quinta-feira, 23 de julho de 2020

Silmar Böhrer (Croniquinha) 6


Caminho solito por estas areias deixando pegadas que jamais serão vistas por outra pessoa, porque as águas vão apagando meus sinais.

Rastros na areia são como tantos segredos que ninguém jamais imagina e nunca tomará conhecimento, porque são únicos, exclusivos, de um só. Meus, seus. Existem invisíveis, inimagináveis; portanto, não existem.

Segredos de um só são como pegadas na areia. Simplesmente não existem.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Dinah Silveira de Queiroz (A Moralista)


Se me falam em virtude, em moralidade ou imoralidade, em condutas, enfim, em tudo que se relacione com o bem e o mal, eu vejo Mamãe em minha ideia. Mamãe - não. O pescoço de Mamãe, a sua garganta branca e tremente, quando gozava a sua risadinha como quem bebe café no pires. Essas risadas ela dava principalmente à noite, quando - só nós três em casa - vinha jantar como se fosse a um baile, com seus vestidos alegres, frouxos, decotados, tão perfumada que os objetos a seu redor criavam uma pequena atmosfera própria, eram mais leves e delicados. Ela não se pintava nunca, mas não sei como fazia para ficar com aquela lisura de louça lavada. Nela, até a transpiração era como vidraça molhada: escorregadia, mas não suja. Diante daquela pulcritude minha face era uma miserável e movimentada topografia, onde eu explorava furiosamente, e em gozo físico, pequenos subterrâneos nos poros escuros e profundos, ou vulcõezinhos que estalavam entre as unhas, para meu prazer. A risada de Mamãe era um "muito obrigada" a meu Pai, que a adulava como se dela dependesse. Porém, ele mascarava essa adulação brincando e a tratando eternamente de menina. Havia muito tempo uma espírita dissera a Mamãe algo que decerto provocou sua primeira e especial risadinha:

- Procure impressionar o próximo. A senhora tem um poder extraordinário sobre os outros, mas não sabe. Deve aconselhar... Porque... se impõe, logo à primeira vista. Aconselhe. Seus conselhos não falharão nunca. Eles vêm da sua própria mediunidade...

Mamãe repetiu aquilo umas quatro ou cinco vezes, entre amigas, e a coisa pegou, em Laterra. Se alguém ia fazer um negócio, lá aparecia em casa para tomar conselhos. Nessas ocasiões Mamãe, que era loura e pequenina, parecia que ficava maior, toda dura, de cabecinha levantada e dedo gordinho, em riste. Consultavam Mamãe a respeito de política, dos casamentos. Como tudo que dizia era sensato, dava certo, começaram a mandar-lhe também pessoas transviadas. Uma vez, certa senhora rica lhe trouxe o filho, que era um beberrão incorrigível. Lembro-me de que Mamãe disse coisas belíssimas, a respeito da realidade do Demônio, do lado da Besta, e do lado do Anjo. E não apenas ela explicou a miséria em que o moço afundava, mas o castigo também com palavras tremendas. Seu dedinho gordo se levantava, ameaçador, e toda ela tremia de justa cólera, porém sua voz não subia do tom natural.

O moço e a senhora choravam juntos.

Papai ficou encantado com o prestígio de que, como marido, desfrutava. Brigas entre patrão e empregado, entre marido e mulher, entre pais e filhos vinham dar em nossa casa. Mamãe ouvia as partes, aconselhava, moralizava. E Papai, no pequeno negócio, sentia afluir a confiança que se espraiava até seus domínios.

Foi nessa ocasião que Laterra ficou sem padre, porque o vigário morrera e o bispo não mandara substituto. Os habitantes iam casar e batizar os filhos em Santo Antônio. Mas, para suas novenas e seus terços, contavam sempre com minha Mãe. De repente, todos ficaram mais religiosos. Ela ia para a reza da noite de véu de renda, tão cheirosa e lisinha de pele, tão pura de rosto, que todos diziam que parecia e era, mesmo, uma verdadeira santa. Mentira: uma santa não daria aquelas risadinhas, uma santa não se divertia, assim. O divertimento é uma espécie de injúria aos infelizes, e é por isso que Mamãe só ria e se divertia quando estávamos sós.

Nessa época, até um caipira perguntou na feira de Laterra:

- Diz que aqui tem uma padra. Onde é que ela mora?

Contaram a Mamãe. Ela não riu:

- Eu não gosto disso. - E ajuntou: Nunca fui uma fanática, uma louca. Sou, justamente, a pessoa equilibrada, que quer ajudar ao próximo. Se continuarem com essas histórias, eu nunca mais puxo o terço.

Mas, nessa noite, eu vi sua garganta tremer, deliciada:

– Já estão me chamando de "padra"... Imagine!

Ela havia achado sua vocação. E continuou a aconselhar, a falar bonito, a consolar os que perdiam pessoas queridas. Uma vez, no aniversário de um compadre, Mamãe disse palavras tão belas a respeito da velhice, do tempo que vai fugindo, do bem que se deve fazer antes que caia a noite, que o compadre pediu:

- Por que a senhora não faz, aos domingos, uma prosa desse jeito? Estamos sem vigário, e essa mocidade precisa de bons conselhos...

Todos acharam ótima a ideia. Fundou-se uma sociedade: "Círculo dos Pais de Laterra", que tinha suas reuniões na sala da Prefeitura. Vinha gente de longe, para ouvir Mamãe falar. Diziam todos que ela fazia um bem enorme às almas, que a doçura das suas palavras confortava quem estivesse sofrendo. Várias pessoas foram por ela convertidas. Penso que meu Pai acreditava, mais do que ninguém, nela. Mas eu não podia pensar que minha Mãe fosse um ser predestinado, vindo ao mundo só para fazer o bem. Via tão claramente o seu modo de representar, que até sentia vergonha. E ao mesmo tempo me perguntava:

- Que significam estes escrúpulos? Ela não une casais que se separam, ela não consola as viúvas, ela não corrige até os aparentemente incorrigíveis?

Um dia, Mamãe disse ao meu Pai, na hora do almoço:

- Hoje me trouxeram um caso difícil... Um rapaz viciado. Você vai empregá-lo. Seja tudo pelo amor de Deus. Ele me veio pedir auxílio... e eu tenho que ajudar. O pobre chorou tanto, implorou.., contando a sua miséria. Ë um desgraçado!

Um sonho de glória a embalou:

- Sabe que os médicos de Santo Antônio não deram nenhum jeito? Quero que você me ajude. Acho que ele deve trabalhar... aqui. Não é sacrifício para você, porque ele diz que quer trabalhar para nós, já que dinheiro eu não aceito mesmo, porque só faço caridade!

O novo empregado parecia uma moça bonita. Era corado, tinha uns olhos pretos, pestanudos, andava sem fazer barulho. Sabia versos de cor, e às vezes os recitava baixinho, limpando o balcão. Quando o souberam empregado de meu Pai - foram avisá-lo:

- Isso não é gente para trabalhar em casa de respeito!

- Ela quis - respondeu meu Pai. - Ela sempre sabe o que faz!

O novo empregado começou o serviço com convicção, mas tinha crises de angústia. Em certas noites não vinha jantar conosco, como ficara combinado. E aparecia mais tarde, os olhos vermelhos. Muitas vezes, Mamãe se trancava com ele na sala, e a sua voz de tom igual, feria, era de repreensão. Ela o censurava, também, na frente de meu Pai, e de mim mesma, porém sorrindo de bondade:

- Tire a mão da cintura. Você já parece uma moça, e assim, então...

Mas sabia dizer a palavra que ele desejaria, decerto, ouvir:

- Não há ninguém melhor do que você, nesta terra! Por que é que tem medo dos outros? Erga a cabeça... Vamos!

Animado, meu Pai garantia:

- Em minha casa ninguém tem coragem de desfeitear você. Quero ver só isso!

Não tinha mesmo. Até os moleques que, da calçada, apontavam e riam, falavam alto, ficavam sérios e fugiam, mal meu Pai surgisse à porta. E o moço passou muito tempo sem falhar nos jantares. Nas horas vagas fazia coisas bonitas para Mamãe. Pintou-lhe um leque e fez um vaso em forma de cisne, com papéis velhos molhados, e uma mistura de cola e nem sei mais o quê. Ficou meu amigo. Sabia de modas, como ninguém. Dava opinião sobre os meus vestidos. à hora da reza, ele, que era tão humilhado, de olhar batido, já vinha perto de Mamãe, de terço na mão. Se chegavam visitas, quando estava conosco, ele não se retirava depressa como fazia antes. E ficava num canto, olhando tranquilo, com simpatia. Pouco a pouco eu assistia, também, à sua modificação. Menos tímido, ele ficara menos afeminado. Seus gestos já eram confiantes, suas atitudes menos ridículas.

Mamãe, que policiava muito seu modo de conversar, já se esquecia de que ele era um estranho. E ria muito à vontade, suas gostosas e trêmulas risadinhas. Parece que não o doutrinava, não era preciso mais. E ele deu de segui-la fielmente, nas horas em que não estava no balcão. Ajudava-a em casa, acompanhava-a nas compras. Em Laterra, soube depois, certas moças que por namoradeiras tinham raiva da Mamãe, já diziam, escondidas atrás da janela, vendo-a passar:

- Você não acha que ela consertou... demais?

Laterra tinha orgulho de Mamãe, a pessoa mais importante da cidade. Muitos sentiam quase sofrimento, por aquela afeição que pendia para o lado cômico. Viam-na passar depressa, o andar firme, um tanto duro, e ele, o moço, atrás, carregando seus embrulhos, ou ao lado levando sua sombrinha, aberta com unção, como se fora um pálio. Um franco mal-estar dominava a cidade. Até que num domingo, quando Mamãe falou sobre a felicidade conjugal, sobre os deveres do casamento, algumas cabeças se voltaram quase imperceptivelmente para o rapaz, mas ainda assim eu notei a malícia. E qualquer absurdo sentimento arrasou meu coração em expectativa.

Mamãe foi a última a notar a paixão que despertara:

- Vejam, eu só procurei levantar seu moral... A própria mãe o considerava um perdido - chegou a querer que morresse! Eu falo - porque todos sabem - mas ele hoje é um moço de bem!

Papai foi ficando triste. Um dia, desabafou:

- Acho melhor que ele vá embora. Parece que o que você queria, que ele mostrasse que poderia ser decente e trabalhador, como qualquer um, afinal conseguiu! Vamos agradecer a Deus e mandá-lo para casa. Você é extraordinária!

- Mas - disse Mamãe admirada. - Você não vê que é preciso mais tempo... para que se esqueçam dele? Mandar esse rapaz de volta, agora, até é um pecado! Um pecado que eu não quero em minha consciência.

Houve uma noite em que o moço contou ao jantar a história de um caipira, e Mamãe ria como nunca, levantando a cabeça pequenina, mostrando a sua nudez mais perturbadora- seu pescoço - naquele gorjeio trêmulo. Vi-o ao empregado, ficar vermelho e de olhos brilhantes, para aquele esplendor branco. Papai não riu. Eu me sentia feliz e assustada. Três dias depois o moço adoeceu de gripe. Numa visita que Mamãe lhe fez, ele disse qualquer coisa que eu jamais saberei. Ouvimos pela primeira vez a voz de Mamãe vibrar alto, furiosa, desencantada. Uma semana depois ele estava restabelecido, voltava ao trabalho. Ela disse a meu Pai:

- Você tem razão. É melhor que ele volte para casa.

À hora do jantar, Mamãe ordenou à criada:

- Só nós três jantamos em casa! Ponha três pratos...

No dia seguinte, à hora da reza, o moço chegou assustado, mas foi abrindo caminho, tomou seu costumeiro lugar junto de Mamãe:

- Saia!... - disse ela baixo, antes de começar a reza. Ele ouviu - e saiu, sem nem ao menos suplicar com os olhos.

Todas as cabeças o seguiram lentamente. Eu o vi de costas, já perto da porta, no seu andar discreto de mocinha de colégio, desembocar pela noite.

- Padre Nosso, que estais no céu, santificado seja o Vosso Nome...

Desta vez as vozes que a acompanhavam eram mais firmes do que nos últimos dias.

Ele não voltou para a sua cidade, onde era a caçoada geral. Naquela mesma noite, quando saía de Laterra, um fazendeiro viu como que um longo vulto balançando de uma árvore. Homem de coragem, pensou que fosse algum assaltante. Descobriu o moço. Fomos chamados. Eu também o vi. Mamãe não. À luz da lanterna, achei-o mais ridículo do que trágico, frágil e pendente como um judas de cara de pano roxo. Logo uma multidão enorme cercou a velha mangueira, depois se dispersou. Eu me convenci de que Laterra toda respirava aliviada. Era a prova! Sua senhora não transigira, sua moralista não falhara. Uma onda de desafogo espraiou-se pela cidade.

Em casa não falamos no assunto, por muito tempo. Porém Mamãe, perfeita e perfumada como sempre, durante meses deixou de dar suas risadinhas, embora continuasse agora, sem grande convicção - eu o sabia - a dar os seus conselhos. Todavia punha, mesmo no jantar, vestidos escuros, cerrados no pescoço.

Fonte:
Conto escrito em 1957. in Histórias do amor maldito (Gasparino Damara, org.)

Sammis Reachers (5 Cartas em Versos)


CARTA À ÁRVORE

Torre transterna,
                          Transuterina
Verde malha de açambarcar
Estaca que a vida finca
Patamarizado playground,
                                    Estação clorofila
Biopilar da paz

Terramáter véu
Usina alquímica
A nutrir o sistema-Terra

Obrigado eternamente obrigado
Por alimentar-nos
De proteção e pão
Por verdecer para que não
                                          Ressecássemos
Nós vorazes algozes agradecemos
Por nos servir
De berço,
                 Púlpito
     E esquife

Perdoa-nos a nós os desgalhados entes
Nós a raça kamikaze de sem plumas
E sem clorofila
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CARTA AO CAFÉ


Café aroma de lar
Ritual, despedida de quem vai,
Abraço a quem retorna
Coffea arábica, Coffea canephora,
Coffea liberica, Coffea dewevrei

E as raças secretas de café

Cremes, bolos, infusões
Drinks, balas, canapés
Reversa marihuana
De santos, céticos e sahibs

Aqueduto tônico odoropulsante
Odoropulsar:
Café cuspidor de estrelas,
Regurgitador de luzes
Festim fenomenológico
Reserva moral da literatura

Sol do leite, do creme, do rum
Sol para tantas pressurosas luas
Centro da galáxia

Inimigo do deus do sono Oneiros,
Adversário do deus de gelo Ymir
Multilíngue deus de ébano & trópico

Licor laboral
Elixir de trevas luminosas
Rubro fruto de a noroeste
Do Eufrates e do Tigre
Último pomo a escapar do Paraíso
Antes de seu traslado
De volta ao seio de Deus

Orfeu negro, liquefeita
Cítara
Poema em estado tênsil
Combustível dos Napoleões
Comburente dos Quixotes

Aumente a pressão sanguínea
De nossas ideias,
Aqueça nossa tumultuosa
Solidão campestre ou citadina
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CARTA AO LIVRO DE BOLSO


Adolescido tomo
lanterna dos afogados

paraninfo da literatura
rancho da tropa, democrática
classe econômica
talismã, lítero muiraquitã iniciático

sustentáculo dos sebos, colecionário
de ceitils, centavos e xelins

Ingresso de matinê
na nau de Stevenson, na floresta
de London
na faiscante Paris espachim e amante
dos Dumas

condensário das imensidões
de Moby Dick ao pai Quixote

dramas d’antanho em prosa e papel jornal
poemas seletos lidos com lenta pressa
enquanto sacoleja o bonde ou o busão

lâmpada de celulose que exulta
na cama de solteiro do quartinho dos fundos
tanto te devemos, fiador dos desamparados
bengala dos moços, livro de bolso
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CARTA AOS PEDAGOGOS


A você, doador de sangue.
Que acredita nos pequenos inícios.
E se esmera nos processos, e vê ao longe
E no agora a colheita.
E vê perenidade na intermitência.

Você, alma grávida:
Beija-flor levando água
Para apagar o incêndio
Que na floresta dos homens grassa;
Salmão contra a corredeira,
Remando movido duma pulsão
Maior que seu pequeno corpo, urdida chama,
Flama & frêmito da expansão que o Conhecimento
- Este agridoce tutor - exige daqueles
Que o portam não na tumba cerebral,
Mas na cardíaca fornalha.

Guardião do Palácio de Tudo,
Cidadão matricial, apaziguador das gerações:
Nós te celebramos.
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CARTA AOS ANTOLOGISTAS


Deus é o códice e a logosfera
Donde todo verbo emana:
A você, pequeno livro de DNA,
Cabe adentrar as bibliocatedrais,
Abrir os outros livros em sua fonte,
Esposar em luz a profusão de periódicos,
Os homens e(m) suas memórias;
Mergulhe, vá!, polígamo pária,
No Oceano de Papel do qual
Você é o mais propício nauta;
Execute seu trabalho
Como compilador.

Revista-se de anonimato
Para celebrar os Nomes luminosos;
Você é o cobrador de impostos
Da sabedoria humana,
E o seu mais fiel e abnegado tributário.

Sua psicanálise é clara:
Sofre da pulsão de abarcar.
Sua sociologia é a mais chã e nua:
Todo antologista é um civilizador,
Um amigo do Homem.

“Não há limites para o fazer livros”,
E você, muar cargueiro de Gutenberg,
Entendeu exato que, logo,
Não há força que lhe impeça.
O muito estudo, enfado da carne
Que a muitos bem-intencionados
Amolece, você pisoteia
Com as botas de seu pragmatismo,
Pois mortificar a carne
É a sua ascese.

Fonte:
Versos enviados pelo poeta.

Aparecido Raimundo de Souza (Comédias da Vida na Privada) Parte Dois: Fuga Letal


O SUJEITO CHEGOU no trigésimo andar vindo pelas escadas. Por algum motivo, não usou nenhum dos elevadores.  Havia quatro cabines verticais à disposição, mas ele preferiu o anonimato dos corrimões e das luzes tênues das escadas empoeiradas. Ao se avolumar com a sua massa corporal no extenso do corredor, notei seu semblante ressabiado e o respirar fatigado. Num primeiro momento, olhou para todos os lados, inúmeras vezes, como se temesse a chegada inesperada de alguém.

Percebi, logo de cara, que as intenções dele não eram assaz benignas. Quem aparece assim, do nada, suando em bicas, elegendo as escadas, para galgar trinta pavimentos, ao invés das comodidades dos ascensores, e o mais importante, amedrontado, se esgueirando feito cobra, pelos cantos escondidos, certamente não vinha disposto a se ajoelhar e rezar para pedir clemência à Deus. Aquele homem tinha outras intenções e eu, com toda certeza, seria, ainda que a contragosto, a testemunha ocular de um possível futuro crime hediondo prestes a acontecer.  

De onde eu estava  (por incrível que pareça, metido no cubículo onde ficava disposta a lixeira que servia a todas as quatro suítes imensas daquele andar), ele não podia me ver, a menos que caminhasse até meu esconderijo e, de supetão, abrisse a porta por qualquer motivo não justificável. Ou, de outro modo, um morador retardatário que naquele horário resolvesse jogar seu lixo fora, surgisse sem prévio aviso e desse comigo clandestinado onde as pessoas apareciam somente para se livrarem de seus expurgos caseiros. Seria muito azar da minha parte. Bota azar nisto.

Fora isto, acrescentando mais dois motivos,  eu seria pego de calças curtas, se produzisse algum ruído estranho, tipo se deixasse cair uma agulha no chão, ou, em face do cheiro forte exalado dos detritos, espirrasse numa sequência de atchins incontroláveis. No pior dos mundos, meu Cristo Salvador, no pior dos mundos, eu seria igualmente surpreendido, no flagra, de saia justa (apesar de não usar saia), se ousasse abrir a boca e gritar pelo fato de ter sido estuprado, quem sabe, por uma barata afoita que surgisse sem motivos justificáveis. 

Depois de se abanar com um jornal enrolado que retirara do bolso esquerdo, tomar fôlego e prescrutar cuidadosamente todos os cantos, de espiar pela janela de vidro inteiriçada incrustada à parede de meia altura o movimento da avenida lá embaixo,  de sentir no rosto o brilho da lua resplandecente, puxou da cintura um chaveiro e, dele, uma lixa e se prestou a procurar  qual apartamento seria o seu destino final. Foi lá, veio cá, passou perto de mim, vagarosamente. Tremi na base. Me benzi, esparramando de qualquer jeito, o Sinal da Cruz. Se o desgraçado resolvesse abrir a lixeira.... Eu estava fe... Entretanto, o cidadão estancou a caminhada diante do 3004. Mandou vê. Em questão de segundos, com a ajuda da gazua, arreganhou a porta da unidade e entrou. Simplesmente abundou aquela residência, como se tudo ali fosse dele.

Dentro do apartamento, norteado apenas pela luz da lanterna do celular, não perdeu tempo. Abriu várias gavetas, vasculhou minuciosamente atrás das cortinas, levantou o tapete que se estendia por boa parte do chão, remexeu nos livros dispostos na estante. Deu a entender que o procurado não fora achado. Afinal, o que o sujeito tinha tanta pressa em colocar as suas garras afiadas?

Finalmente, se esparramou no sofá retrátil de doze lugares, acendeu um cigarro e se fixou a olhar para o teto, sem se preocupar com a porta principal que arrombara e deixara diametralmente aberta ao acaso de outras moradias. Me veio a cabeça que o suspeitoso não se tratava de um ladrãozinho qualquer. Longe disso. Pelo menos, não vestia a pele de um meliante comum. Embora tivesse revolvido e remexido em tudo, deixado no seu remelexo o ambiente em desordem, de nada que viu pela frente, se apoderou para si. Foi aí que entendi a charada.

Claro, que besta quadrada! Só eu mesmo para pensar besteira. O estrangeiro não  fazia parte dos  larápios e salteadores buscando quinquilharias. Sem sombra de dúvidas, eu estava diante (em termos) de um assassino. Um facínora frio e calculista. Esperava, pois, a dona do imóvel. E eu sabia de quem se tratava.  Marcela, uma loira de tirar o sossego de qualquer coração. Andava, a beldade, pela  casa dos vinte e oito anos. A jovem morava sozinha, e, com toda certeza, ele a esperaria para lhe dar o bote e, de roldão, cabo da vida. Fiquei imaginando, com meus botões:  por que o infeliz não encostara a porta que violara?

De repente, ele saltou do sofá. Apagou o cigarro. Foi até a janela. Abriu um pouco a cortina e despachou a guimba ao sabor da escuridão. Um dos elevadores, ou mais precisamente o social parou neste momento e alguém saltou. Sabia que apeara uma pessoa, pelo barulho da porta sendo empurrada. De fato, eu não errara. Marcela havia acabado de aportar. Meu Deus, eu precisava fazer alguma coisa, no mínimo, por descargo de consciência, avisar a coitada. Jesus Cristo, eu seria testemunha de um crime brutal, cometido à revelia de uma inocente e eu não poderia sequer sair de onde estava. Aquela altura, se me delatasse estaria dando um tiro no próprio pé.

Talvez, com  certeza, me enveredasse pelo mesmo destino trágico daquela doçura que acabara de chegar  da rua, ou do trabalho, sei lá, que diferença isto faria agora? Ouvi nitidamente seus passos no corredor. De fato, a moradora se achegava. Enquanto esperava e espiava, temeroso e tremendo, ela passou por mim. Quase a toquei. Senti seu calor. Capturei o cheiro forte do seu perfume, me coloquei dentro dos olhos dela, ambos direcionados para a porta de seu quadrado. Ela percebeu, então, que a sua habitação fora transgredida. Apesar disso, não parou. Caminhou devagar, quase parando, como se não tivesse pressa. Como se sentisse o perigo iminente que a espreitava, mas por alguma razão mais forte, não retrocedia, seguia em frente, os cabelos soltos, em ondas esvoaçantes descendo sedosos até a cintura fina.

Vista por trás, a espetaculosa, se transformara a meus instintos animalescos numa deusa encantada. O corpo perfeito. Seu conjunto escultural, lembrava uma princesa recém saída de um castelo encantado. Coitada! Tão nova, tão linda, tão... Seu fim se  aproximava. À alguns passos e tudo estaria acabado. Acovardado, preso ao chão, eu tremia pior que caniço em temporal. Ela parou no umbral. Acendeu a luz. Ao ver o homem, em pé, quis retroceder.  Tarde demais.

Ele se aproximou, como se voasse. Ligeiro, agarrou a formosa pelos cabelos e a puxou violentamente para si. Ela tentou se libertar. Emitiu uns “me solta, me deixa, pelo amor que você tem à sua mãe”, entre outros impropérios, que acabaram sendo abafados pela força bruta do desumano algoz. Ato contínuo, a arrastou para o sofá, como se fosse, a criatura,  uma pluma. Um beijo se fez ligeiro, depois outro, numa sofreguidão que arrepiou o mais profundo da minha alma. Apavorado, mais que apavorado, aterrorizado, espantado, terrificado, me questionei rezando o Pai Nosso. Que atitude tomar? Correr? Berrar? Buscar ajuda?  Virar homem e sair da toca e chamar a polícia ou pôr para fora o que tinha de fazer ali mesmo e não dava mais para segurar, ou meter o rabo entre as pernas e me escafeder?

Se ao menos eu tivesse trazido o celular... Eu não podia continuar estático, feito um cão assustado, acossado, perseguido e embaraçado... Precisava, carecia, necessitava  fazer algo o mais urgente possível. Tomei, então, uma atitude. Engoli o medo. Mastiguei o receio. Esmaguei meus temores. “Afinal, sou um homem ou um rato?”.  Isso não iria ficar assim. De forma alguma. Me enchi de razão. Resolvi sair do armário, digo, da lixeira. Peguei o controle e, ato continuo, desliguei a televisão. Droga de filme chato!  Apaguei a luz da sala e fui para o meu quarto dormir.

Fonte
Texto enviado pelo autor, integrante de seu livro “Comédias da vida na privada”. RJ: Editora AMC-GUEDES, 2020.

quarta-feira, 22 de julho de 2020

Varal de Trovas n. 327


Sinclair Pozza Casemiro (Maria e Maria)


Caminhoneiro feliz era o Tião. Não foi a vida que pedi pra Deus... mas já que ele me deu.... Um caminhão bem cuidado, as posses não lhe puderam conferir um novo, mas seu sonho por certo um dia viraria verdade e ele passearia pelas ruas de Campo Mourão com as Marias na boleia. Esse dia ia chegar, tão certo como o sol que me alumia, lhe agaranto, Maria. E Maria concordava, rindo. Era assim sempre aquela mulher. Sempre rindo, co'a filhinha ao colo. Mulher de caminhoneiro é também uma forte, Euclides. Não tem tempo ruim, sol, chuva, frio, calor, comida, fome, cobrador à porta, o silencio cumplicioso diante do credor indignado... e a vida vai-se indo...

Maria e Maria. Suas duas maiores fortunas que ele, sempre que podia, carregava junto. A filhinha não reclamava, gostava muito. Nem sabia se tinha outro jeito, é claro. A mãe não só não reclamava quanto gostava muito, também. Acompanhar Tião, seu homem. Valente, alegre, mal-humorado com quem não gostava e um doce, até estragado de tão doce, pra quem queria bem. Assim, a vida ia se indo.

Os botinas já tinham se acostumado de ver a família na boleia. Carona não pode, mas as Marias eram carona? Acho que não. Pelo sim, pelo não, uma cervejinha de vez em quando e o problema estava resolvido.

Assim a vida ia se indo, Maria sempre rindo. Tião, ia e voltava, frete não lhe faltava. A casinha, ali perto do 119, na saída pra Peabiru, era humilde. A cidade de Campo Mourão ainda não era assim asfaltada, com as comodidades de agora, mas já mostrava futuro. A vizinhança, pouca, muito rara mesmo, era pobre igual, ou melhor, mais pobre. Tião não era pobre. Era afortunado, tenho um caminhãozinho, uma família, vamo vivendo... Muita peça que quebra, pneu que estoura, recape que não aguenta, senão até que sobrava pra não dever nada. Mas... tá bom. A noite fazia esquecer os problemas junto do corpo quente e macio da Maria, sempre rindo...

A filhinha crescendo, já dando seus passinhos, entendia de um tudo. Gostava de passear no caminhão, parava pra isso qualquer birra ou tristeza, se é que havia.

A Maria era sua, só sua, a Maria, filhinha, era deles, só deles. Mas a fortuna eles dividiam com os amigos. A casinha, quando eles lá paravam, era sempre cheia de gente. E de causos, e de chimarrão, dava gosto. Maria, sempre rindo. Não gostava de ficar, queria ir com Tião, nem precisava chamar. Chegava, lavava, arrumava a casinha, preparava comida pras viagens, ajeitava as coisas. Ia de novo. Seu lar era mesmo a boleia.

Estavam todos na roda do chimarrão, naquela tarde meio chuvosa, quando chegou uma mudança. No barraco ao lado. Não para ninguém aí, esquisito. Já ouvi dizer que foi amaldiçoado, quando os pioneiros vinham pro lado do Santa Cruz, fazer as rezas na Gruta, uma mulher foi assassinada nesse rancho. Me contaram que foi de amor. O companheiro não aceitava que ela não lhe queria mais. E aquele filho, diziam, nem era dele, não. Então ele trouxe ela, mais o filhinho no rancho, e escondido de todo mundo, matou a infeliz. O filhinho, Tião? Ah, nem tinha como saber das coisas, era de colo. Cresceu, com parentes. Mas o ranchinho fica aí, assustando os outros. Diz que ela vem, de noite, procurar o filhinho,.. Diz que se escuta o choro dela e ela chamando o bebê. É... coração de homem é terra que ninguém pisa...

A roda, de repente, tem mais gente. Chega a dona nova da casa e o filho, rapaz de corpo bem feito, falador, bonito. Logo se enturma, aprecia o chimarrão. Muito bem feito, fazia tempo que não experimentava um igual, com essas ervas... Ervas daqui, do quintal, diz Maria. Pra gente usar. Quando quiser... A conversa se anima, vão terminar a mudança, vai que chove.,.

E choveu. Choveu tanto, que o ranchinho não serviu pra abrigo e os novos vizinhos foram procurar arrego no Tião. Como sempre, o caminhoneiro atendeu. Tratou o vizinho já como velho companheiro, o que só o caminhoneiro sabe fazer. As mulheres confabulavam, a Maria, filha, encantava com sua graça e esperteza. A noite chuvosa embalou a todos, até os desafortunados do novo lar, que não tinham mesmo o que fazer.

E assim a vida ia se indo. No outro dia, o moço arrumou o rancho, nem precisou mais de ajuda. Agradecido, só fez visita, na outra noite. Tião recebeu, Maria sempre rindo...

Os dias foram passando, Tião, Maria e Maria indo e voltando, os novos vizinhos se conversando... Tinha mesmo um barulho esquisito no rancho. Mas.,. arre! Tenho o corpo fechado, falava o moço, que achava bonito o jeito da Maria, sempre rindo...

Maria achava bonito aquele moço, sem medo, valente que nem o Tião.

Hoje não vou, Tião. Tenho que arrumar umas coisinhas. Tá bem, volto logo. E assim a vida ia se indo... Maria já nem sempre rindo... Já nem indo tanto mais, também, no caminhão com Tião.

Um dia, um amigo falou pro Tião que ele nunca que ia morar em casa perto de casa assombrada. Tragédia chama tragédia. Se fosse o Tião, mudava dali.  Ora! Pra mim, essas coisas? Desde quando, nunca me aconteceu nada! Eu, se fosse você, Tião, mudava dali. O ranchinho é coisa do tinhoso, nem é bom tá perto. Oras!!

Mas o amigo insistia... Reparando bem, era mesmo. Maria nem sempre ria mais, já não ia mais com ele como antes, andava aborrecida, doente. Doente? Mas tava mais bonita, cabelo sempre arrumado, batom, as unhas sempre pintadas... Não tinha que se preocupar, não. Que confusão, Meu Deus! Acho que o Pezão não é bem amigo, não. Deu pra me perturbar com coisas... Tião, você não merece. Tentei evitar, até te tirar de lá, mas... Você é muito bom, rapaz, não percebeu. Cuida da Maria e do moço bonitão.

Bastou. O coração bom de Tião se anuviou, ele mais nada viu. Depois, bem depois que a tonteira e o ódio amainaram, ele achou que não era verdade, era engano, era mentira, era pesadelo. E nessa ilusão conseguiu chegar. Estava igual seu cantinho, mas já não era o mesmo mais. Também Maria, já não sorria. Mas um fio de esperança contava pra ele que não, que era tudo ilusão, pesadelo. Tião despediu, da Maria e da Maria, vou viajar. Tinha um plano.

Chegou a Peabiru, como nunca antes, nem viu passar o tempo, a estrada. E, de lá, encostou o caminhão, voltou a pé. A peixeira na cinta, não ia ser preciso usar. Era tudo ilusão, pesadelo. Os passos iam fazendo ele se achar tolo, perda de tempo. A Maria era só dele, era, sim, como era quando ela sempre ria.

Na porta do seu cantinho, ele viu umas chinelas que não eram dele. No azul escuro da noite sem lua, Tião viu tudo claro, de repente. E, brusca, irrompidamente saltou ao leito onde dormiam os corpos descansados dos pecadores ingratos. Tião só viu massas de corpos nus, braços, pernas, gritos, molhados, em meio ao prateado fio. Depois, no tribunal, soube que foram muitas, perto de cinquenta. A Maria, filha, tadinha, estava muda. Os olhos sempre abertos, fugidios, corriam do Tião. A vida pra eles também se acabara. Não foi preso, que a Lei, naquele tempo, não condenava quem matava pra defender a honra. A pequena Maria, ficou sabendo que morrera também. Como os olhos não queriam mais ver, a boca não quis mais comer, o coração não quis mais viver. E naquele tempo, também era mais difícil remédio pra essas dores.

Até hoje, quem passa por aquela estrada, escuta no rancho e no cantinho do Tião, um choro e mais uns gritos. Conforme a hora, escuta também uma voz, principalmente quando se anuvia e o vento assobia, chamando longe... longe... "Mariinha, filhiiinha!..." O pai, esse vagueia, pelo rio 119, pela estrada pra Peabiru, como vagueou em vida até ser reconhecido, ainda quente, sob as rodas de um caminhão.

Fonte:
Sinclair Pozza Casemiro. Causos do coração do Paraná (por entre as beiras do Ivaí e do Piquiri…). Campo Mourão: Sisgraf, 2005.

Nuno Júdice (Poemas Escolhidos)


PRESENTE

Queria neste poema a cor dos teus olhos
e queria em cada verso o som da tua voz:
depois, queria que o poema tivesse a forma
do teu corpo, e que ao contar cada sílaba
os meus dedos encontrassem os teus,
fazendo a soma que acaba no amor.

Queria juntar as palavras como os corpos
se juntam, e obedecer à única sintaxe
que dá um sentido à vida; depois,
repetiria todas as palavras que juntei
até perderem o sentido, nesse confuso
murmúrio em que termina o amor.

E queria que a cor dos teus olhos e o som
da tua voz saíssem dos meus versos,
dando-me a forma do teu corpo; depois,
dir-te-ia que já não é preciso contar
as sílabas nem repetir as palavras do poema,
para saber o que significa o amor.

Então, dar-te-ia o poema de onde saíste,
como a caixa vazia da memória, e levar-te-ia
pela mão, contando os passos do amor.
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ROSA COM ESPINHOS


Abro a rosa com as pétalas viradas para dentro
de mim, sugando-me o ser com os seus lábios
de veludo. E quando estou dentro da rosa, ouvindo
a música que corre ao longo do caule, num êxtase
de seiva, troco em versos o que a rosa me diz,
sentindo que a rosa se fecha, em botão, para
que o meu ser não saia de dentro dela. Então,
sei que habito o próprio centro do efêmero,
enquanto as pétalas vão caindo, uma a uma,
à medida que a rosa se abre, e o sol que entra
para dentro da rosa, empurrando o meu ser
para fora do seu centro, corre nas suas veias,
como seiva de fogo, até fazer com que outros
botões nasçam, para que me suguem o ser,
até entre mim e a rosa não haver senão a frágil
fronteira de um espinho, em que me pico,
sentindo que a gota de sangue do meu dedo
podia ser a seiva em que a rosa nasce do ser
que a deseja, no instante efêmero do amor.
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PRINCÍPIOS


Podíamos saber um pouco mais
da morte. Mas não seria isso que nos faria
ter vontade de morrer mais
depressa.

Podíamos saber um pouco mais
da vida. Talvez não precisássemos de viver
tanto, quando só o que é preciso é saber
que temos de viver.

Podíamos saber um pouco mais
do amor. Mas não seria isso que nos faria deixar
de amar ao saber exatamente o que é o amor, ou
amar mais ainda ao descobrir que, mesmo assim, nada
sabemos do amor.
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COMO SE O TEU AMOR…


Como se o teu amor tivesse outro nome no teu nome,
chamo por ti; e o som do que digo é o amor
que ao teu corpo substitui a doçura de um pronome
– tu, a sílaba única de uma eclosão de flor.

Diz-me, então, por que vens ter comigo
no puro despertar da minha solidão?
E que murmúrio lento de uma cantiga de amigo
nos repete o amor numa insistência de refrão?

É como se nada tivesse para te dizer
quando tu és tudo o que me habita os lábios:
linguagem breve de gestos sábios
que os teus olhos me dão para beber.
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PRIMAVERA


Nesta primavera, a chuva tem caído como se fosse
Uma primavera de Londres, úmida e mole,
E não a primavera meridional, amena e doce,
Com nuvens e vento, mas sempre com luz e com sol.
Os gatos não saem de ao pé da janela, detrás
Dos vidros, vendo as gotas escorrerem por fora,
Como se suspirassem pelo fim dessa paz
doméstica, ansiosos por saírem a qualquer hora.
No entanto, as grandes nuvens estendem-se pelo céu;
Por vezes, um trovão interrompe o pensamento.
O cinzento derrama-se como um espesso véu,
Ajudado pelo tédio que empurra este vento.
Assim, de manhã, nem abro a janela:
tão escuro é o dia lá fora como cá dentro;
E só o espírito, por inércia, o tempo revela
Se alguém pergunta onde fica o centro?

Gosto das mulheres que envelhecem,
com a pressa das suas rugas, os cabelos
caídos pelos ombros negros do vestido,
o olhar que se perde na tristeza
dos reposteiros. Essas mulheres sentam se
nos cantos das salas, olham para fora,
para o átrio que não vejo, de onde estou,
embora adivinhe aí a presença de
outras mulheres, sentadas em bancos
de madeira, folheando revistas
baratas. As mulheres que envelhecem
sentem que as olho, que admiro os seus gestos
lentos, que amo o trabalho subterrâneo
do tempo nos seus seios. Por isso esperam
que o dia corra nesta sala sem luz,
evitam sair para a rua, e dizem baixo,
por vezes, essa elegia que só os seus lábios
podem cantar.
****************************************

A VIDA


A vida, as suas perdas e os seus ganhos, a sua
mais que perfeita imprecisão, os dias que contam
quando não se espera, o atraso na preocupação
dos teus olhos, e as nuvens que caíram
mais depressa, nessa tarde, o círculo das relações
a abrir-se para dentro e para fora
dos sentidos que nada têm a ver com círculos,
quadrados, retângulos, nas linhas
retas e paralelas que se cruzam
com as linhas da mão;

a vida que traz consigo as emoções e os acasos,
a luz inexorável das profecias que nunca se realizaram
e dos encontros que sempre se soube
que se iriam dar,
mesmo que nunca se soubesse
com quem e onde, nem quando;
essa vida que leva consigo
o rosto sonhado numa hesitação de madrugada,
sob a luz indecisa que apenas mostra
as paredes nuas, de manchas úmidas
no gesso da memória;

a vida feita dos seus
corpos obscuros e das suas palavras
próximas.

Fonte:
Estúdio Raposa

Nuno Júdice (1949)

Nuno Manuel Gonçalves Júdice Glória nasceu em Mexilhoeira Grande/Portugal, a 29 de abril de 1949.

Licenciou-se em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e obteve o grau de Doutor pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, com uma dissertação sobre Literatura Medieval.

Professor do ensino secundário, desde 1992 até 1997, foi professor da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, até à sua aposentadoria, como professor associado, em 2015.

Foi diretor da revista literária Tabacaria (1996-2009), editada pela Casa Fernando Pessoa e Comissário para a área da Literatura da representação portuguesa à 49ª Feira do Livro de Frankfurt. Foi também Conselheiro Cultural da Embaixada de Portugal (1997-2004) e diretor do Instituto Camões em Paris. Organizou a Semana Europeia da Poesia, no âmbito da Lisboa '94 - Capital Europeia da Cultura. É atualmente diretor da Revista Colóquio-Letras da Fundação Calouste Gulbenkian.

Poeta e ficcionista, a sua estreia literária deu-se com A Noção de Poema (1972). Em 1985 receberia o Prêmio Pen Clube, o Prêmio D. Dinis da Casa de Mateus, em 1990. Em 1994 a Associação Portuguesa de Escritores, distinguiu-o pela publicação de Meditação sobre Ruínas, finalista do Prêmio Europeu de Literatura Aristeion. Assinou ainda obras para teatro e traduziu autores como Corneille e Emily Dickinson.

A sua obra inclui antologias, edições de crítica literária, estudos sobre Teoria da Literatura e Literatura Portuguesa. Mantém uma colaboração regular na imprensa. Lançou, em 1993, a antologia sobre literatura portuguesa do século XX, Voyage dans un siècle de Littérature Portugaise. Tem obras traduzidas em diversos países da Europa, Ásia e África.

Fonte:
Wikipedia

Luís da Câmara Cascudo (O Compadre da Morte)


Diz que era uma vez um homem que tinha tantos filhos que não achava mais quem fosse seu compadre. Nascendo mais um filhinho, saiu para procurar quem o apadrinhasse e depois de muito andar encontrou a Morte a quem convidou. A Morte aceitou e foi a madrinha da criança. Quando acabou o batizado voltaram para casa e a madrinha disse ao compadre:

- Compadre! Quero fazer um presente ao meu afilhado e penso que é melhor enriquecer o pai. Você vai ser médico de hoje em diante e nunca errará no que disser. Quando for visitar um doente me verá sempre. Se eu estiver na cabeceira do enfermo, receite até água pura que ele ficará bom. Se eu estiver nos pés, não faça nada porque é um caso perdido.

O homem assim fez. Botou aviso que era médico e ficou rico do dia para a noite porque não errava. Olhava o doente e ia logo dizendo:

- Este escapa!

Ou então:

- Tratem do caixão dele!

Quem ele tratava, ficava bom. O homem nadava em dinheiro.

Vai um dia adoeceu o filho do rei e este mandou buscar o médico, oferecendo uma riqueza pela vida do príncipe. O homem foi e viu a Morte sentada nos pés da cama. Como não queria perder a fama, resolveu enganar a comadre, e mandou que os criados virassem a cama, os pés passaram para a cabeceira e a cabeceira para os pés. A Morte, muito contrariada, foi-se embora, resmungando.

O médico estava em casa um dia quando apareceu sua comadre e o convidou para visitá-la.

- Eu vou, disse o médico - se você jurar que voltarei!

- Prometo! - disse a Morte.

Levou o homem num relâmpago até sua casa.

Tratou muito bem e mostrou a casa toda. O médico viu um salão cheio de velas acesas, de todos os tamanhos, uma já se apagando, outras viva, outras esmorecendo. Perguntou o que era.

– É a vida do homem. Cada homem tem uma vela acesa. Quando a vela acaba, o homem morre.

O médico foi perguntando pela vida dos amigos e conhecidos e vendo o estado das vidas. Até que lhe palpitou perguntar pela sua. A Morte mostrou um cotoquinho no fim.

- Virgem Maria! Essa é que é a minha? Então eu estou, morre-não-morre!

A Morte disse:

- Está com horas de vida e por isso eu trouxe você para aqui como amigo mas você me fez jurar que voltaria e eu vou levá-lo para você morrer em casa.

O médico quando deu acordo de si estava na sua cama rodeado pela família. Chamou a comadre e pediu:

- Comadre, me faça o último favor. Deixe eu rezar um Padre-Nosso. Não me leves antes. Jura?

- Juro -, prometeu a Morte.

O homem começou a rezar o Padre-Nosso que estás no céu... E calou-se. Vai a Morte e diz:

- Vamos, compadre, reze o resto da oração!

- Nem pense nisso, comadre! Você jurou que me dava tempo de rezar o Padre-Nosso mas eu não expliquei quanto tempo vai durar minha reza. Vai durar anos e anos...

A Morte foi-se embora, zangada pela sabedoria do compadre.

Anos e anos depois, o médico, velhinho e engelhado, ia passeando nas suas grandes propriedades quando reparou que os animais tinham furado a cerca e estragado o jardim, cheio de flores. O homem, bem contrariado disse:

- Só queria morrer para não ver uma miséria destas!...

Não fechou a boca e a Morte bateu em cima, carregando-o. A gente pode enganar a Morte duas vezes mas na terceira é enganado por ela.

Fonte:
Luís da Câmara Cascudo. Contos tradicionais do Brasil. São Paulo: EDUSP, 1986.

terça-feira, 21 de julho de 2020

Varal de Trovas n. 326


Osman Lins (O Vitral)


Desde muito, ela sabia que o aniversário, este ano, seria num domingo. Mas só quando faltavam quatro ou seis semanas, começara a ver na coincidência uma promessa de alegrias incomuns e convidara o esposo a tirarem um retrato. Acreditava que este haveria de apreender seu júbilo, do mesmo modo que o da Primeira Comunhão retivera para sempre os cânticos.

- Ora... Temos tantos... - respondera o homem. Se tivéssemos filhos... Aí, bem. Mas nós dois! Para que retratos? Dois velhos!

A mão esquerda, erguida, com o indicador e o médio afastados, parecia fazer da solidão uma coisa tangível - e ela se reconhecera com tristeza no dedo menor, mais fino e recurvo. Prendera grampos aos cabelos negros, lisos, partidos ao meio, e levantara-se.

- Está bem. Você não quer...

(A voz anasalada, contida, era um velho sinal de desgosto.)

- Suas tolices, Matilde... Quando é isso?

Como se a ideia a envergonhasse, ela inclinara a cabeça:

- Em setembro - dissera. No dia vinte e quatro. Cai num domingo e eu...

- Ah! Uma comemoração - interrompera o esposo. Vinte anos de casamento... Um retrato ameno e primaveril. Como nós.

Na véspera do aniversário, ao deitar-se, ela ainda lembrara essas palavras; mas purificara-se da ironia e as repetira em segredo, sentindo-se reconduzida ao estado de espírito que lhe advinha na infância, em noites semelhantes: um oscilar entre a espera de alegrias e o receio de não as obter.

Agora, ali estava o domingo, claro e tépido, com réstias de sol no mosaico, no leito, nas paredes, mas não com as alegrias sonhadas, sem o que tudo o mais se tornava inexpressivo.

- Se você não quiser, eu não faço questão do retrato - disse ela. Foi tolice.

- O fotógrafo já deve estar esperando. Por que não muda o penteado? Ainda há tempo.

- Não. Vou assim mesmo.

Abriu a porta, saíram. Flutuavam raras nuvens brancas; as folhas das aglaias tinham um brilho fosco. Ela deu o braço ao marido e sentiu, com espanto, uma anunciação de alegrias no ar, como se algo em seu íntimo aguardasse aquele gesto.

Seguiram. Soprou um vento brusco, uma janela se abriu, o sol flamejou nos vidros. Uma voz forte de mulher principiou a cantar, extinguiu-se, a música de um acordeão despontou indecisa, cresceu. E quando o sino da Matriz começou a vibrar, com uma paz inabalável e sóbria, ela verificou, exultante, que o retrato não ficaria vazio: a insubstancial riqueza daqueles minutos o animaria para sempre.

- Manhã linda! - murmurou. Hoje eu queria ser menina.

- Você é.

A afirmativa podia ser uma censura, mas foi como um descobrimento que Matilde a aceitou. Seu coração bateu forte, ela sentiu-se capaz de rir muito, de extensas caminhadas, e lamentou que o marido, circunspecto, mudo, estivesse alheio à sua exultação. Guardaria, assim, através dos anos, uma alegria solitária, da qual Antônio para sempre estaria ausente. Mas quem poderia assegurar, refletiu, que ele era, não um participante de seu júbilo, mas a causa mesma de tudo o que naquele instante sentia; e que, sem ele, o mundo e suas belezas não teriam sentido?

Estas perguntas tinham o peso de afirmativas e ela exclamou que se sentia feliz.

- Aproveite - aconselhou ele. Isso passa.

- Passa. Mas qualquer coisa disto ficará no retrato. Eu sei.

As duas sombras, juntas, resvalavam no muro e na calçada, sobre a qual ressoavam seus passos.

- Não é possível guardar a mínima alegria - disse ele. Em coisa alguma. Nenhum vitral retém a claridade.

Cinco meninas apareceram na esquina, os vestidos de cambraia parecendo-lhes comunicar sua leveza, ruidosas, perseguindo-se, entregues à infância e ao domingo, que fluíam com força através delas. Atravessaram a rua, abriram um portão, desapareceram.

Ela apertou o braço do marido e sorriu, a sentir que um júbilo quase angustioso jorrava de seu íntimo. Compreendera que tudo aquilo era inapreensível: enganara-se ou subestimara o instante ao julgar que poderia guardá-lo. "Que este momento me possua, me ilumine e desapareça – pensava. Eu o vivi. Eu o estou vivendo."

Sentia que a luz do sol a trespassava, como a um vitral.
 
Fonte:
Osman Lins. Os Gestos.

Ana Rolão Preto (Baú de Trovas)


A esperança é voz do Além
  que nesta vida nos guia.
Sem este amparo ninguém
às mágoas sobrevivia.
- - - - - –

Ai de quem diz o que pensa,
ai de quem diz o que sente!
Neste mundo de mentiras
mais agrada quem mais mente.
- - - - - –

Amo a dor que Deus me deu,
lembrando a dor de Jesus.
— Fico mais perto do Céu
abraçada à minha cruz!
- - - - - –

Amor! Não podem dizer
os versos mais inspirados
o que dizem a tremer
nossos dedos enlaçados.
- - - - - –

Bondade — Justiça — Amor!
— Trindade que, realmente,
podia tornar melhor
a vida de toda gente!
- - - - - –

Dignidade não é ouro,
nem é tampouco poder.
Dignidade é um tesouro
que o mais pobre pode ter!
- - - - - –

Em troca de folhas velhas
a terra dá flores e pão.
Dá tu em troca de ofensas,
bondade, amor e perdão.
- - - - - –

Importa saber falar,
mas também saber ouvir.
Nada pode aproveitar
quem não sabe discernir.
- - - - - –

Julgo que a alma será
esta chama fugidia,
que, ao fitar outros olhos,
o nosso olhar irradia.
- - - - - –

Mal por mal, antes ser escravo
do coração e errar,
que ser escravo da razão
e sem amor acertar.
- - - - - –

Não digas mal de ninguém
ainda que tenhas razão:
Pois quem te ouvir logo tem
de ti má opinião.
- - - - - –

Não digas toda a verdade,
se for triste e for grosseira.
É melhor ter caridade
que ser muito verdadeira.
- - - - - –

Ninguém entende a saudade,
ninguém a pode entender,
pobre de quem não a sente,
triste de quem a sofrer!
- - - - - –

Ninguém pode ser juiz
nas contendas do amor:
O coração nunca diz
o que tem no interior!
- - - - - –

O amor é como o sol,
mesmo encoberto alumia.
Nunca disse que te amava,
e toda gente o sabia…
- - - - - –

Olhando as folhas caídas
que o vento arrasta no chão,
fico a pensar nessas vidas
a que ninguém deu a mão.
- - - - - –

Quem aconselha aborrece,
sempre no mundo se ouviu.
Ninguém quer ou agradece
conselho que não pediu.
- - - - - –

Quem sabe não há um tesouro
sob a terra que pisamos?
Podem valer mais que nós
aqueles que desprezamos.
- - - - - –

Quem tem a sorte de amar
a quem o ama também,
a Deus graças deve dar
por ter a sorte que tem.
- - - - - –

Saudade... Divina essência!
É tudo quanto ficou
do bem que á nossa existência
o tempo trouxe e levou.
- - - - - –

Sei que os meus versos são velhos
de séculos – deixai-os ser.
O sol é bem mais antigo
e não deixa de nascer…
- - - - - –

Só o amor tem poder
de dois corações juntar,
contudo, sempre hão de ter
de um ao outro perdoar.
- - - - - –

Ter saudade é ter presente
um bem que nos pertenceu.
E, embora de nós ausente,
de todo não se perdeu.
- - - - - –

Toda casa deve ser
um santuário de amor:
Sagrada para quem lá vive,
exemplo de quem lá for.
- - - - - –

Todos se queixam do mundo,
aflitos, erguendo a voz!
Mas a culpa é de nós todos,
porque o mundo somos nós.

Fontes:
Ana Rolão Preto. Caruma. Lisboa, 1958.
Aparício Fernandes (org.). Trovadores do Brasil. 2. Volume. RJ: Ed. Minerva

Rachel de Queiroz (Joga, Cunhado!)

    

Quem sobe de navio o rio Amazonas, a umas seis horas de Belém, depara com uma das maravilhas daquela espantosa natureza, ao cruzar os chamados estreitos. No começo do seu delta, o rio-mar caprichosamente se deixa semear de ilhas, ramifica o seu caudal em infinitos braços, como para variar da imensidão vazia. Os dois principais estreitos, nesses capilares do gigante, são o de Breves e o do Boiaçu (Cobra Grande), e é pelo último que navega o nosso Ana Nery. O navio é grande, contudo chega a passar tão perto da margem que dá para se avistar lá dentro das casas de jirau dos caboclos, na barranca. A marola que o vapor faz se encachoeira nas margens como querendo arrancar os paus de beira d’água. Há momentos em que até parece que o navio está vogando no meio da floresta — o que não deixa de ser verdade; quase que se estendendo a mão se tocaria na folhagem das árvores.

Apesar disso, a feição mais inesquecível dos estreitos é o seu elemento humano: os “cunhados”. A medida que o navio avança cauteloso pelas águas apertadas, vai lhe aparecendo ao redor um formigueiro de canoas — ou montarias, ou pirogas, ou aatás, não sei como as chame —; parecem moscas em redor de um prato. Longas de dois a três metros, estreitas, são manobradas por uma só pessoa, raramente duas. E eu digo pessoa no sentido de que menino de quatro anos seja pessoa, e velho corcunda, e adolescentes de canela fina, e mulher barriguda, e mãe de dois ou três curumins pequeninos que lhe sentam entre as pernas, e moços fortes, moças de vestido vermelho, e velhinhas de cachimbo; todos manobram as canoas com espantosa destreza e segurança, cavalgando a onda larga que o navio levanta, cortando-a de lado, ao rápido movimento dos remos em formato de folha de aguapé, pintados de cor viva, E lá de baixo, erguendo os olhos para os cinco andares do navio, eles soltam um grito chorado que é quase um canto e lembra muito um aboio de vaqueiro:

— Joga, cunhado! Joga, cunhado!

(Isso de chamarem os passantes de cunhados, eles o herdaram dos índios, que chamam “cunhado” ao estrangeiro que querem honrar, adotando-o simbolicamente na família; “Entre, cunhado; coma, cunhado!”).

A bordo, a passagem pelos estreitos e a chegada dos “cunhados” é um dos itens do programa turístico; antecipadamente, passageiros e tripulantes preparam um monte de sacos de plástico contendo pão, biscoitos, cigarros, fósforos, agulhas, linha, roupas. Os pacotes são jogados n’água, boiam e, com incrível habilidade, contornando ou aproveitando a correnteza, os cunhados os apanham; menininhos incrivelmente pequenos colhem na água os embrulhos com uma elegância de toureiros e logo acenam para o navio, agradecendo. Os passageiros, lá do alto, se compadecem e choram: “Que pobreza! Que pobreza!’’ Sim, a pobreza ali é grande e os presentes do navio são duramente disputados. Mas há também, naquela pescaria dos cunhados, um elemento de jogo, uma competição de destreza, que deve representar parte importante na operação. Na vida deles, tão rude e paupérrima, os pacotes no rio devem exercer uma função dupla de utilidade e diversão; e calculo que, entre os cunhados, valha tanto o precioso conteúdo dos presentes, como o título esportivo de campeão apanhador.

Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. RJ: J. Olympio, 1976.

segunda-feira, 20 de julho de 2020

Varal de Trovas n. 325


Carlos Drummond de Andrade (Nossa Amiga)


Não é bastante alta para chegar ao botão da campainha. O peixeiro presta-lhe esse serviço, tocando. Alguém abre.

- Foi a garota que pediu para chamar...

Quando não é algum transeunte austero, senador ou ministro do Supremo, que atende à sua requisição. Com pouco, a solução já não lhe satisfaz. Descobre na porta, a seu alcance, a abertura forrada de metal e coberta por uma tampa móvel, de matéria idêntica: por ali entram as cartas. Os dedos sacodem a tampa, desencadeando o necessário e aflitivo rumor. Antes de abrir, perguntam de dentro:

- Quem está aí? É de paz ou de guerra?

De fora respondem:

- É Luci Machado da Silva. Abre que eu quero entrar.

Ante a intimação peremptória, franqueia-se o recinto. Entra uma coisinha morena, despenteada, às vezes descalça, às vezes comendo pão com cocada, mas sempre séria, ar extremamente maduro das meninas de três anos. À força de entrar, sair, tornar a entrar minutos depois, tornar a sair, lanchar, dormir na primeira poltrona, praticar pequenos atos domésticos, dissolveu a noção de residência, se é que não a retificou para os dicionários do futuro.

- Qual é a sua casa?

- Esta.

- E a outra de onde você veio?

- Também.

- Quantas casas você tem?

- Esta e aquela.

- De qual você gosta mais?

- Que é que você vai me dar?

- Nada.

- Gosto da outra.

- Tem aqui esta pessegada, esta bananinha...

- Gosto desta casa! Gosto de você!

Não é gulodice nem interesse mesquinho... Será antes prazer de sentir-se cortejada, mimada. Esquece a merenda para ficar na sala, de mão na boca, olhando os pés estendidos, enquanto alguém lhe acarinha os cabelos.

Nem tudo são flores, no espaço entre as duas residências. Há Catarina e Pepino. Catarina foi inventada à pressa, para frustrar certa depredação iminente. Os bichos de cristal na mesinha da sala de estar tentavam a mão viageira. Pressentia-se o momento em que as formas alongadas e frágeis se desfariam.

Na parede, esquecida, preta, pousara uma bruxa.

- Não mexa nos bichinhos.

Mexia.

- Não mexa, já disse...

Em vão.

- Você está vendo aquela bruxa ali? É Catarina.

- Que Catarina?

- Uma menina de sua idade, igualzinha a você, talvez até mais bonita. Muito mexedeira, mas tanto, tanto! Um dia foi brincar com o cachorrinho de vidro, a mãe não queria que ela brincasse. Catarina teimou, mexeu e quebrou o cachorrinho. Então, de castigo, Catarina virou aquela bruxinha preta, horrorosa. Para o resto da vida.

A mão imobiliza-se. A bruxa está presa tanto na parede como nos olhos fixos, grandes, pensativos. Entre os mitos do mundo (entre os seres reais?) existe mais um, alado, crepuscular, rebelde e decaído.

Pepino tem existência mais positiva. Circula na rua - a rua é o espaço entre as duas quadras, repleto de surpresas - geralmente à tarde. Vem bêbado, curvado, expondo em frases incoerentes seus problemas íntimos. Pegador de crianças.

- Vou embora para minha casa. Você vai me levar.

- Mas você mora tão pertinho...

- E Pepino?

- Pepino não pega ninguém. Ele é camarada.

- Pega, sim. Eu sei.

- Pois eu vou dar uma festa para as crianças desta rua e convido Pepino. Você vai ver se ele pega.

- Eu não vou na festa.

- Você é quem perde. Vem Elzinha, Nesinha, Heloísa, Alice, Maria Helena, Lourdes, Bárbara, Edison, Careca, João e Adão. Pepino vai dançar para as crianças. Você, como é uma boba, não toma parte.

- Até logo!

Sai voando, a porta fecha-se com estrondo. Da varanda, ainda se vê o pequeno vulto desgrenhado.

- Espere aí, você não tem medo do Pepino?

- Não. Estou zangada com você.

Com a zanga, desaparece o temor. Seria realmente temor? Gosta de ser acompanhada, para dizer à mãe, quando chega em casa:

- Espia quem me trouxe.

Volta meia hora depois, penteada, calçada, vestido limpo.

- Espia minha roupa nova. Meu sapato branco.

- Mas que beleza! Onde você vai?

- Vou na festa.

Para tomar banho e trocar de vestido, é necessário que se anuncie sempre uma festa, jamais localizada ou realizada, mas que opera interiormente sua fascinação. Não há pressa em ir para ela. A merenda, a conversa grave com pessoas grandes, estranhamente preferidas a quaisquer outras, o brinquedo personalíssimo com o primeiro encontro do dia - um carretel, a galinha que salta do carrinho de feira - fazem esquecer a festa, se não a constituem. E resta saber se o enganado não será o adulto, que sugere terrores ou recompensas fantasiosas. Nas campinas da imaginação, esse galope de formas - será a verdade?

Senta-se no corredor, e com uns panos velhos, lápis vermelho, pedrinha, qualquer elemento poetizável, representa para si só a imemorial história das mães.

- Comadre, seu filhinho como vai?

- Tá bom, comadre, e o seu?

- Tá com dedo machucado e dodói na barriga. Vai tomar injeção.

- Então vou dar no meu também.

Perguntas e respostas, recolhidas em conversas de adulto, saem da mesma boca inexperiente. O objeto que serve de filho é embalado com seriedade. A doença existe, existem os sustos maternais. Mas tudo se desfaz, se acaso um intruso vem surpreender a criação, tirada em partes iguais da vida e do sonho, e que os prolonga. Assim pudesse a mãe antiga tornar invisível seu filho, ante os soldados de Herodes.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Contos de Aprendiz. (texto publicado em 1951).

II Concurso de Trovas “Cidade de Curitiba” (Trovas Premiadas)


Âmbito Nacional/Internacional
Tema: Inclusão Social
Categoria: Veterano

TROVAS DESTAQUE


Quando o amor for um preceito,
e a justiça nossa escola,
pobre terá por direito
tudo que tem por esmola.
Francisco Gabriel
(Natal – RN)

======================
Os surdos-mudos se empenham
e conversando são sábios,
quando a sua voz desenham,
fazendo das mãos seus lábios.
Messias da Rocha
(Juiz de Fora – MG)

======================
A liberdade germina
quando um povo pulsa e anseia,
qual semente pequenina
que rasga o solo e se alteia!
Carolina Ramos
(Santos – SP)

=====================
CLASSIFICAÇÃO GERAL

1º Lugar:
Mário Moura Marinho
Sorriso - MT

Crianças que, sem suporte,
nas ruas dormem no chão,
não são vítimas da sorte,
mas da falta de inclusão.
- - - - - –

2º Lugar:
Marília Oliveira
Porto Alegre - RS

Um gesto, um olhar sem pressa,
uma escuta à dor do irmão...
A inclusão sempre começa
quando alguém estende a mão.
- - - - - –

3º Lugar:
Arlindo Tadeu Hagen
Juiz de Fora – MG

O mundo mais fraternal
também será mais risonho
quando a inclusão social
for real em vez de sonho!
- - - - - –

3º Lugar:
Professor Garcia
Caicó – RN

Enquanto há mãos escondidas,
fechadas entre os irmãos...
Há muitas mãos excluídas
à procura de outras mãos!
- - - - - –

4º Lugar:
Marília Oliveira
Porto Alegre - RS

Inclusão é humanidade,
sem rótulos, sem sentenças,
sempre que entende a igualdade
no respeito às diferenças.
- - - - - –

5º Lugar:
Edweine L. da Silva
Saitama - Japão

Nem bandidos nem mocinhos...
Somente há faces de um mal
onde se fecham caminhos
para a inclusão social.
- - - - - –

6º Lugar:
Carlos Alberto A . Cavalcanti
Arcoverde – PE

Quantos nas mãos têm de tudo,
mas lhes falta uma lição:
dar voz àquele que, mudo,
excluído estende a mão!
- - - - - –

6º Lugar:
Jaqueline Machado
Cachoeira do Sul – RS

Sem a inclusão social,
a injustiça faz saber:
- Se não parecer “normal”,
perde o direito a viver!
- - - - - –

7º Lugar:
Elias Pescador
São Paulo – SP

Sociedades inclusivas
têm na justiça o penhor.
Pacíficas, construtivas,
promovem paz, vida... amor!
- - - - - –

8º Lugar:
Francisco Gabriel
Natal - RN

A fome da humanidade
cessará sem ter demora,
se repartimos metade
do pão que jogamos fora.
- - - - - –

9º Lugar:
BESSANT
Pindamonhangaba - SP

Pedinte, mão estendida,
onde a igualdade se ausenta,
vive a vida sem ter vida,
só de sonhos se alimenta.
- - - - - -

9º Lugar:
Geraldo Trombin
Americana – SP

Mais que acessibilidade,
pede o cadeirante, em vão:
ter acesso de verdade
ao íngreme coração!
- - - - - –

9º Lugar:
Olga Maria Dias Ferreira
Pelotas – RS

Belo sonho assaz fecundo,
toda inclusão social
desperta o anseio do mundo
pela paz universal.
- - - - - –

10º Lugar:
Mário Moura Marinho
Sorriso – MT

Para inclusão social...
há de ver, a humanidade,
este marco principal:
respeito à diversidade.
- - - - - –

10º Lugar:
Roberto Tchepelentyky
São Paulo - SP

Por inclusão social,
que o mundo faça vigília:
Somos irmãos... e, afinal,
formamos uma família!...
- - - - - –

11º Lugar:
Professor Garcia
Caicó -RN

Ergue o braço, estende a mão
e acolhe os mais oprimidos,
que Deus inclui, na inclusão,
quem acolhe os excluídos!
- - - - - –

12º Lugar:
BESSANT
Pindamonhangaba – SP

"Cuidai dos meus pequeninos!"
Não há rogo mais profundo...
E o maior dos desatinos
é condená-los ao mundo.
- - - - - –

13º Lugar:
Therezinha D. Brisolla
São Paulo – SP

Sem preconceitos e ofensas,
sem pensamentos menores,
aceitar as diferenças
faz que sejamos melhores!
- - - - - –

14º Lugar:
Márcia Jaber
Juiz de Fora - MG

Estendo as mãos comovida,
buscando incluir a quem
sem ter chance nesta vida,
da exclusão se faz refém.
====================================

Categoria: Novo Trovador

1º Lugar:
José Carlos de Souza
Amparo - SP

Quando a Inclusão Social
for de fato um fato novo,
teremos bem menos mal
e um maior bem para o povo!
- - - - - –

2º Lugar:
Juarez F. Moreira da Silva
Rio das Ostras - RJ

Se todos fossem iguais,
como a lei nos insinua,
não haveria jamais,
tantos mendigos na rua.
- - - - - –

3º Lugar:
Maria Cristina de Oliveira
Campinas - SP

Para ser considerada
como inclusão social,
não pode ser tolerada
qualquer forma desigual.
- - - - - –

4º Lugar:
Nilze L. dos S. Benedicto
São Gonçalo - RJ

O apartheid está presente,
sem inclusão social.
O sistema então consente.
Quem é excluído afinal?
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Âmbito Estadual

Tema: Cidadania
Categoria: Veterano


1º Lugar:
Pedro Melo
União da Vitória

Quando tu passas, tão fria,
é imenso o meu dissabor:
- Não tenho cidadania
no País do teu Amor...!
- - - - - –

2º Lugar:
Pedro Melo
União da Vitória
“Cidadão”. Palavra morta
e vazia de sentido,
num país que não se importa
com quem vive desvalido...
- - - - - –

3º Lugar:
César Augusto Ribas Sovinski
Curitiba

Tece, a artesã solidária,
com seus novelos de lã,
a oferenda humanitária
de uma vida cidadã.
- - - - - –

4º Lugar:
Madalena Ferrante Pizzatto
Curitiba

Ao pensar na humanidade,
cidadania se exerce,
estimulando a igualdade,
sendo a justiça o alicerce.
- - - - - –

5º Lugar:
Maria Helena O. Costa
Ponta Grossa

Cidadania eu almejo
para as crianças de rua,
às quais é negado o ensejo
de saber que a Pátria é sua!
- - - - - –

5º Lugar:
Célia Terezinha Neves Vieira
Irati

Educação é o escudo
para ter cidadania...
defendendo-te de tudo,
inclusive ... a tirania.
- - - - - –

6º Lugar:
Nilsa Alves de Melo
Maringá

Teus direitos e deveres
estejam em harmonia,
para com honra exerceres
a tua cidadania.
- - - - - –

7º Lugar:
Luiz Hélio Friedrich
Curitiba

Pensar a cidadania,
melhor projeto não há:
-Esquecer ideologia
e elevar o IDH!
- - - - - –

8º Lugar:
Célia Terezinha Neves Vieira
Irati

Para ser bom cidadão
e exercer cidadania,
Ponha na mesa o seu pão...
Trabalhe no dia a dia...
- - - - - –

9º Lugar:
Caterina Balsano Gaioski
Irati

Ter pão, paz e liberdade,
educação sempre em dia,
trabalho com dignidade,
resume a cidadania.
- - - - - –

10º Lugar:
Leonilda Yvonneti Spina
Londrina

Tratar sempre o semelhante
com respeito e fidalguia
é uma forma edificante
de exercer cidadania.
- - - - - –

10º Lugar:
Luiz Vieira
Irati

Quem vive na integridade...
luta pelo bem... não teme.
Defende sempre a verdade,
cidadania é seu leme.
- - - - - –

11º Lugar:
Luiz Hélio Friedrich
Curitiba

Onde anda a cidadania
que prega a Constituição,
se ao pobre, no dia a dia,
à mesa lhe falta o pão?!
- - - - - –

12º Lugar:
Maria Helena O. Costa
Ponta Grossa

Um cidadão exaltado...
E, sob o brilho da lua,
vejo um menino deitado
no triste leito da rua!...
- - - - - –

12º Lugar:
Madalena Ferrante Pizzatto
Curitiba

Neste sistema tão falho,
se a injustiça nos oprime,
sem ter acesso ao trabalho,
aumenta-se a fome e o crime.
- - - - - –

13º Lugar:
Rosilene Tramontin
Ponta Grossa

Àquele que ama a Nação
luta pela liberdade,
de seguir na direção
e no bem da sociedade.
- - - - - –

13º Lugar:
Alfredina C. Pascholatti
Londrina

Limpos devem ser os mares;
nas escolas o respeito.
Educação vem dos lares.
Cidadania é um direito.
- - - - - –

14º Lugar:
Lucrecia Welter Ribeiro
Toledo

Os direitos e deveres
Imprimem cidadania;
Todos dois têm seus haveres
Na ordem de cada dia.
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Âmbito Estadual
 
Tema: Cidadania
Categoria: Novo Trovador

1º Lugar:
Dionezine de F. Navarro
Ponta Grossa

Criança, no sinaleiro,
pede pão em agonia.
A fome é o seu cativeiro...
Onde está a cidadania?
- - - - - –

2º Lugar:
Ana Welter
Toledo

Cidadania é direito,
faço dela o meu servir.
Tem como base o respeito
ontem, hoje e no porvir.
- - - - - –

2º Lugar:
Albano Bracht
Toledo

Um sistema de igualdade
não tem meia teoria.
Inclusão e liberdade...
Ou não é democracia.
- - - - - –

3º Lugar:
Jeferson Luiz Cadamuro Nunes
Maringá

Se a um só... falta saúde,
escola, teto, alimento,
nos cabe ser atitude,
abraço, inclusão, alento.
- - - - - –

4º Lugar:
Maria Eunice Silva de Lacerda
Toledo

Meus direitos, meus deveres,
estão na Constituição.
São tantos meus afazeres!
Cidadania em ação.
- - - - - –

5º Lugar:
Maria Eunice Silva de Lacerda
Toledo

Cidadania, é direito,
é dever do cidadão.
Cumprir tudo de bom jeito,
honrando sempre a Nação

Fonte:
Livreto do Concurso, disponível para download no Facebook UBT Seção Curitiba
.

domingo, 19 de julho de 2020

Varal de Trovas (Luiz Otávio)




18 de Julho (Dia do Trovador em Versos)


Carolina Ramos
(Santos/SP)


Amizade é mão amiga
à procura de outras mãos...
- E a Trova é a mão que nos liga,
na busca a um mundo de Irmãos!
- - - - - –

"Meus Irmãos, os Trovadores"
...e o Príncipe, fraternal,
agregou Trovas e autores,
num abraço Universal!
- - - - - –

A UBT, Rosa sagrada
para a Trova e seus cultores,
tem a senha abençoada:
"Meus Irmãos, os Trovadores"!
****************************************

Professor Garcia
(Caicó/RN)


Nossa trova se assemelha,
seja aqui, seja onde for...
à nossa Rosa Vermelha
símbolo eterno do amor!
****************************************

Nemésio Prata
(Fortaleza/CE)

A todos os trovadores
do universo, no seu dia,
vão os sinceros louvores
dos amantes da poesia!

"Papo" de Trovador...

Sofre n’alma o trovador
ao buscar rima escorreita
quando está em seu compor
e lhe “foge” a mais perfeita!
- - - - - -

- Cadê tu, rima? - pergunta
o trovador, desolado;
de repente ela se assunta,
num verso bem descolado!
- - - - - –

Com mestrado em poesia
e doutorado em amor
a todos sempre extasia
as “teses” do trovador!
- - - - - –

É a inspiração a chama
que incendeia o trovador;
quando por ela se inflama
faz lindas trovas de amor!
- - - - - –

Quem faz trova sem cuidado
de a provar em contraprova
vai terminar reprovado
na prova de fazer trova!
****************************************

José Feldman
(Maringá/PR)


Trovador! Braços abertos...
te acolho com muitas festas,
pois transformas os desertos,
em belíssimas florestas.
- - - - - –

Qual a Gralha Azul que voa.
cultivando o Paraná.
A trova, a terra povoa,
espalhando o seu maná.
- - - - - –

Ouve, amiga, o que te digo:
– quem cativa um trovador,
leva um coração amigo
a qualquer lugar que for…
- - - - - –

Ah, se eu fosse um construtor!...
Eu faria estradas novas,
incrustadas com amor,
pelo chão... milhões de trovas!
****************************************

Ialmar Pio Schneider
(Porto Alegre/RS)

SONETO A LUIZ OTÁVIO

In Memoriam – Dia do Trovador
Nascimento do trovador em 18 de julho de 1916 –


Luiz Otávio foi dos trovadores,
o Príncipe que divulgou a trova
e a revestiu de uma roupagem nova,
para que fosse a das mais belas flores...

Pois em cada ano sempre se renova
e vai angariando admiradores
que curtem os seus mágicos amores,
das ardentes paixões, vívida prova !

Em dezoito de julho é celebrado,
Dia do Trovador, sempre lembrado,
pois nasceu Luiz Otávio, nesse dia.

E todos aos que a trova têm paixão,
podem prestar-lhe em forma de oração,
a homenagem de sua nostalgia...

Fonte:
Trovas e Soneto enviados pelos trovadores.

Rubem Braga (O Afogado)


Não, não dá pé. Ele já se sente cansado, mas compreende que ainda precisa nadar um pouco. Dá cinco ou seis braçadas, e tem a impressão de que não saiu do lugar. Pior: parece que está sendo arrastado para fora. Continua a dar braçadas, mas está exausto.

A força dos músculos esgotou-se; sua respiração está curta e opressa. É preciso ter calma. Vira-se de barriga para cima e tenta se manter assim, sem exigir nenhum esforço dos braços doloridos. Mas sente que uma onda grande se aproxima. Mal tem tempo para voltar-se e enfrentá-la. Por um segundo pensa que ela vai desabar sobre ele, e consegue dar duas braçadas em sua direção. Foi o necessário para não ser colhido pela arrebentação; é erguido, e depois levado pelo repuxo. Talvez pudesse tomar pé, ao menos por um instante, na depressão da onda que passou. Experimenta: não. Essa tentativa frustrada irrita-o e cansa-o. Tem dificuldade de respirar, e vê que já vem outra onda. Seria melhor talvez mergulhar, deixar que ela passe por cima ou o carregue; mas não consegue controlar a respiração e fatalmente engoliria água; com o choque perderia os sentidos. É outra vez suspenso pela água e novamente se deita de costas, na esperança de descansar um pouco os músculos e regular a respiração; mas vem outra onda imensa. Os braços negam-se a qualquer esforço; agita as pernas para se manter na superfície e ainda uma vez consegue escapar à arrebentação.

Está cada vez mais longe da praia, e alguma coisa o assusta: é um grito que ele mesmo deu sem querer e parou no meio, como se o principal perigo fosse gritar. Tem medo de engolir água, mas tem medo principalmente daquele seu próprio grito rouco e interrompido. Pensa rapidamente que, se não for socorrido, morrerá; que, apesar da praia estar cheia nessa manhã de sábado, o banhista da Prefeitura já deve ter ido embora; o horário agora é de morrer, e não de ser salvo. Olha a praia e as pedras; vê muitos rapazes e moças, tem a impressão de que alguns o olham com indiferença. Terão ouvido seu grito? A imagem que retém melhor é a de um rapazinho que, sentado na pedra, procura tirar algum espeto do pé.

A ideia de que precisará ser salvo incomoda-o muito; desagrada-lhe violentamente e resolve que de maneira alguma pedirá socorro, mesmo porque  naquela aflição já acha que ele não chegaria a tempo. Pensa insistentemente isto: calma, é preciso ter calma.

Não apenas para salvar-se, ao menos para morrer direito, sem berraria nem escândalo. Passa outra onda, mais fraca; mas assim mesmo ela rebenta com estrondo. Resolve que é melhor ficar ali fora, do que ser colhido por uma onda: com certeza, tendo perdido as forças, quebraria o pescoço jogado pela água no fundo. Sua respiração está intolerável, acha que o ar não chega a penetrar nos pulmões, vai só até a garganta e é expelido com aflição; tem uma dor nos ombros; sente-se completamente fraco.

Olha ainda para as pedras, e vê aquela gente confusamente; a água lhe bate nos olhos. Percebe, entretanto, que a água o está levando para o lado das pedras. Uma onda mais forte pode arremessá-lo contra o rochedo; mas, apesar de tudo, essa ideia lhe agrada. Sim, ele prefere ser lançado contra as pedras, ainda que se arrebente todo. Esforça-se na direção do lugar de onde saltou, mas acha longe demais; de súbito, reflete que à sua esquerda deve haver também uma ponta de pedras. Olha. Sente-se tonto e pensa: vou desmaiar. Subitamente, faz gestos desordenados e isso o assusta ainda mais; então reage e resolve, com uma espécie de frieza feroz, que não fará mais esses movimentos idiotas, haja o que houver; isso é pior do que tudo, essa epilepsia de afogado. Sente-se um animal vencido que vai morrer, mas está frio e disposto a lutar, mesmo sem qualquer força; lutar ao menos com a cabeça; não se deixará enlouquecer pelo medo.

Repara, então, que, realmente, está agora perto de uma pedra, coberta de mariscos negros e grandes. Pensa: é melhor que venha uma onda fraca; se vier uma muito forte, serei jogado ali, ficarei todo cortado, talvez bata com a cabeça na pedra ou não consiga me agarrar nela; e se não conseguir me agarrar da primeira vez, não terei mais nenhuma chance.

Sente, pelo puxão da água atrás de si, que uma onda vem, mas não olha para trás. Muda de ideia; se não vier uma onda bem forte, não atingirá a pedra. Junta todos os restos de forças; a onda vem. Vê então que foi jogado sobre a pedra sem se ferir; talvez instintivamente tivesse usado sua experiência de menino, naquela praia onde passava as férias, e se acostumara a nadar até uma ilhota de pedra também coberta de mariscos. Vê que alguém, em uma pedra mais alta, lhe faz sinais nervosos para que saia dali, está em um lugar perigoso. Sim, sabe que está em um lugar perigoso, uma onda pode cobri-lo e arrastá-lo, mas o aviso o irrita; sabe um pouco melhor do que aquele sujeito o que é morrer e o que é salvar-se, e demora ainda um segundo para se erguer, sentindo um prazer extraordinário em estar deitado na pedra, apesar do risco. Quando chega à praia e senta na areia está sem poder respirar, mas sente mais vivo do que antes o medo do perigo que passou.

“Gastei-me todo para salvar-me, pensa, meio tonto; não valho mais nada.” Deita-se com a cabeça na areia e confusamente ouve a conversa de uma barraca perto, gente discutindo uma fita de cinema. Murmura, baixo, um palavrão para eles; sente-se superior a eles, uma idiota superioridade de quem não morreu, mas podia perfeitamente estar morto, e portanto nesse caso não teria a menor importância, seria até ridículo de seu ponto de vista tudo o que se pudesse discutir sobre uma fita de cinema. O mormaço lhe dá no corpo inteiro um infinito prazer.

(Crônica publicada em 1953)