida e aplaudida por ser tão bela.
Eu nunca acreditei que quando morremos tudo se acaba.
Somos bem feitos e bonitos demais pra sermos descartados,
Pode ser que, nesse mundo, estejamos apenas de passagem,
Mas tenho duvidas se na próxima viagem serei convidado,
Por bondade e amor, acredito que fomos criados
Por um Criador que acredito, não nos impor sacrifícios.
É certeza que um pai se alegra na alegria dos filhos
E jamais os oferece algo pedindo em troca o suplício.
Se outra vida após essa existe, eu acredito, e gostaria de tê-la,
Farei o possível pra merecer e aceitarei de bom grado, com certeza,
Mas faço o possível pra viver bem, a vida que por hora me foi dada,
Outras... Sou pequeno demais pra conjecturar tamanha grandeza.
É impossível descrever a beleza e o mistério da vida.
É grandioso e esplêndido o presente que nos foi dado.
Se após a morte eu merecer viver eternamente junto ao Criador,
Serei grato eternamente por ser duas vezes agraciado.

Fonte:
Edy Soares. Flores no deserto. Vila Velha/ES: Ed. do Autor, 2015.
Livro enviado pelo autor

Machado de Assis (Tempo de Crise)


 Queres tu saber meu rico irmão, a notícia que achei no Rio de Janeiro, apenas pus pé em terra? Uma crise ministerial. Não imaginas o que é uma crise ministerial na cidade fluminense. Lá na província chegam as notícias amortecidas pela distância, e além disso incompletas; quando sabemos de um ministério defunto, sabemos logo de um ministério recém-nascido. Aqui a coisa é diversa; assiste-se à morte do agonizante, depois ao enterro, depois ao nascimento do outro, o qual muitas vezes, graças às dificuldades políticas, só vem à luz depois de uma operação cesariana.

Quando desembarquei estava o C... à minha espera na praia dos Mineiros, e as suas primeiras palavras foram estas:

- Caiu o ministério!

Tu sabes que eu tinha razões para não gostar do gabinete, depois da questão de meu cunhado, de cuja demissão ainda ignoro a causa. Todavia, senti que o gabinete morresse tão cedo, antes de dar todos os seus frutos, principalmente quando o negócio do meu cunhado era justamente o que me trazia cá. Perguntei ao C... quem eram os novos ministros.

- Não sei, respondeu; nem te posso afirmar se os outros caíram; mas desde manhã não corre outra coisa. Vamos saber notícias. Queres comer?

- Sem dúvida, respondi; vou residir no Hotel da Europa, se houver lugar.

- Há de haver.

Seguimos para o Hotel da Europa que é na rua do Ouvidor; lá me deram um aposento e um almoço. Acendemos charutos e saímos.

À porta perguntei-lhe eu:

- Onde saberemos notícias?

- Aqui mesmo na rua do Ouvidor.

- Pois então na rua do Ouvidor é que?...

- Sim; a rua do Ouvidor é o lugar mais seguro para saber notícias. A casa do Moutinho ou do Bernardo, a casa do Desmarais ou do Garnier, são verdadeiras estações telegráficas. Ganha-se mais em estar aí comodamente sentado do que em andar pela casa dos homens da situação.

Ouvi silenciosamente as explicações do C... e segui com ele até um pasmatório político, onde apenas encontramos um sujeito, fumando, e conversando com o caixeiro.

- A que horas esteve ela aqui? pergunta o sujeito.

- Às dez.

Ouvimos estas palavras entrando. O sujeito calou-se imediatamente e sentou-se numa cadeira por trás de um mostrador, batendo com a bengala na ponta do botim.

- Trata-se de algum namoro, não? perguntei eu baixinho ao C...

- Curioso! respondeu-me ele; naturalmente é algum namoro, tens razão? alguma rosa de Citera.

- Qual! disse eu.

- Por que?

- Os jardins de Citera são francos; e ninguém espreita as rosas por fora...

- Provinciano! disse o C... com um daqueles sorrisos que só ele tem; tu não sabes que, estando as rosas em moda, há certa hora para o jardineiro... Anda sentar-te.

- Não; fiquemos um pouco à porta; quero conhecer esta rua de que tanto se fala.

- Com razão, respondeu o C... Dizem de Shakespeare que, se a humanidade perecesse, ele só poderia recompô-la, pois que não deixou intacta uma fibra sequer do coração humano. Aplico el cuento. A rua do Ouvidor resume o Rio de Janeiro. A certas horas do dia, pode a fúria celeste destruir a.cidade; se conservar a rua do Ouvidor, conserva Noé, a família e o mais. Uma cidade é um corpo de pedra com um rosto. O rosto da cidade fluminense é esta rua, rosto eloquente que exprime todos os sentimentos e todas as ideias...

- Contínua, meu Virgílio.

- Pois vai ouvindo, meu Dante. Queres ver a elegância fluminense? Aqui acharás a flor da sociedade, - as senhoras que vêm escolher joias ao Valais ou sedas à Notre Dame, - os rapazes que vêm conversar de teatros, de salões, de modas e de mulheres. Queres saber da política? Aqui saberás das notícias mais frescas, das evoluções próximas, dos acontecimentos prováveis; aqui verás o deputado atual com o deputado que foi, o ministro defunto e às vezes o ministro vivo. Vês aquele sujeito? É um homem de letras. Deste lado, vem um dos primeiros negociantes da praça. Queres saber do estado do câmbio? Vai ali ao Jornal do Comércio, que é o Times de cá. Muita vez encontrarás um cupê à porta de uma loja de modas: é uma Ninon fluminense. Vês um sujeito ao pé dela, dentro da loja, dizendo um galanteio? Pode ser um diplomata. Dirás que eu só menciono a sociedade mais ou menos elegante? Não; o operário para aqui também para ter o prazer de contemplar durante minutos uma destas vidraças rutilantes de riqueza, -porquanto, meu caro amigo, a riqueza tem isto de bom consigo, - é que a simples vista consola.

Saiu-me o C... tamanho filósofo que me espantou. Ao mesmo tempo agradeci ao céu tão precioso encontro. Para um provinciano, que não conhece bem a capital, é uma felicidade encontrar um cicerone inteligente.

O sujeito que estava dentro chegou à porta, demorou-se alguns instantes, e saiu acompanhado por outro, que então passava.

- Cansou de esperar, disse eu.

- Sentemo-nos.

Sentamo-nos.

- Fala-se então de tudo aqui?

- De tudo.

- Bem e mal?

- Como na vida. É a sociedade humana em ponto pequeno. Mas por enquanto o que nos importa é a crise; deixemos de moralizar...

Interessava-me tanto a conversa, que pedi ao C... a continuação das suas lições, tão necessárias a quem não conhecia a cidade.

- Não te iludas, disse ele, a melhor lição deste mundo não vale um mês de experiência e de observação. Abre um moralista; encontrarás excelentes análises do coração humano; mas se não fizeres a experiência por ti mesmo pouco te valerá o teres lido. La Rochefoucauld aos vinte anos faz dormir; aos quarenta é um livro predileto...

Estas últimas palavras revelaram no C... um desses indivíduos doentes que andam a ver tudo cor da morte e do sangue. Eu que vinha para divertir-me, não queria estar a braços com um segundo volume de nosso padre Tomé, espécie de Timon cristão, a quem darás a ler esta carta, acompanhada de muitas lembranças minhas.

- Sabes que mais? disse eu ao meu cicerone, vim para divertir-me, e por isso acho-te razão; tratemos da crise. Mas por enquanto nada sabemos, e...

- Aqui vem o nosso Abreu, que há de saber alguma coisa.

O Dr. Abreu que entrou nesse momento, era um homem alto e magro, longo bigode, colarinho em pé, paletó e calças azuis. Fomos apresentados um ao outro. O C... perguntou-lhe o que sabia da crise.

- Nada, respondeu misteriosamente o Dr. Abreu; apenas ouvi ontem de noite que os homens não se entendiam...

- Mas eu já hoje ouvi dizer na praça que havia crise formal, disse o C...

- É possível, disse o outro. Saí agora mesmo de casa, e vim logo para aqui... Houve câmara?

- Não.

- Bem; isso é um indício. Estou capaz de ir à câmara...

- Para que? Aqui mesmo saberemos.

O Dr. Abreu tirou um charuto de uma charuteira de marroquim encarnado, e fitando muito os olhos no chão, como quem está seguindo um pensamento, acendeu quase maquinalmente o charuto.

Soube depois que era um meio inventado por ele para não oferecer charutos aos circunstantes.

- Mas que lhe parece? perguntou-lhe o C... passado algum tempo.

- Parece-me que os homens caem. Nem podia deixar de ser assim. Há mais de um mês que andam brigados.

- Mas por que? perguntei eu.

- Por várias coisas; e a principal é justamente a presidência da sua província...

- Ah!

- O ministro do Império quer o Valadares, e o da Fazenda insiste pelo Robim. Ontem houve conselho de ministros, e o do Império apresentou definitivamente a nomeação do Valadares... Que faz o colega?

- Ora, vivam! Então já sabem da crise?

Esta pergunta era feita por um sujeito que entrou pela loja mais rápido que um foguete. Trazia na cara uns ares de gazeta noticiosa.

- Crise formal? perguntamos todos.

- Completa. Os homens brigaram ontem de noite; e foram hoje de manhã a São Cristóvão...

- É o que eu dizia, observou o Dr. Abreu.

- Qual o verdadeiro motivo da crise? perguntou o C...

- O verdadeiro motivo foi uma questão de guerra.

- Não creia nisso!

O Dr. Abreu disse estas palavras com um ar de tão altiva convicção, que o recém-chegado replicou um pouco enfiado:

- Sabe então o verdadeiro motivo mais do que eu que estive com o cunhado do ministro da guerra?

A réplica pareceu decisiva; o Dr. Abreu limitou-se a fazer aquele gesto com que a gente costuma dizer: Pode ser...

- Seja qual for o motivo, disse o C..., a verdade é que temos crise ministerial; mas será aceita a demissão?

- Eu creio que é, disse o Sr. Ferreira (era o nome do recém-chegado).

- Quem sabe?

Ferreira tomou a palavra:

- A crise era prevista; eu há mais de quinze dias anunciei ali em casa do Bernardo, que a crise não podia deixar de estar iminente. A situação não podia prolongar-se; se os ministros não concordassem, a câmara os obrigaria a sair. Já a deputação da Bahia tinha mostrado os dentes, e até sei (posso dizê-lo agora) sei que um deputado do Ceará estava para apresentar uma moção de desconfiança.

Ferreira disse estas palavras em voz baixa, com o ar misterioso que convém a certas revelações. Nessa ocasião ouvimos um carro. Corremos à porta; era efetivamente um ministro.

Mas então não estão todos cm São Cristóvão? observou o C...

- Este vai naturalmente para lá.

Ficamos à porta; e o grupo foi-se pouco a pouco alimentando; antes de um quarto de hora éramos oito. Todos falavam na crise; uns sabiam a coisa de fonte certa; outros por ouvir dizer. O Ferreira saiu pouco depois dizendo que ia à Câmara saber o que havia de novo. Nessa ocasião apareceu um desembargador e indagou se era exato o que se dizia relativamente à crise ministerial.

Afirmamos que sim.

- Qual seria a causa? perguntou ele.

O Abreu, que dera antes como causa a presidência lá da província, declarou agora ao desembargador que uma questão da guerra produzira o desacordo entre os ministros.

- Está certo disso? perguntou o desembargador.

- Certíssimo; soube-o hoje mesmo do cunhado do ministro da Guerra.

Nunca vi maior facilidade em mudar de opinião, nem maior descaro em colher as afirmações alheias. Interroguei depois o C... que me respondeu:

- Não te espantes; em tempo de crise é sempre bom mostrar que se anda bem informado.

Dos presentes eram quase todos oposicionistas, ou pelo menos faziam coro com o Abreu, que fazia diante do cadáver ministerial o papel de Brutus diante do cadáver de César. Alguns defendiam a vítima, mas como se defende uma vítima política, sem grande calor nem excessiva paixão.

Cada personagem novo trazia uma confirmação ao trato; já não era trato; evidentemente havia crise. Grupos de políticos e politicões estavam parados às portas das lojas, conversando animadamente. De quando em quando surgia ao longe um deputado. Era logo cercado e interrogado; e só se colhia a mesma coisa.

Vimos ao longe um homem de 35 anos, meão na altura, suíças, luneta pênsil, olhar profundo, acompanhando uma influência política.

- Graças a Deus! agora vamos ter notícias frescas, disse o C... Ali vem o Mendonça; há de saber alguma coisa.

A influência política não pôde passar de outro grupo; o Mendonça veio ao nosso.

- Venha cá; você que lambe os vidros por dentro há de saber o que há?

- O que há?

- Sim.

- Há crise.

- Bem; mas os homens saem ou ficam?

Mendonça sorriu, depois ficou sério, corrigiu o laço da gravata, e murmurou um: não sei; assaz parecido com um: sei demais.

Olhei atentamente para aquele homem que parecia estar senhor dos segredos do Estado, e admirei a discrição com que os ocultava de nós.

- Diga o que sabe, Sr. Mendonça, disse o desembargador.

- Eu já disse a V. Excia. o que há, interrompeu o Abreu; pelo menos tenho razão para afirmá-lo. Não sei o que sabe lá o Sr. Mendonça, mas creio que não estará comigo...

Mendonça fez um gesto de quem ia falar. Foi cercado por todos. Ninguém ouviu com mais atenção o oráculo de Delfos.

- Sabem que há crise; a causa é muito secundária, mas a situação não podia prolongar-se.

- Qual é a causa?

- A nomeação de um juiz de direito.

- Só!

- Só.

- Já sei o que é, disse Abreu sorrindo. Era negócio pendente há muitas semanas.

- Foi isso. Os homens lá foram ao paço.

- Será aceita a demissão? perguntei eu.

Mendonça abaixou a voz:

- Creio que é.

Depois apertou a mão ao desembargador ao C... e ao Abreu e retirou-se com a mesma satisfação de um homem que acaba de salvar o Estado.

- Pois, senhores, eu creio que esta versão é a verdadeira. O Mendonça anda informado.

Passa defronte um sujeito.

- Anda cá, Lima, gritou Abreu.

O Lima aproximou-se.

- Estás convidado para o ministério?

- Estou; você quer alguma pasta?

Não penses que este Lima era alguma coisa; o dito de Abreu era um gracejo que se renova em todas as crises.

A única preocupação do Lima eram umas senhoras que passavam. Ouvi dizer que eram as Valadares, - a família do indigitado presidente. Pararam à porta da loja, conversaram alguma coisa com o C... e o Lima, e seguiram viagem.

- São lindas estas moças, disse um dos circunstantes.

- Eu era capaz de as nomear para o ministério.

- Sendo eu presidente do conselho.

- Também eu.

- A mais gorda devia ser ministro da Marinha.

- Por que?

- Porque parece mesmo uma fragata.

Ligeiro sorriso acolheu este diálogo entre o desembargador e o Abreu. Viu-se ao longe um carro.

- Quem será? Algum ministro?

- Vejamos.

- Não; é a A...

- Como vai bonita!

- Pudera!

- Ela já tem carro?

- Há muito tempo.

- Olhem, ali vem o Mendonça.

- Vem com outro. Quem é?

- É um deputado.

Passaram os dois juntos de nós. O Mendonça não nos cumprimentou; ia conversando baixinho com o deputado.

Houve outra trégua na conversa política. E não te admires. Nada mais natural do que entremear aqui uma discussão sobre crise política com as sedas de uma dama do tom.

Finalmente surgiu de longe o já citado Ferreira.

- Que há? perguntamos quando ele chegou.

- Foi aceita a demissão.

- Quem é o chamado?

- Não se sabe.

- Por que?

- Dizem que os homens ficam com as pastas até segunda-feira.

Dizendo estas palavras, o Ferreira entrou, e foi sentar-se. Outros o imitaram; alguns se foram embora.

- Mas donde sabe isso? disse o desembargador.

- Soube na Câmara.

- Não me parece natural.

- Por que?

- Que força moral deve ter um ministério já demitido e ocupando as pastas?

- Realmente, a coisa é singular; mas eu ouvi ao primo do ministro da Fazenda.

Ferreira tinha a particularidade de andar informado pelos parentes dos ministros; pelo menos, assim o dizia.

- Quem será chamado?

- Naturalmente o N...

- Ou o P...

- Já hoje de manhã se dizia que era o K...

Entrou o Mendonça; o caixeiro deu-lhe uma cadeira, e ele sentou-se ao lado do Lima, que nesse momento descalçava as luvas, ao mesmo tempo que o desembargador oferecia rapé aos circunstantes.

- Então, Sr. Mendonça, quem é o chamado? perguntou o desembargador.

- O B...

- Com certeza?

- É o que se diz.

- Eu ouvi que só na segunda-feira se organizará ministério novo.

- Qual! insistiu Mendonça; afirmo-lhe que o B foi ao paço.

- Viu-o?

- Não; mas disseram-mo.

- Pois acredite que até segunda-feira...

A conversa ia-me interessando; eu já tinha esquecido o interesse que ligava à mudança dos ministros, para atender simplesmente ao que se passava diante de mim. Não imaginas o que é formar um ministério na rua antes que ele esteja formado no paço.

Cada qual expôs a sua conjectura; vários nomes foram lembrados para o poder. Às vezes aparecia um nome contra o qual se apresentavam objeções; então replicava o autor da combinação:

- Está enganado; pode o F... ficar com a pasta da Justiça, o M... com a da Guerra, K... Marinha, T.... Obras Públicas, V... Fazenda, X... Império, e C... Estrangeiros.

- Não é possível; o V... é que deve ficar com a pasta de Estrangeiros.

- Mas o V... não pode entrar nessa combinação.

- Por que?

- É inimigo do F...

- Sim; mas a deputação da Bahia?

Aqui coçava o outro a orelha.

- A deputação da Bahia, respondia ele, pode ficar bem metendo o N...

- O N... não aceita.

- Por que?

- Não quer ministério de transição.

- Chama a isto ministério de transição?

- Pois que é mais?

Este diálogo em que todos tomavam parte, inclusive o C..., e que era repetido sempre que um dos circunstantes apresentava uma combinação nova, foi interrompido pela chegada de um deputado.

Desta vez íamos ter notícias frescas.

Efetivamente soubemos pelo deputado que o V... tinha sido chamado ao paço e estava organizando gabinete.

- Que dizia eu? exclamou Ferreira. Nem era de ver outra coisa. A situação é do V....; o seu último discurso foi o que os franceses chamam discurso-ministro. Quem são os outros?

- Por ora, disse o deputado, só há dois ministros na lista: o da Justiça e o do Império.

- Quem são?

- Não sei, respondeu o deputado.

Não me foi difícil ver que o homem sabia, mas era obrigado a guardar segredo. Compreendi que aquele é que lambia os vidros por dentro, expressão muito usada em tempo de crise.

Houve um pequeno silêncio. Conjecturei que cada qual estivesse a adivinhar quem seriam os nomeados; mas, se alguém os descobriu, não os nomeou.

O Abreu dirigiu-se ao deputado.

- V. Excia. acredita que o ministério fique organizado hoje?

- Creio que sim; mas daí pode ser que não...

- A situação não é boa, observou Ferreira.

- Admira-me que V. Excia. não seja convidado...

Estas palavras, naquela ocasião inconvenientes, foram pronunciadas pelo Lima, que trata a política, como trata as mulheres e os cavalos. Cada um de nós procurou disfarçar o efeito de semelhante tolice, mas o deputado respondeu direitamente à pergunta:

- Pois não me admira nada isso; deixo o lugar aos incompetentes. Estou pronto a servir como soldado... Não passo disso.

- Perdão, é muito digno!

Entrou um homem esbaforido. Fiquei surpreso. Era um deputado. Olhou para todos, e dando com os olhos no colega, disse:

- Podes dar-me uma palavra?

- Que é? perguntou o deputado levantando-se.

- Vem cá.

Foram até a porta, depois despediram-se de nós e seguiram apressadamente para cima.

- Estão ambos ministros, exclamou Ferreira.

- Acredita? perguntei eu.

- Sem dúvida.

Mendonça foi da mesma opinião; e foi a primeira vez que o vi adotar uma opinião alheia.

Eram duas horas da tarde quando saíram os dois deputados. Ansiosos por saber mais notícias, saímos todos e descemos a rua vagarosamente. Grupos de quatro e cinco se entretinham com o assunto do dia. Parávamos; combinávamos as versões; mas não retificavam as dos outros. Num desses grupos já estavam os três ministros nomeados; outro acrescentava os nomes dos dois deputados, pela única razão de os ter visto entrar num carro.

Às três horas já corriam versões de todo o gabinete, mas era tudo vago.

Determinamos não voltar para casa sem saber do resultado da crise, salvo se a notícia não viesse até às cinco horas, pois era de mau gosto (disse-me o C...) andar na rua do Ouvidor às 5 horas da tarde.

- Mas qual será o meio de saber? perguntei eu.

- Eu vou ver se colho alguma coisa, disse Ferreira.

Vários incidentes nos iam detendo a marcha: algum amigo que passava, uma mulher que saía de uma loja, uma joia nova em uma vidraça, um grupo tão curioso como o nosso, etc.

Nada se soube nessa tarde.

Voltei para o Hotel da Europa a fim de descansar e jantar; o C... jantou comigo. Conversamos muito do tempo da academia, dos nossos amores, das nossas travessuras, até que a noite veio e resolvemos voltar à rua do Ouvidor.

- Não era melhor irmos à casa do V..., pois que é ele o organizador do gabinete? perguntei.

- Primeiramente, não temos tamanho interesse que justifique esse passo, respondeu o C...; depois, é natural que ele não nos possa falar. Organizar um gabinete não é coisa simples. Finalmente, apenas o gabinete estiver organizado cá saberemos na rua qual ele é.

A rua do Ouvidor é lindíssima à noite. Estão os rapazes às portas das lojas, vendo passar as moças, e como tudo está iluminado, não imaginas o efeito que faz.

Confesso que me esqueceu o ministério e a crise. Havia então menos quem cuidasse de política; a noite da rua do Ouvidor pertence exclusivamente à fashion, que é menos dada aos negócios do Estado que os frequentadores de dia. Todavia, achamos alguns grupos onde se dava como certa a organização do gabinete, mas não se sabia ao certo quem eram os ministros todos.

Encontramos os mesmos amigos da manhã.

Ora, justamente quando o Mendonça se dispunha a ir colher alguma coisa certa, apareceu o desembargador com o rosto alegre.

- Que há?

- Está organizado.

- Mas quem são?

O desembargador tirou do bolso uma lista.

- São estes.

Lemos os nomes à luz do lampião de um mostrador. O Mendonça não gostou do gabinete; o Abreu achou-o excelente; o Lima, fraco.

- Mas isto é certo? perguntei eu.

- Deram-me agora esta lista; creio que é autêntica.

- O que é? o que é; perguntou por traz de mim uma voz.

Era um sujeito moreno e bigode grisalho.

- Sabe quem são? perguntou-lhe o Abreu.

- Tenho uma lista.

- Vejamos se combina com esta.

Costearam-se as listas; havia engano num nome.

Mais adiante encontramos outro grupo lendo outra lista. Divergiam em dois nomes. Alguns sujeitos que não tinham lista copiavam uma delas deixando de copiar os nomes duvidosos, ou escrevendo-os todos com uma cruz à margem. Corriam assim as listas até que apareceu uma com ares de autêntica; outras foram aparecendo no mesmo sentido e às 9 horas da noite sabíamos positivamente, sem arredar pé da rua do Ouvidor, qual era o gabinete.

O Mendonça ficou alegre com o resultado da crise. Perguntaram-lhe porque razão.

- Tenho dois compadres no ministério! respondeu ele.

Aqui tens o quadro infiel de uma crise ministerial no Rio de Janeiro. Infiel digo, porque o papel não pode conter os diálogos, nem as versões, nem os comentários, nem as caras de um dia de crise. Ouvem-se, contemplam-se; não se descrevem.

Fonte:
Machado de Assis. Contos avulsos.

sábado, 11 de janeiro de 2020

Varal de Trovas n. 159


Eça de Queirós (A Aia)


Era uma vez um rei, moço e valente, senhor de um reino abundante em cidades e searas, que partira a batalhar por terras distantes, deixando solitária e triste a sua rainha e um filhinho, que ainda vivia no seu berço, dentro das suas faixas.

A lua cheia que o vira marchar, levado no seu sonho de conquista e de fama, começava a minguar, quando um dos seus cavaleiros apareceu, com as armas rotas, negro do sangue seco e do pó dos caminhos, trazendo a amarga nova de uma batalha perdida e da morte do rei, trespassado por sete lanças entre a flor da sua nobreza, à beira de um grande rio.

A rainha chorou magnificamente o rei. Chorou ainda desoladamente o esposo, que era formoso e alegre. Mas, sobretudo, chorou ansiosamente o pai, que assim deixava o filhinho desamparado, no meio de tantos inimigos da sua frágil vida e do reino que seria seu, sem um braço que o defendesse, forte pela força e forte pelo amor.

Desses inimigos o mais temeroso era seu tio, irmão bastardo do rei, homem depravado e bravio; consumido de cobiças grosseiras, desejando só a realeza por causa dos seus tesouros, e que havia anos vivia num castelo sobre os montes, com uma horda de rebeldes, à maneira de um lobo que, de atalaia no seu fojo*, espera a presa. Ai! a presa agora era aquela criancinha, rei de mama, senhor de tantas províncias, e que dormia no seu berço com seu guizo de ouro fechado na mão!

Ao lado dele, outro menino dormia noutro berço. Mas era um escravozinho, filho da bela e robusta escrava que amamentava o príncipe. Ambos tinham nascido na mesma noite de verão. O mesmo seio os criara. Quando a rainha, antes de adormecer, vinha beijar o principezinho, que tinha o cabelo louro e fino, beijava também, por amor dele, o escravozinho, que tinha o cabelo negro e crespo. Os olhos de ambos reluziam como pedras preciosas. Somente, o berço de um era magnífico de marfim entre brocados, e o berço de outro, pobre e de verga. A leal escrava, porém, a ambos cercava de carinho igual, porque, se um era o seu filho, o outro seria o seu rei.

Nascida naquela casa real, ela tinha a paixão, a religião dos seus senhores. Nenhum pranto correra mais sentidamente do que o seu pelo rei morto à beira do grande rio. Pertencia, porém, a uma raça que acredita que a vida da terra se continua no céu. O rei seu amo, decerto, já estaria agora reinando em outro reino, para além das nuvens, abundante também em searas e cidades. O seu cavalo de batalha, as suas armas, os seus pajens tinham subido com ele às alturas. Os seus vassalos, que fossem morrendo, prontamente iriam, nesse reino celeste, retomar em torno dele a sua vassalagem. E ela, um dia, por seu turno, remontaria num raio de lua a habitar o palácio do seu senhor, e a fiar de novo o linho das suas túnicas, e a acender de novo a caçoleta* dos seus perfumes; seria no céu como fora na terra, e feliz na sua servidão.

Todavia, também ela tremia pelo seu principezinho! Quantas vezes, com ele pendurado do peito, pensava na sua fragilidade, na sua longa infância, nos anos lentos que correriam, antes que ele fosse ao menos do tamanho de uma espada, e naquele tio cruel, de face mais escura que a noite e coração mais escuro que a face, faminto do trono, e espreitando de cima do seu rochedo entre os alfanges da sua borda! Pobre principezinho da sua alma! Com uma ternura maior o apertava nos braços. Mas o seu filho chalrava* ao lado, era para ele que os seus braços corriam com um ardor mais feliz. Esse, na sua indigência, nada tinha a recear a vida. Desgraças, assaltos da sorte má nunca o poderiam deixar mais despido das glórias e bens do mundo do que já estava ali no seu berço, sob o pedaço de linho branco que resguardava a sua nudez. A existência, na verdade, era para ele mais preciosa e digna de ser conservada que a do seu príncipe, porque nenhum dos duros cuidados com que ela enegrece a alma dos senhores roçaria sequer a sua alma livre e simples de escravo. E, como se o amasse mais por aquela humildade ditosa, cobria o seu corpinho gordo de beijos pesados e devoradores, dos beijos que ela fazia ligeiros sobre as mãos do seu príncipe.

No entanto, um grande temor enchia o palácio, onde agora reinava uma mulher entre mulheres. O bastardo, o homem de rapina, que errava no cimo das serras, descera à planície com a sua horda, e já através de casais e aldeias felizes ia deixando um sulco de matança e ruínas. As portas da cidade tinham sido seguras com cadeias mais fortes. Nas atalaias ardiam lumes mais altos. Mas à defesa faltava disciplina viril. Uma roca não governa como uma espada. Toda a nobreza fiel perecera na grande batalha. E a rainha desventurosa apenas sabia correr a cada instante ao berço do seu filhinho e chorar sobre ele a sua fraqueza de viúva. Só a ama leal parecia segura, como se os braços em que estreitava o seu príncipe fossem muralhas de uma cidadela que nenhuma audácia pode transpor.

Numa noite, noite de silêncio e de escuridão, indo ela a adormecer, já despida, no seu catre, entre os seus dois meninos, adivinhou, mais que sentiu, um curto rumor de ferro e de briga, longe, à entrada dos vergéis reais. Embrulhada à pressa num pano, atirando os cabelos para trás, escutou ansiosamente. Na terra areada, entre os jasmineiros, corriam passos pesados e rudes. Depois houve um gemido, um corpo tombando molemente, sobre lajes, como um fardo. Descerrou violentamente a cortina. E além, ao fundo da galeria, avistou homens, um clarão de lanternas, brilhos de armas... Num relance tudo compreendeu: o palácio surpreendido, o bastardo cruel vindo roubar, matar o seu príncipe! Então, rapidamente, sem uma vacilação, uma dúvida, arrebatou o príncipe do seu berço de marfim, atirou-o para o pobre berço de verga, e, tirando o seu filho do berço servil, entre beijos desesperados, deitou-o no berço real que cobriu com um brocado.

Bruscamente um homem enorme, de face flamejante, com um manto negro sobre a cota de malha, surgiu à porta da câmara, entre outros, que erguiam lanternas. Olhou, correu o berço de marfim onde os brocados luziam, arrancou a criança como se arranca uma bolsa de ouro, e, abafando os seus gritos no manto, abalou furiosamente.

O príncipe dormia no seu novo berço. A ama ficara imóvel no silêncio e na treva. Mas brados de alarme irromperam, de repente, no palácio. Pelas janelas perpassou o longo flamejar das tochas. Os pátios ressoavam com o bater das armas. E desgrenhada, quase nua, a rainha invadiu a câmara, entre as aias, gritando pelo seu filho! Ao avistar o berço de marfim, com as roupas desmanchadas, vazio, caiu sobre as lajes num choro, despedaçada. Então, calada, muito lenta, muito pálida, a ama descobriu o pobre berço de verga... O príncipe lá estava quieto, adormecido, num sonho que o fazia sorrir, lhe iluminava toda a face entre os seus cabelos de ouro. A mãe caiu sobre o berço, com um suspiro, como cai um corpo morto. E nesse instante um novo clamor abalou a galeria de mármore. Era o capitão das guardas, a sua gente fiel. Nos seus clamores havia, porém, mais tristeza que triunfo. O bastardo morrera! Colhido, ao fugir, entre o palácio e a cidadela, esmagado pela forte legião de arqueiros, sucumbira, ele e vinte da sua horda. O seu corpo lá ficara, com flechas no flanco, numa poça de sangue. Mas, ai dor sem nome! O corpinho tenro do príncipe lá ficara também envolto num manto, já frio, roxo ainda das mãos ferozes que o tinham esganado! Assim tumultuosamente lançavam a nova cruel os homens de armas, quando a rainha, deslumbrada, com lágrimas entre risos, ergueu nos braços, para lhes mostrar, o príncipe que despertara.

Foi um espanto, uma aclamação. Quem o salvara? Quem?... Lá estava junto do berço de marfim vazio, muda e hirta, aquela que o salvara! Serva sublimemente leal! Fora ela que, para conservar a vida ao seu príncipe, mandara à morte o seu filho... Então, só então, a mãe ditosa, emergindo da sua alegria estática, abraçou apaixonadamente a mãe dolorosa, e a beijou, e lhe chamou irmã do seu coração... E de entre aquela multidão que se apertava na galeria veio uma nova, ardente aclamação, com súplicas de que fosse recompensada magnificamente a serva admirável que salvara o rei e o reino.

Mas como? Que bolas de ouro podem pagar um filho? Então um velho de casta nobre lembrou que ela fosse levada ao Tesouro real, e escolhesse de entre essas riquezas, que eram como as maiores dos maiores tesouros da Índia, todas as que o seu desejo apetecesse...

A rainha tomou a mão da serva. E sem que a sua face de mármore perdesse a rigidez, com um andar de morta, como um sonho, ela foi assim conduzida para a Câmara dos Tesouros.

Senhores, aias, homens de armas, seguiam, num respeito tão comovido, que apenas se ouvia o roçar das sandálias nas lajes. As espessas portas do Tesouro rodaram lentamente. E, Quando um servo destrancou as janelas, a luz da madrugada, já clara e rósea, entrando pelos gradeamentos de ferro, acendeu um maravilhoso e faiscante incêndio de ouro e pedrarias! Do chão de rocha até às sombrias abóbadas, por toda a câmara, reluziam, cintilavam, refulgiam os escudos de ouro, as armas marchetadas, os montões de diamantes, as pilhas de moedas, os longos fios de pérolas, todas as riquezas daquele reino, acumuladas por cem réis durante vinte séculos. Um longo — Ah! — lento e maravilhado, passou por sobre a turba que emudecera.

Depois houve um silêncio ansioso. E no meio da câmara, envolta na refulgência preciosa. a ama não se movia... Apenas os seus olhos, brilhantes e secos, se tinham erguido para aquele céu que, além das grades, se tingia de rosa e de ouro. Era lá, nesse céu fresco de madrugada, que estava agora o seu menino. Estava lá, e já o Sol se erguia, e era tarde, e o seu menino chorava decerto, e procurava o seu peito!... E então a ama sorriu e estendeu a mão. Todos seguiam, sem respirar aquele lento mover da sua mão aberta. Que joia maravilhosa, que fio de diamantes, que punhado de rubis ia ela escolher?

A ama estendia a mão, e sobre um escabelo ao lado, entre um molho de armas, agarrou um punhal. Era um punhal de um velho rei, todo cravejado de esmeraldas, e que valia uma província.

Agarrara o punhal, e com ele apertado fortemente na mão, apontando para o céu, onde subiam os primeiros raios do Sol, encarou a rainha, a multidão, e gritou:

— Salvei o meu príncipe, e agora... vou dar de mamar ao meu filho.

E cravou o punhal no coração.
___________________
Glossário:
Caçoleta = cadinho; recipiente.
Chalrava =Emitia vozes inarticuladas (crianças).
Fojo = Buraco aberto na terra e disfarçado com folhas ou galhos para caçar, vivos, bichos ferozes.

Fonte:
Eça de Queirós. Contos. Ciberfil Literatura Digital, 2002

Filemon F. Martins (Poemas Escolhidos) VI


MINHA PAIXÃO
Não consigo entender porque partiste,
deixando-me sozinho em terra estranha.
Hoje, não tenho a luz e sou mais triste,
porque sem ti, o amor não me acompanha.

Como esquecer a mágoa que me assiste,
— se a saudade chegou cheia de manha?
Teu perfume de flor ainda insiste
em aumentar a minha dor tamanha...

Por que fugiste assim, minha poesia,
eras tu meu querer, minha alegria,
a energia que vibra no meu ser.

Tu és da minha casa, a grande porta,
a inspiração ardente que conforta
para escrever meu verso até morrer.
* * * * * * * * * * * * * *

O BEIJA-FLOR
Levanto cedo e veja quem me espera,
um lindo beija-flor beijando a rosa.
Não para de adejar, ai quem me dera
sugar também aquela flor mimosa.

Quantas flores o beija-flor paquera
e baila no ar buscando a flor ditosa
e se exibe num voo que acelera
à procura da flor, a mais viçosa.

De flor em flor consegue seu intento,
mesmo voando em luta contra o vento
para beijar, feliz, mais uma flor...

Também o bardo — beija-flor certeiro,
de verso em verso vai buscar faceiro
dentro do peito uma canção de amor.
* * * * * * * * * * * * * *

SEM FRONTEIRAS

Viajo com as nuvens. Sou poeta.
Gosto de dar vazão ao pensamento,
Sou capaz de chegar ao firmamento
e voltar para a terra como atleta.

Na terra, pego a minha bicicleta,
vou pedalando mesmo contra o vento,
enquanto os versos nascem no acalento
de uma paixão suave e não secreta…

Não há fronteiras, pois o amor é brando,
poetas são assim, vivem sonhando
com um mundo feliz e mais humano.

Não importa se a vida é muito breve,
importa o amor que faz o peso leve,
quando o perdão se torna soberano.
* * * * * * * * * * * * * *

SOMOS UM

Hoje, voltas depois de tanto tempo
e enlaças outra vez a minha vida.
Meu coração de amor se faz sedento
e busca no teu seio uma acolhida.

E se te vejo esbelta, o sentimento
cresce no peito com paixão sofrida:
ficar longe de ti é meu tormento
e a noite fica longa e mal-dormida.

Desperta o sol. Os pássaros em festa,
o amor renasce e entoa uma seresta
à vida que sonhei te amando assim...

E quanto mais te beijo, mais te quero,
e em te querendo, mais eu te venero,
pois somos um e estás dentro de mim!
* * * * * * * * * * * * * *

SÚPLICA

Sou um estranho no Planeta Terra,
onde o certo nem sempre prevalece,
onde o forte se impõe, fazendo guerra,
e o amor no coração desaparece.

Vou fugir da cidade para a serra,
quero elevar meu pensamento em prece,
vou meditar, quem sabe assim encerra
a solidão que fere e não aquece.

Escárnio, ingratidão e desengano,
contaminam a terra e o ser humano,
ninguém escapa ileso a tanta dor.

Suplico, pois, Senhor, que ponha fim
ao desconforto de sofrer assim,
melhor viver à sombra de um amor.
* * * * * * * * * * * * * *

 VELHO MAR

Nasci longe do mar, mas seduzido
por seu fascínio belo, encantador,
fico ouvindo, na praia, o seu gemido
e os madrigais de um velho pescador.

Mas às vezes me sinto assim perdido
como um barco singrando sem motor,
ouço as ondas num grito dolorido,
uma angústia que cala a própria dor.

Vejo da praia, a imensidão do mar,
as ondas que o rochedo vêm beijar,
depois, voltam serenas sem rancor.

Cada onda que vem morrer na praia,
parece a minha vida que desmaia
ao pensar em perder o teu amor.

Fonte:
Filemon Francisco Martins. Anseios do coração. São Paulo: Scortecci, 2011.