sexta-feira, 3 de abril de 2020

Varal de Trovas n. 228


Humberto de Campos (Indefesa)


O Dr. Edgard esperava há meia hora na sala de visita a formosa dona daquela casa, e evocava, saudoso, o tempo em que a conhecera.

Fora há seis anos, em uma festa náutica, em Botafogo. Passageiros da mesma lancha, ele acompanhava um páreo, detidamente, com o seu binóculo de marfim, quando alguém lhe arrancou violentamente dos olhos, gritando-lhe com alvoroço:

- Ora, empreste-me! sim?

Ele voltou-se, e viu que o seu binóculo estava ao serviço de dois olhos tão verdes como as águas, e, preso deles, não conseguiu mais, nesse dia, acompanhar um número sequer daquela campanha esportiva, travada nas ondas.

Dentro de seis meses estavam noivos. E um dia, por um arrufo, por um breve ciúme sem causa, acabou-se o noivado, partindo ele para a Alemanha, a aperfeiçoar os estudos, ficando ela, jovem e linda, no Rio, onde se casara, afinal, com um advogado, quatro meses antes do seu regresso.

Ele sabia do casamento quando a encontrou, uma tarde, na Avenida:

- Então, de volta, doutor? - exclamou a maravilhosa criatura, estendendo-lhe a mão pequenina, numa grande alegria.

- É verdade. E venho encontrá-la mais formosa, mais risonha, e, com certeza, mais feliz!

- Sabe que me casei? - tornou a moça, despedindo-se - Apareça em nossa casa. Teremos imenso prazer em recebe-lo.

E apertando-lhe a mão, com um olhar, que era um relâmpago:

- Vá! Sim?

Recapitulava o jovem médico esses episódios, origens daquela visita, quando ressoaram passos na escada, e surgiu à porta da sala, deslumbrante de graça e de mocidade, a figura que mais o encantara na vida.

- Oh!... - exclamou, deslumbrado, pondo-se de pé.

Sentaram-se os dois, pálidos, entreolhando-se em silêncio. De repente, com uma audácia imprevista, ele aventurou, incontido.

- Estás deslumbrante, Ecilda! Estás tentadora... maravilhosa... irresistível!

E, de súbito, cerrando os dentes:

- Se tu não gritasses... eu me precipitaria sobre ti, cobrindo-te de beijos!

A moça, trêmula, os lábios entreabertos, olhou-o nos olhos, e, levando à garganta a mãozinha branca, sussurrou, apenas, a meia-voz, tranquilizando-o:

- Estou... rouca!

E fechou os olhos…

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze.

Amaryllis Schloenbach (Baú de Trovas)


A lua fulge tristonha,
sozinha no céu imenso;
Minha alma na noite sonha
enquanto em teus olhos penso.
- - - - - –

— Coração, bates ligeiro,
até mudas de compasso,
se recordo o amor primeiro
ou se perto dele passo!
- - - - - –

— Coração, fonte de amor,
mostras a cada segundo
que em toda ilusão há dor,
nos destinos deste mundo!
- - - - - –

Espumas, ondas bravias,
soluça o oceano em revolta;
como ele sou (não sabias?)
quando aguardo tua volta.
- - - - - –

Este amor que é meu tormento
bate em casa abandonada...
Responde, na voz do vento,
somente o eco, mais nada!
- - - - - –

Este amor que eu acalento,
pelo qual estou perdida,
é meu canto e meu lamento,
minha morte e minha vida!
- - - - - –

Foste embora, certo dia;
fiquei magoada, a chorar...
Hoje sinto — quem diria? —
que foi sorte e não azar!
- - - - - -

Invejo a rosa tão linda,
que, sem ligar para a sorte,
a vida perfuma ainda,
altiva, à espera da morte!
- - - - - –

Já não posso refrear
esta paixão violenta,
que ruge mais do que o mar,
presa de rude tormenta!
- - - - - –

Morre a noite de repente.
Seu sangue cobre a amplidão,
e a aurora, triste e silente,
se ajoelha em oração.
- - - - - –

O fio do pensamento
vai tão longe e até parece
que, impelido pelo vento,
quer prender quem já me esquece!
- - - - - –

O orvalho, do céu liberto,
de uma flor se fez amante,
e em seu regaço entreaberto
pôs um límpido brilhante!
- - - - - –

Procura esquecer teu pranto
secando o pranto de alguém;
assim verás mais encanto
no encanto que a vida tem!
- - - - - –

Quando, no ocaso da vida,
um amor nos surpreende,
a existência agradecida
em nova chama se acende!
- - - - - –

Quero da rosa a existência,
sua beleza e frescor:
veludo toda, e essência,
para a colheita do amor.
- - - - - –

Relembro as tardes da infância,
olho a praia, escuto o vento...
Fica mais perto a distância
nas asas do pensamento...
- - - - - –

Se queres colher a paz,
não procures tão a esmo;
só pode tê-la quem traz
a paz dentro de si mesmo!
- - - - - –

Solitário, junto à margem
chora, saudoso, o salgueiro:
parecem vir da ramagem
as águas do rio inteiro!
- - - - - –

Sonho, palavra pequena,
porém, de grande valor:
faz a vida mais amena
e muito mais belo o amor!
- - - - - –

Um breve sonho de amor
— depois, ventura perdida —
é aquele doce amargor
em que se resume a vida.
- - - - - –

Viver num corpo sem alma
— eis o meu drama, porque
perdi minha paz e a calma
depois que perdi você.

Fontes:
– Aparício Fernandes (org.). Trovadores do Brasil. 2. Volume. RJ: Ed. Minerva,
– Revistas Virtual de Trovas “Trovia”
- Boletim da UBT Seção São Paulo
– A Trovadora

Irmãos Grimm (O Estranho Pássaro)


Houve, uma vez, um feiticeiro que, sob forma de mendigo, ia de casa em casa pedir esmolas e raptava as moças bonitas. Ninguém sabia para onde as levava, porque todas desapareciam sem deixar vestígios.

Um dia, apresentou-se à porta de um homem que tinha três filhas muito bonitas. Tinha o aspecto de um pobrezinho maltrapilho, com um saco às costas, como se fosse para guardar o que recebia. Pediu a caridade de um pouco de comida e, quando a filha mais velha chegou à porta para dar-lhe um pedaço de pão, ele empurrou-a com a mão e ela pulou, sem saber como, para dentro do saco. Em seguida, a passos apressados, ele partiu, levando-a consigo para sua casa no coração da floresta espessa.

Naquela casa tudo era suntuoso e ele presenteou-a com quanto ela desejou, dizendo:

- Meu tesouro; aqui comigo passarás muito bem e poderás ter tudo o que desejares.

E as coisas duraram assim alguns dias, passados os quais ele disse:

- Tenho de fazer uma viagem e preciso deixar-te sozinha por algum tempo. Aqui tens as chaves da casa. Podes percorrê-la inteiramente e ver tudo o que há nela, menos, porém, o quarto que se abre com esta chavinha. Proíbo-te de lá entrares, sob pena de morte.

Deu-lhe, também, um ovo, dizendo-lhe:

- Toma muito cuidado com ele. Aconselho-te a trazê-lo sempre contigo para que não se perca, pois perdendo-o sobrevirá uma grande desgraça.

Ela pegou as chaves e o ovo, prometendo fazer tudo direito como lhe pedia. Quando ele partiu, a moça correu a inspecionar a casa de alto a baixo examinando tudo. Os aposentos reluziam de ouro e prata e ela deslumbrada confessava jamais ter visto tal magnificência. Por fim chegou diante da porta proibida. Quis passar direto, mas a curiosidade era tanto que não lhe foi possível resistir. Olhou para a chave. Era uma chave comum, meteu-a na fechadura, fazendo-a girar devagarzinho, e a porta escancarou-se. Mas, o que se lhe deparou ao entrar lá?
 
No meio do quarto, havia uma grande bacia ensanguentada e, dentro dela, pedaços de cadáveres esquartejados. Ao lado havia um cepo, em cima do qual estava a machadinha reluzente. Ao ver isso sentiu tal pavor que o ovo lhe escapou da mão, indo cair dentro da bacia. Mais que depressa, apanhou-o, tentou limpar o sangue que nele se manchara, mas em vão. Por mais que esfregasse e raspasse, o sangue voltava a aparecer e não conseguiu limpá-lo.

Pouco depois, o feiticeiro regressou da viagem e a primeira coisa que pediu foi a chave e o ovo. Ela, tremendo como vara verde, entregou-lhos. Vendo as manchas vermelhas no ovo, ele percebeu que havia entrado no quarto sangrento. Então disse:

- Entraste lá contra a minha vontade, agora voltarás a entrar contra tua vontade. Tua vida está no fim.

Atirou-a ao chão, arrastou-a até lá pelos cabelos, decapitou-a no cepo e esquartejou-a, deixando que o sangue escorresse pelo chão, depois jogou os pedaços dentro da bacia junto com os demais que lá estavam.

- Agora vou buscar a segunda! - disse ele.

Transformou-se em mendigo e tornou a apresentar-se diante da porta, pedindo esmola. A segunda filha levou-lhe um pedaço de pão. Dela também se apoderou com um simples toque da mão e levou-a embora. E esta acabou como a irmã. Deixou-se vencer pela curiosidade, abriu o quarto sangrento para ver o que continha e, à volta do feiticeiro, teve de pagar com a vida a curiosidade.

Ele então foi buscar a terceira, mas esta era prudente e astuciosa. Assim que o feiticeiro partiu, após ter-lhe entregue as chaves e o ovo, ela antes de mais nada guardou o ovo em lugar seguro e só depois visitou a casa de cima a baixo, abrindo também a porta proibida.

Ah! O que viu lá dentro! As suas queridas irmãs esquartejadas e os pedaços dentro da bacia. Recolheu cuidadosamente todos os membros, juntando-os um por um bem direitinho: cabeça, tronco, braços e pernas, os quais, uma vez recompostos, começaram a mover-se e reviver. Daí a pouco, as duas irmãs abriam os olhos ressuscitadas. Numa alegria imensa abraçaram-se e beijaram-se muito felizes.

Quando o feiticeiro regressou, pediu logo as chaves e o ovo; não descobrindo nele sinal algum de sangue, disse:

- Superaste bem a prova, por isso serás minha esposa.

Agora, porém, ele já não tinha mais nenhum poder sobre ela e devia fazer tudo o que ela quisesse. Ela, então, respondeu:

- Está bem! Antes, porém, tens de levar um cesto cheio de ouro a meus pais, mas deves carregá-lo tu mesmo nas costas. Enquanto isso, eu providenciarei tudo para a festa.

Depois correu para um quartinho onde havia ocultado as irmãs e disse-lhes:

- Chegou o momento de vos salvar. Aquele malvado vos levará mesmo para casa, mas, assim que chegardes, mandai-me socorro.

Mandou que entrassem no cesto e cobriu-as bem, espalhando por cima o ouro de maneira que ficassem escondidas aos olhares dos outros. Depois chamou o feiticeiro e disse:

- Agora leva o cesto. Mas eu ficarei olhando da minha janela a ver se paras no caminho para descansar.

O feiticeiro colocou o cesto nas costas e pôs-se a caminho, mas o cesto pesava tanto que o suor lhe corria do rosto. Então sentou-se para descansar um pouco, mas uma das moças gritou de dentro do cesto:

- Estou olhando da minha janelinha e vejo que descansas. Vai andando, depressa!

Julgando que fosse a noiva quem assim falava, ele pôs-se a andar depressa. Quis sentar-se uma segunda vez, mas a moça gritou novamente:

- Estou olhando da minha janelinha e vejo que descansas. Vai andando, depressa!

Cada vez que parava, a moça gritava-lhe a mesma coisa e ele foi obrigado a ir para diante até que, gemendo e sem fôlego, entregou o cesto com o ouro e com as duas moças na casa de seus pais.

Enquanto isso, a noiva preparava a festa de bodas e mandou convidar os amigos do feiticeiro. Depois pegou uma caveira com seu riso de escárnio, enfeitou-a bem, colocou-lhe uma grinalda de flores e encostou-a à janelinha como se estivesse olhando para fora. Quando tudo ficou pronto, meteu-se dentro de um barrilete de mel, cortou um acolchoado e enrolou-se em penas, ficando assim parecida a um estranho pássaro que ninguém poderia reconhecer:

Saiu de casa e no caminho encontrou parte dos convidados que lhe perguntaram:

    – De onde vens, estranho pássaro?
    – De um ninho de plumas eu saio.
    – Que faz lá a bela noivinha?
    – De alto a baixo varreu a casinha,
    agora espera o noivo na janelinha.

Por fim encontrou o noivo, que lentamente vinha voltando e como os outros também perguntou:

    – De onde vens. estranho pássaro?
    – De um ninho de plumas eu saio.
    – Que faz lá a bela noivinha?
    – De alto a baixo varreu a casinha,
    agora espera o noivo na janelinha.

O noivo olhou para cima e viu a caveira toda enfeitada. Pensando que fosse a noiva, acenou-lhe amavelmente. Mas, tinha apenas entrado em casa com os convidados, quando chegaram os parentes e irmãos da noiva, enviados em seu auxílio. Trancaram todas as portas para que não fugisse ninguém e atearam fogo à casa, de modo que o feiticeiro com toda a sua gentalha acabaram queimados vivos dentro dela.

Fonte:
Contos de Grimm.

quinta-feira, 2 de abril de 2020

Varal de Trovas n. 227


Pedro Du Bois (Poemas Escolhidos) 5


CHORO

Era a propaganda
com seus feitos
:aumentadas estrelas
 avistadas através
 dos telescópios

o melhor dos mundos
coordenado pela
maior inteligência

há o momento
em que sozinho
o pensamento
recai na solidão
e a verdade aflora
a insignificância
de alguém que chora.
- - - - - –

COMODIDADE

Num dia comum
de horas comuns
atividades comuns
idas e voltas comuns

de repente
como nada
como tudo
como sempre
a irrealidade
inviabiliza
incomoda
a comodidade
que nos esconde

incomuns pessoas
            deslocadas
            desfocadas
        desesperadas
            pelo retorno
             comunitário.
- - - - - –

DESCAMINHO

Por onde sigo
descaminho
em passos rápidos
no trajeto curto
descaminho
de longa caminhada
na chegada não prevista
descaminho
apresso (mais) os passos
por onde passo
descaminho
sei do fracasso
do regresso
para onde vou
descaminho
sei que não haverá
chegada.
- - - - - –

DISTÂNCIAS

Distantes nos tornamos
menos críticos
na visão panorâmica
de amplos ângulos
em todas as curvas

na distância somos
meros pontos contra
a linha do horizonte

o distanciamento poupa
a vida nos sentimentos
resguardados no que
não podemos ver

distantes lembranças
abrandam a saudade
guardada nos corpos
aproximados.
- - - - - –

HISTÓRIA

Em voz baixa me contam a história
fatos e atos realizados e acontecidos
na vergonha de tempos de escuros
simulacros: a chuva bate contra
a vidraça e a água escorre vidas
perdidas em batalhas sangrentas
onde o ódio e a ganância alternam
os ataques: nossos irmãos fogem
para outras terras cujos donos
não os recebem simpaticamente

presos aos poderes maléficos
mantemos abaixadas as cabeças
e o orgulho escondido na vergonha
de sermos explorados e ludibriados
no medo que nos devora a mente

vozes mínimas repetem o texto oral
que do passado não há réplica
sobre o que nos contam: fomos
sempre assim e ainda somos
pois a raiva cedeu lugar
ao impassível rosto: nenhuma
fibra vibra onde não há mistério.
- - - - - –

TANTO

Tanto ordenamos
        condenados
   tanto mudamos
              isolados
  tanto buscamos
         escondidos
  tanto queremos
    desesperados

o tonto não percebe
as oportunidades
brinca em ameaças

tanto da vida perdida
indo atrás do vento
e do vulto fugidio
das imagens

tanto sonhamos
         acordados.
- - - - - –
Fonte:
Pedro Du Bois

França Júnior (Crianças)


- Como é bonito!

- Que mimo!

- Que anjinho do céu!

Tais são as palavras que nos saem espontâneas dos lábios ao vermos uma criança loura, de olhos azuis, sorriso feiticeiro, bochechas cor-de-rosa, um desses entes que constituem, na opinião de todos, o elo da família, o encanto, a felicidade do lar.

E deixando-nos seduzir pela beleza das crianças, exclamamos, sem sondar-lhes primeiro os mistérios do coração.

- Quanta inocência!

- Que candura!

- Que singeleza!

Alguns minutos de convivência, porém, com os tais "anjinhos do céu" são bastantes para convencer-nos de que eles são mais espirituosos e malignos que todos os diabos da terra.

Os leitores vão ler, no correr deste folhetim, a prova do que fica dito. É rara, nesta cidade, a casa onde não haja, pelo menos, duas ou três crianças.

Vejamos como realizam elas as santas alegrias do lar.

Vem rompendo o dia.

A família, entregue ao delicioso sono da madrugada, acorda ao som de pequenos gritos, que começam destacados e vão num crescendo imponente até a nota final, como o coro da "bênção dos punhais" dos Huguenotes.

- Hi! Hi! eu quero pão com manteiga.

- Espera um pouco, nhonhô, o padeiro ainda não veio.

- Hi! Hi! Quero pão,

- O senhora, vá acomodar aquele menino - diz o pai de família, pondo a cabeça fora dos cobertores.

- O que é isso lá dentro? grita a mãe.

- É nhonhô Pedrinho, que quer pão,

- Cala a boca, menino.

- Não calo. Hi! Hi! Eu quero pão.

-Ah bom chinelo! diz de outro quarto a irmã mais velha. - Hi! Hi! Hi!

- Bonito, agora é outro que lá está a chorar.

- Levante-se, senhora, e acabe com aquilo.

- Hi! Hi! Hi! Eu não quero pão, quero rosca.

- Ó Jacinta? Dá um biscoito a esse menino.

- Hi! Hi! Hi! Não quero biscoito, quero rosca.

~ Onde é que eu vou buscar rosca a esta hora, nhonhô Joãozinho?

O terceiro, que dorme o sono da inocência, levanta-se despertado pela música dos irmãos, e procura um pretexto para chorar também.

Não é difícil achá-lo. Acostumado a acordar comendo e a adormecer à noite engolindo, lembra-se de que na véspera não tomou chá. e ei-lo entrando no harmonioso ensemble:

- Hi! Hi! Hi! Quero o meu pão da ceia.

- Não chora, nhonhô.

- Hei de chorar. O meu pão da ceia,

- Ó senhora, eu não posso dormir! Isto é um inferno!

- O que quer que faça? acode a mulher já de mau humor.

- Levante-se, A sua obrigação é cuidar dos filhos.

- E a sua também.

- Se lhe parece...

- É boa! Pelo que vejo eu devo ser pau para toda a obra!

- Para que se casou?

- Se soubesse que era para aturar estas e outras, não tinha certamente saído da casa de meus pais.

- Já tardava que a senhora não enchesse a boca com a casa de seus pais!

- Sabe o que mais? Durma, que o seu mal é sono.

O marido volta-se para um lado, e lá vai a mulher exercer a mais nobre das missões.

Serenada a tempestade, os três inocentes, metidos em calças de chita, deixando ver pelas aberturas posteriores as fraldas das camisas, montam em paus de vassouras e percorrem a casa, levando diante de si cadeiras e quebrando tudo.

- Onde está o jornal de hoje? pergunta o marido que, não podendo mais conciliar o sono, toma o expediente de erguer-se do leito e vir à janela respirar as brisas da manhã.

- Ainda há pouco o vi aqui.

- Estava em cima desta mesa.

- Ó Jacinta?

- Senhora?

- Quem foi que tirou o jornal que estava na sala?

- Não sei, não senhora.

- Então esse jornal não aparece?

- Está-se procurando.

- E a Gazeta de Notícias também sumiu-se?

- Procura o jornal, negra, não me exasperes.

Depois de muitas pesquisas, descobre-se que tanto o jornal como a Gazeta figuram nas cabeças dos três inocentes, transformados em chapéus de dois bicos!

- Isto não se atura!

- Menino, olha que eu um dia...

- Não fui eu, foi Pedrinho.

- É mentira, foi Joãozinho.

- Foi Chico, papai.

- Quem rasgou foi o Ciro.

Este pomposo nome de gloriosas tradições históricas pertence a um crioulinho, preto como azeviche, de oito para nove anos de idade. É o companheiro inseparável dos três. Filho da preta, amamentou o mais velho, goza em casa dos privilégios de cria, os quais como os leitores não ignoram, estendem-se desde a sala de visitas até ao tacho de doce de cozinha.

Há Ciros que, para divertirem os conhecidos e amigos da casa, cantam modinhas com muita graça, e dançam o fado com invejável habilidade.

Ciro é o primeiro mestre que têm os inocentes, antes de irem à escola beber os rudimentos da língua vernácula. Graças a tão proveitosas lições, Joãozinho chama os ladrões de capiangos, o Chico diz sabiava em vez de sabia, e Pedrinho tem uma prosódia especial. Esse distinto professor inocula-lhes também nos espíritos os primeiros germes de superstição.

Chico tem medo de lobisomens. Pedrinho conta aos camaradas que certas mulheres à noite viram mula sem cabeça. E Joãozinho acredita na influência do saci e dos diabos a tresandarem a enxofre, com os pés de cabra e olhos de fogo.

Continuemos.

À mesa há sempre grande discussão entre os três, por causa de lugares.

- Eu fico aqui.

- Esta cadeira não é sua,

- É minha. Mamãe, olha o Chico.

- Larga.

- Não largo.

Da discussão passam a vias de fato.

A mãe ou o pai, que nem sempre estão de bom humor, intervém no conflito, dando um carolo neste, uma chinelada naquele, o que os obriga a gritar com toda a força dos pulmões, terminando por estenderem-se no chão e espernearem como um peru degolado a debater-se com a morte.

É então que entra em cena a avó.

A avó é um ente incompreensível! Está constantemente a ralhar com os netos. Chama-os de pestinhas, se desaparecem-lhe os óculos da cesta de costura.

Quando um deles entorna vinho na toalha ouve imediatamente um longo discurso, em que figuram sempre estes chavões;

- "O menino está com o diabo no corpo! Não sei onde tem o juízo! Parece que tem bicho carpinteiro, Deixa estar que o colégio te há de ensinar etc., etc."

Não lhes perdoa, enfim, as travessuras, por mais insignificantes que sejam.

Ai! Porém dos pais, se ousam castigar uma das mimosas crianças...

A boa velha entra logo no terreno das recriminações, e agora a vereis:

- O pobrezinho não fez nada! Dão-lhe bordoada por dá cá aquela palha! Coitadinho do menino! Está magro só de pancada.

Graças à avó resolve-se do melhor modo possível o incidente das cadeiras, e eis os três a jantarem com invejável apetite, como se nada houvera sucedido.

Os episódios que se dão ao jantar são dignos de menção.

- Eu não quero o arroz assim, diz um.

- Ora, pois, vamos lá. Como quer o arroz?

- Quero por cima do bife.

- O meu pedaço é mais grande que o seu.

- Ixi! Olha só o meu de que tamanho é!

- Você não teve ovo e eu tive,

- Que bem me importa! Eu tive duas azeitonas.

- Papai, eu quero empada.

- Eu também quero.

- Eu quero do lado que tenha camarão.

Se há alguma visita à mesa, costumam os inocentes fazer às vezes revelações indiscretas, que põem a família de cara à banda.

Exemplifiquemos:

- Hoje aqui em casa houve o diabo por causa deste doce de coco.

- Cala a boca, menino.

- Vovó não viu?

- Está bom, coma: ninguém perguntou-lhe quantos anos tinha.

- Papai não quis dar dinheiro para os ovos. Mamãe disse que ...

O pai começa logo a tossir.

A mamãe franze os sobrolhos.

A irmã mais velha estende o braço por baixo da mesa, para obrigar o pequeno a calar-se com um beliscão.

A visita abaixa os olhos.

E o inocente, cora a singeleza que o caracteriza, está disposto a narrar a história até o fim, quando um beliscão mais forte obriga-o a voltar-se para a mana, e dizer-lhe em tom ameaçador:

- Você não me dá! Olhe que eu conto.

A irmã empalidece.

- Cala a boca menino.

- Conto sim, o que seu Juca disse a você lá na sala.

- Mamãe pensa que eu não vi? Vi, sim senhora.

Terminado o jantar chega o tal Juca, que é recebido em casa com as atenções e delicadezas de quem pode dar uma excelente corte de noivo.

O inocente mais bonitinho aproxima-se do novo personagem e diz-lhe:

- Ó seu Juca, você sabe de uma coisa?

- O que é, meu bem?

- Papai diz todos os dias à mamãe que há de agarrar você para casar com a mana, porque você é muito rico.

Há um minuto de silêncio.

Ninguém sabe o que há de dizer.

Ainda estão todos sob a pressão do desagradável incidente quando dá-se outro ainda mais terrível!

Batem à porta.

O menino dispara como uma seta para o corredor, e de lá começa a gritar:

- Mamãe? Mamãe?

- O que é?

- Está aí seu Peru Recheado.

- Meus Deus! Acode o pai, pondo as mãos na cabeça. Que vergonha!

- Passa para dentro, menino.

- É seu Peru Recheado, sim senhora, aquele homem muito gordo, que veio cá ontem...

- “Sou eu, minha senhora”, interrompe o sujeito, que sabe que é conhecido por aquela alcunha; e ao entrar na sala toma logo o expediente de aceitar as explicações que lhe dá a família com ar alegre:

- Não se zangue, minha senhora. Eu sei o que são crianças. Este é o mais velho?

- Não, senhor, é o do meio; o mais velho é aquele.

- É muito engraçadinho, e sobretudo muito vivo.

- Muito! O senhor não pode imaginar. Olhe, ainda anteontem...

E lá vem uma história das gracinhas da criança, contada com todos os pormenores.

- Deixe lhe mostrar o mais moço. Este é muito bem criadinho .

~ Ó Chiquinho.

- O que é?

- Vem cá.

- Não vou.

- Vem cá, meu filho.

- Ó home, o que quer comigo?

- Fale aqui com o senhor.

- Não falo.

- Assim é feio, vamos, venha perguntar como ele está.

O pobre homem, que receia alguma indiscrição, procura desculpar o menino do melhor modo possível, e muda o curso da conversa.

Momentos depois está o engraçadinho Chiquinho a brincar-lhe com a corrente do relógio, a pedir-lhe a bengala e a contar-lhe o que jantou naquele dia.

Tais são as crianças.

O chapéu, que lhes cai sob as unhas, fica sem pelo. Quando formam batalhões, brigam sempre por causa do comando. Passados os assomos belicosos, têm aspirações mais modestas, querem ser cocheiros.

Nesses momentos não há para eles posição mais invejável que a daquele que domina uma plataforma de bondes empunhando as guias de duas mulas.

Vamos brincar de escola, dizem às vezes aos companheiros.

Na tal escola o que se arvora de mestre dispensa tudo, menos os bolos.

Se lhes dão a metade de uma fruta, abrem o dique do choro, e reclamam-na inteira.

Quando comem em companhia de outros algum doce, procuram apreciá-lo aos bocadinhos, a fim de que sejam os últimos que fiquem mastigando e possam desta arte fazer inveja aos que deixaram de comer.

Em resumo, as crianças são homenzinhos com todos os defeitos e virtudes dos homens grandes.

Entretanto, ao vê-las resplendentes de beleza e de graça, exclamamos;

– Que anjinhos do céu!

- Que singeleza !

- Que candura!

Fonte:
R. Magalhães Junior. Antologia de humorismo e sátira. RJ: Bloch, 1998.

quarta-feira, 1 de abril de 2020

Varal de Trovas n. 226


Rachel de Queiroz (Manhã na Casa de João Alípio)

    

Antes que o sol dê sinal, dão sinal os passarinhos. Os golas, os cabeças-vermelhas; depois os canários; depois, quase pedindo silêncio, o trocado da graúna.

A cantoria dos passarinhos é que ajuda a despertar. João Alípio se vira na rede, tosse, abre os olhos. A primeira claridade aparece entre a telha-vã. O olhar de João Alípio vai direto ao buraco da telha quebrada, perto do rincão. Pela trigésima vez lembra-se de que precisa trocar aquela telha. Aliás a telha da casa toda não ficou lá grande coisa, muito fraca e areenta. O barro fraco, que ele mesmo ajudou a bater na caieira da represa do açude. Ganhando a diária do homem, claro.

O homem faz questão de que na terra tudo seja dele: — assim, quando o morador vai embora, não tem questão. Pagou pra levantar a casa e barrear a taipa. Podia pagar também as cercas do roçado. Mas isso ele não paga, cada um que se vire. Em terra onde se trabalha de meia, o dono ajuda o morador com as cercas. É a vantagem que a meia tem; mas só o diabo sabe como dói na hora de repartir. Também meeiro não tem sujeição, aquela penitência de três dias por semana trabalhar para a fazenda, ganhando só meio jornal ou pouco mais. A seco. O desconto no jornal é o aluguel da terra, diz o dono, Pelo roçado, pela casa, pelo açude, pela lenha, para criar uns bichinhos. Estará certo? Vai ver não, mas o pobre sempre é quem leva o prejuízo.

Sabe que mais? Quem quiser que conserte o telhado. Deixa o diabo da casa cair. O homem que faça outra, não é o direito dele?

Nessa altura João Alípio já está caqueando o chão com o pé, em procura da “apragata”. Na rede vizinha a mulher se vira, pergunta meio adormecida:

— É você, João? — depois se emborca e volta a dormir, de rosto contra o pano.

João Alípio não tem que mudar de roupa, dormiu com as calças de todo o dia. Já de pé, dá uma espiada no menino menor que ronca, nuzinho, na sua rede do canto, junto à porta; o pai sente um cheiro — safado, molhou de novo!

João Alípio abre a porta da cozinha, tira um caneco d'água no pote e vai para o quintal lavar a cara e a boca. O cachorro magro o acompanha e dá uma corridinha de brincadeira nas galinhas que já estão ciscando. O galo protesta, danado.

Lá fora está frio. Uns esgarçados de névoa sobem do baixio do açude. A barra do dia acabou de clarear, os passarinhos já se dispersaram.

João Alípio pega o facão e uma acha de marmeleiro e repica um facho bem fininho para acender o fogo. Chega ao fogão de barro (que ele mesmo fez e já está selado, pedindo reforma), tira o bocal da lamparina, pinga umas gotas de gás no facho, risca um fósforo, arruma a lenha por cima do facho, vê se levantar estalando a primeira labareda. Aí ele bate na porta da camarinha das meninas e chama Neném, a mais velha, para vir fazer o café. Nessa altura o menino do meio, que dorme no corredor, já está de caneco na mão pedindo garapa. Neném sai do quarto com o cabelo levantado que é um arapuá, dá um croque no menino, toma a bênção ao pai, bota no fogo a lata com a água do café, e sai para o quintal. Logo em seguida aparece Côquinha, a segunda, arrastando o lençol. Côquinha também diz bença pai, pega na lata grande, se enrola no lençol feito uma visagem (já disse que lá fora faz frio) e desce em procura do açude. É ela que enche os potes, toda de manhã. A mulher será a derradeira a se levantar: está no mês de descansar, pesada e cheia de dores, Nossa Senhora do Parto lhe dê uma boa hora.

João Alípio recebe a tigela do café, bebe dum gole, põe-se a picar fumo na mão, enche o cachimbo. Apanha no torno a blusa remendada de ir pro roçado. Sacode os punhos da rede do filho maior, que dorme na sala. O frangote se levanta dum salto, estremunhado, com a cara espantada. Esse não pede bênção a ninguém, é moderno e entusiasmado.

João Alípio pega a enxada no canto, sai ao terreiro, se senta no banco debaixo do pé de jucá. Fica um pouco fumando, espiando Neném que entrou no chiqueiro e se prepara para tirar o leite da cabra.

Afinal ele se levanta, se espreguiça e se põe a caminho do roçado. Vinte passos atrás dele vem o rapaz, calado, emburrado, quase arrastando a enxada. Depois  do rapaz o cachorro.

João Alípio olha o sol, já descoberto. Pensa que é tarde, vai apertando o passo, mas ai se lembra que hoje não é dia de sujeição. Diminui o passo, espera o filho. Hoje vai de seu, que o dia é dele.

Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. RJ: J. Olympio, 1976.

Alberto Isaías Ramires (Baú de Trovas)


A trova boa e perfeita
tem, na sua formação,
um pouco de pensamento,
um pouco de coração.
- - - - - –

Da vida, pelos caminhos,
uma coisa aprendi bem:
a roseira dá espinhos,
mas nos dá rosas, também…
- - - - - –

Falar mal da vida alheia
é coisa que não convém;
quem tem telhado de vidro
não fustiga o de ninguém…
- - - - - –

Juraste que eternamente
minha, só minha, serias.
Mas o teu "eternamente"
não foi além de dois dias...
- - - - - –

Lá se foi a meninice,
meu barquinho do papel,
minha ingênua peraltice,
meu doce Papai Noel...
- - - - - –

Não entendes meu desgosto,
mas aprende esta lição:
nem sempre pomos no rosto
as mágoas do coração.
- - - - - –

Num mundo triste e sisudo,
cheio de ódio e ambição,
do trabalho fiz escudo
e, da honradez, religião!
- - - - - –

O amor começa, meu bem,
num sorriso ou num olhar;
mas, por capricho, também,
assim pode terminar…
- - - - - –

Passam dias, meses, anos...
Quem na vida, nada alcança
deve sempre aos desenganos
antepor uma esperança.
- - - - - –

Por nascer pobre, o Divino
num gesto compensador,
despertou, em meu destino,
a lira de trovador…
- - - - - –

Quando eu morrer, por favor
coloquem na minha cova
um epitáfio de amor
escrito em forma de trova!
- - - - - –

Saudade - um berço vazio,
uma lágrima, uma dor;
coração sentindo frio
longe da chama do amor…
- - - - - –

Semeia por onde fores,
bondade, amor e carinho;
e transformarás em flores
as pedras do teu caminho.
- - - - - –

Sobre o Amor já se tem dito
muita coisa de valor;
mas bem poucos, acredito,
sabem mesmo o que é o Amor!
- - - - - –

Via-a rezando, contrita,
com os olhos fitos no céu.
Quanto pecado escondido
debaixo de um fino véu!...
- - - - - –

Vitória - Ilha do mel
que nos deslumbra e extasia.
Um pedacinho de céu
que é sonho, amor e poesia...