domingo, 29 de março de 2020

Arthur de Azevedo (Ingenuidade)


    O Vaz desejava a Ernestina Friandes, não porque ela não tivesse todas as aparências de uma senhora honesta; desejava-a, porque o marido, o Friandes, era um pax vobis, que estava mesmo a pedir que o enganassem.

    Quando, após quatro meses de. perseguições incessantes, o sedutor conseguiu a promessa de uma entrevista, ficou muito atrapalhado, por não saber aonde levar a moça. Em casa dela era impossível um encontro: havia a tia Chiquinha Friandes, velhinha esperta e desconfiada; em casa dele também não podia ser, porque ele não tinha casa; apesar dos seus trinta anos, vivia ainda sob o teto e às sopas do pai.
* * *

    O nosso herói lembrou-se, afinal, de um amigo muito dado a cavalarias altas. Foi ter com ele, expôs-lhe a situação e pediu-lhe que lhe arranjasse um ninho.

    - Tu compreendes! Não posso nem devo levá-la a uma dessas casas de alugar quartos, que toda a gente conhece! Seria abusar da sua inocência!

    - Então a pequena é tão inocente assim?

    - Se é! Não fala senão de pálpebras caídas, e qualquer coisa lhe faz subir o rubor às faces! Sou o seu primeiro amante!

    - Deixa-te dessas pretensões! A gente nunca é o primeiro amante!

    - Falas assim porque não a conheces.

    - Vou indicar-te um lugar aonde podes levá-la com toda a segurança, porque é uma casa que ainda não está conhecida. Rua tal, número tantos. Vai até lá e procura de minha parte a D. Efigênia, que te servirá perfeitamente. Olha, leva-lhe o meu cartão.

    O Vaz foi à casa indicada e obteve o que desejava: um bom quarto, espaçoso, bem mobiliado, arejado, com todos os requisitos, inclusive o de ficar logo no topo da escada, de modo que ele e a Ernestina poderiam entrar sem ser vistos.

    * * *

    No dia da entrevista, correu tudo às mil maravilhas. O Vaz esperou a sua presa na esquina; ele entrou primeiro, ela depois, e lá se demoraram perto de hora e meia.

    Por que tanto tempo? Por que uma virtude não cai com a mesma facilidade que as paredes do Hospital da Penitência!

    Arrependida de haver subido aquela escada infame, a Ernestina resistiu quanto pôde.

    - Não! Não! Não!... eu quero conservar-me fiel aos meus deveres!... Que juízo estará o senhor a fazer de mim?...

    O Vaz - justiça se lhe faça - não respondeu como Pedro I, que era um bruto.

    - E o Friandes?... e o meu pobre Friandes que tem tanta confiança em mim?...
    * * *

    A Ernestina saiu primeiro. O Vaz ainda ficou, e D. Efigênia veio perguntar-lhe com o mais amável dos seus sorrisos:

    - Então? Agradou-lhe o quarto?

    - Muito e, se a senhora quisesse, eu ficaria com ele só para mim.

    - Ah! Isso não pode ser.

    - Por quê?

    - Porque há um cavalheiro e uma dama que têm este cômodo tomado para todas as quartas e sábados, às quatro horas. Não sendo nesses dias e a essa hora, o quarto é seu.

    - Bom.

    O Vaz pagou generosamente a hospedagem e saiu.
* * *

    No dia seguinte lembrou-se que era sábado, e, sendo um desocupado, sentiu desejos de conhecer a dama e o cavalheiro das 4 horas. Para isso, postou-se, no momento aprazado, bem defronte da casa hospitaleira, arranjando, por trás de uma árvore um magnífico posto de observação.

    O cavalheiro foi o primeiro a chegar. Era um velho com todas as aparências de respeitável.

    A dama pouco se demorou: era a própria Ernestina Friandes. Imaginem a surpresa do Vaz, que daquele momento em diante, convencido de que o ingênuo fora ele, nunca mais se fiou na ingenuidade das mulheres.

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos Vários.

Solimar Braga de Oliveira (Baú de Trovas)


A mulher quando quer, manda,
mas quando manda não quer;
quando ela manda, desmanda.
- Quem entende o que é mulher?
- - - - - –

Anda a honra tão sem jeito,
neste mundo camuflada,
que, agora, qualquer sujeito
a exibe como fachada!
- - - - - –

As pessoas geralmente
deixam seu rastro no chão;
– o teu rastro unicamente
ficou no meu coração…
- - - - - –

As redondilhas que amamos,
e têm realce e frescor,
são sempre aquelas que armamos
com o cimento do amor…
- - - - - –

A verdade seja dita
numa trova sem valor:
– em cada mulher bonita
se encontra um verso de amor.
- - - - - –

Chegando ao fim da jornada,
sem passado e sem futuro,
no presente encontro o nada
porque nada mais procuro…
- - - - - –

Conhecerás pelos frutos
as plantas, boas ou más:
– vê que os homens dissolutos
não darão frutos de paz…
- - - - - –

Cultiva, amigo, a bondade,
E algum dia entenderás
que a maior felicidade
está no bem que se faz…
- - - - - –

Curvo-me ao fado perverso,
como te confesso assim:
-Sempre a buscar-te em meu verso,
sempre a fugires de mim!
- - - - - –

E aqui deixo a última nota
destas Trovas, coração:
– Eu, no amor, só vi derrota,
engano, nada, ilusão…
- - - - - –

Eu levo a vida cismando
no tempo todo perdido
do tempo em que andei sonhando
um tempo nunca vivido.
- - - - - –

Meu destino nesta vida
há de sempre ser assim:
– sempre a lembrar-te, querida,
sempre a fugires de mim…
- - - - - –

Não amo a felicidade,
que ninguém tem e não vê;
- amo a sombra da saudade
que me fala de você…
- - - - - –

Na velhice a gente vela,
talvez pensando, acordado:
– a vida não era aquela
que eu esbanjei no passado…
- - - - - –

Na vida, oceano inclemente,
de engano e tantos escolhos,
navega a infância inocente
tendo a esperança nos olhos.
- - - - - –

Nesta existência a alegria,
experimenta e verás,
está na doce poesia
de todo o bem que se faz…
- - - - - –

Promessas de amor! Inúteis
ilusões da humana lida!
– Assim, de coisinhas fúteis
vamos construindo a vida.
- - - - - –

Tenho o coração magoado,
não que me julgue infeliz,
mas por nunca ter amado
como devia e não quis…
- - - - - –

Tudo ilude, tudo mente,
na vida cheia de escolhos:
muita gente há descontente
com um sorriso nos olhos…
- - - - - –

Uma verdade parece
muita gente definir:
– quem muito sobe se esquece
que também pode cair…
______________________

Nasceu em Juiz de Fora, MG, em de 1913.  Filho do escritor e poeta Luiz J.de Oliveira e da educadora Ypoméia Braga de Oliveira.  Poeta, cronista, novelista, ensaísta, jornalista.   Iniciou os estudos no antigo grupo Escolar "Padre Anchieta" e depois no Colégio Nacional do Rio de Janeiro.  Em 1929, muda-se com os pais para Cachoeiro de Itapemirim (ES), onde deu continuidade a seus estudos no Ginásio "Pedro Palácios", depois Liceu "Muniz Freire".  Cursou Farmacologia na escola de Farmácia e Odontologia de Vitória.

A partir de 1930, dedica-se ao jornalismo e à literatura, tendo exercido a função de correspondente, diretor de sucursal, redator-chefe de jornais, revistas e emissoras de rádio de Cachoeiro de Itapemirim.  Fundou, organizou e tornou-se o 1º diretor do Departamento de Imprensa Oficial do Município de Cachoeiro de Itapemirim.  Integrou o quadro de colaboradores efetivos da "Revista Panamericana", editada no México e a "Revista Cachoeiro".  Foi membro correspondente da Academia Mineira de Letras, da Union Cultural Americana de Buenos Aires; do Grêmio Brasileiro de trovadores, de Salvador-BA.; da Academia Pedralva, de Campos-RJ.; do Centro de Los Insignidos de América, de Buenos Aires; da Liga Afetiva Portugal-Brasil, de Lisboa. Membro da Academia Híspano-Americana, de Costa Rica (Conselheiro n.º 76); da Academia Cachoeirense de Letras; da qual foi Presidente, ocupando a cadeira n.º 3; da Academia de Filosofia, Ciências e Letras de Anapolina-GO. Faleceu em Cachoeiro de Itapemirim/ES, em 1991.

Obras: "Ilha da Luz", 1947 (poesia); "A lágrima do Natal", 1949 (poesia); "Cidade Antiga", 1953 (poesia); "Ânfora Azul, 1956 (poesia); "Lamentação de Orfeu", 1957 (poesia); "Sangrando Mágoas", 1957 (poesia); "Paisagem Interior e outras paisagens, 1982.

Fontes:
Paulo Monteiro. A Trova no Espírito Santo.
Elmo Elton. Poetas do Espírito Santo.

Ernest Hemingway (Dicas para Escritores)


– Evite o grandioso. Recuse o épico. A pessoa que pinta quadros enormes muito bons, pode também pintar quadros pequenos muito bons.

– Escrever bem é escrever sinceramente. Se uma pessoa está escrevendo uma estoria, será verdadeira e sincera em relação à soma de conhecimentos da vida que possui. Se não souber como muitas pessoas agem e pensam, como se processam seus pensamentos e ações, a sua boa estrela poderá poupá-lo por algum tempo ou talvez possa escrever estorias da carochinha. Se continuar escrevendo sobre aquilo que não conhece, acabará por descobrir que não passa de uma fraude, de uma mistificação.

– O melhor é parar sempre quando o negócio está saindo bem e você sabe o que irá acontecer a seguir. Se fizer isso todos os dias, quando está escrevendo um romance, nunca ficará travado num beco sem saída. Assim, o seu subconsciente estará trabalhando ativamente em torno do assunto o tempo todo.

– É inútil escrever qualquer coisa que já tenha sido escrita antes, a menos que você possa superá-la. O que um escritor tem a fazer, no nosso tempo, é escrever o que não foi escrito antes ou bater os escritores mortos naquilo que fizeram. A maioria dos escritores vivos não existe. É como um corredor de milha fazendo o percurso contra o relógio em vez de tentar, apenas, bater quem estiver correndo na pista com ele. Se não correr contra o tempo, nunca saberá do que é capaz de atingir.

– Observe o que acontece hoje. Se encontrar um peixe, observe exatamente o que cada um faz. Se sentir um súbito alvoroço, uma excitação peculiar, quando vir o peixe saltar fora da água, reconstrua todas as suas recordações até perceber exatamente qual foi a ação que provocou em você aquela emoção.

– Meta-se na cabeça de outra pessoa, para variar. Se eu berrar com você, procure imaginar tanto o que é que eu estou pensando como o que você sentiu quando eu berrei.

– Quando as pessoas falam, você deve escutá-las completamente. Não fique pensando no que vai responder, no que deve dizer a seguir. A maioria das pessoas não ouve. Você deve estar capacitado para entrar numa sala e, quando sair, saber tudo o que ali viu e não só isso. Se essa sala lhe despertou algum sentimento, deverá saber exatamente o que foi que lhe deu esse sentimento.

– Às vezes, quando tenho dificuldades em escrever, leio meus próprios livros para levantar-me o ânimo, e depois recordo que sempre foi difícil, as vezes quase impossível escrevê-los.

– Evite utilizar adjetivos, especialmente os extravagantes como “esplêndido, grandioso, magnífico, suntuoso.”

- Escreva frases breves. Comece sempre com uma oração curta. Utilize uma linguagem vigorosa. Seja positivo, não negativo.

– Um escritor, se serve, não descreve. Inventa ou constrói a partir do conhecimento pessoal ou impessoal.

– O problema que tem um escritor não se altera. Ele mesmo muda, mas seus problemas permanecem os mesmos. É sempre sobre como escrever com sinceridade e, uma vez encontrado o que é verdadeiro, projete-o de tal forma que se torne parte da experiência da pessoa que o lê.

– Minha tentação é sempre escrever demais. Eu mantenho isso sob controle, então eu não preciso cortar palha e reescrever. Indivíduos que pensam que são gênios porque nunca aprenderam a dizer não a uma máquina de escrever, são um fenômeno comum.

– É melhor ler tudo todos os dias desde o início, corrigindo como você vai, então vá para onde parou no dia anterior. Quando isso for feito por tanto tempo que não pode fazê-lo todos os dias, releia dois ou três capítulos por dia. Então leia tudo desde o início todas as semanas. É assim que você faz tudo de uma só vez.

– Escrevo uma página magistral para cada noventa e uma que é porcaria. Tento jogar toda a porcaria no lixo. O presente mais essencial para um bom escritor é ter um detector de porcaria interno. É o radar do escritor e todos os grandes têm tido isso. Se você vai escrever, você precisa descobrir o que não funciona para você.

– Quando um escritor escreve uma romance, ele deve criar pessoas vivas; pessoas, não personagens. As pessoas de um romance, e não os personagens construídos com habilidade, devem ser projetados a partir da experiência assimilada do escritor, de seu conhecimento, de sua cabeça, de seu coração e de todos os seus.

– O importante é trabalhar todos os dias. Trabalho das 7 até o meio dia. Então vou pescar ou nadar ou qualquer outra coisa que eu queira.

– O jargão que você adota deve ser recente, caso contrário não funciona.

– Nunca pense sobre a história quando você não está trabalhando.

– Pelo amor de Deus, escreva e não se preocupe com o que os outros vão dizer, ou se será uma obra-prima ou o que.

Fonte:
Compilação de escritos em livros de Ernest Hemingway.
Vilto Reis.

sábado, 28 de março de 2020

Varal de Trovas n. 222


Isabel Furini (Âmago dos Sonhos)


J. G. de Araújo Jorge (O Canto da Terra) 5


DEDICATÓRIA

Dedico  este  livro  aos  irmãos  da   América   e  do   Mundo,
não importa que cruzem as pernas nos "pagodes" exóticos
ou sigam a palavra de Confúcio no templo de papel e de bambu;
que subam aos minaretes, se curvem beijando a terra,
ou simplesmente se ajoelhem no palácio de vitrais e incensos;
que dispam a palavra de Cristo de púrpuras e de ouros,
ou que sigam sem Deus, a procurá-lo nos livros...

Dedico este meu livro a todos os irmãos da América e do Mundo,
negros  ou  brancos,  amarelos  ou  vermelhos,  azuis   ou  roxos,
altos ou baixos, gordos ou magros, louros ou castanhos;
nos que ainda não morreram e aos que ainda poderão vir;
aos das planícies e dos campos, aos das florestas e das montanhas,
aos dos gelos e dos desertos,
aos das aldeias e das cidades,
aos dos faróis e aos da solidão,
aos dos navios, dos aviões ou dos subterrâneos,
a todos os homens, sem a menor distinção,
basta que creiam ainda na Vida e em nós mesmos.

Por isso escrevi este livro
como se abrisse uma veia, para o sangue aliviar o coração;
como se colhesse um fruto para o desejo inábil;
como se trouxesse água na mão, para a boca sedenta e empoeirada;
como se escrevesse sem palavras, e pudesse chegar a todos os ouvidos
e a todas as consciências
sem tradução...
Por isso escrevi este livro. Como quem acende uma lanterna
para descobrir que não está perdido...

Não se admirem irmãos, se as suas letras tiverem a cor do meu sangue,
porque elas são o meu sangue que vos ofereço,
são uma doação que faço aos que ainda creem que vivem,
mesmo aos que não poderão se refazer,
porque nunca sabemos os que resistirão...
              
Que este livro, pois, possa ao menos ser útil como o sangue,
como o ar, ou como o pão,
e possa prolongar algumas esperanças
confortar alguns momentos finais
e salvar alguns desesperos...

Que ao menos, chegue a tempo, para alguns…
****************************************

DEPOIS
    (A Erich Maria Remarque - 1939)
 

E as ruas se encheram de inválidos e mutilados
com seus estranhos vultos...

E as mulheres de preto, como espectros insepultos
      de maridos,
  de filhos,
de pais,
de noivos
e namorados,
levavam velas acesas dentro dos olhos parados...

E os caminhos caíram nas pontes desconjuntadas,  
e os campos se encheram de feridas e cicatrizes,
e as árvores voltaram para os céus a angústia  
das raízes!

E os oceanos levantaram ondas asmáticas
como se dentro delas lutassem as ânsias
de todos os afogados à procura de ar!...
E os céus se cobriram de véus negros de fumo
como quem venda os olhos
para não olhar!

E brotaram cidades de sombras e cruzes
nas ruínas das cidades viradas do avesso,
... pelos ermos, descampados...

E as chaminés pararam de fumegar
sobre os telhados,
e após o sobressalto das noites e das correrias
todas as portas se cerraram sobre o gemido dos vivos
como pálpebras frias! . . .

E as igrejas se encheram de criminosos reincidentes
e arrependidos
com as almas pesadas como as águas salubres,
se encheram dos homens que pensam que creem
em Deus!

E as vitrinas da Vida se esvaziaram
para encher as vitrinas dos museus!

E em cada esquina ficou um lenço tinto de vermelho
com a cruz dos hospitais,
como a clamar aos homens que batiam com os cascos:

_ " Paz !... "
.......................................
E o homem de galões, com o peito cheio de insígnias,
e medalhas,
tendo ainda no ouvido o ruído das metralhas
e o roncar do canhão,

- saiu correndo, louco, a gritar pela Pátria !

Queria encontrar a PÁTRIA
para pedir perdão!
****************************************

DIANTE DAS CRIANÇAS NUAS...
  
  Já pensaste num mundo sem vagabundos e indigentes
onde não seremos rebanhos porque teremos intacto o pensamento
e o coração?

Já pensaste num mundo onde não nos envergonharemos
dos nossos lares e dos nossos filhos,
e onde não haverá irmãos famintos e maltrapilhos?
........................

Bendigo a tua inconsciência por que nada pensaste
diante destas crianças descalças e nuas,
- não, não podes compreender meu sofrimento
nem sabes ler o libelo que eu vejo escrito nas ruas!
****************************************

DISCURSO
      (A Cássio Chaves- 1944)
  
Senhores,
eu vos peço um segundo de silêncio
ao menos um segundo,
pelos que sofrem, lutam e morrem
pelos homens e pelo mundo...

Por todos os que se levantaram, e acorreram, e seguiram
novamente crentes e esperançosos
e abandonaram suas terras, seus lares, seus arados,
e morreram com a liberdade nos lábios entreabertos
e silenciosos;
pelos que, sem pão, vagavam famintos
- humilhados pelos homens que passavam indiferentes
e agressivos;
pelos que, sem lar, nunca encontraram a mesa posta
nem crianças correndo a gritar nas calçadas;
pelos que, sem teto, andaram sem destino,
namorando as estrelas e invejando as casas todas
à margem das estradas...

Pelos que nunca tiveram pais, nem mãos amigas
descobrindo um rumo ou servindo de amparo;
pelos que nunca puderam amar, e invejaram os próprios cães
quando o amor é tão caro;
pelos que sem segurança e meios, sem qualquer instrumento,
esqueceram certo dia o próprio pensamento
e andaram sempre ao léu,
a arrastar os pés na terra
e a olhar, em vão, o céu. . .

Senhores,
eu vos peço um segundo de silêncio
por eles que acorreram, e seguiram, e se levantaram,
e foram lutar por um mundo melhor,
- por eles que infelizmente não voltaram
ou felizmente - quem sabe? - se a volta ainda for pior...

Senhores, eu vos peço silêncio, ao menos um segundo,
por eles, que como nós, acreditaram nos homens,
acreditaram no mundo...!

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. O Canto da Terra. 1945.

Irmãos Grimm (Elsie, a Sensata)


Era uma vez um homem que tinha uma filha que se chamava Elsie, a sensata. E quando ela já tinha crescido o pai dela falou:

– "Nós vamos casá-la."

- "Sim - disse a mãe - se encontrarmos alguém que queira desposá-la."

Finalmente, apareceu um homem que morava muito longe e começou a cortejá-la, ele se chamava Hans, mas sua única exigência era que a sensata Elsie fosse realmente inteligente.

– "Oh, – disse o pai - ela é muito perspicaz"

E a mãe dizia:

"Oh, ela consegue ver o vento caminhando pelas ruas, e ouvir as moscas tossindo."

- "Bem, - disse Hans - se ela não for verdadeiramente inteligente, não irei desposá-la."

Quando eles já estavam sentados para jantar e haviam comido, a mãe falou:

- "Elsie, vá até o depósito e traga um pouco de cerveja."

Então, Elsie, a sensata, pegou o jarro que estava na parede, foi até onde guardavam a cerveja, e ia batendo levemente na tampa a medida que caminhava para que o tempo passasse rápido. Tendo chegado lá embaixo ela pegou uma cadeira, e a colocou diante do barril para que ela não precisasse inclinar-se, para não machucar as costas ou para que não se machucasse inadvertidamente. Então, ela colocou o vasilhame na frente, e abriu a torneira, e quando a cerveja estava caindo ela olhava para a parede, para que seus olhos não dormissem, e depois de muito espiar para lá e para cá, ela viu uma picareta bem em cima dela, e que os pedreiros haviam esquecido lá acidentalmente.

Então, Elsie, a sensata, começou a chorar e disse:

– "Se eu me casar com o Hans, e nós tivermos um filho, e ele ficar grande, e nós o mandarmos até o depósito aqui para buscar cerveja, então, a picareta poderá cair na cabeça dele e matá-lo."

Então, ela chorou sentada e gritava com todas as forças do seus pulmões, sobre o infortúnio que poderia acontecer com ela. A família, na sala de jantar, ficou esperando a bebida, mas Elsie, a sensata, não retornava. Então, a mulher disse para a criada:

– "Desça até o depósito e procure onde está a Elsie."

A criada obedeceu e a encontrou sentada diante do barril, gritando em voz alta.

– "Elsie, porque estais chorando?" – perguntou a criada.

– "Ah, – respondeu ela – será que não tenho motivos para chorar? Se eu me casar com o Hans, e nós tivermos um filho, quando ele crescer, e tiver de buscar cerveja aqui no depósito, a picareta poderá cair na cabeça dele, e matá-lo."

Então, a criada respondeu:

"Mas que garota sensata nós temos aqui!", e se sentou ao lado dela e começou a chorar em voz alta também, lamentando tão grande infortúnio.

Depois de algum tempo, como a criada não voltava, e os comensais estavam com sede de beber cerveja, o homem disse para o garoto:

"Vá até o depósito lá embaixo e veja onde Elsie e a criada estão."

O garoto foi até lá, e encontrou Elsie, a sensata, e a criada, ambas chorando uma ao lado da outra. Então, ele perguntou:

- "Porque vocês estão chorando?"

- "Ah, – disse Elsie - será que eu não tenho motivos para chorar? Se eu me casar com o Hans, e nós tivermos um filho, e ele crescer, e ele for buscar cerveja aqui no depósito, a picareta irá cair na cabeça dele e poderá matá-lo."

Então, o garoto respondeu: "Que garota sensata, nós temos aqui!" e se sentou ao lado dela, e também começou a berrar em voz alta. Na casa, todos esperavam pelo garoto, mas como ele também não retornava, o homem disse para a mulher:

– "Desça até o depósito e veja onde a Elsie está!"

A mulher desceu, e encontrou os três chorando e lamentando, e perguntou porque choravam; então, Elsie lhe falou também que o seu futuro filho seria morto pela picareta, quando ele crescesse e tivesse de buscar cerveja, caso a picareta caísse. Então, sua mãe também falou:

"Que garota sensata nós temos aqui!"

Então, a mãe se sentou e chorou com eles. O homem ficou esperando um pouco, mas como a sua esposa não voltasse e a sua sede aumentava cada vez mais, ele falou: "Preciso ir até o depósito eu mesmo e ver onde Elsie está."

Mas quando ele chegou lá, estavam todos sentados chorando, e quando ele soube do motivo, e que o filho de Elsie era a razão de tudo, e que se Elsie trouxesse um filho ao mundo algum dia, e que ele poderia ser morto pela picareta, caso o garoto estivesse sentado debaixo dela, ao buscar cerveja, exatamente no momento que ela caísse, ele gritou:

– "Oh, que garota inteligente é a Elsie!" e se sentou, e ficou chorando com eles.

O noivo, durante algum tempo, ficou sozinho na casa, então, como ninguém voltasse ele pensou: "Eles devem estar esperando por mim lá embaixo; eu devo ir até lá e ver o que está acontecendo."

Quando ele desceu, os cinco estavam chorando sentados e se lamentando desesperadamente, cada um tentando chorar mais do que o outro.

– "Que desgraça aconteceu aqui? – perguntou ele.

– "Ah, meu querido Hans, - disse Elsie - se nós nos casarmos e tivermos um filho, e ele for grande, e nós talvez o mandarmos aqui para buscar um pouco de bebida, então, a picareta que foi deixada pendurada na parede poderia esfacelar a cabeça dele caso ela caísse, então, não temos motivo para chorar?"

- "Venham! - disse Hans - Maior entendimento que este não é necessário para a minha casa, porque você é Elsie, uma mulher muito sensata, eu me casarei contigo."

E tomando a sua mão, subiu de volta para casa, e se casou com ela.

Depois que Hans havia se casado com ela durante algum tempo, ele disse:

"Esposa, vou sair para trabalhar e ganhar um pouco de dinheiro para nós; vá até o campo colher algum trigo para que tenhamos um pouco de pão."

- "Sim, querido Hans, vou já fazer isso."

Depois que Hans tinha saído, ela mesma preparou um caldo bem gostoso e levou ao campo com ela. Quando ela chegou no campo ela disse para si mesma: "O que devo fazer; devo colher primeiro, ou devo comer primeiro? Oh, vou comer primeiro."

Então, ela esvaziou a sua bacia de caldo, e quando ela já havia comido tudo, ela disse mais uma vez: "O que devo fazer agora? Devo colher primeiro, ou devo dormir primeiro? Vou dormir primeiro."

Então, ela se deitou no meio do trigal e caiu no sono. Hans já tinha chegado em casa há muito tempo, mas Elsie não tinha voltado. Então, ele pensou: "Que esposa sensata que eu tenho. Ela é tão dedicada que nem vem para casa para comer."

Mas como ela não voltava, e já estava ficando noite, Hans saiu para ver o que ela havia colhido, mas ela nada havia colhido, e ela estava deitada entre os trigais e dormia. Então, Hans correu para casa e trouxe uma rede de caçar aves que tinha pequenos sininhos nela e pendurou ao lado dela, e ela continuou dormindo.

Então, ele foi de novo para casa, fechou a porta da casa, sentou-se em sua cadeira e começou a trabalhar. Finalmente, quando já estava bastante escuro, Elsie, a sensata, acordou e quando ela se levantou ela ouviu o retinir de sinos ao seu redor, e os sinos tocavam a cada passo que ela dava. Então, ela ficou confusa, e ficou em dúvida se ela era realmente Elsie, a sensata, ou não, e pensou: "Sou eu, ou será que não sou eu?"

Mas ela não sabia que resposta daria, e durante algum tempo ela ficou em dúvida; finalmente ela pensou: "Eu irei para casa e perguntarei se sou eu, ou se não sou eu mesma, com certeza lá em casa saberão."

Ela correu até a porta da sua casa, mas a porta estava fechada. Então, ela bateu na janela e gritou:

– "Hans, Elsie está aí?"

- "Sim, – respondeu Hans - ela está aqui dentro."

Então, ela ficou apavorada, e pensou: – "Ah, Deus do céu! Então, não sou eu," e foi até outra porta; mas quando as pessoas ouviam os sininhos retinindo, elas não queriam abrir a porta, e ela não conseguia entrar em nenhum lugar.

Então, ela fugiu daquela aldeia, e ninguém nunca mais a viu.

Fonte:
Contos de Grimm

sexta-feira, 27 de março de 2020

Varal de Trovas n. 221


João Batista Leonardo (Uma Parte que se Foi)


Nas infindáveis perguntas sem respostas mais uma insinuante ao impossível e ao abstrato, incide curiosidade: companheiro, onde está você? Testemunho dos momentos no enfrentamento cotidiano, da continuidade, e do desgaste pelos idos tempos. Juntos sempre na mitigação das dores; no alívio dos sofrimentos; na força ao debilitado; na palavra ao desesperado; na participação intrigante no surgimento e fim da vida, do primeiro sorriso até o último choro.

Seria possível me responder ao menos: onde está você?

Sei que foi com as águas, evaporou e diluiu nos ares em continuação com nuvens, foi para o firmamento, levando um pouco de mim; por isso nas horas de dificuldades, alegrias e tristeza falo de você, e sei que existe, porque na natureza nada é destruído, tudo é transformado.

Sempre estivemos juntos e nunca disse que compúnhamos um todo, um, objeto do outro, um, consequência do outro. Nas lutas até injustas no picadeiro vivenciado, jamais nos destruíram, amigos bons não faltaram, amigos falsos jorraram, porém, em cada queda prontamente levantamos, pois entendemos que a humilhação não está na queda, mas sim, no sucumbir.

Começamos bem lá embaixo, galgamos valorosos degraus então os tempos nos sorriram, nós os vivenciamos, neles abraçamos as oportunidades e percebemos êxitos.

Construímos muito, destruímos poucos, causamos muitos sorrisos e pouco choro, trouxemos muitas vidas ao mundo e nenhuma tiramos. Semeamos a luz e a esperança por onde passamos, mesmo em meio aos percalços e incompreensões, éramos na certeza da boa intenção.

Nas alegrias também estivemos juntos; vivemos o esporte, nos banhamos nas grandes cachoeiras e passeamos por praias e praças engalanadas. Juntos vimos grandes espetáculos mundiais, andamos e respiramos nos quatro cantos da terra, conhecemos costumes de vida e gentes diferentes, porém, sempre valorizando a cultura e aprendizado.

Na aspereza dos tempos plantamos na terra nua, e dela fizemos um caminho firme, onde, com segurança pisamos e o mostramos aos menos corajosos. Nas horas amuadas, fomos ao campo buscar a flor do conhecimento, na sua fragrância encontramos a alegria e força da solidariedade, na valorização familiar e profissional. Em nossa seara embrenhamos luz, frutos e esperança, que por certo iluminaram e fortificaram a continuidade de tantos, na busca da gratificação. Na qualidade de humanos, cometemos erros e enganos, porém sempre desprovidos da maldade intencional.

Onde estiver saiba que tudo foi muito natural, propositalmente, e a soma dos fatos compõe o fardo dos tempos vividos, cujo conteúdo, sobretudo redunda, na boa ou má expectativa do inexorável fim; então na tristeza do choro ou na gratificação do sorriso, estarão os resultados.

Semeamos boas sementes em vários terrenos, geminaram, cresceram, arboresceram e prosperaram em nossa fertilidade e em benéficos frutos se transformaram.

Sei que a lógica nem sempre é exultante do exato, mas pensar em você, me volta os tempos, faço sondagens, revivo atitudes determinantes, hoje componentes do meu fardo, testemunho de mim mesmo. Vale a sondagem, me alegra e neste abstrativo momento, por que não esperançar? Onde está você meu suor derramado?

Fonte:
João Batista Leonardo Os tempos da esperança à razão. Maringá: Gráfica Primavera, 2008.

Alphonsus de Guimaraens (Baú de Trovas)

Afonso Henrique da Costa Guimarães

Como, Jesus, me esqueceste
nesta horrível soledade?
Aos trinta e três tu morreste...
E eu já tenho a tua idade!
- - - - - –

Nasci em leito de rosas
e morro em leito de espinhos...
Ó mães, que sois caridosas,
zelai por vossos filhinhos!
- - - - - –

O cinamomo floresce
em frente do teu postigo;
cada flor murcha que desce
morre de sonhar contigo.
- - - - - –

O coqueiro, todo em palmas,
beija o cinamomo em flor...
Imagem das nossas almas,
unidas no mesmo amor!
- - - - - –

Quando em teus olhos reluz
o carinho de uma prece,
se é dia, o sol tem mais luz,
se é noite, logo amanhece.
- - - - - –

Quando os teus olhos, Senhora,
repousam no meu olhar,
fica mais formosa a aurora,
mais formoso fica o luar.
- - - - - -

Tradições, quimeras, lendas...
Ninguém crê na Eterna Voz!
Que vale, Senhor, que estendas
o teu carinho até nós?
- - - - - –

Tristeza das tardes ermas,
das noites brancas de luar!
As almas que estão enfermas
no teu seio vão chorar...
- - - - - –

Tu não sabes porque a lua
é triste e nunca sorri...
Mas que ingenuidade a tua!
— Os poetas moram ali.
- - - - - –

Fonte:
Aparício Fernandes (org.). Trovadores do Brasil. 2. Volume. RJ: Ed. Minerva,