segunda-feira, 1 de junho de 2020

Antonio Cabral Filho (13º Colar de Trovas) Beijo


Tema: BEIJO

01
Quero beijar na boca,
é uma bela sensação.
Uma vontade muito louca
e até arde o coração.
Madalena Cordeiro - ES


02
Até arde o coração
o beijo, quando bem dado,
acende o fogo, a paixão,
naquele que foi beijado.
Aurineide Alencar - MS


03
Naquele que foi beijado
o beijo deixou raízes,
mas o amor foi arrancado,
só restaram cicatrizes.
Gilberto Cardoso - PB e RN


04
Só restaram cicatrizes,
se foram beijos de Judas,
mas te digo, não te iludas:
melhor saldo é dos felizes.
Antonio Cabral Filho - RJ

05
So restaram cicatrizes,
somos todos aprendizes,
os beijos dão diretrizes:
melhor saldo é dos felizes!....
Luiz Cláudio – RN


06
Melhor saldo é dos felizes,
digo com toda a certeza,
pois o abraço afasta as crises
e o beijo é boa surpresa.
Antonio Francisco Pereira - MG


07
O beijo traz boa surpresa,
eis o que me aconteceu:
trouxe bem mais que riqueza
O beijo que ela me deu.
Gilberto Cardoso – PB e RN

 

08
O beijo que ela me deu
tinha sabor de hortelã.
Me beijou e prometeu:
se quer mais, volte amanhã.
Antonio Francisco Pereira - MG


09
Se quer mais, volte amanhã!
Prometeu, mas não cumpriu,
mostrou de longe a maçã,
mas nem a porta me abriu.
Petrônio Oliveira - MG

 

10
Mas nem a porta me abriu!...
Beijou-me, mas sem calor.
Seu beijo não me atraiu.
Bom mesmo é com muito amor.
Gilberto Cardoso – PB e RN

 

11
Bom mesmo é com muito amor
No estômago borboletas
Colorindo a alma de cor
na boca são agulhetas.
Mirlene Andrade - SE


12
E na boca são agulhetas,
acupuntura sem par.
Entra no rol dos caretas
Quem não gosta de beijar.
Gilberto Cardoso – PB e RN


13
Quem não gosta de beijar,
não pode ser boa gente,
nunca vai se aproximar
de algum amor bem decente!
Talita Batista - RJ


14
De algum amor bem decente
guardo na minha lembrança
um beijo bem caliente
quando ainda era criança!....
Luiz Cláudio – RN


15
Quando ainda era criança
à minha avó eu beijava.
Depois, cheio de esperança,
algum trocado aguardava.
Gilberto Cardoso – PB e RN


16
Algum trocado aguardava
o pedinte na calçada.
Um beijo não esperava,
e a tez ficou ruborada.
Oliveira Caruso - RJ


17
E a tez ficou ruborada,
porque você disse adeus,
mas logo fui abraçada,
e uni meus lábios aos seus.
Madalena Cordeiro - ES


18
Uni meus lábios aos seus,
no seio da noite escura,
mas foi por obra de Deus,
que não fizemos loucura.
Antonio Cabral Filho - RJ


19
Que não fizemos loucura,
mas beijando eu fico louca,
só me beija com ternura,
me puxe e beija-me a boca.
Mirlene Andrade - SE


20
Me puxe e beija-me a boca,
cubra meu corpo de beijos,
deixe minha alma bem louca,
pra saciar seus desejos.
Antonio Cabral Filho - RJ
 

21
Pra saciar seus desejos,
no seu corpo, a minha mão,
vaga enquanto em lampejos,
a beijo em sofreguidão.
Zé Ferreira - RN


Fonte:
Trovadores do Brasil

Aparecido Raimundo de Souza (W ou B?)


O ESTILISTA CAPILAR QUE ME ATENDEU NA NOVA barbearia que inaugurou esta semana, na sobreloja do prédio onde tenho meu escritório para empresários que precisam lavar dinheiro e enganar a Receita e a Polícia Federal, na Avenida Presidente Vargas, quase colado à Candelária, a primeira impressão que me deixou foi a de que não tinha nádegas. Pelo menos o suficiente para ser notado. A jeans bege que usava, preso a um cinto de couro preto, bem acima do umbigo, juntamente com a camisa branca, por dentro da calça, dava a ele, ares de uma linguiça mal empetecada e seca e, ainda por cima, amarrada pelo meio.

A única coisa que não combinava com a calça, nem com o cinto, tampouco com a camisa e os sapatos amarelos, era o celular minúsculo no bolso. Os cabelos longos que lhe caíam até a altura da região ínfero-posterior da cabeça estavam presos por uma pregadeira vermelha em formato de peixinho, coincidentemente da mesma cor da capinha que protegia o aparelho telefônico.

Diante dos espelhos enormes, a figura do barbeiro se destacava. Sentado na cadeira de assento verde, com almofadas e bolinhas da mesma cor, eu podia observá-lo de todos os ângulos. Visto pela traseira, parecia um pau de arrimo que comumente as pessoas idosas usam para se locomoverem. Não se distinguiam os contornos de um ser normal, ou seja, onde terminava as costas, emendava o que deveria ser o traseiro, e onde este acabava, tinha início as pernas. Mas, no conjunto, um perfeito e estranho varapau.

Na realidade, o cidadão se assemelhava a uma dessas tábuas usadas em andaimes de prédio, posta em pé, ora se movendo de um lado, ora de outro. De frente, lembrava um periscópio de submarino na posição em que os marinheiros o colocam para observar a superfície. Se olhado pelas laterais, principalmente à direita, vinha, à cabeça, a figura de um cachorro vira-lata fujão, depois de ter revirado o lixo na cozinha e esparramado o que havia dentro, pela casa afora.

Verdade seja dita: tirando essas bizarrices todas, o cara era ágil, desembaraçado e veloz, na tesoura. Cortava meu cabelo com a precisão de um profissional que conhece profundamente o serviço que executa. Devido à sua destreza, mal dava para acompanhar os movimentos cadenciados de suas mãos na tesoura, trabalhando o couro cabeludo, aparando as pontas aqui e ali até ficar tudo do jeitinho como lhe havia ordenado.

De repente interrompeu o desbaste e perguntou muito solícito, se aceitava um café quentinho saído naquele exato momento. Optei pela água gelada. Uma moça simpaticíssima, estatura mediana, rosto claro, olhos pretos e grandes, acondicionada num vestido azul-marinho colado ao corpo, deixando entrever os contornos de uma calcinha minúscula, veio lá de dentro, com uma bandeja, e me serviu, zelosa e apressurada. O traje da elegante, em contraste com a severidade do patrão, não excluía, de forma alguma, a graça e a formosura do feitio. Em seguida fui galardoado com o jornal todo desfolhado com relatos de alguns dias atrás.

– Escuta, companheiro, não foi na semana passada que o Lula botou na cabeça o boné do MST?

– Acho que sim, senhor...

– E não foi também, na mesma época que o Papa João Paulo II pregou a castidade para os jovens?

– Sim, senhor. Por que as perguntas?

– Esse jornal é velho demais. Por favor, amigo, devolva ao lugar de onde veio.

O rapaz ainda tentou substituir a tal publicação por uma leitura mais em voga, contudo a revista igualmente era tão antiga que trazia resenhas de uma novela chata que havia acabado mês anterior.

Não sei se alguém já atentou para um fato corriqueiro, mas de vital importância, se levado a sério: em recepções, sejam de hotéis, casas de massagens, imobiliárias, instituições bancárias, consultórios médicos e dentários, salões de beleza e barbearias, as revistas e os jornais destinados ao público “esperante” nunca são do dia. Geralmente essas velharias ficam espalhadas pelos assentos, ou jogadas pelo chão, à espera que um boboca, para matar o tempo, se ocupe em lhe desfolhar as páginas. É raro chegar num desses lugares e dar de cara com alguma coisa realmente digna de ser lida.

Para não deixar o sujeito chateado, resolvi puxar conversa.

– Qual é seu nome, amigo?

– Bilson, senhor...!

–... Wilson?

– Não. Bilson. Bilson de Freitas.

– Com B ou com W?

– Com W, de Bilson.

Graças a Deus não precisei dar continuidade ao papo, pois a minha sessão havia terminado. Antes de me despachar, dando lugar a outro, o rapaz pegou um espelho redondo e o colocou por detrás das orelhas, a altura que eu pudesse ver se a coisa ficara a gosto. Aprovei com um aceno de cabeça e ele pareceu se alegrar com a minha satisfação.

Paguei o corte, agradeci a água, dei uma olhadela de cima em baixo para a secretária de vestido de colante azul-marinho e prometi solenemente voltar outras vezes. Não por ele, mas pelo sorriso indescritível da bela potranca, que devolveu com um tchauzinho maroto e um piscar de olhos discreto, a minha observação detalhada às suas enormes pernas roliças.

Lá fora, enquanto espiava a vitrine de uma loja de conveniências, pensei com meus botões:

– “Bem, acho que esse barbeiro tem problemas com a voz. É de fato fanhoso, ou não sabe escrever o próprio nome. Ou via outra: está a fim de tirar um sarro com os meus cornos. Ou com os meus córneos. E por que não? Bilson com W. Onde já se biu?”.

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. As mentiras que as mulheres gostam de ouvir. RJ: Editora AMCGuedes, 2013

domingo, 31 de maio de 2020

Varal de Trovas n. 279


Luís Alberto Saavedra (Revelação)


Ela havia marcado a consulta por telefone naquela manhã e tinha urgência de ser atendida. Eu, para me valorizar, disse a ela que tinha horário de encaixe apenas à tarde (na verdade a minha agenda estava livre desde a manhã). Ela topou.

Chegou pontualmente no horário, Imaginei que tivesse cinquenta e poucos anos, vestida de forma sofisticada e com bom gosto. Tinha um belo sorriso. Em resumo, uma mulher bonita. O seu nome era Catarina.

Apresentações feitas, disse-me que tinha me escolhido por eu ser jovem e, por essa circunstância, esperava que eu pudesse entender melhor seu problema. Deixo de relatar questões mais íntimas da história dessa paciente, por razões óbvias, e me atenho apenas aos aspectos mais gerais, que não expõem sua intimidade. Devo dizer que, desde logo, se estabeleceu uma grande empatia entre mim e ela. Isso é importante e decisivo na construção do vínculo entre terapeuta e paciente.

Com desenvoltura começou narrar sua vida e a razão pela qual tinha vindo ao meu consultório.

- Eu sou uma mulher bem sucedida na minha profissão. Trabalho como gerente de vendas de um grande magazine. Apesar desse fato, na minha vida amorosa nunca tive muita sorte, pois eu me envolvi com homens que traíram a minha confiança. Essas experiências negativas me fizeram uma pessoa desconfiada e insegura. Passei um bom tempo sem ter ninguém. Tinha perdido a esperança.

- Compreendo.

- Há alguns meses conheci um homem maduro, quinze anos mais velho do que eu. Está sozinho. Estamos no início, sei pouco ainda da sua vida. Ele é viúvo. A minha intuição me diz que ele é diferente, até por ser uma pessoa bem sofrida. Cuidou da sua esposa com câncer até o fim. É assim que eu espero que um homem cuide de mim. Ele foi aos poucos conquistando a minha confiança, sem pedir nada em troca. O envolvimento foi acontecendo aos poucos. As minhas barreiras caíram e eu permiti que ele entrasse. Confiei a ele os meus sentimentos e sonhos. Porém, a coisa está ficando mais séria agora e voltou o pânico. Quando ele me convidou para conhecer seus filhos tive um grande susto e por reação impulsiva saí correndo sem me despedir. Depois liguei me desculpando e aceitei o convite.

Nesse ponto começou a chorar e eu lhe alcancei a caixa de lenços de papel.

- Tu sabes a causa desse teu repentino medo? Não estás te sentindo pronta para assumir um compromisso? - perguntei.

- Eu acho que tenho medo de que os filhos dele não me aceitem, pois sei que a mãe deles era muito legal. A minha cabeça está confusa. Não quero tomar o lugar de ninguém! Quero apenas ser uma amiga. - E começou a chorar de novo. Agora soluçando.

- Suponho que os filhos dele sejam adultos e saibam entender o momento da vida do pai. Para eles o importante é que pai esteja feliz. Eles também fizeram livremente suas escolhas. Não é mesmo?

- Acha mesmo isso?

Nesse ponto tivemos que interromper a consulta, pois o horário já tinha ido. Ela se despediu contente, dando-me um abraço efusivo. A nuvem tinha se dissipado.

Saí correndo do consultório para jogar tênis. Depois fui jantar com minha namorada no Barranco. Quando chegamos, vi meu pai numa mesa adiante, nem percebi que estava acompanhado. Como era natural, fomos cumprimentá-lo. Foi um choque, pois ele estava jantando com Catarina, nada mais nada menos, que a minha nova paciente.

Fonte:
Escrita Criativa

Luís Vaz de Camões (Sonetos) 3


Soneto 043

Como quando do mar tempestuoso
o marinheiro, lasso e trabalhado,
d'um naufrágio cruel já salvo a nado,
só ouvir falar nele o faz medroso;

e jura que em que veja bonançoso
o violento mar, e sossegado
não entre nele mais, mas vai, forçado
pelo muito interesse cobiçoso;

Assi, Senhora eu, que da tormenta,
de vossa vista fujo, por salvar me,
jurando de não mais em outra ver me;

minh'alma que de vós nunca se ausenta,
dá me por preço ver vos, faz tornar me
donde fugi tão perto de perder me.
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Soneto 071


Como fizeste, Pórcia, tal ferida?
Foi voluntária, ou foi por inocência?
—Mas foi fazer Amor experiência
se podia sofrer tirar me a vida.

—E com teu próprio sangue te convida
a não pores à vida resistência?
—Ando me acostumando à paciência,
porque o temor a morte não impida.

—Pois porque comes, logo, fogo ardente,
se a ferro te costumas?—Porque ordena
Amor que morra e pene juntamente.

E tens a dor do ferro por pequena?
—Si: que a dor costumada não se sente;
e eu não quero a morte sem a pena.
***************************************

Soneto 086

Cara minha inimiga, em cuja mão
pôs meus contentamentos a ventura,
faltou te a ti na terra sepultura,
porque me falte a mim consolação.

Eternamente as águas lograrão
a tua peregrina formosura;
mas, enquanto me a mim a vida dura,
sempre viva em minh'alma te acharão.

E se meus rudes versos podem tanto
que possam prometer te longa história
daquele amor tão puro e verdadeiro,

celebrada serás sempre em meu canto;
porque enquanto no mundo houver memória,
será minha escritura teu letreiro.
****************************************
 
Soneto 093

Conversação doméstica afeiçoa,
ora em forma de boa e sã vontade,
ora de u’a amorosa piedade,
sem olhar qualidade de pessoa.

Se depois, porventura, vos magoa
com desamor e pouca lealdade,
logo vos faz mentira da verdade
o brando Amor, que tudo em si perdoa.

Não são isto que falo conjecturas,
que o pensamento julga na aparência,
por fazer delicadas escrituras.

Metido tenho a mão na consciência,
e não falo senão verdades puras
que me ensinou a viva experiência.
****************************************

Soneto 097


Com grandes esperanças já cantei,
com que os deuses no Olimpo conquistara;
depois vim a chorar porque cantara
e agora choro já porque chorei.

Se cuido nas passadas que já dei,
custa-me esta lembrança só tão cara
que a dor de ver as mágoas que passara
tenho pela ‘mor mágoa que passei.

Pois logo, se está claro que um tormento
dá causa que outro n'alma se acrescente,
já nunca posso ter contentamento.

Mas esta fantasia se me mente?
Oh! ocioso e cego pensamento!
Ainda eu imagino em ser contente?
****************************************

Soneto 104


Correm turvas as águas deste rio,
que as do Céu e as do monte as enturvaram;
os campos florecidos se secaram,
intratável se fez o vale, e frio.

Passou o Verão, passou o ardente Estio,
u’as coisas por outras se trocaram;
os fementidos Fados já deixaram
do mundo o regimento, ou desvario.

Tem o tempo sua ordem já sabida;
o mundo, não; mas anda tão confuso,
que parece que dele Deus se esquece.

Casos, opiniões, natura e uso
fazem que nos pareça desta vida
que não há nela mais que o que parece.
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Soneto 159


Chorai, Ninfas, os fados poderosos
daquela soberana formosura!
Onde foram parar na sepultura
aqueles reais olhos graciosos?

Ó bens do mundo, falsos e enganosos!
Que mágoas para ouvir! Que tal figura
jaza sem resplendor na terra dura,
com tal rosto e cabelos tão formosos!

Das outras que será, pois poder teve
a morte sobre coisa tanto bela
que ela eclipsava a luz do claro dia?

Mas o mundo não era dino dela,
por isso mais na terra não esteve;
ao Céu subiu, que já se lhe devia.

Fonte:
Luís Vaz de Camões. Sonetos. Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro.

Sílvio Romero (A Princesa Roubadeira)


Havia um pai que tinha três filhos. Um deles plantou um pé de laranjeira, outro um pé de limeira, e o terceiro um pé de limoeiro.

Lá num dia, o filho mais velho foi ao pai e lhe disse:

— Meu pai, eu já estou moço feito. Quero sair pelo mundo para ganhar a minha vida.

O pai o aconselhou para não fazer aquilo, mas o moço insistiu e afinal o velho lhe disse:

— Pois bem, meu filho, vai, mas tu que queres: a minha bênção com pouco dinheiro, ou a minha maldição com muito?

O moço respondeu que queria a maldição com muito dinheiro e assim o pai fez. O moço disse aos irmãos que quando a sua laranjeira começasse a murchar, era ele que estava em trabalhos e lhe acudissem. Partiu.

Chegando adiante, já muito cansado e com muita fome, avistou uma fumacinha ao longe e para lá se encaminhou. Era a casa de uma senhora muito rica. Pediu um agasalho e o que comer. A senhora mandou dar-lhe de jantar.

Acabada a janta, o convidou para dar um passeio em sua horta. Antes de chegar a ela, tinha de passar um riachinho. Aí a moça, que era a princesa roubadeira, suspendeu bastante o vestido a ponto de deixar ver um tanto das pernas. Passeavam na tal horta, que só tinha couves e mais nada. De volta, a princesa perguntou ao hóspede:

— Então, o que achou mais bonito na minha horta?

Ele respondeu:

— Couves.

A moça convidou-o depois para o jogo, no qual lhe ganhou todo o dinheiro que levava. Acabado o jogo, mandou-o prender e sustentar de couves.

Lá em casa do moço, a sua laranjeira começou a murchar. O irmão do meio, vendo isto, foi ao paí e disse:

— Meu pai, meu irmão está em trabalhos. Eu quero ir atrás dele.

O pai custou muito a consentir e afinal perguntou:

— Tu o que queres: a minha bênção com pouco dinheiro ou a minha maldição com muito dinheiro?

Ele quis a maldição com muito dinheiro. O pai assim fez. O moço partiu.

Depois de andar muito, já cansado e com fome, avistou ao longe uma fumacinha e caminhou para ela. Apareceu-lhe, num palácio, uma linda moça, a qual ele pediu de comer e um agasalho. Ela mandou-o entrar e servir-lhe de jantar. Depois convidou-o para dar um passeio na horta e ele aceitou. Ao passar o riachinho a princesa suspendeu os vestidos, deixando ver as pernas. De volta, ela perguntou ao hóspede:

— Então, o que viu de mais bonito em minha horta?

Ele respondeu:

— Couves.

Lá consigo a moça disse: "Este é como o outro". Convidou-o para jogar. Ganhou-lhe todo o dinheiro e mandou-o prender e cevar de couves.

Lá na casa dele a limeira começou a murchar, e o irmão mais moço, vendo isto, foi ao pai e disse-lhe:

— Meus irmãos, que foram ganhar a vida, estão em perigo e eu quero ir ao seu encontro.

O pai observou:

— Meu filho, eu já estou velho, e sendo tu o meu filho único, não te vás também embora.

O moço insistiu e o pai lhe falou:

— Então o que queres: minha maldição com muito dinheiro ou minha bênção com pouco?

O filho respondeu:

— A bênção com pouco dinheiro.

Partiu. Chegando bem longe, encontrou uma velhinha, que era Nossa Senhora, que lhe disse:

— Aonde vai, meu netinho?

Ao que respondeu:

— Vou ganhar a minha vida.

A velha lhe deu uma toalha, dizendo:

— Quando tiveres fome, pega nela e diz: "Põe a mesa, toalha!" e a mesa aparecerá.

Deu-lhe mais uma bolsa, dizendo:

— Esta bolsa tem o mesmo préstimo.

Deu também uma violinha, dizendo:

— Quando se acabar a toalha e a bolsa, põe-te a tocar nela e não hás de ter fome.

O moço seguiu o seu caminho. Ao longe avistou uma fumacinha e dirigiu-se para lá. Foi ter a uma casa onde estavam presos os seus dois irmãos. Aí descansou e jantou. A princesa roubadeira o convidou para dar um passeio na sua horta. O moço aceitou e foram. Ao passar o riachinho, a linda moça levantou os vestidos e mostrou as pernas quase todas. O moço botou os olhos com cuidado. De volta, a princesa perguntou-lhe:

— Então, o que viste mais bonito em minha horta?

— Com licença da senhora, foram as suas pernas.

Lá consigo disse a moça: "Este me serve". Seguiu-se o jogo em que ela lhe ganhou todo o dinheiro e mandou-o prender. Quando chegou a hora de dar de comer aos presos, indo a negra com a comida para ele, não a quis, dizendo:

— Leve lá à sua senhora, que eu não preciso dela.

Pegou na toalha e foi muita comida que apareceu logo. Os presos todos, que eram muitos, e que andavam mortos de fome, comeram a fartar-se e guardaram muita comida. A negra, vendo aquilo, foi ter com a senhora e lhe disse:

— Não sabe, minha senhora?! Aquele preso de ontem tem uma toalha que basta ele pegar nela para aparecer muita comida e da melhor. Só vosmecê é que devia possuir aquela toalha, minha senhora princesa.

A princesa roubadeira disse à negra:

— Vai perguntar se ele a quer vender.

A escrava foi, e o preso respondeu:

— Diga à sua senhora que para ela não é nada. Basta que me deixe dormir uma noite na porta do quarto dela do lado de fora.

A escrava levou o recado. A senhora tomou aquilo por grande desaforo, mas a negra lhe disse que não desse atenção àquilo, que não queria dizer nada e ela ficaria com a sua toalha. No dia seguinte, ao levar o almoço, não o quis, e puxou pela bolsa e foi comida por cima do tempo. A negra, que via aquilo, correu e foi contar à senhora:

— Não sabe, princesa minha senhora?! O preso está terrível. Puxou agora por uma bolsa que só vosmecê possuindo... É melhor que a toalha.

A ambiciosa mandou oferecer compra pela bolsa. O preso lhe mandou dizer que para ela não era nada. bastava deixá-lo dormir no seu quarto do lado de dentro, junto da porta. A roubadeira ficou muito insultada e pôs-se a rosnar. Foi preciso que a escrava lhe dissesse:

— Ô xente! minha senhora, que mal faz? Vosmecê dorme em sua cama e aquele tolo lá no chão.

Fez-se o negócio e o maganão dormiu dentro do quarto da princesa. No dia seguinte, indo a negra levar o almoço, ele puxou pela viola e pôs-se a tocar e todos os presos a dançar, e a negra largou os pratos no chão e pôs-se também a dançar, e demorou-se muito, a ponto da roubadeira mandar chamar a negra, admirada daquela demora. A preta lhe respondeu:

— Minha senhora, aquele preso está com o diabo. Tem agora uma violinha que só vosmecê possuindo...

A princesa mandou logo oferecer dinheiro por ela; o preso não quis, dizendo:

— Esta... só se ela casar comigo!

A negra foi dar o recado. A moça arrufou-se, mas afinal consentiu e casou-se. Depois disto todos os presos foram soltos. Houve muita festa. Eu lá estive (diz a narradora) e trouxe uma panelinha de doce, que caiu ali na ladeira.

Entrou por uma porta
Saiu por um canivete
Manda o rei, meu senhor
Que me conte sete.

Fonte:
Sílvio Romero, Folclore brasileiro; cantos e contos populares do Brasil. RJ: José Olympio, 1954.

terça-feira, 26 de maio de 2020

Varal de Trovas n. 278


Cláudio de Cápua (Tudo pela Literatura)


Após o jantar em casa, Norberto encaminhou-se para sua mesa de trabalho, onde, aborrecido, ficou contemplando as folhas brancas de sulfite.

Às vezes, desviava o olhar para as estantes que o rodeavam, repletas de livros.

Andréa tocava, ao lado, uma suave sonata.

- Com mil demônios! bradou Norberto - Não consigo!

- Que há, querido? Perguntou Andréa, parando de tocar.

- Estou estressado, não consigo escrever minha crônica para o periódico.

Andréa abandonou o piano e foi sentar-se ao lado do marido.

Norberto confidenciou-lhe que, após escrever dez anos, diariamente, para o jornal, não encontrava, por mais que procurasse, o tema para seu artigo.

- Acho que estou precisando descansar...tirar umas férias.

Já focalizara recordações da infância e dos tempos de juventude na faculdade, assim como histórias e casos de família. Mas, agora, por mais que forçasse a memória, nada conseguia.

- Querida, as pessoas possuem alguns casos reais, experiências adquiridas no dia a dia, mesmo você que é um anjo de bondade e um talento musical, não teria, talvez algum episódio que pudesse me ajudar a fugir desse sufoco profissional?

Andréa concordou, com um sorriso:

- Casei-me com você porque o amei e continuo com você, porque o amo - essa é a minha história.

- Querida, você é gentil, mas eu falo do antes de mim, antes dos seus 21 anos. Veja se me entende, quero torná-la minha colaboradora. Afinal, seja lá o que haja acontecido antes de mim, não me importa!

Ante tais argumentos, Andréa capitulou:

- Está bem, entendo os nobres interesses da literatura. Vou contar-lhe um fato anterior ao nosso relacionamento mas, por favor, não me interrompa... caso contrário, não irei até o fim.
    Fui apaixonada por mais de 3 anos...Não feche a cara. Era uma paixão louca, de jovem. Não um caso sério, de amor, como o nosso.

- Continue!

- Não sei, estou envergonhada...

- Continue.

- Querido, essa confissão é um sacrifício que faço para ajudar. O maestro Sílvio, meu professor de piano, era casado e eu queria, a toda força, separá-lo da Leonor. Se hoje sou boa, naquela época fui má. Como você sabe, o primo Antenor era e é grande conquistador e eu procurei aproximar o primo da Leonor e ele acabou por seduzi-la. Atingi meu objetivo que era a destruição daquela feliz união.

- Chega de infâmia! gritou Norberto - Você foi capaz de tal canalhice?

Andréa olhou o marido e riu com ternura.

- Claro que não, nunca existiu em minha vida um Sílvio, professor de piano, e muito menos a seduzida Leonor, foi tudo armação, tudo por você e pela literatura.

No domingo, Norberto indagou ao sogro, com naturalidade, durante o almoço:

- Dr. Celso, que fim levou aquele maestro, que dava aulas particulares de piano para Andréa em solteira?

- Silvano e a esposa Leontina, disse-lhe o sogro, tinham ficado muito amigos de Andréa e do meu sobrinho Antenor, mas, de repente, sumiram e, mais tarde, fiquei sabendo que o casal se havia separado.

Norberto empalideceu, enquanto Andréa, com voz macia, lhe dizia ao ouvido.

- Querido, não vai acreditar, vai? Foi tudo pela literatura.

(Revista Santos Arte e Cultura – Março 2009)

Fonte:
Cláudio de Cápua. Retalhos de Imprensa. São Paulo: EditorAção, 2020.
Livro gentilmente enviado pelo escritor.

Nilton da Costa Teixeira (Os Sacis)


Os trilhos das estradas onde ainda hoje correm remanescentes dos trens de ferro das Cias. Mojiana e São Paulo e Minas estão sendo retirados e transferência de todo o acervo dessas cias. passando as suas estações a funcionarem no bairro do Tanquinho, local onde já se inicia o movimento de trens na nova estação ferroviária. Ambas as estações do centro estão praticamente desertas e os leitos das mesmas que se localizam na parte central, acham-se abandonados e as partes mais longínquas despovoadas e tristes... Algumas taperas já se desmantelando moldam o correr do caminho e dão ao cenário um aspecto lúgubre... Várias cruzes lúgubres plantadas aqui e ali testemunham vinganças que existiam em épocas já perdidas no tempo. Os caminhos íngremes, sinuosos e cobertos de matos, são agora, segundo a crendice popular, palcos de habitações de assombrações e sacis de risos convulsos e escaninhos e de assobios estridentes e profundos. Nesse local também existem almas penadas de choros e lamentos dolentes que causam estranhas sensações assustando o caminhante despreocupado que passa em horas tardias e mortas...

No caminho sinuoso e em triste escuridão,
Há sombras que sutis se emergem e amedrontam,
E o caminhante, indo em tristonha solidão,
Vê perspectivas más que sempre lhe despontam...

Esses caminhos trens de ferro transitam,
E agora o caminhante aí, noites escuras,
Vê sempre esgueirar- entre os vagões que ficaram
Um negrinho a saltar e fazer diabruras.

As cambalhotas, sobre uma perna, fugaz,
Assusta o caminhante e segue em disparada,
Pulando a gargalhar satânico e mordaz,
Deixando quem o vê estático na estrada...

Assobios toda a noite se sucedem,
E, ruidosamente, há alguém que sempre ri,
Enquanto vozes já exaltadas perseguem
quem á noite tiver que transitar aí.

Em grande vozerio e aos gritos de terror,
As chusmas de sacis, em um vaivém constante,
Produzem algazarra e fazem tal clamor
Que acabam por prostrar o pobre viandante.

Fonte:
Nilton da Costa Teixeira. Versos a Ribeirão Preto, 1970.
Enviado por Nilton Manoel Teixeira

Malba Tahan (O Sábio da Efelogia)


Durante a última excursão que fiz a Marrocos, encontrei um dos tipos mais curiosos que tenho visto em minha vida.

Conheci-o, casualmente, no velho hotel de Yazid El-Kedim, em Marrakesh. Era um homem alto, magro, de barbas pretas e olhos escuros; vestia sempre pesadíssimo casaco de astracã com esquisita gola de peles que lhe chegava até às orelhas. Falava pouco; quando conversava casualmente com os outros hóspedes, não fazia, em caso algum, a menor referência à sua vida ou ao seu passado. Deixava, porém, de vez em quando, escapar observações eruditas, denotadoras de grande, extraordinário saber.

Além do nome — Vladimir Kolievich — pouco se conhecia dele. Entre os viajantes que se achavam em “El-Kedim” constava que o misterioso cavalheiro era um antigo notável professor da Universidade de Riga, que vivia foragido por ter tomado parte numa revolução contra o governo da Letônia.

Uma noite estávamos, como de costume, reunidos na sala de jantar quando uma jovem escritora russa, Sônia Baliakine, que se entretinha com a leitura de um romance, me perguntou:

— Sabe o senhor onde fica o rio Falgu?

— O quê? rio Falgu?

Ao cabo de alguns momentos de baldada pesquisa, nos caminhos da memória, fui obrigado a confessar a minha ignorância, lamentável nesse ponto, nunca tinha ouvido falar em semelhante rio, apesar de ter feito um curso completo e distinto na Universidade de Moscou.

Com surpresa de todos, o misterioso Vladimir Kolievich, que fumava em silêncio a um canto, veio esclarecer a dúvida da encantadora excursionista russa.

— O rio Falgu fica nas proximidades da cidade de Gaya na Índia. Para os budistas o Falgu é um rio sagrado, pois foi junto a ele que Buda, fundador da grande religião, recebeu a inspiração de Deus!

E, diante da admiração geral dos hóspedes, aquele cavalheiro, habitualmente taciturno e
concentrado, continuou:

— É muito curioso o rio Falgu. O seu leito apresenta-se coberto de areia; parece eternamente seco, árido, como um deserto. O viajante que dele se aproxima não vê nem ouve o menor rumor do líquido. Cavando-se, porém, alguns palmos na areia, encontra-se um lençol de água pura e límpida.

E, com simplicidade e clareza peculiares aos grandes sábios, passou a contar-nos coisas curiosas, não só da Índia, como de várias outras partes do mundo: falou-nos, por exemplo, minuciosamente, das “filazenes”, espécie de cadeiras em que se assentam, quando viajam, os habitantes de Madagáscar.

— Que grande talento! Que invejável cultura científica! segredou, a meu lado, um missionário católico, sinceramente admirado.

A formosa Sônia afirmou que encontrara referência ao rio Falgu exatamente no livro que estava lendo, uma obra de Otávio Feuillet.

— Ah! Feuillet, o célebre romancista francês! — atalhou ainda o erudito cavalheiro do astracã — Otávio Feuillet nasceu em 1821 e morreu em 1890. As suas obras, de um romantismo um pouco exagerado, são notáveis pela finura das observações e pela concisão e brilho do estilo!

E, durante algum tempo, prendeu a atenção de todos, discorrendo sobre Otávio Feuillet, sobre a França e sobre os escritores franceses. Ao referir-se aos romances realistas, citou as obras de Gustavo Flaubert: Salambô, Madame Bovary, Educação Sentimental...

— Não se limita a conhecer só a Geografia — acrescentou, a meia voz, o velho missionário. — Sabe também literatura a fundo!

Realmente. A precisão com que o erudito Vladimir citava datas e nomes e a segurança com que expunha os diversos assuntos não deixavam dúvida alguma sobre a extensão de seu considerável saber.

Nesse momento, começa uma forte ventania. As janelas e portas batem com violência. Alguns excursionistas, que se achavam na sala, mostraram-se assustados.

— Não tenham medo — acudiu, bondoso, o extraordinário Kolievich. — Não há motivo para temores e receios. Faye, o grande astrônomo, que estudou a teoria dos ciclones...

E depois de discorrer longamente sobre a obra de Faye passou a falar, com grande loquacidade, dos ciclones, avalanchas, erupções e de todos os flagelos da natureza.

Senti-me seriamente intrigado. Quem seria, afinal, aquele homem tão sábio, de rara e copiosa erudição, que se deixava ficar modesto, incógnito, como simples aventureiro, numa velha e monótona cidade marroquina?

No dia seguinte, ao regressar da fatigante excursão aos jardins de El-Menara, encontrei-o casualmente, sozinho, no pátio da linda mesquita de Kasb. Não me contive e fui ter com ele.

— O senhor maravilhou-nos ontem com o seu saber — confessei respeitoso. — Não podíamos imaginar, com franqueza, que fosse um homem de tão grande cultura. Na sua Academia, com certeza...

— Qual, meu amigo! — obtemperou ele, amável, batendo-me no ombro — Não me considere um sábio, um acadêmico ou um professor. Eu pouco sei — ou melhor — eu nada sei. Não reparou nas palavras de que tratei? Falgu, filazenes, Feuillet, França, Flaubert, Faye, flagelo. Começam todas pela letra “F”! Eu só sei falar sobre palavras que começam pela letra “F”!

Fiquei ainda mais admirado. Qual seria a razão de tão curiosa extravagância no saber?

— Eu lhe explico — acudiu com bom humor o estranho viajante. — Sou natural de Petrogrado, e vivo do comércio do fumo. Estive, porém, por motivos políticos, durante dez anos nas prisões da Sibéria. O condenado que me havia precedido, na cela, em que me puseram, deixou-me como herança, os restos de uma velha enciclopédia francesa. Eu conhecia pouco esse idioma, e — como não tivesse em que me ocupar — li e reli, centenas de vezes, as páginas que possuía. Eram todas da letra “F”. Desde então fiquei sabendo muita coisa, tudo, porém, sem sair da letra “F”: fá, fabagela, fabela, fabiana, fabordão.

Achei curiosa aquela conclusão da original história do inteligente Kolievich — o negociante de fumo.

Ele era precisamente o contrário do famoso e venerado rio Falgu, da Índia. Parecia possuir uma corrente enorme, profunda e tumultuosa de saber; entretanto, sua erudição, que nos causara tanto assombro, não ia além dos vários capítulos decorados da letra “F” de uma velha enciclopédia.

Era, inquestionavelmente, o homem que mais conhecia a ciência que ele mesmo denominara “Efelogia”!

Fonte:
Malba Tahan. O Gato do Xeique e Outras Lendas.