sexta-feira, 15 de maio de 2020

Luiz Gonzaga da Silva (Trova e Cidadania) 15 - Educação


Entre os diversos fatores que levam à violência e ao caos social certamente encontra-se a falta da educação. Educação num sentido amplo, não apenas formal, relacionada ao ensino e aprendizagem. A educação que se espera tanto da família quanto da escola inclui o ensino do respeito à pessoa humana. Antes, os valores familiares supriam, de alguma forma, a falta da educação formal. E esta, quando havia, incluía aquele. Os professores eram respeitados e podiam transmitir respeito e dignidade aos seus alunos. Hoje, com o desprestígio do professor, a sociedade vem pagando um preço mais alto.

Onde o ensino é relegado
e as letras não têm valor,
há de pagar ao soldado
quem não paga ao professor.
Antônio de Oliveira - SP

Uma verdade patente,
que não tem contestação:
abrir ESCOLA é semente
que fecha muita prisão.
Milton Nunes Loureiro - RJ

Infelizmente, parece que vai bem longe a escola sonhada pelo trovador:

Naquela escola campestre
onde a meninada vai,
quem tem pai encontra um mestre,
quem não tem, encontra um pai!
Cezário Brandi Filho - MG

Cerca de 13 milhões de brasileiros não sabem ler e escrever. Este número representa 8,7% da população acima de quinze anos. O trovador exprime esta tristeza.
Não há maior desengano
ferindo nosso saber,
do que ouvir um ser humano
revelar: "Eu não sei ler."
Alcy Ribeiro Souto Maior - R]

Mas a educação deve ser um processo contínuo. Jamais saberemos tudo. O saber não tem limite.

Por mais que a gente conquiste
grande acervo de saber,
mais sábio é saber que existe
muito mais para aprender!
Vanda Fagundes Queiroz - PR

Como forma de educar
o mestre é aquele ser
que não cansa de ensinar
nem se cansa de aprender!...
Ademar Macedo - RN

Entretanto, quando a educação procura seguir apenas um currículo formal, generalizante, sem uma reflexão sobre os seus fins, preocupada apenas com o volume de informações técnicas, pode, ela própria, ser uma espécie de violência. Fato que contraria totalmente as proposições do educador Paulo Freire.

Violentar as consciências
a título de educar
é transformar as ciências
em armas para matar.
Petrônio Braz - MG

Instruir sem educar
é formação mutilada.
- Mas esta é a norma escolar
que, entretanto, é adotada.
Petrônio Braz - MG

Mas educar não deve incluir religiosidade, que é uma prática de foro íntimo, sendo o Estado brasileiro laico por força da sua Constituição.

Por respeito ao laicismo
que a liberdade defende,
não se ensina o catecismo
que só na Igreja se aprende.
Petrônio Braz - MG


Fonte:
Luiz Gonzaga da Silva (org.). Trova e Cidadania. Natal/RN, abril de 2019.

Contos e Lendas do Brasil (A Casa de Pedra)

Era naqueles velhos tempos coloniais em que paulistas e portugueses — estes apelidados emboabas — uns ao norte e outros ao sul, rasgavam a extensa província de Minas Gerais, à cata do ouro.

Em São João Del-Rei, emboabas e paulistas, cada qual de seu lado e por sua conta, se entregavam a mineração aurífera, sendo capitão-mor, na época, Diogo Mendes que, em companhia da filha e de Fernando, seu sobrinho e secretário, residia no local que é hoje o arraial de Matosinhos.

Entre os paulistas — segundo conta Bernardo Guimarães em seu livro “Maurício ou os Paulistas em São João Del-Rei” — havia um, de nome Gil, rapaz antes trabalhador, mas desprotegido da fortuna, que passou a enriquecer a olhos vistos, depois que foram para sua companhia um bugre, por ele salvo da morte após um sério conflito entre paulistas e aborígenes, chamado Irabuçu, e Judaíba, sua filha.

Propalava-se que Irabuçu sabia de uma fabulosa mina onde, diariamente, apanhava ouro aos punhados, para levar ao seu salvador. Um dos portugueses, pelos patrícios apelidado Minhoto, que votava a Gil ódio tremendo, entendeu de deitar as mãos ao velho índio, auferindo com isto dois proveitos: ficar senhor da mina, onde o selvagem o conduziria sob ameaça de morte, e fazer mal ao inimigo, estancando-lhe a fonte de riqueza.

Sem demora, tratou de por em execução o plano que havia traçado. Aliciou patrícios, que sitiaram o índio, quando uma tarde partia para a mina, mas este desapareceu como por encanto sob uma moita, de onde saiu, numa carreira fantástica, um enorme gato-do-mato, que pos os portugueses em debandada, julgando o índio transformado em animal.

Outras ciladas lhe preparou o Minhoto, mas em vão. Irabuçu, cercado no campo, sem possibilidade de escapar, quando todos o imaginavam seguro, desaparecia misteriosamente. Ninguém mais, então, queria saber de capturá-lo, julgando-o pactuar com o demônio. À vista disso, o Minhoto foi à casa do capitão-mor, a fim de, com a gente deste, destemida e bem municiada, aprisionar Irabuçu, repartindo entre ele, o capitão-mor e o secretário, o ouro recolhido da mina.

Recebeu-o Fernando, o qual, depois de o ouvir com interesse, fez-o ciente de que o ouro da mina seria todo de El-Rei, não cabendo a ele, Minhoto, um grão sequer. E sem reparar no desespero do patrício, que se julgava miseravelmente roubado, deu ordens para que lhe     trouxessem Irabuçu, a fim de que este revelasse o local da mina de onde saía o ouro, sem que a El-Rei fosse ter o devido quinto.

Preso Irabuçu e levado à presença do capitão-mor e sua gente, negou-se ele a fazer qualquer declaração a respeito, muito menos a levá-los à mina. Ameaçaram-no de suplícios horríveis e, por fim, de morte.     Nada o demovia de sua firme decisão.    Foi só ante a ameaça de torturarem sua filha Judaiba que Irabuçu aquiesceu.

Amarrado como uma fera, lá foi ele, o pobre velho, escoltado por seis portugueses, armados até os dentes, em direção ao fabuloso Sésamo.

Depois de penosa caminhada de léguas e léguas, feita com o propósito de despistá-los, porquanto a mina distava da povoação apenas alguns quilômetros, chegaram, por fim, ao cair da noite, em frente a uma grande furna muito alta, cujo interior...
*     *     *

Cedamos, porém, a pena a Bernardo Guimarães que vai, no seu estilo vigoroso, descrevê-la e narrar a trágica aventura dos portugueses e do índio no interior dessa furna conhecida hoje por Casa da Pedra e situada quase nas divisas de São João del-Rei com a histórica cidade de Tiradentes.
*     *     *

Irabuçu acendeu na fogueira o seu archote e foi entrando pela caverna. Os emboabas o acompanhavam de perto, benzendo-se e rezando quanta oração sabiam.
 
Para fora da lapa nada mais se via; a escuridão da noite, que começava a descer, a fumaça da fogueira tudo escondiam. Estavam segregados completamente da luz do céu, e franqueavam os lôbregos umbrais do reino das trevas.

Acompanhemo-los e vamos também admirar, à luz do archote de Irabuçu, as maravilhas dessa imensa e misteriosa gruta,
*     *     *

O pavimento é plano, liso, coberto de areia e de folhiço, como um solo de aluvião; os emboahas penetram com facilidade pela gruta a dentro. Logo à entrada, entre os brancos pilares da arcada imensa, que serve de pórtico aos outros, observa-se um curioso e estupendo fenômeno. Um enorme rochedo está como pendurado da abóbada, à semelhança de lustre colossal, colocado à entrada daquele templo subterrâneo. Mas o monstruoso lustre está envolto em crepe pardacento, suas luzes estão extintas, e é mister brandir o archote em volta dele para admirar-lhes as dimensões titânicas, e ver como se acha preso à cúpula por um ligamento proporcionalmente tão delgado, que faz estremecer. Está ali como a espada de Dâmocles, suspensa por um fio, aquela massa enorme de milhares de quintais, como ameaçando esmagar, pulverizar com sua queda, os imprudentes mortais que ousarem passar-lhe por baixo, para devassarem os mistérios daqueles áditos tenebrosos.

Mas Irabuçu e seus companheiros não estão ali para admirar semelhantes maravilhas; passam por debaixo do imenso candelabro sem prestar-lhe atenção, internam-se mais alguns passos, e acham-se no recinto de um vasto salão, amplo e circular, à maneira da nave de magnífica rotunda. Curvava-se sobre suas cabeças uma abóbada de pasmosa elevação, e de profunda que era, mal seria apercebida ao fraco clarão do archote, se não fora o cintilar das pedras úmidas, polidas e pontiagudas, de que estavam crivados o teto e as paredes da gruta.

À luz daquele archote demasiado escassa para alumiar tão vasto recinto, o interior da lapa, já de si mesmo curioso e surpreendente, tomava um aspecto solene e fantástico, que inspirava, a um tempo, pavor e assombro. Os muros e a abóbada pareciam cobertos de ornatos e esculturas caprichosas, de frisos, relevos, cornijas, colunas, nichos e volutas, em desordenada profusão.    Aqui via-se um altar mutilado; ali cavava-se no muro um trono em ruínas; além ressaltava da parede um magnífico púlpito; mais além um renque de colunas decepadas se estendiam a perder-se na escuridão. E tudo isso se revestia de brilhantes e variadas cores reverberando à luz do facho com reflexos de ouro e rubi, de esmeralda e safira, de topázio e ametista.

Era uma gruta de estalactites, curioso brinco, em que a natureza parece comprazer-se dando as mais singulares e caprichosas figuras a essas rochas formadas no côncavo das cavernas pela congelação de gotas de água infiltrada durante séculos através das fendas dos rochedos.

Além de tudo isso, uma multidão de cordas de grossura enorme descendo perpendicularmente da abóbada, em uma altura talvez de mais de vinte braças, vinham embeber-se no chão. Dir-se-iam cordões, que suspendiam imensas cortinas destinadas a velar os mistérios daquele estupendo e maravilhoso santuário. Eram raízes de árvores seculares, que, cravando-se pelas fendas da abóbada e achando em baixo o espaço vazio, alongavam-se até o solo, onde vinham beber a seiva, para alimentar a robusta e vicejante selva, que cobrindo o corixéu da gruta, balanceava lá em cima — a mais de cinquenta braças de altura — a coma verde-negra às auras livres do céu.

Em tudo se parecia aquele antro com o interior de um templo ciclópico, por onde roçara a asa estragadora dos séculos, ou passara a mão vandálica do bárbaro, destroçando e mutilando tudo.

A luz avermelhada do archote batendo nas miríades de pontas de estalactites, que incrustavam toda a abóbada, reverberando em chispas cintilantes, produzia o mais deslumbrante efeito.
*     *     *

Os portugueses não puderam conter um grito de surpresa e assombro, e estacaram por instantes, diante de tamanha maravilha.

— Que isto, Santo Deus!... — exclamavam uns. Tudo isso é ouro e pedraria!... é aqui!... estamos enfim na mina...

Outros, porém pensavam estar em um palácio de fadas, e acreditando que o bugre não era mais do que um formidável encantador, começaram a temer por sua sorte, receando ali ficarem encantados por todo o sempre.

Para se moverem, foi mister que Irabuçu os acordasse daquela estupefação. Já dois fachos se tinham consumido, e não havia um minuto a perder.
*     *     *

O índio avançou, contornando o vasto salão, como procurando entrada a outros aposentos. Viam-se, com efeito, em torno, aqui e acolá, grande número de fendas e arcadas de várias dimensões, e corredores que se perdiam na escuridão, e pareciam dar entrada a novos e vastíssimos compartimentos.    O bugre penetrou pelo mais espaçoso desses corredores seguido de perto pelos portugueses. Via-se de um lado, suspenso na muralha, um púlpito quase perfeito, de linda e grandiosa estrutura. Os emboabas cuidaram ver dentro dele um monge de joelhos e debruçado, com a fronte envolta em seu capuz. Já se ajoelhavam e persignavam, quando subitamente troou-lhes aos ouvidos uma voz horrível, antes um pavoroso mugido.

— Tapaçununga! — bradara Irabuçu com toda a força de seus pulmões. Os ecos das profundas cavidades reproduziram por largo tempo o grito estranho, em surdos e temerosos rugidos.

Imediatamente dois sanhudos e truculentos canguçus, rompendo das grutas interiores, passaram velozes como o raio por entre os portugueses, e desapareceram de novo na escuridão.

De susto ou abalroados, quase todos caíram por terra, e trêmulos, cobertos de suor gélido, não pensaram senão em encomendar a alma a Deus,

— Não tenham medo, meus brancos — disse Irabuçu, com um sorriso calmo e satânico; estes bichos moram aqui; são uns gatinhos que vigiam o ouro de Tupã; foi para tocá-los para fora que Irabuçu gritou.
 
Estas palavras, proferidas em tom de diabólica ironia, não eram muito próprias para tranquilizar os emboabas.

— Se temos de morrer sem falta — murmurou um, com voz desfalecida — é melhor morrermos aqui mesmo; daqui não dou nem mais um passo para diante.

— Se temos de morrer — replicou outro, um pouco mais animado — tanto faz morrer aqui como acolá; vamos companheiros!... Pelo que vejo, já estamos no inferno em corpo e alma, e tão inferno é aqui, como lá adiante.

O terror, tendo tocado ao seu cúmulo, converteu-se em coragem, como costuma acontecer, nessa coragem dos que se julgam irremissivelmente perdidos, e que se chama coragem do desespero.

Guiados pelo índio, os emboabas avançaram resolutamente através de um dédalo de furnas, corredores, escaninhos irregulares, em que se achava dividida gruta, à maneira de alvéolos de uma colmeia gigantesca. Esses diversos compartimentos eram separados entre si por grossas massas de estalactites, que pendendo do teto vinham quase tocar ao chão, como feixes de colunas carcomidas pela base, ou como os canudos de um órgão emborcado, e também por grandes camadas de estalagmites, que se erguiam do solo como restos de pilastras derruídas, ou de muros arruinados.

Já o terceiro facho estava prestes a extinguir-se, ainda eles não haviam chegado ao tão suspirado alvo de tamanhas fadigas e perigos.

— Ainda estará muito longe essa maldita mina? Bugre endiabrado!... — bradou um dos emboabas. — Olha, não vá nos faltar o lume!… Se ficarmos às escuras não sei como daqui nos havemos de safar...

— Ficaremos sepultados em vida debaixo destas catacumbas — acrescentou outro, — Voltemos, meus caros; isto não vai bem…

— É ali!... é ali!... — exclamou Irabuçu, apontando para uma solapa estreita, que se divisava a alguns passos de distância, na base de um enorme congesto de estalagmites, e pela qual mal poderia entrar um homem agachado.

— AIi... naquele buraco! Deus me defenda de lá entrar!... Ali só lagarto ou cobra...

Apenas um dos emboabas acabava de proferir estas palavras, desprega-se da abóbada e cai no meio deles uma jiboia enorme, de mais de braça de comprimento e grossa como a perna de um homem, fazendo um ruído surdo como corda que despenca do alto de um mastaréu, e, desdobrando-se rapidamente, correu a esconder-se nas trevas, entre as anfractuosidades dos rochedos, O medonho réptil, acordara sobressaltado pelo eco daquelas vozes estranhas e, deslumbrado pela luz, querendo fugir, se precipitara de uma alta cornija, onde estava a dormir tranquilamente. Os portugueses murmuravam a tremer a oração de São Bento, advogado contra animais venenosos, e perderam de novo o ânimo de avançar.

— Meu Deus! Meu Deus!... Que será de nós... — exclamavam; quase a chorar de medo. Se essa mina está na profundeza dos infernos, guardada por onças e serpentes, escusado é procurarmos lá ir. Voltemos, meus amigos!... Isto não está nada bem! Voltemos quanto antes! Irabuçu, meu velho, por piedade, tira-nos daqui para fora; deixemos isto para amanhã... Livra-nos deste inferno!

— Essa cobra não tem veneno — respondeu tranquilamente Irabuçu — aqui há muitas; é bom dar um tiro; elas fogem espantadas e não incomodam mais a gente,

— Pois vá! — disse um deles; e, sem refletir, trêmulo de impaciência, de frenesi e de terror, com mão convulsa engatilhou a escopeta e disparou o tiro.

O eco refrangido de gruta em gruta reboou como uma descarga atroadora; o ar agitou-se convulsionado; a chama do facho oscilou violentamente,    e as sombras, que ali estavam, dançaram pelas paredes como um grupo de duendes. Uma nuvem de morcegos e corujas subindo de todos os cantos revoavam em turbilhões, açoitando com as asas as faces daqueles hóspedes imprudentes, e acabaram por apagar completamente o facho, que ardia na mão de Irabuçu...

Acharam-se todos subitamente mergulhados na mais completa e profunda escuridão!...

Os ecos do tiro, prolongando-se ainda largo tempo em lúgubres mugidos pelas abóbadas soturnas, pareciam estar entoando um fúnebre "de profundis" sobre aqueles infelizes ainda vivos e já envoltos na escuridão dos túmulos.

— Acode-nos, Irabuçu... Só tu nos podes salvar!... Vem dar-nos a mão!...    Por piedade, vem livrar-nos deste inferno!...

Estas e outras exclamações faziam os míseros emboabas com voz tão suplicante e lastimosa, que cortaria o coração de outro qualquer que não fosse Irabuçu.

— Irabuçu aqui vai!... Acompanhem!… — respondeu uma voz sepulcral, que parecia romper das entranhas da terra.


— Irabuçu! Irabuçu! — bradavam ainda os míseros estorcendo-se nas ânsias do desespero.

Mas só lhes respondiam os ecos das cavernas subterrâneas remurmurando uns sons confusos e medonhos.

*     *     *

E dizem que, mais tarde um sábio dinamarquês procedia a estudos mineralógicos no interior da Casa da Pedra, quando foi dar, numa sala estreita profundamente escura, que a luz de um archote mal iluminava, com as ossadas muito brancas dos sete desgraçados, sobre as quais enormes serpentes deslizavam de manso...

Fonte:
Anísio Mello (org.). Estórias e Lendas de Minas Gerais, Espírito Santo e Rio de Janeiro. São Paulo. Ed. Iracema.

quinta-feira, 14 de maio de 2020

Varal de Trovas n. 266


Silmar Böhrer (Croniquinha) 1



Nos momentos de intimidade as minhas andanças são pelos caminhos do Ser. A gente sabe que as nossas veredas interiores são ricas, trilhamos tantas ideias, ideais, idealizações. Por isso o recolhimento pode ser mal que  vem para o bem. Nossos Eus são convivas que, tantas vezes, seguem com as suas idiossincrasias, dialogando, rindo, indagando, chorando, acostumados a esta vida de altos e baixos.

VIDA, VIVÊNCIAS, VIVERES.

VIVAMOS !

Fonte:
Crônica enviada pelo autor.

Arthur de Azevedo (O Sonho do Conselheiro)


O conselheiro Lapa era o chefe de família mais austero que naquele tempo havia no Rio de Janeiro. Funcionário de elevada categoria, nunca ninguém o viu por essas ruas senão de sobrecasaca preta e chapéu alto. Creio que foi por isso, e pelos óculos, uns óculos de aro de ouro, terrivelmente solenes, que o imperador lhe deu a carta de conselho, pois ninguém lhe conhecia outros méritos.

O conselheiro Lapa era casado e tinha uma filha, que passara dos vinte anos sem que nenhum rapaz a namorasse, não porque fosse feia ou antipática, vaidosa ou mal educada, mas porque ninguém se atrevia a levantar os olhos para a filha de um conselheiro tão grave e tão conspícuo.

Entretanto, um simples escriturário do Tesouro teve um dia a ventura de fazer falar o coração da moça.

Animado pelas intenções mais puras, e competentemente autorizado pela sua bela, o escriturário um dia fez provisão de coragem, subiu a escada do conselheiro, pediu para falar a sua excelência, e quando se viu diante daqueles óculos, sabe Deus como formulou, ou antes, balbuciou um pedido de casamento.

O conselheiro não se dignou responder; limitou-se a medir o insolente de alto a baixo, e a apontar-lhe a porta, dizendo-lhe secamente: - Não admito esses gracejos em minha casa! Rua!. .
    * * *

Este procedimento afligiu bastante os dois namorados, e fez naturalmente com que eles se apaixonassem deveras um pelo outro.

A menina teve tal desgosto, e deixou de alimentar-se durante tantos dias consecutivos que adoeceu gravemente.

A esposa do conselheiro, boa senhora, mas muito fraca, muito achacada de asma, esgotou diante do implacável marido todos os argumentos que acudiram ao seu coração de mãe; mas a melhor e mais eloquente advogada de Rosalina e Alberto, que assim se chamavam os namorados, foi a Teresa, uma bonita mulata que, em pequena, aos doze anos, tinha sido contratada para ama-seca de Rosalina, e ali se fizera mulher, sem ter querido nunca abandonar a casa, recusando até o casamento que lhe oferecera um português apatacado, dono da casa de pasto da esquina.

A Teresa tinha trinta e três anos, mas ninguém lhe daria mais de vinte e cinco.
* * *

Apesar de toda a sua austeridade, o nosso conselheiro há quinze anos que não perdia ocasião de fazer declarações de amor à agregada, e não perdia a esperança de que ela um dia cedesse.

A mulata resistia a todas as investidas libidinosas do amo; dizia-lhe que tomasse juízo, que respeitasse o seu lar doméstico, que a senhora e a menina podiam reparar, etc., e, naturalmente, o conselheiro andava em tudo isso com tanta manha e hipocrisia que ninguém suspeitava daquele trabalhinho de quinze anos.
* * *

A Teresa, que estimava deveras a Rosalina, lembrou-se (de que não se lembram as mulheres!) de utilizar em beneficio da menina os maus sentimentos do pai, e, um dia, fingindo-se cansada de tanta perseguição, concedeu ao conselheiro a entrevista que há tanto tempo solicitava.

Na madrugada seguinte, o austero pai de família, de robe de chambre e chinelos, mas sem óculos, entrou devagarinho no quarto da mulata, e esta, mal que o apanhou lá dentro, começou a gritar com todas as forças dos seus pulmões:

    - Sinhazinha! Sinhazinha! Parabéns! Parabéns!...

A velha, apesar de sua asma, e Rosalina saltaram imediatamente das camas, envolveram-se nas colchas, e foram ter, assustadas, ao quarto da Teresa, onde encontraram o conselheiro sem pinga de sangue.

- Parabéns, sinhazinha! - continuou a gritar a boa mulata. - O patrão teve um sonho tão esquisito, e ficou tão impressionado, que resolveu consentir no seu casamento com o Sr. Alberto! Ele veio acordar-me para eu levar a notícia à sinhazinha.

O conselheiro não teve o que dizer.

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos Vários.

Aparecido Raimundo de Souza (Por Todas Essas Criaturas de um Dia)


SENHORAS E SENHORES, O NOSSO tema de hoje é sobre uma coisinha simples e insignificante, mas que, infelizmente, falta na maioria das pessoas (notadamente no coração), apesar delas se mostrarem conscientes quanto a sua real e verdadeira aplicação na praticidade do dia a dia.

Aproveitando estes ásperos momentos, em que o mundo inteiro se debruça, estarrecido, sobre as garras fulminantes de um vírus letal, e, até agora incontrolável, o coronavírus, ou Covid-19, nada melhor  que aproveitarmos a ocasião tão propícia para discorrermos sobre a  ‘SOLIDARIEDADE’ e a ‘CARIDADE’.

A primeira foi, há tempos passados, contemplada pelo brilhante pensamento de Thomas Fuller, escritor inglês  que viveu de 1608 a 1661. Ele asseverava que “a solidariedade deveria começar em casa e deixou isso bastante sedimentado em seu livro ‘Monsieur Ambivalence: A Post Literate Fable’ - mas que não deveria terminar lá”’.

Falando na mesma linguagem de Fuller, o francês Jean Baptiste Massilon aumentou  a sua  extensão, acrescentando que  “a porta entre nós e o céu não poderia ser aberta enquanto estivesse fechada a que fica entre nós e o próximo”. Entendam, amados, que as pessoas confundem, talvez por burrice, ou falta de conhecimento (o que dá no mesmo), SOLIDARIEDADE com CARIDADE.

Devemos observar, que ambas caminham juntas, lado a lado, de mãos dadas. Todavia, existe uma distância abissal entre elas. Além de patentearem posições diferentes, embora interligadas entre si, vejam que loucura, não obstante estarem unidas como se fossem irmãs siamesas, diferem, dando a entender, uma outra conotação semântica completamente oposta.

Neste diapasão, solidariedade é quando entre nós e eles, não existe, ou seja, quando há apenas o nós. Vejamos, agora, por segundo, a Caridade. Esta, por seu turno, como bem lecionava o humorista  Jaume Perich, era e continua sendo, até hoje, “a única virtude que, para se fazer  genuína e inquestionável, precisará que prevaleça sempre, aconteça o que acontecer, a  injustiça”.

Uma pequena parcela da sociedade, leva, à efeito, a solidariedade (ou o que ela acha ser solidariedade). Contudo, não a enuncia de modo sério, como deveria. Neste rodar dos trezentos e sessenta graus do carrossel, onde os cavalos continuam sendo os mesmos, ofertar esmolas dentro dos coletivos, ou comprar qualquer bugiganga de um vendedor que entra pela porta do meio, não deixará de ser um ato de solidariedade.

Esta postura se tornará vaga e divorciada de qualquer respingo do bom e mavioso  sentimento da reciprocidade plena. Como assim? Vamos tentar explicar. As pessoas, às vezes, se prestam a propiciarem “agrados” por meros descargos de consciências, levadas, pelos escrúpulos de acharem que, podendo ajudar, não deixariam passar batidos pequenos gestos humanitários.

Solidariedade, sabemos de cor e salteado, vai um pouco adiante. Se faz  pujante na animação e na simpatia interior, deixando fluir, um sorriso franco no rosto. E também engendramos entender que não há prazer em possuir algo e não compartilharmos com quem necessita. Caridade é “um exercício espiritual diário”. 

No pensar de Chico Xavier, que completou a sua teoria observando, com seu eterno sorriso brando, e a voz quase apagada: “quem pratica o bem, coloca em movimento as forças da alma. Quando os espíritos nos recomendam, com insistência, o declínio da caridade,  eles estão nos orientando no sentido de nossa própria evolução; não se trata apenas de uma indicação ética, mas de profundo significado filosófico”.

Dias atrás, recebemos em nosso whatsApp, a mensagem de uma participante de um grupo de amizades de repórteres e jornalistas, do qual fazemos parte, dando conta de que uma senhora de sessenta e seis anos, acometida pelos sintomas do Covi-19, precisou ser internada às pressas. Do trabalho, a senhorinha  seguiu direto para o isolamento.

Mãe de várias filhas, todas casadas, nenhuma delas (depois do caso ter vindo à tona), apareceu na empresa que ela trabalhava, para saber para onde a matriarca se internara, e a quantas andavam o seu quadro clínico. Os patrões,  mesmo caminho, sequer deram um telefonema para tomarem conhecimento do estado de sua funcionária; se as filhas e maridos precisavam de alguma coisa; tipo algum dinheiro; uma ajuda básica para enfrentarem os percalços vindouros...

Pasmem, senhoras e senhores. Uma palavra de carinho e conforto, ao menos isso, não veio à tona. A esse quadro poderíamos dar o nome, por parte dos patrões, de profunda falta de solidariedade, e, pelos familiares, maridos, sogras e vizinhos, de completo estado de abandono, ou pior: da falta de caridade.

Afinal de contas, sessenta e seis anos... Estranha ao nosso convívio, procuramos saber de seu paradeiro, levando um pouco de conforto às filhas, as crianças (netos da senhora), e a própria doente, ainda agora em quarentena. Com esta pequena iniciativa, a solidariedade e a caridade se fizeram benéficas e agregadas, num objetivo ímpar e sem pretensões de benesses futuras.

Não nos fizemos ausentes, nem viramos nossos olhos para uma responsabilidade que poderia ter sido menor, não fosse o desrespeito, ou a falta de solidariedade, que as criaturas não cultuam, por seus co-irmãos, ainda que em suas veias não corra o mesmo insumo que nos mantém vivos.

Nós, senhoras e senhores, não devemos ter prazer em possuir algo que não possamos compartilhar com nossos semelhantes. Se faz mister termos em mente as sábias palavras do sacerdote Salvadorenho Óscar Romero (quarto arcebispo metropolitano de San Salvador, capital de El Salvador, já falecido). “Nós, que temos voz devemos falar pelos que não têm”.

Solidariedade, pois, acima de qualquer coisa. Caridade sempre. Fazermos o bem sem olharmos à quem. Essa é a pequena e minúscula partícula da solidariedade e, de roldão, igualmente, da caridade, interligadas no mesmo amplexo. Em outras palavras, este deve ser o nosso ponto de partida positivista, nosso lema: quanto mais compartilharmos a solidariedade, mais teremos, ao nosso alcance, a caridade. E vice-versa. Afinal de contas, nenhum de nós, por mais dinheiro e posição que tenhamos,  nunca seremos uma ilha.

Fonte:
texto enviado pelo autor

quarta-feira, 13 de maio de 2020

Varal de Trovas n. 265


A Arte Poética de Carlos Zemek (Livro para Download)


Prefácio por José Feldman
 
Pintar é libertar-se, e isso é o essencial.
(Pablo Picasso)

Assim é a arte de Carlos Zemek, em suas pinturas ele se liberta, dá vazão à sua imaginação, a seus sentimentos, a seus desejos. Seu pincel cria formas, cria vidas, e em conjunto com suas cores faz com que nós, espectadores de sua arte mergulhemos num oceano de emoções, nos envolvendo, fazendo com que os sonhos sejam libertos. E, deste modo, faz com que se vivencie a alma poética de suas telas. Sim, porque em seus traços, em suas cores a poesia emerge diante de nossos olhos como um Deus nórdico atravessando o céu com seus corcéis puxando a sua carruagem.

Espelhando-se em suas telas, trinta e nove poetas aqui reunidos libertam sua imaginação para caracterizar a poesia delas em seus versos. Desta união da alma poética do pintor com diversos poetas de diversos lugares, se dá uma combinação que enfatiza as palavras de Clarice Lispector: “Escrever não é quase sempre pintar com palavras?”

Enfim, suas telas fazem soltar a imaginação, são poetas que versam sobre alegrias e tristezas, solidão, sonhos, desejos, viagens além da imaginação, etc. Nas palavras de Leonardo da Vinci: “ A pintura é poesia muda; a poesia é pintura cega”.

Desligue-se do mundo à sua volta e deixe-se envolver pelas obras de Carlos Zemek e deleitar-se com os versos dos poetas que as acompanham.
José Feldman
Cadeira n. 35 (AVIPAF)


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ou baixe o livro em:
https://sites.google.com/site/livroscazemek/ebook%20-%20Arte%20Poetica%20de%20Carlos%20Zemek.pdf

Participam da Antologia "A Arte Poética de Carlos Zemek", os poetas: Adélia Maria Woellner, Alexandre Idalgo, Alexsander Pontes, Amaury Nogueira, André Luís Soares, António Manuel Rodrigues Martins, Arriete Rangel de Abreu, Claudia Alemán Concepción, Daniel Maurício, Decio Romano, Devora Dante, Eliane Gabardo, Erick Gonçalves Cavalcante, Fernanda Goucher, Isabel Furini, João Baptista Coelho, José Feldman, Laura Monte Serrat, Leny Mell, M. Mafra Souza, Marli Terezinha Andrucho Boldori, Marli Voigt, Maria Antonieta Gonzaga Teixeira, Maria Teresa Marins Freire, Moisés António, Neyd Montingelli, Nic Cardeal, Nilsa Alves de Melo, Noeli Tarachuka, Paulo Roberto de Jesus, Renato Ferraz, Rita Delamari, Roque Aloisio Weschenfelder, Rosana Banharoli, Solange Rosenmann, Sonia Cardoso, Sonia Andrea Mazza, Vanice Zimerman, Vera Lucia Cordeiro, Zenaide Alós Guimarães Abati.

Fonte:
Revista Carlos Zemek.  http://revistacazemek.blogspot.com/

Laé de Souza (Tá Chegando)


O jantar de confraternização já está marcado para a próxima quarta. Avisei que não iria e vieram falando de falta de coleguismo, o ano todo juntos, e me convenceram. Mas se for igual ao de sempre, e tenho certeza que será, vão se arrepender.

O Dilermando, depois de uns pileques, dará umas piscadinhas para a Clotilde, que corresponderá com um sorriso disfarçado e aceitará sua oferta de carona. Eu já estou com o celular do noivo dela, para avisar, assim que saiam, que espere a chegada dos dois e vou insinuar que não tenha pressa, pois do jeito que saíram melosos, vão demorar um bocado.

O patrão com certeza fará seu discurso e nos presenteará com aquele vinho. Assim que receber vou falar: "De novo esta porcaria. O ano passado me deu uma ressaca..." Quero ver a cara dele.

Edilei, vai ficar com aquela sua alegria costumeira e lá pelas tantas começará a dançar com todo mundo. Já avisei para minha mulher: "Conheço bem o tipo. Se você se atrever a dançar com ele, como no ano passado, vão levar uns sopapos os dois." De qualquer forma, seja com quem o pé-de-valsa estiver dançando, vou ficar falando: 'Aperta menos Edilei."

Vou ser o último a sair e, no dia seguinte, com todos sóbrios, vou contar tintim por tintim tudo o que aconteceu com cada qual.

Em casa, já começaram a chegar os cartões de natal, até do banco, me desejando felicidades. Que contra-senso. Será que esqueceram que são eles os culpados de fazer meu nome virar o século no SPC?

Minha sogra já avisou: 'A noite do Natal vai ser lá em casa." Nem precisava, sempre foi e sempre será. Meus sobrinhos e também meus filhos estarão naquela gritaria e aquele som nas alturas. Meu cunhado de pileque desde cedo e com umas conversas sem lógica. A mulher estará de cara emburrada e reclamando da vida. Minha sogra querendo que a gente coma mais e mais. Aquele namorado da minha sobrinha vai querer novamente fazer chuva de champanhe. E eu vou ficar bem do lado para lhe aplicar um tabefe. A Laurinha vai beber legal e ficará dando risadas escandalosas, enquanto a Gertrudes, sem deixar a coxa do peru, ficará chorando e lembrando de quem não tem o que comer. Fazendo fita, de novo. O marido da minha cunhada estará soltando rojões e insistindo para que todos saiam para ver. E, com certeza, estará novamente brigando com ela e afirmando que não tem perigo nenhum o filho de doze anos soltar um foguete. Ele garante.

Dessa vez, eu vou ficar bem lúcido e falar as verdades pra todo mundo: "Não quero ouvir suas bobagens"; "vou comer só isto e pronto"; "não acha que você está alegre demais não, caboclo?"; "Pare com essas risadas horríveis"; "Deixa de cena"; "Neste fogo, tu não cuida nem de ti, quanto mais..."; "Que feliz Natal, que nada, você sempre quis me ferrar". Pena que aquela, sobrinha esnobe vai estar em viagem com o noivo. Paciência.

Olha amigo, não me venha com conversas de que estou assim por estresse, excesso de trabalho, porque meu médico me falou isto a semana passada e o seu olho ainda continua roxo.

Fonte:
Laé de Souza. Acredite se quiser. SP: Ecoarte, 2000.

Olga Agulhon (Poemas Escolhidos)


ASSIM SÃO NOSSAS SINAS
(aos meninos do Mamonas Assassinos)

Um meteoro passou
com cara de arco-íris.
Veio sem avisar,
como tudo que vem do céu
e se desmancha no ar.

Por onde passou,
magia deixou,
multidões encantou.

Se alegria
nessa terra era Utopia,
tudo mudou...

E o riso, mesmo constrangido,
por tanta ousadia,
fez-se presente amigo,
em horas de agonia.

Mas a negra sorte, ingrata,
também vem sem avisar
e leva o que é querido
para outro lugar;
lugar não sabido,
de trânsito impedido,
mas que no céu deve estar,
e só quem no céu se forma,
para lá pode voltar.

A alegria, se ia junto,
dos homens teve dó;
explodiu-se em fino pó,
que se espalhou generosamente
na memória de nossa gente.
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EM BUSCA DE UM CAMINHO

Um dia descobri
que era impossível
ter a mente nas estrelas,
os olhos no horizonte
e os pés na terra.
Travou-se, então, uma luta interna.
Queria manter meus olhos fechados
para que não me acusassem
de não querer ver.
Queria manter meu corpo doente e fraco
para que não me acusassem
pelo que deixo de fazer.
O tempo passou
e contentei-me em viver de esperanças.
A felicidade não chegou
e contentei-me em viver de saudades.
Um amanhecer depois de outro
e contentei-me em viver
com as cortinas fechadas.
Sorria para o além.

Beijava alguém,
não sei quem,
que não estava presente.
Vivi de luas e sonhos,
estrelas e ilusões
até recomeçar uma nova batalha
por um novo caminho,
ainda não percorrido.
Olho agora para o horizonte
e, embora ferido,
sigo em frente,
em direção ao desconhecido,
pois somos todos viajantes,
apressados pelo tempo
e procurando respostas
muito bem escondidas
nas estradas de nossas vidas.
Ainda não encontrei o que procuro,
ainda não desfiz o nó do futuro,
mas ainda andarei
enquanto houver tempo.
Só não sei se conseguirei
vislumbrar menos que o horizonte
e talvez nunca deixe pegadas,
criando uma nova era
de pessoas aladas.
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O CICLO DA ÁGUA E DA VIDA

A chuva vem.

Os pingos caem, saltam, correm.

Caem sobre as abertas feridas,
as profundas marcas,
as escuras e sujas manchas.

Saltam com gritos de dor
e correm cicatrizando as feridas,
maquiando as marcas,
limpando as manchas.

Levam, por um momento,
as dores e suas lembranças,
mas a chuva passa e
leva consigo um frasco da vida.

A chuva volta.

Os pingos caem, saltam, correm.

Ficam, por mais um momento,
as feridas sem dor,
as marcas sem lembranças,
as manchas sem medo.

Mas a chuva passa e
leva consigo um frasco da vida.

A chuva passa,
o tempo passa,
a vida continua.

Até que
a chuva passe,
o tempo passe
e a vida acabe.
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O POETA E A PROFESSORA

ATO I

A lua já brilha lá no céu,
enquanto a noite põe seu negro véu
e escurece as ruas;
as minhas e as suas,
as vestidas e as nuas.

ATO II

Enquanto a magia nasce sobre minha cabeça de poeta,
meus pés reclamam pelo merecido descanso
depois de mais um dia de trabalho, nada manso.
Na fila do ônibus, sempre atrasado,
uma mulher de rosto muito cansado
desperta-me a curiosidade.

A roupa está amassada, é simples e discreta;
humilde, melhor dizendo.
Contrastando com o visual de borralheira,
um grande e reluzente anel de formatura em seu dedo.
Uma pilha de livros nas mãos.

ATO III

Tanta poesia no céu;
só realidade no chão.

A imaginação invade a vida alheia.
É uma pessoa estudada,
como dizem aqueles que não o são.

Qual será sua profissão?
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O TEMPO É CURTO

Sinto agora a última saudade.

Sinto o coração falhar
e os olhos enchem-se de lágrimas,
querendo chorar.

Não tenho mais chance
para ir adiante,
enfrentar meu destino errante.

O tempo não tem caridade
e leva a vida embora
antes da felicidade.

Talvez não veja outra lua,
clareando a rua,
talvez não receba a última flor,
talvez não sinta mais seu calor,
talvez não escreva a última página,
mas, talvez, para sempre
leve no peito uma dor
e no rosto uma lágrima
de amor.

Ainda não vi a realização dos meus sonhos,
ainda não fiz grandes coisas,
ainda não vi na vida
uma grande amiga.

Da dor, não reclamo; eu aguento.
Mas nada pode me dar alento;
tudo está sendo levado pelo vento
e eu não tenho mais tempo.

O telefone tocou, talvez,
já pela última vez.
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TARDE TRANQUILA

Num dia chuvoso, penso.   
A chuva varreu, tardia,
todo o conflito que havia
dentro de mim, tão denso.
O meu pensamento, tenso,
começou a sossegar e navegar
na sintoma das ondas que venço,
como se já não pudesse parar.

Ia olhando para o fundo,
procurando encontrar e desvendar
o maior segredo do mundo.
Imaginando se um dia, então,
o segredo de Deus e de Adão
será revelado sobre este chão.

Fonte:
Olga Agulhon. O Tempo. Maringá: Midiograf, 2003.

Contos e Lendas do Brasil (A Cachorra da Palmeira)

“Quem é esse seu padrinho?
A moça lhe perguntou —
Disse ela: o padre Cícero
Que agora se cabaou
A moça fez: quá, quá, quá
Naquilo se transformou

Transformada ainda disse
Para a dita mulherzinha:
Não bote luto por ele
Sim por minha cachorrinha
Que morreu no mesmo dia
Sepultou-se à tardezinha”
(Moisés Matias de Moura)

 

 Era uma jovem, filha de um coronel. Linda e bem-educada, residia na cidade de Palmeira dos Índios. Tinha uma cachorrinha de estimação, que criava desde novinha. No dia da morte do padre Cícero Romão, a cachorra adoeceu e também morreu. Muito triste e chorosa, a moça preparou-lhe um velório com vela e sentinela.

Algum tempo depois, estava ela em uma loja, comprando vestidos e perfumes, quando entrou uma senhora procurando por tecido preto, para luto. Ao saber que se tratava de uma devota do padre Cícero Romão, a moça riu e sugeriu que era melhor que a devota pusesse luto para a sua cachorrinha. No mesmo instante, começou a se transformar em uma cachorra, latindo, uivando e correndo em disparada. Contam que os pais morreram de desgosto. Um irmão a pegou e trancou em uma jaula, onde vive sua maldição.
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A cachorra da Palmeira é mito de origem alagoana, mas que ocorre, com variantes, em vários estados do Nordeste. O castigo da transformação da moça malcriada em cadela é tema recorrente na literatura de cordel. Luís da Câmara Cascudo, em Geografia dos mitos brasileiros, afirma conhecer algumas dezenas de folhetos sobre o assunto. Segundo Téo Brandão, existia em Viçosa uma peça de reisado que fazia alusão à cachorra e terminava com os seguintes versos:

Meu Santileno
Pra ela num tem carinho
Discreiou de meu padrinho
Virou cachorra, anda correndo


Fonte:
Jangada Brasil. Revista Galeria de Mitos Brasileiros.

terça-feira, 12 de maio de 2020

Varal de Trovas n. 264


Cornélio Pires (Água Virtuosa...)


Nhô Thomé está bem disposto. Hoje deu para bulir com os pretos, agradando os piazinhos que rodeiam o fogo em suas tripeças.

- Dito! – perguntou ele a um dos crioulinhos de seus doze anos – ocê sabe porque é que os home e as muié não tem a mesma cor?

- Nha - não.

- Puis eu vô contá; botem bem o sentido...

No escuro, deitado na rede, descanço, a ver as sombras bailando nas paredes, ao labaredear do fogo aos estalos, escutando a "história".

- Puis é. Nosso Sinhô, despois de criá tudas as coisa, garrô num pelote de barro e garrô damninhá, por não ter o que fazê. Damninhô, damninhô, e feis um home chamado Adão; deu um assopro e ele virô gente.

Despois Adão garrô a ficar esquisito: hora tava triste, ora tava assanhado, cantadô divirtido e contente. Deus pensô: "Tudas as coisa tem muié... Chamô Adão:

- Venha aqui!

Grudô e rancô u’a costela dele e feis Eva p’ra casá co’ele. Ante de Adão e Eva já tinha gente, mais não erum fios de Deus, porque eles não forum assoprado co Esprito Santo e quem soprô eles foi o Cuzarruim – e é purisso que hai gente rúim na terra; são os tar que não recebero o Esprito-Bão. – Mais isso ocês num intende.

Adão casô cum Eva e nascero os fio e crescero e acharo muié e casaro e o mundo umentô in quistan de pocos anno. Moravum tudo no mesmo sítio, um lugá como num hai de havê otro iguá; só no céo. O sítio chamava Paraízo. Naquele tempo tudos os home e muié erum preto...

Neste ponto Nhô Thomé descreveu a vida de então. Adão, depois do casamento, perdeu a alegria: tornou-se ajuizado, pois entendia que ser alegre e brincalhão como em solteiro não era próprio de homem casado... É um descrédito ser divertido e alegre.

A vida era fácil: frutas por toda a parte sazonavam o ano inteiro, ora esta, ora aquela, sem ser preciso plantar e tudo era "reiuno", não pertencendo a ninguém e a todos pertencendo.

- Ocês num vê que ninguém prantô fruitêra no mato? E otras fruita? Ponhema, guabiroba, pitanga, jaracatiá, arixicú, vapacary, amora, cambucy, joá, jovéva, cabeça-de-negro, castanha-de-ioçá, figo-manso, caju, banana, coquinho...

- Mandioca tamém é fruita ? – interroga um dos pequenos.

- É... – responde bonachão e sossegado o velho.

- I batata-doce? – perguntou outro.

- Tamêm...

- I batata-roxa?

- Tamem... tamêm... Mais iscuitem!...

Despois o Cuzarruim botô veneno nu’a proção de culidade de fruita, p’ra judiá de nóis; mas Deus, que é muito bão, deferençô u’a das ôtra e criô os passarinho p’ra insiná nóis a quar que não fais mar. O Cuzarruim intãoce inxeu a cabeça de uns home e de u’as muié, insinô p’re’eles os venenoso e eles viraro fiticêro, esses praga que custumum a botá as coisa-feita nos ôtro.

Eu, na rede, espero ansioso a explicação sobre as diversidades de cores nos homens, mas Nhô Thomé, como todos os contadores de histórias para crianças, parece "não ter fim".

- Mais, cumo ia dizeno, Nosso Sinhô garrô a repará: puis sa as fror, as arve, os alimar, os passarinho, a terra, o céo, tudo tinha cor deferente um dos ôtro, mórde o quê que os home e as muié só havéra de sê preto, tudo preto, sem graça, iguá, pareio, que inté injuava a vista?

Intãoce Deus mandô pubricá p’ro mundo intero, que era o Sítio, que quem fosse se lavá nu’a lagoa, ficava branco. Aquilo foi um corre-corre que Deus nos acuda!

Animou-se o pé-do-fogo! Curiosos os pretos arregalam os olhos e os mulatinhos ficam de "olhos compridos" no velho.

- Os mais ligêro, mais vivo, mais ladino, avuaro p’ra lá. Um bando de homes e muié, na correria, da desparada, p’ra chegá premêro, machucava e matava os que ascançava:

- Os premêro chegado ficaro arvo – são os alamão.

- Os seguinte acharo aua meio sujo – são os branco.

- Os ôtro acharo aua turva – são os moreno.

- Ôtros acharo aua escura, a lagoa tava secano – são os triguêro.

- Ôtros acharo um fiapico d’aua vermeia misturada cum táuá – são os cabocro.

- E os turco? – interrompeu o Dito.

- Isso mêmo... Isso... Eles garraro a brigá e gritá tudo no mermo tempo e é purisso que eles faum tudo trapaiado.

Não me seguro... Solto uma gargalhada gostosa!

- Uéi! Pensei que mecê tava drumino... Tô contano aqui u’as patacuada p’ros crioulinho...

- Continue, Nhô Thomé: estou gostando.

- Intãoce os turco sujaro demais o restico d’aua e levantô um tijuco mais escuro e a aua garrô minguá tanto, que os ôtro que chegaro naquele mingau, sahiro mulato, cumo ocês tão sahino.

- E os ôtro?

- Os ôtro, os priguiçoso, os bobo, os durminhoco que vivia cuchilano no pé-do-fogo e no sór e arguns que num tivero jeito de chegá mórde os da frente, esses quano chegaro acharo sú um tiquinho de umidade, que mar deu p’ra moiarem as sola dos pé e as parma da mão... Arreparem nas mão de Tia Pulicena e de suas mãe...

E os pequenos, de boca aberta, assustados, exclamam uns em seguida aos outros, olhando para as mãos de Tia Polycena que, bondosa e sorridente, as mostra.

- É meeeeemo!!!

- Os que ficaro preto num desanimaro e é purisso que preto num póde vê biquinha d’aua nem tornera, nem reberão, que não vá ligêro lavá as mão, a cara, o pescoço e os pé, que dão sempre na vista.

Depois, Nhô Thomé, chegando o "isqueiro" ao cigarro, tosse e termina, malicioso:

- Ocêis sabe mórde o que que ocês tão sahino tudo mulatinho? É que Chica, Zabé e Chistina custumum lavá rôpa lá no reberão craco do Manéco Portuguêis...

P’ra mim aquela aua é virtuosa...

- Aá... Maria credo! Sinhô tem cada lembrança! – bradou Tia Polycena, rindo, enquanto a Chica, a Zabé e a Christina correm para a cozinha. E, daqui da rede, depois de esplêndidas gargalhadas, ouço-as comentando:

- Sinhô tem cada uma! O moço tá lá na rede que num pode mais de tanto sirri...

Fonte:
Cornélio Pires. Conversas ao pé do fogo. SP: Imprensa Oficial do Estado IMESP, 1987.

segunda-feira, 11 de maio de 2020

Varal de Trovas n. 263


Aparecido Raimundo de Souza (Distância de Resgate)


EU TINHA LIGADO PARA todos os números das amigas que ela me passara para saber a respeito dos seus empregos anteriores e, claro, da sua vida pessoal e nada. Ninguém retornou as minhas ligações. Em razão disso, eu estava brabo, invocado, pê da vida, enfurecido, colérico, tudo porque além de não haver encontrado ninguém que me desse um feedback de suas ocupações, nunca a tinha visto pessoalmente. Como dispunha do endereço resolvi ir pessoalmente ter com a criatura em sua residência. Todavia, embora indagasse daqui, dali, percebi quase final do dia, andara às escuras, às apalpadelas, tentando achar a bendita rua de sua casa e o ponto indicado como referência. Qual o quê! Nenhuma coisa nem outra. Me estapeei por gastar sapato e tempo para cima e para baixo, marchando a esmo, como se tivesse preso dentro de uma combinação intrincada de passagens e corredores que desembocavam sempre em lugar nenhum. 

Cansado, chateado, dei meia volta, decidido a ir embora. Sumir de vez. Apagar da minha cabeça o nome da infeliz e tudo o mais que estivesse ligado àquela filha de uma égua. Esquecer, pois, que ela nunca existiu no meu agora. Foi quando estanquei os passos e resolvi jogar a última carta que me restava na manga. A derradeira. Se essa falhasse, se eu voltasse a bater com os burros n’água, ela que se danasse. O celular dela. Meu Deus, o celular da jovem! Eu não havia ligado para ele. Quem sabe... Com esse pensamento aflorado, se também esse recurso longínquo falhasse, então sim, definitivamente jogaria tudo fora, atiraria meu ódio na primeira lata de lixo que encontrasse pela frente e junto, seu currículo vitae com tudo de bom que eu havia lido nele. “Menina difícil -, pensei com meu umbigo -, Tinha que ser Brunela”. Para meu espanto, para meu estarrecimento, a garota atendeu na hora.

Finalmente! Ao ouvir a sua voz, num “alô” melodioso e insinuante, acalmei a alma, abrandei o coração. Pedi que viesse sem mais delongas ao meu encontro. “Passei o dia todo à sua cata – gritei, de repente. Estava quase desistindo”. Lembro que um pouco antes de me conscientizar que não havia ligado para o telefone celular dela, retornei à loja de uma das pessoas que a indicara a mim. A Míriam. Pelo adiantado das horas a tal Míriam havia saído mais cedo e encerrado o expediente. Nem sinal da sujeita. Só me restou à rua, ou melhor, a esquina e o nome de um barzinho que ela alternativou.  O dito estabelecimento ficava perto do seu logradouro, encostado ao seu bairro. Segui para o local. Fiquei em pé, feito um poste inanimado, como um menino bobo, à espera da chegada da donzela. Pelo fato de estar quieto e estático, certamente não demoraria um cachorro passaria e me batizaria os pés com seu xixi. Achei melhor deixar o xixi e o cachorro de lado e me ater a adivinhar de onde ela surgiria. “De que banda, de que lado, de que buraco? Meu Pai, como seria essa encantada?”.

Branca, preta, loira, morena, alta, baixa, feia, bonita, desdentada, simpática, antipática, chata, meiga, nojenta, dócil, pegajosa, faladeira, bem feita de rosto, a boca talhada na medida de um sorriso indescritível, dentes perfeitos, gorda, magra, as pernas tipo Camila Queirós, ou Giovanna Lancellotti, enfim, um tremendo docinho de coco ou um tribufu de dar medo até em defunto? Na aspereza do aguardamento, passei a desenhar a Brunela com pinceladas rápidas e objetivas, no alvoroçado de obter uma imagem do seu misterioso arquétipo. Nessa doideira, viajei em moldes pagãos, atropelando os pensamentos que iam e vinham numa velocidade voraz. Seria essa desconhecida mais uma, ou uma a mais, a pleitear o cargo de secretária, que chegaria aqui, bateria um papo informal e depois viraria as costas e iria cada um com seus martírios para nossos cantos de origem carregando os fardos das desilusões e desencantos?

Não! Dessa vez algo me dizia, aqui dentro do peito, que esse encontro não seria como os anteriores. Sob o signo da esperança, Brunela chegaria triunfal. Simplesmente não se esbarraria comigo como manequins desfilando etiquetas diante de uma vitrina repleta de luzes de néon. Enquanto isso, meu olhar buscava a sua silhueta em todos os cantos da quase noite que se avizinhava, em cada rosto, em cada ser que cruzava indo ou vindo, e alimentava uma sensação dentro de meu ser, como o de uma agonia pesada, anunciada, um incômodo estranho que machucava de forma traumática. Uma dor forte que se fechava e traçava rumos indomados na multidão que me ignorava. Em paralelo, meu subconsciente, como que tentando decifrar uma imagem real e palpável, aproveitava a deixa e criava expectativas, ou melhor, desenhava abrigos de cores vivas onde agasalhar a sua presença tão desejada. Esse particular se assemelhava a vislumbrar diante do inusitado, um quadro raro de Picasso.

Para deleite de meus olhos, para encanto de minha alma, Brunela chegou num carro branco. O motorista do Uber a deixou na esquina e ela veio de encontro a mim. Havíamos dado dicas de como estaríamos vestidos para não haverem mais contratempos. Ela olhou, meio que temerosa, e então abriu a porta do banco traseiro e se pôs a andar em minha direção. Veio vindo, veio vindo, meio amedrontada, meio “será que devo?”. Quando chegou perto, fiz a pergunta que sabia óbvia: “Brunela?!”. Um sim vibrou como o som de um teclado ensaiando uma melodia suave, impregnada de quimeras desconhecidas, famintas de muitas palavras. No instante seguinte, meu coração se ajoelhou diante da sua beleza. Estarrecido, eu homem vivido, de muitos anos nas costas, me desmoronei num labirinto sem volta para alcançar o tamanho do seu esplendor. A satisfação que corria ligeira, dentro de mim aflorou.

De roldão, saltou, pulou, e encheu de variadas matizes os meus olhos esbugalhados por conta da sua meiguice. Ali estava finalmente a Brunela, ou as muitas Brunelas por mim desenhadas: Brunela menina, Brunela flor, Brunela, rainha, Brunela esperança, Brunela encanto. Igualmente a deusa se transformou em tenro botão de rosa se abrindo cheio de efeitos especiais, como passarinho inventado, com penas vermelhas e amarelas, voando no azul do meu infinito e fazendo refletir no cristal do meu espelho, o fascínio de viajar por sendas nunca pisadas em busca de horizontes desconhecidos e jamais imaginados. E assim foi. Tudo aconteceu depois disso, num abrir e piscar de olhos. Ela passou a trabalhar para mim. Nos meses subsequentes, entre um almoço e outro, uma viagem aqui, outra acolá, fomos passar a noite num motel. Do quarto desse motel como minha secretária, para a minha cama, como minha mulher.

Ainda hoje, depois de tantos anos, ainda vislumbro Brunela como a enxerguei na primeira vez. Apesar do tempo corrido, eu a sinto como naquele dia, formosa dentro do carro branco, sentada e tímida, meio que assustada, antes de abrir a porta. Consigo, ainda nesse instante, trazer à tona, como num desses filmes de curta metragem, o encanto, o mesmo bálsamo da animação poética que nasceu quando a vi pela primeira vez. Na verdade, Brunela continua com o toque certo que me agitou a base, a nota musical que harmonizou a minha alma, o recheio perfeito que guardei a sete chaves, para que ninguém ousasse imaginá-la como eu a mentalizei assim que lhe coloquei os meus sentidos em alerta. Ela segue inimitável.  Diria, sem medo de errar, perfeitinha. O vácuo da nossa disparidade de idade é enorme, porém, a minha Brunela, enlaça o irradiar da juventude no êxtase dos trinta, em contraste com os meus sessenta e seis, lembrando, outrossim, que a diferença  entre nós, passa, e muito, dos degraus íngremes dos anos que não retroagem.

Entretanto, busquei essa lacuna enorme, a sua áurea de brilho intenso transpira num boom de pratos orquestrais ao tempo em que cria em derredor de nossas vidas um instante bucólico e único, um prazer pastoril, repleto de expectativas prontas para explodirem ao menor toque da sua voz. Brunela é como o sol que se espalha, diria sem medo de errar, se faz vivificante como o alimento divino que estanca a minha fome. É essa moça de olhar sereno o porvir repleto de sensações nunca sentidas, de emoções nunca vividas. É poesia de arrebol, uma raríssima espécie de elo plural ligando o hoje ao super amanhã. É ainda, um clipe de apetite sentido, meu horizonte bordado por asas aladas à essencialidade do meu agora dentro de um ontem imperecedouro e perfeito, juntos, colados, grudados, como o côncavo e o convexo da canção interpretada pelo Roberto. Brunela não é só Brunela. É mais que um nome ao acaso. É o licor das harpas, o gosto de tudo temperando vontades.

É a minha amada, sem dúvida alguma, os sons de enfeites melodiando noites e dias, dias e noites, sonhos de voos distantes e inesquecíveis. É um Domaine  de la Romanée quebrando o próprio mimo da garrafa ao ser aberto. É Fernando Pessoa declamando poesias corpóreas. É a Mariza cantando “Quem me dera” numa distância sempre pujante do meu resgate memorável, bem ainda, no pé do ouvido, no gostoso do nosso cantinho a vitalidade que me mantém a todo vapor. É Brunela a mulher, a criança grande, a estrela guia das minhas brincadeiras.  Brunela é ainda como os meus natais inesquecíveis. Os meus vinte e cinco de dezembro passados presentes e futuros... Todos eles recheados com flocos de neve, e mais que tudo: Brunela é o meu agora, o meu hoje, o meu amanhã. A minha estrada, a minha razão de querer continuar de mãos dadas, olhando na mesma direção a ser vivenciada. Sobretudo, Brunela é o eco do meu berro desesperado na garganta clamando indubitavelmente por seu amor.        

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Luís Vaz de Camões (Sonetos) 2


SONETO 038

Árvore, cujo pomo, belo e brando,
natureza de leite e sangue pinta,
onde a pureza, de vergonha tinta,
está virgíneas faces imitando;

nunca da ira e do vento, que arrancando
os troncos vão, o teu injúria sinta;
nem por malícia de ar te seja extinta
a cor, que está teu fruto debuxando;

que, pois me emprestas doce e idôneo abrigo
a meu contentamento, e favoreces
com teu suave cheiro minha glória,

se não te celebrar como mereces,
cantando te, sequer farei contigo
doce, nos casos tristes, a memória
****************************************

SONETO 091


Fermosos olhos que na idade nossa
mostrais do Céu certíssimos sinais,
se quereis conhecer quanto possais,
olhai me a mim, que sou feitura vossa.

Vereis que de viver me desapossa
aquele riso com que a vida dais;
vereis como de Amor não quero mais,
por mais que o tempo corra e o dano possa.

E se dentro nest'alma ver quiserdes,
como num claro espelho, ali vereis
também a vossa, angélica e serena.

Mas eu cuido que só por não me verdes,
ver vos em mim, Senhora, não quereis:
tanto gosto levais de minha pena!
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SONETO 096


Bem sei, Amor, que é certo o que receio;
mas tu, porque com isso mais te apuras,
de manhoso mo negas, e mo juras
no teu dourado arco; e eu to creio.

A mão tenho metida no teu seio,
e não vejo meus danos às escuras;
e tu contudo tanto me asseguras,
que me digo que minto, e que me enleio.

Não somente consinto neste engano,
mas inda to agradeço, e a mim me nego
tudo o que vejo e sinto de meu dano.

Oh! poderoso mal a que me entrego!
Que, no meio do justo desengano,
me possa inda cegar um Moço cego!
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SONETO 103


Cantando estava um dia bem seguro quando,
passando, Sílvio me dizia
(Sílvio, pastor antigo, que sabia
pelo canto das aves o futuro):

—Méris, quando quiser o fado escuro,
oprimir-te virão em um só dia
dois lobos; logo a voz e a melodia
te fugirão, e o som suave e puro.

Bem foi assi: porque um me degolou
quanto gado vacum pastava e tinha,
de que grandes soldadas esperava;

E outro por meu dano me matou
a cordeira gentil que eu tanto amava,
perpétua saudade da alma minha!
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SONETO 116


Aqueles claros olhos que chorando
ficavam quando deles me partia,
agora que farão? Quem mo diria?
Se porventura estarão em mim cuidando?

Se terão na memória, como ou quando
deles me vim tão longe de alegria?
Ou s'estarão aquele alegre dia
que torne a vê-los, n'alma figurando?

Se contarão as horas e os momentos?
Se acharão num momento muitos anos?
Se falarão co as aves e cos ventos?

Oh! bem-aventurados fingimentos,
que, nesta ausência, tão doces enganos
sabeis fazer aos tristes pensamentos!
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SONETO 120


Cá nesta Babilônia, donde mana
matéria a quanto mal o mundo cria;
cá onde o puro Amor não tem valia,
que a Mãe, que manda mais, tudo profana;

cá, onde o mal se afina, e o bem se dana,
e pode mais que a honra a tirania;
cá, onde a errada e cega Monarquia
cuida que um nome vão a desengana;

cá, neste labirinto, onde a nobreza
com esforço e saber pedindo vão
às portas da cobiça e da vileza;

cá neste escuro caos de confusão,
cumprindo o curso estou da natureza.
Vê se me esquecerei de ti, Sião!

Fonte:
Luís Vaz de Camões. Sonetos. Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro.

Monteiro Lobato (A “Cruz de Ouro”)



— Entre, quem é.

— O Feroz não está solto?

— Viva, compadre! Suba!...

Um barbaças* de óculos e cachenê* de lã ringiu o portão de ferro e galgou a passos trôpegos a escadinha que levava ao alpendre de ipomeias*. Lá o aguardava, de cara amável, um segundo barbaças, o coronel Liberato, vestido duma farda consentânea* com a sua belicosidade: chambre de palha de seda, chinelo cara de gato e gorro de veludo negro com cercadura de ponto russo.

O que subia também era coronel. Coronel Antônio Leão Carneiro Lobo de Souza Guerra, ou simplesmente Nhô Gué. Chegaram ambos àquele alto posto militar pela razão estratégica de colherem para mais de dez mil arrobas de café. Se em vez de dez colhessem apenas cinco mil, seriam majores ou capitães. Este inteligentíssimo critério econômico do nosso militarismo é garantia de paz muito mais segura do que a Liga das Nações.

— Que milagre foi esse? — disse o de cima, abraçando o velho amigo.

— Quem é vivo sempre aparece e eu ainda não morri, apesar desta sufocação que me escangalha o peito.

— Você é o peito, eu a enxaqueca. Não valemos mais nada, compadre. Mas como vão todos? A comadre?

— Boa, todos bons, isto é, a Chiquinha... Ui!

— A cutucada?

— Não, este ventinho encanado...

— Pois vamos entrar.

E os dois urumbevas penetraram na sala de fora. A sala de fora do coronel Liberato merece relatório para que a posteridade se deleite em conhecer como era uma sala de visitas de coronel brasileiro no século XX. Cadeiras austríacas, sofá e cadeiras de balanço, tudo enfeitado com os crochezinhos das filhas. Mesinha central de cipó com embrechados, obra de um “curioso” do lugar. Duas almofadas no sofá, uma tendo um gato estufado, de lã, com olhos de vidro; outra, um papagaio de miçanga verde — maravilhas feitas por certa afilhada prendadíssima. Dois aparadores com vasos para flores artificiais, figurinhas de louça — “bibelotes”, como lá dizia o dono, e várias curiosidades naturais — caramujos, conchas, um ninho de joão-de-barro, um mico seco e duas famílias de içás vestidos. Nas paredes, espelho oval, dois retratos grandes a carvão e fotografias em porta-cartões de talagarça*, bordados pelas meninas. Pendurado do lampião belga suspenso ao teto, grande abacaxi de papel de seda. Piano de armário. Tapete com grande onça. Que mais? Iam-me esquecendo as duas “escarradeiras de sobrado”, com caraças* de leões... Viva o naturalismo!

Entrados que foram, os dois coronéis refestelaram-se nas cadeiras de balanço, o do “ui!” com cautelas, gemidos e caretas ao dobrar as juntas. Liberato puxou o cigarro de palha e, enquanto afrouxava o fumo na palma da mão, reatou a conversa.

— Ahn! Com que então a dona Chiquinha...

— Compadre, entre nós não há segredos; a doença dela são amores. Quer casar, ora aí tem.

— Não vejo mal nisso. Está na idade. Só se...

— Mas adivinhe lá com quem a tolinha emberrinchou de casar?

— ?

— Com o José de Paula!

— O filho da Nhá Vé?

— Esse mesmo. Um moço sem vintém de seu, gente do Chicão de Paula... Sair do nicho de filha única, onde vive como uma Nossa Senhorinha, para ligar-se a um lorpa de marido, ser criada, escrava dele! Se pudéssemos, nós que temos experiência da vida, abrir os olhos dessas mariposinhas tontas... Mas é inútil. Encasqueta-se-lhes na cabeça que o amor, o amoor, o amooor é tudo na vida, e adeus. O que nos vale é que o rapaz é pobre mas direitinho — quanto ao moral.

Liberato interveio com cara purgativa.

— Homem, não sei. Não é por falar, mas não me cheira bem aquele sujeitinho. Você o acha moralizado. Será. Mas a família dele é droga e a prudência manda atentar não só nas qualidades do galho como também nas do tronco. Olhe o que sucedeu outro dia com o primo dele, o Chiquinho...

— Não soube de nada, compadre. Que foi?

— Você anda no mundo da lua, homem! Refiro-me ao escândalo da Recreativa.

À palavra “escândalo” Nhô Gué esqueceu o reumatismo e arrastou a cadeira para mais perto.

— Escândalo?

O coronel Liberato, gozoso de contar uma novidade, limpou o pigarro e disse:

— Foi no último domingo, na festa anual da Recreativa. Discursos, recitativos e uma peça — aquela endrômina* de sempre. A sociedade mandou convite a toda gente, aos jornais, aos grêmios e dentre estes à Camélia Branca, da qual é secretário o Chiquinho de Paula, primo lá do teu. Por sinal que para a Camélia foi um camarote, o 7, justamente aquele donde assistimos ao Poder do ouro, lembra-se?

— Se me lembro! Pois uma representação daquela é lá de esquecer? Montepin! e inda mais pelo Furtado Coelho! Noitão! Hoje é que não há mais disso. São umas comediazinhas indecentes, e cinemas, e drogas.

— A Lucinda Simões, hein? Mulherão!

Este “mulherão” foi dito com um arregalar de olho em que toda a concupiscência* retrospectiva se espojava arreitada.

— Nem fale! — disse o outro num tom de inexprimível saudade.

— Pois muito bem: o teatro encheu-se. Estava lá o coronel Totó Fernandes com a família; a família do doutor Izidoro; o major Gonçalves com a mulher — e por falar, como está acabada a dona Elisa!

— É verdade! Quem a viu e quem a vê! A Elisinha do Rincão, como lhe chamávamos, menina sapeca, da pá-virada, semostradeira até ali... Os anos, compadre, os anos...

— Só não vi lá a gente da oposição. Isso, nenhum, nem o Zé Penetra, aquele caradura.

Riram ambos, gostosamente, à lembrança da ausência dos adversários. (Esqueceu-me dizer que estes coronéis faziam parte do diretório situacionista, colunas fortíssimas que eram da força governamental no distrito.)

— Era ali entre nove e dez — continuou Liberato —, quando, de repente, adivinhe, se for capaz, compadre, quem surge pelo camarote número 7 adentro. Nhô Gué aparvalhou a cara com ar de quem não é capaz.

— A “Cruz de Ouro”! — concluiu o Liberato, de pé, chupando uma, duas, três baforadas do cigarro apagado, num triunfo.

Nhô Gué pasmou.

— Não me diga!...

— Pois é o que digo: a “Cruz de Ouro”.

Liberato riscou triunfalmente um fósforo e prosseguiu:

— O rebuliço foi grande. Toda gente se pôs a murmurar, olhando uns para os outros. A família do Totó quis retirar-se. A mulher do Gonçalves virou bicha, abanava-se com frenesi, indignada com a pouca-vergonha. O doutor Izidoro, presidente da Recreativa, que no palco já se preparava para deitar o verbo, espia pelo buraco do pano, percebe o negócio, fica possesso e berra lá dentro, de ouvir se cá na plateia, que processava, que partia a cara, que mais isto e mais aquilo — um fim do mundo! Houve pedidos de informação à bilheteria. Era preciso desagravar a moralidade pública ofendida com a execrável presença da “coisa à toa” em festa puramente familiar. Afinal a polícia interveio. O delegado foi com a descarada e com muito bons modos fê-la sair. Só então, onze horas, começou o espetáculo. No primeiro intervalo, porém, soube-se tudo: o Chiquinho de Paula, secretário da Camélia, recebera o convite para a festa, mas em vez de organizar uma comissão que dignamente representasse o grêmio, pega do camarote e o dá à “jereba”, de quem é...

Aqui o coronel Liberato, para remate da frase, fez uma cara de supremo nojo:

— ... o queridinho!

Voltando em seguida à cara anterior, disse, grave e pundonorosamente*, bamboleando a cabeça:

— Veja você que refinadíssimo tranca!

E concluiu com desalentada severidade:

— E é com o primo de semelhante crápula que dona Chiquinha quer casar-se!

Na noite desse dia, altas horas, Liberato deixou em casa a enxaqueca e foi sorrateiramente bater à porta da “Cruz de Ouro”. Apareceu a criada. Confabularam baixinho.

— Não pode ser — disse a Libéria —, está cá seu coronel Nhô Gué.

Liberato fez uma careta.

— E amanhã? — perguntou.

— Amanhã é a vez do doutor Izidoro.

— E depois de amanhã?

— Quarta-feira? Deixe ver — fez cálculos nos dedos e disse: — Quarta-feira é o dia de seu Gonçalves.

— E quinta?

— Pois não sabe que as quintas são de seu Totó?

Liberato não desanimou.

— E domingo?

A Libéria despejou uma gargalhada sonorosa.

— Os “home”! Pois então sinhazinha não há de ter um descansinho na “somana”?

E fechou-lhe a porta na cara.
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* Vocabulário:

Barbaças – aqueles que têm barbas grandes.
Cachenê – Espécie de gravata comprida, de lã, seda ou fio sintético, que envolve o pescoço e parte inferior do rosto, para protegê-los do frio.
Caraças – carão, cara grande.
Concupiscência – cobiça.
Consentânea – adequada, apropriada.
Endrômina – ardil, artimanha.
Ipomeias – designação comum às ervas trepadeiras ou arbustos.
Pundonorosamente – altivamente.
Talagarça – Tecido de fios ralos, onde se borda.
Urumbevas – simplórios.

Fonte:
Monteiro Lobato. Cidades Mortas.