terça-feira, 16 de março de 2021

Lino Mendes (Conversas com Ti António*) Novembro


E as “conversas com ti António “uma “figura da nossa charneca” continuam. Mas diga-se antes de mais, e que segundo ele nos diz, aos 5 anos(1922) começou a ver como iam as coisas lá pela charneca, aos 14 já lavrava, sendo que aos 16(1933)tomou conta da sua própria lavoura.

Eu já tinha nos meus planos,
que havia coisas boas
no dia de Todos os Santos,
que era o esperado das broas;

Mas era só no primeiro dia,
que não podia ser mais,
tínhamos de semear o trigo,
lavrado por animais;

Dos animais que lavravam
isto antes e depois,
e os mais apropriados
eram as vacas e os bois;

Isto já se fazia dantes
e não é uma brincadeira
aproveitar bem o mês dos Santos
pois era o melhor para as sementeiras;

Começava-se à segunda-feira
isto logo de madrugada
eram seis dias por semana,
por vezes até de empreitada;

E trabalhar de empreitada,
muita gente o fazia,
começar de madrugada
para aproveitar bem o dia;

Era uma grande alegria
a vida dantes,
muita coisa se fazia
no mês dos Santos;

Mas dentro do mês dos Santos
nem só se semeava
já se fazia dantes
azeitona se apanhava;

A azeitona se apanhava
com jeito e muita alegria,
todos os baguinhos se colhiam
ao longo de todo o dia;

Varejava-se toda pro chão
para a mulher apanhar
bago por bago
com as suas próprias mãos;

Era sempre de empreitada
ao longo de todo o dia
apanhar a bago por bago,
pois tinha que encher o saco
era a empreitada do dia;

Era a vida que corria
setenta anos atrás,
era a vida que se fazia
quando eu era rapaz;

A vida não volta pra traz,
nem nada disso pode ser,
gostava dela quando era rapaz
que não agora que estou a envelhecer;

Pouco mais posso viver,
escutem bem o que lhe digo;
Já muita coisa deixei de fazer,
até deixei de fazer trigo;

Já deixei de semear trigo,
que muito gostava de fazer,
era o pão de cada dia
pra todos terem de comer;

E o pão pra todos comerem,
é o que tem mais valor,
mas tem de ser semeado
p'lo tal dito lavrador;

E até eu o fazia
com carinho e amor,
lavrando todo o dia,
com orgulho de lavrador;

Lavrador era quem lavrava,
que sempre assim foi,
muito trigo se lavrava
com a vaca e com o boi.
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* Ti António Carqueja foi uma figura típica da nossa terra. Exímio bailador, segundo ele próprio “arranhava” umas coisitas no harmónio, na concertina e no realejo. Ensinou alguns jovens a tocar concertina. Tocava ferrinhos no Rancho, e pertencia aos grupos de Foles e de Realejos. No princípio de cada mês (logo doze vezes) ia a casa dele para me falar do mês em referência, mas a condição – ele que não era poeta – mas tinha que ser em verso.

Fonte:
Boletim em linha. Montargil Acção Cultural. N. 90. novembro de 2021.
Colaboração de Lino Mendes.

Humberto de Campos (São Filomeno)


A estação de Carirí, na Estrada de Ferro de Sobral, no Ceará, é separada da Serra Grande, ou da Ibiapaba, por dez ou doze léguas de planície, onde se estendem as caatingas uniformes e pedregosas, ou se levantam, aqui e ali, os outeiros cinzentos, ásperos, desertos, inteiramente despidos de vegetação. A falta de açudes ou de lagoas e, mesmo, a pequena fertilidade das terras, tornou ali menos densos, e menos próximos, os núcleos humanos. As fazendas são mais raras, e os povoados mais distantes, vendo-se, apenas, quebrando aquela monotonia, de légua em légua, pequenos grupos de reses, que se disputam, melancólicas, os poucos recursos de pastagem.

Contrastando com esse panorama desolador, que a impiedade do sol torna mais triste, surge, porém, de repente, aos olhos de quem viaja, um ramalhete de verdura, um breve oásis em que as árvores se aglomeram, e que se conservam permanentemente viçosas, como aqueles plátanos da Arcádia que protegeram os primeiros amores de Zeus. É ali, nesse breve refrigério da natureza, que os vaqueiros e transeuntes repousam da travessia sertaneja, descansando na terra o bordão de caminheiro ou amarrando nos troncos, à sombra dos juazeiros e das oiticicas, as velhas alimárias fatigadas.

- Que bosque é este? - perguntei, um dia; diante dessa paisagem curiosa, à simplicidade do meu guia, um caboclo serrano, moreno, forte, de alma de criança e pescoço de touro.

- Aqui? Aqui é a mata do Nicolau.

- E esse Nicolau, mora aqui? - indaguei.

O caboclo sorriu, zombeteiro, e explicou:

- Não mora, não, senhor; já morou.

O caso, como era natural, intrigou-me, e, como eu insistisse, o caboclo sentou-se no alforje, que atirara ao chão, e contou-me, enquanto almoçava o seu pedaço de queijo fresco, a maravilhosa história daquela paragem.

- Antes da seca de 77 - começou - havia neste lugar uma povoação, que vivia, com a graça de Deus, na maior fartura. Então, não havia estas árvores. Tudo isto era campina; caatinga, chapadão, como lá fora. A gente era muito ativa e decidida, e, como a terra fosse boa, não faltava nada. Com a Seca Grande, porém, veio a fome, a miséria, um horror. O povo, fiado em Deus, e em São Filomeno, padroeiro do lugar, não queria fugir. O gado morreu. As galinhas morreram. Até bode morreu nesse ano. E começou a morrer gente. Desenganados de inverno, os moradores reuniram-se uma noite na capela e resolveram abandonar o povoado. E como não entrassem em acordo a esse respeito, ficou resolvido que o Nicolau pensasse e deliberasse por todos.

- E quem era esse Nicolau? - interrompi.

- Espere lá, já lhe digo. Esse Nicolau era o sujeito mais respeitado do lugar. Sério como ele só. A mulher, D. Felismina, era uma santa. Não perdia missa, nem novena, nem ladainha, e ia até o Carirí, sozinha, para ouvir a Santa Missão. E como era ainda o menos pobre, foi o Nicolau encarregado de resolver o caso, em nome dos companheiros de desgraça. Devoto como era, resolveu ele pedir o auxílio de São Filomeno, e meteu-se, nessa mesma noite, na capela, trancado. Trancou-se, rezou muito, e, lá pela madrugada, dormiu. E foi aí que se deu o milagre.

- Milagre?

- Sim, senhor. Diz ele que, assim que pegou no sono, viu São Filomeno descer do altar, e ir crescendo; crescendo, até que ficou do tamanho de um homem. Depois, aproximou-se dele, e disse: "Nicolau, o povoado vai ser reduzido a cinzas porque, todos nele são pecadores. As mulheres, então, já estão mais degradadas do que as galinhas do teu terreiro e do que as cabras do teu serrote!" - "É possível, senhor?!" - exclamou Nicolau, espantado. O santo não entrou, porém, em explicações, limitando-se a dizer: - "Olha, Nicolau, o momento não é para vinganças nem para derramar sangue de cristão. Mas eu vou te dar elementos para apurar a verdade. Toma, - disse, entregando-lhe dois punhados de caroços; - toma estas sementes, e distribui, uma a uma, pelos homens casados do povoado, para que eles plantem à porta da sua casa. Depois, fujam, abandonem o lugar, a capela, tudo, porque a seca vai continuar ainda por dois anos. Ao fim desse prazo, voltem, e examinem: na porta daqueles cujas mulheres os tenham traído, estas sementes terão nascido; e só não nascerão, Nicolau, na porta daquele cuja mulher nunca o tenha enganado!" O homem cumpriu a recomendação do santo, distribuiu as sementes pelos companheiros, plantaram, e fugiram para o Amazonas. Anos depois, voltaram.

- E então?

- E então? Então, encontraram este bosque verde, viçoso, que nunca mais morreu!

- Nasceu, então, até a semente da porta do Nicolau?

O caboclo sorriu, e atendeu:

- A porta do Nicolau era ali.

E indicou um pé de jatobá imenso, largo, robusto, cuja copa dominava o oásis e guiava, de longe, os viajantes que transitam, hoje, entre a frescura da Serra Grande e a estação da Estrada de Ferro, nos sertões do Carirí.

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. 1925.

segunda-feira, 15 de março de 2021

Adega de Versos 3: Dudu Morais

 


Contos e Lendas do Mundo (A Pedra Sagrada)


Era uma vez um lobo que andava cheio de fome. Desesperado com tudo, foi a uma velha tabanca falar com um homem grande.

– Já há muito tempo que ando assim: sem comer coisa alguma! Queria que o homem grande me ajudasse a vencer esta situação.

– Eu posso ajudar-te a sair dessa situação. Vou te dar indicações para facilmente encontrares uma pedra sagrada com o aspecto duma figura humana: olhos grandes, compridas orelhas e uma boca enorme. Eis aqui a chave do mistério que vais utilizar para enganar os outros, a fim de conseguires o alimento que tanto desejas. Quem quer que por ali passe e diga "a pedra que tem barba", cai e morre logo. Tu não podes dizer a frase completa, apenas "a pedra que tem bar". Mas faz com que os outros a completem. Mais uma vez, lobo, não te esqueças da minha advertência, disse ainda a terminar o homem grande.

O lobo despediu-se do velho e pôs-se a caminho. Andou, andou, andou e tanto andou que acabou por dar com o local. Viu a pedra com as mesmas características que lhe foram apontadas pelo homem grande. Pôs-se e então à espera, cada vez com mais fome.

Não tardou que a gazela passasse por ali. Chamou por ela e disse:

– Já viste aquela "pedra que tem bar"?

A gazela, sem desconfiar de nada, completou a frase:

– Pois, amigo lobo, já vi aquela "pedra que tem barba".

Caiu e morreu logo. O lobo, satisfeito com o resultado, acabou de comer e ficou à espera.

Seguiu-se-lhe o macaco, a onça e o tigre, até chegar a vez da lebre.

Esta, que andava bastante distraída, ouviu uma voz chamar por ela. Virou-se e deparou com o lobo, que se apressou a dizer-lhe:

– Então sobrinha! Como vai essa vida?

– Muito boa, tio lobo! Que fazes aqui?

Mas o lobo, tão esperto que era, quis aproveitar-se logo da situação:

– Sobrinha lebre, será que já viste aquela "pedra que tem bar"?

– Pois, tio lobo! Já vi aquela "pedra que tem bar"! É muito engraçadinha! - respondeu a lebre, que já conhecia a situação.

O lobo não se deu por vencido. Voltou a repetir a mesma frase:

– Sobrinha lebre, será que já viste aquela "pedra que tem bar"?

A lebre, mais desconfiada que nunca, repetiu a mesma frase. Então o lobo insistiu aos berros, desorientado com a resposta da lebre, pretendendo que esta completasse a frase.

Mas ela não se deixou impressionar, nem mesmo com o tom de voz do lobo. Depois de muita discussão e repetição da mesma frase, o lobo acabaria por cair na armadilha. Irritadíssimo e sem se lembrar dos conselhos do homem grande, disse:

– Ainda não viste aquela "pedra que tem barba"?

Imediatamente caiu e morreu, tal como acontecera com todos os outros que enganara antes.

– Pensavas que sou burra? - disse a lebre afastando-se.

Fonte:
Universo das Fábulas

Caldeirão Poético XL

Antônio Roberto Fernandes

São Fidélis/RJ, 1945 – 2008, Campos dos Goytacazes/RJ

COVA


Cova é palavra que, naturalmente,
lembra morte, mistério e nos espanta
pois cova tanto é o lar de uma serpente
como, na Iria, foi o altar da santa.

Na cova o lavrador deita a semente
pra que ela morra e gere nova planta.
Sempre uma cova espera pela gente
e quem se deita lá não se levanta.

Mas na lavoura da felicidade
somos a terra, o fruto e a semente
– mistério da humaníssima trindade –

pois se louco de amor seu corpo enlaço
penetro em sua cova e, de repente,
deliro… e morro… e me sepulto… e nasço!
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Diniz Vitorino
Monteiro/PB, 1940 – 2010, João Pessoa/PB

DESEJO


No meu último instante, quero acesas
as estrelas banhadas de neblinas,
e, ao sussurro de orquestra montanhesas,
dançar valsas com rosas bailarinas.

Satisfeito soltar as lágrimas presas,
da alcova luminosa das retinas.
derramar todas elas, sem tristezas,
no gramados das chãs esmeraldinas.

Beber gotas do pólen fecundado,
sobre o colo do galho esverdeado,
onde a flor engravida sem sentir!

Deleitar-me na paz que envolve a fonte
morrer bêbado fitando o horizonte,
vendo a lua deitar-se pra dormir!…
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Haroldo Lyra
Fortaleza/CE

DESPEJADAS

Trocou su’alma santa e o mais sutil
traço de vida calma e intemerata,
pelo vesgo contágio da ribalta
que lhe acena com brilho mercantil.

Na luxúria, no beijo que arrebata
das entranhas da carne o gozo vil,
paga o preço que a fama discutiu
nas premissas que o vero não retrata.

E colhe entre os abraços repentinos,
os laivos dos amores clandestinos,
em cavilosas juras gotejadas,

que tão cedo lhe explodem em desenganos,
martírio desses tratos levianos:
o alto custo das ninfas despejadas.
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J. G. de Araujo Jorge
Tarauacá/AC, 1914 – 1987, Rio de Janeiro/RJ

BOM DIA, AMIGO SOL!

         
Bom dia, amigo Sol! A casa é tua!
As bandas da janela abre e escancara,
– deixa que entre a manhã sonora e clara
que anda lá fora alegre pela rua!

Entre! Vem surpreendê-la quase nua,
doura-lhe as formas de beleza rara…
Na intimidade em que a deixei, repara
Que a sua carne é branca como a Lua!

Bom dia, amigo Sol! É esse o meu ninho…
Que não repares no seu desalinho
nem no ar cheio de sombras, de cansaços…

Entra! Só tu possuis esse direito,
– de surpreendê-la, quente dos meus braços,
no aconchego feliz do nosso leito!…
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José Antonio Jacob
Juiz de Fora/MG

FIM DE JORNADA


Enquanto minha pena versifica
Versos de amor em minha caderneta
Vejo passar o tempo na ampulheta,
– Mas na ampulheta o tempo sempre fica!

Tanta saudade sua não se explica…
Desenho um coração com a caneta
E dentro dele um nome clarifica…
Arranco a folha e a guardo na gaveta.

Finda a jornada vou ao bar ao lado,
Para esquecer o amor da minha vida
Tranquei lá no escritório o nome amado…

E, ainda, cansado dessa solidão,
Eu peço uma caneta e uma bebida
E escrevo o nome dela no balcão.
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Vinícius de Morais
Rio de Janeiro/RJ, 1913 – 1980

SONETO DA DEVOÇÃO

 
Essa mulher que se arremessa, fria
e lúbrica em meus braços, e nos seios
me arrebata e me beija e balbucia
versos, votos de amor e nomes feios.

Essa mulher, flor de melancolia
que se ri dos meus pálidos receios
a única entre todas a quem dei
os carinhos que nunca a outra daria.

Essa mulher que a cada amor proclama
a miséria e a grandeza de quem ama
e guarda a marca dos meus dentes nela;

essa mulher é um mundo! – uma cadela
talvez… – mas na moldura de uma cama
nunca mulher nenhuma foi tão bela!

Fontes:
Ademar Macedo. Mensagens Poéticas.

Dicas: Como Organizar uma Estante de Livros – 3, final

Criando estantes estilosas


1. Faça um fundo escuro (opcional).

A estante ficará ainda mais chamativa se o fundo for mais escuro do que as paredes e prateleiras circundantes.

Considere pintar a parte traseira das prateleiras para obter esse efeito vívido.

No caso de estantes abertas, pendure um tecido entre elas e a parede.

2. Colecione possíveis itens de decoração.

Conheça bem os itens que serão usados antes mesmo de começar a preencher as prateleiras. Vasos, porcelana, estatuetas, bugigangas, candelabros — a sua casa é a sua concha. Reúna mais do que você pensa ser necessário, a fim de testar mais opções.

Objetos verticais e com linhas retas parecem mais similares aos livros, resultando em uma aparência austera e rígida.

Algumas tigelas redondas, cestas ou outros objetos esféricos podem ajudar a criar uma atmosfera mais amigável.

3. Comece com os objetos maiores.

Separe os maiores objetos decorativos e os grandes livros, se houver algum. Espace-os bem ao longo da estante, deixando bastante espaço entre eles para criar alguns pontos focais isolados. Um padrão de ziguezague funciona bem, no qual você deixa um dos objetos na extremidade esquerda da primeira prateleira, outro na extremidade direita da segunda e assim por diante.

4. Guarde os livros em orientação diferente.

Atraia os olhos por mais tempo variando a posição de seus livros.

Empilhe alguns livros um sobre o outro em algumas prateleiras, e mantenha-os verticalmente juntos em outras.

Experimente criar uma pirâmide de livros, com um discreto objeto de decoração no topo.

5. Use decorações pequenas para criar contraste.

À medida que você posiciona os seus livros, coloque um objeto de decoração onde parecer necessário. Use objetos coloridos em contraste aos livros com capa discreta e apagada, ou vice-versa.

Um par de candelabros altos serve bem como moldura de livros baixos.

6. Firme os livros com objetos pesados.

Apoios para livros são bastante úteis, e vêm em uma grande variedade de formas decorativas.

Como alternativa, você pode usar qualquer objeto pesado a fim de mantê-los no lugar.

7. Deixe bastante espaço vazio.


Lacunas dão às prateleiras uma aparência melhor do que quando entulhadas com livros e origami. Isso se torna especialmente importante no caso de estantes abertas colocadas no meio de um cômodo, pois precisam de bastante espaço a fim de permitir que a luz passe.

Dicas

Depois de retirar todos os livros, tire a poeira das prateleiras vazias e dos próprios livros. No caso daqueles especialmente empoeirados, use um aspirador de pó com adaptador para itens pequenos.

Você pode comprar capas brancas para esconder livros com lombadas feias ou desgastadas.

Avisos

Livros são mais pesados do que parecem. Não pegue pilhas muito pesadas para serem carregadas com conforto. Levante-as com os joelhos, mantendo as costas eretas, para evitar a ocorrência de Lesões.

Fonte:
Wikihow

Aparecido Raimundo de Souza (Parte 36) Não há porta que resista


O DOUTOR ROQUE TAQUIAFERRO, médico ginecologista  e sua esposa doutora Bebel Taquiaferro, pediatra, tem uma mansão de fazer inveja a qualquer um, na Rua Antonio de Andrade Rabelo, no  Morumbi, bairro nobre de São Paulo. Para se ter uma ideia, do tamanho da residência dos Taquiaferro,  a construção é um pouco maior que a casinha do dono do SBT, Silvio Santos, edificada na mesma rua, três portões acima.

No enorme solar, além do doutor Roque e sua esposa, a propriedade abriga Pepeu e Laurita, os dois filhos do casal respectivamente de oito e dez anos e mais seis empregados, cada um deles em seu próprio quarto, com todas as comodidades imagináveis. Desta meia dúzia de serviçais, dois se destacam. O motorista do doutor Roque e da esposa dele, o Chicão Lambreta e a Cibele Caçarolinha, babá das crianças, praticamente uma segunda mãe, tendo em vista que os pais, em face de seus compromissos laborais pouco param em casa.

Por esta razão, Chicão Lambreta e Cibele Caçarolinha desfrutam dos aposentos no interior da casa, separados um do outro apenas por um corredor enorme que começa depois da ampla cozinha atravessando toda a área de serviço que desemboca nas dependências dos demais funcionários. Cibele Caçarolinha é uma moça linda, bem feita de corpo, na linha dos trinta.  

Se comparada à esposa do doutor Roque Taquiaferro, além de ser mais bela e formosa que a patroa, é dona de uma aparência elegante e perfeita, além de extremamente provocante e sensual. Chicão Lambreta, por seu turno, não deixa nada a desejar. De corpo atlético e saradão, se assemelha a um daqueles atores hollywoodianos, ao estilo Vin Diesel, de Velozes e Furiosos. Chicão está apaixonado  por Cibele.

Desde que foi busca-la na rodoviária, há cinco anos atrás,  chegada de Santos, contratada  para ser pajem dos filhos do patrão (em substituição a babá anterior, que  fora embora,  por motivo de ter se casado), não a tirou mais de seus pensamentos. Mais velho que ela três anos, o rapaz tem feito de tudo para conquistar as graças e os deleites da bela, todavia, as suas investidas de aproximação para um contato mais íntimo, sempre caem por terra. Cada tentativa, a moça se esquiva, lhe dando um fora com elegância sutil jogando, como se costuma dizer, ‘baldes de água fria com pedrinhas de gelo’.

Por consequência, toda a sua vontade férrea de lhe fazer a corte, e ser correspondido, redunda em nada. Esta noite, como em tantas e tantas passadas, após todos se recolherem, Chicão Lambreta resolve, mais uma vez, tentar a sorte. ‘Água mole em pedra dura —, comunga com seus botões —, tanto bate até que fura’. Com esta determinação guiando seus passos, se esgueira do seu quadrado tomando o corredor imenso, e o faz, pé ante pé, como um gato arisco à caça de um rato mais arisco ainda.

Seria a derradeira vez, jurou a si mesmo, enquanto se punha a caminho. Se falhasse, deixaria, em definitivo, a graciosa em paz e partiria para outra.  Bate na porta de Cibele com o nó dos dedos e a chama quase em sussurro:

— Cibele!... Cibele, minha princesa. Por favor, abra...

Sabe que a moça está acordada. Em vigia, percebera que ela acabara de sair do quarto de Pepeu e, antes de se dirigir para o seu, deu uma espiada em Laurita.

Em seu cantinho, uma luz que escapa por uma janela que desemboca frontalmente para a dispensa (apesar da cortina fechada), se apaga:

—  Cibele... Cibelinha... Abra. Ao menos rogo que escute o que tenho a lhe dizer. Você sabe o quanto gosto de você. Abra. Me dê uma chance!

Cibele continua calada. Chicão Lambreta  volta a insistir. Bate de novo e de novo, agitado  e pressuroso.

—  Cibelinha!... Abra e me deixa entrar...

Qual o quê! Nem um sinal vem do interior que lhe dê uma esperança, por menor que seja. Chicão Lambreta então se lembra do que, certa vez, lhe dissera seu pai, quando conheceu a sua mãe e se apaixonou por ela. ‘Nunca desista’.


Usaria o mesmo argumento e algo mais (como complemento ao ‘nunca desista’). Quem sabe, desta vez, conseguisse ver ressurgida a sorte de seu velho e falecido pai, na difícil empreitada.

—  Cibelinha... Ah! Cibelinha... Olha, minha gatinha... Se você soubesse como é que eu estou aqui fora!...

Como num passe de mágica, a porta se escancarou. Segurando a maçaneta, diante dele surge a mulher que tanto seu coração de homem sozinho e carente cobiçava.

Ela preencheu o umbral se fazendo mais linda e inimitável aos olhos do seu  galanteador, vestida num baby doll branco, onde as suas curvas pecaminosas (apesar da luz se achar apagada) mesmo no escuro, e somente através da transparência do tecido, deixava à mostra, todo o colosso e a generosidade das  suas formas garbosas e magistrais.

Fonte:
Parte integrante do livro de crônicas de Aparecido Raimundo de Souza, ‘COMÉDIAS DA VIDA NA PRIVADA’ – Editora AMC-GUEDES - Rio de Janeiro. 2021. Enviado pelo autor.

domingo, 14 de março de 2021

Varal de Trovas 486

 



Arthur de Azevedo (Conjugo Vobis)

A formosa Angelina, filha do Seabra, tinha um namorado misterioso, que via passar todas as tardes por baixo das suas janelas. Era um bonito rapaz, dos seus trinta anos, esbelto, elegante, sempre muito bem trajado, sobrecasaca, chapéu alto, botinas de bico finas, bengala de castão de prata, pincenez de ouro. Limitava-se a cumprimentá-la sorrindo. Ela sorria também, para animá-lo, mas, qual!, o moço parecia de uma timidez invencível, e o romance não passava do primeiro capítulo.

– Com certeza um rapaz bem colocado, pensava Angelina, mas o diabo é que não se explica, e não hei de ser eu a primeira a chegar à fala! Afinal, um dia, passando, como  de costume, ele atirou para dentro do corredor da moça um bilhete em que estavam estas palavras:

"Amo-a, e desejava saber se sou correspondido."

No dia seguinte ele apanhou a resposta, que ela atirou à rua:

"Não posso dizer que o amo, porque não o conheço, mas simpatizo muito com a sua pessoa. Diga-me quem é."
* * *

Nessa mesma tarde, por uma dessas fatalidades a que estão sujeitos os corações humanos, o Seabra, pai de Angelina, entrou em casa como uma bomba, esbaforido, carregado com muitos embrulhos, suando por todos os poros, e intimou a esposa e a filha (eram toda a sua família) a fazerem as malas, porque no dia seguinte, às 5 horas da manhã, partiam para Caxambu.

– Mas isto assim de repente! – protestou a velha. – Vai ser uma atrapalhação!

– Não quero saber de nada! O médico disse-me que, se eu não partisse imediatamente para Caxambu, era um homem morto! Eu devia até seguir pelo noturno! Estou com uma congestão de fígado em perspectiva!

Angelina ficou desesperada por não ter meios de prevenir o moço e lá partiu para Caxambu com o coração amargurado.
* * *

Não a lastimem compadecidas leitoras: com 10 dias de Caxambu, Angelina tinha se esquecido completamente do namorado. Isso não foi devido aos efeitos das águas, que não servem para o coração como servem para o fígado, mas à presença de um rapaz que estava hospedado no mesmo hotel que a família Seabra e, em correção e elegância, nada ficava a dever ao outro. Era um médico do Rio de Janeiro, recentemente formado, moço de talento e de futuro, que, de mais a mais, tinha fortuna própria. O Seabra, que estava satisfeito da vida, porque o seu fígado melhorava a olhos vistos, acolheu com entusiasmo a ideia de um casamento entre Angelina e o jovem doutor, e era o primeiro a meter-lhe a filha à cara. Em conclusão, o casamento foi tratado lá mesmo, sob o formoso e poético céu do sul de Minas, para realizar-se, o mais breve possível, na Capital
Federal.
* * *

Regressando das águas, onde se demorou um mês, Angelina viu passar o primeiro namorado, que olhou para ela com uma expressão de surpresa e de alegria, mas a moça fechou o semblante. O semblante e a janela. E, para nunca mais ver passar o importuno, deixou dali em diante de debruçar-se no peitoril.
* * *

No dia do casamento, os noivos, as famílias dos noivos, as testemunhas e os convidados lá foram para a pretoria.

– Tenham a bondade de esperar – disse-lhes o escrivão. – O doutor não tarda aí.

Sentaram-se todos em silêncio, e pouco depois o pretor fazia a sua entrada solene. Angelina, ao vê-lo, tornou-se lívida e esteve a ponto de perder os sentidos. Ele estava atônito e surpreso. Era o primeiro namorado. O mísero disfarçou como pôde a comoção, e resignou-se ao destino singular que o escolhia, a ele, para unir a outro à mulher que o seu coração desejava.
* * *

Quando todos os estranhos se retiraram, ficando na sala da pretoria apenas o juiz e o escrivão, este perguntou àquele:

– Que foi isso, doutor? O senhor sofreu qualquer abalo! Não parecia o mesmo! Que lhe
Sucedeu?

O moço confiou-lhe tudo. O escrivão, que era um velhote retrógrado e carola, ponderou:

– Ora, aí está um fato que só se pode dar no casamento civil; no religioso é impossível.

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos vários.

Paulo Leminski (Versos Diversos) 10


tão longe eu lhe disse até logo
um pouco de tudo passou-se outra vez
e foi uma vez toda feita de jogos
aquela outra vez que não soube ser vez
pois voltou e voltou e voltou
sem saber que de duas uma
nunca são três
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

carta ao acaso

a carta do baralho
grande gilete
corta sem barulho
o olho do valete
o rei a fio de espada
a água e a farinha
uma só passada
a espada na rainha
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

soubesse que era assim
não tinha nascido
e nunca teria sabido

ninguém nasce sabendo
até que eu sou meio esquecido
mas disso eu sempre me lembro
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

meus amigos
quando me dão a mão
sempre deixam
outra coisa

Presença
olhar
lembrança calor

meus amigos
quando me dão
deixam na minha
a sua mão
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

dia de reis passou
o ano avança a maio
os reis passaram
flor
maria
trabalho
o povo ficou
mãe
maioria
os povos ficaram
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

nascemos em poemas diversos
destino quis que a gente se achasse
na mesma estrofe e na mesma classe
no mesmo verso e na mesma frase

rima à primeira vista nos vimos
trocamos nossos sinônimos
olhares não mais anônimos

nesta altura da leitura
nas mesmas pistas
mistas a minha a tua a nossa linha
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

acordei bemol
tudo estava sustenido

sol fazia
só não fazia sentido
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Amor, então,
também, acaba?
Não, que eu saiba.
O que eu sei
é que se transforma
numa matéria-prima
que a vida se encarrega
de transformar em raiva.
Ou em rima.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

parem
eu confesso
sou poeta

cada manhã que nasce
me nasce
uma rosa na face

parem
eu confesso
sou poeta

só meu amor é meu deus

eu sou o seu profeta
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

o barro
toma a forma
que você quiser

você nem sabe
estar fazendo apenas
o que o barro quer
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o poema
na página
uma cortina

na janela
uma paisagem
assassina

Fonte:
Paulo Leminski. caprichos & relaxos (saques, piques, toques & baques). Publicado em 1983.

Paulo Mendes Campos (Os velhos)

Um professor criou um neologismo para uma arte (ou ciência) nova: eugeria, velhice feliz. Os gregos não tiveram o otimismo de juntar os dois elementos dessa palavra.

Andam a mexer muito com os velhos ultimamente. Que a ciência procure dar-lhes os meios efetivos de preservar a saúde, que as leis assentem os recursos que lhes poupem penúrias e humilhações, que as famílias os tratem com respeito e carinho. Mas querer iludi-los com estimulantes psíquicos, ficar a discutir suas tristezas em público, isso me parece impertinência. Cuidá-los como criança, engambelá-los, isso lhes ofende a dignidade.

Envelhecer é ruim. Meu mestre, frade franciscano, dizia-nos que mesmo o Papa mais santo não gostava de envelhecer. Mas a criatura humana tem o orgulho preliminar de poder aguentar a verdade. Só um velho palerma, indigno da verdade, iria acreditar que não é velho, que a velhice não existe, que a vida é um sorriso incessante. Os velhos honrados sabem como se arrumar no seu canto, com pudor e gravidade. Deixá-los. Não precisam de nós, que os aborrecemos com as nossas vãs consolações. Respeitemos o silêncio da idade avançada, e que nos respeitem mais tarde. Ou daqui a pouco. A velhice é um sentimento íntimo, que não devemos violar com frioleiras sentimentais. O sentimentalismo dos parentes jovens diante dos velhos é doloroso. Pretender reanimar um espírito mais vivido, mais experiente e mais amargado que o nosso, é quase sempre de uma inoportunidade impiedosa.

Tantos gestos afetivos lesam mais do que confortam, tantas solicitudes inábeis estão sempre a reabrir feridas. Nosso amor pela pessoa velha não deve ser uma opressão, uma tirania a inventar cuidados chocantes, temores que machucam. Deixemos que façam o que bem entendam, cometam as suas imprudências, desobedeçam os conselhos médicos. Libertemos os velhos de nossa fatigante bondade. Que exagerem, se lhes der vontade, na comida e na bebida, durmam fora de hora, se esqueçam de tomar o remédio, fumem, apanhem sol, chuva, sereno. Não chatear demais os velhos, que ainda têm nas pequenas imprudências um gosto de vida. Não ter muito juízo é um dos prazeres da velhice. Mesmo que de vez em quando brinquem um pouco com a vida, poupemos a eles a nossa aflição. É porque não ignoram as manhas desta vida nossa, é por sabedoria que proporcionam a si mesmos um pico de insensatez. E é por egoísmo que os moços, sobretudo os filhos, vigiam os velhos como se vingassem da infância.

Não se diz ao velho, por exemplo, “está na hora de dormir, papai, o senhor deve estar exausto”; “amanhã eu levo a senhora ao médico à força”; "a senhora fique sabendo que está proibida de ajudar a cozinheira"; “o senhor parece uma criança, onde já se viu deitar no ladrilho”; “olhe bem antes de atravessar a rua”; “tome o seu remedinho direitinho, viu”; “a senhora não está mais na idade de ficar nessa agitação que não para, que coisa horrorosa”; “cuidado com o degrau”; “quantas vezes já lhe disse para não sair sem agasalho”; “a senhora não precisa fazer nada, que eu sei fazer tudo sozinha”.

Impertinências que ferem os velhos e os desamparam mais do que a velhice. Palavras más, nascidas de um sentimento de amor muito mal administrado. Mostram sempre que não basta ser bom neste mundo, é preciso distinguir as bondades que não doam. A alma do homem não é tão simples que só o exercício do afeto seja suficiente para satisfazê-la. E gostar de alguém não confere privilégios tirânicos.

Respeitemos os velhos sem sentimentalidades enjoadas, sem antipatia, sem o sadismo de certos tipos de ternura.

Mas a verdade é que o mundo está cheio desses sentimentalões estabanados, que entram na intimidade dos outros derrubando e quebrando tudo.


Fonte:
Paulo Mendes Campos. O anjo bêbado. Publicado em 1969.

Dicas: Como Organizar uma Estante de Livros – 2


Alterne entre sistemas de organização

1. Classifique os livros por tamanho.

Considere essa opção se você tem livros que vão desde os finos periódicos até imensos livros de arte. Coloque os títulos mais altos na prateleira mais baixa, posicionando aqueles cada vez menores mais altos, à medida que você sobe na estante, criando uma aparência limpa e organizada. Em algumas estantes, isso é necessário para adaptar a altura de cada prateleira.

2. Separe os livros com base na cor.

Esse sistema funciona muito bem, mas é mais bem empregado se você tiver uma única estante. No caso de coleções maiores, ele pode tornar mais difícil o ato de encontrar um livro específico. Aqui estão alguns sistemas de classificação baseados na cor da lombada:

Uma cor por prateleira (uma prateleira azul, outra verde e assim por diante). Se você tiver problemas preenchendo uma única prateleira, envolva alguns dos livros com papel kraft.

Um gradual fluxo de arco-íris fluindo de uma cor até a outra, ou das cores mais saturadas até os tons pastéis.

Um padrão que cria uma bandeira ou outra imagem simples, quando a estante está toda preenchida. Essa organização requer bastante tempo, mas pode ser bem impressionante.

3. Faça um arranjo de acordo com a frequência de uso.

Essa é uma ótima forma de organização quando você consulta os livros constantemente para fins de pesquisa ou referência.

Mantenha aqueles usados diariamente na prateleira à altura dos olhos ou um pouco abaixo, onde você possa vê-los e alcançá-los com facilidade. Os livros que quase nunca são abertos podem ficar nas prateleiras acima da altura da cabeça.

Se você tiver livros suficientes para encher duas ou três estantes, preencha aquela que for mais visível com os títulos importantes.

Se a sua coleção for ainda maior, esse sistema pode não funcionar muito bem.

4. Divida-os com base em seus planos de leitura.


Se você tem um grande número de livros que gostaria de ler, por que não dar a eles uma prateleira própria? Mantenha uma prateleira vazia na mesma estante, a fim de guardar os títulos lidos com facilidade. Você pode repensar a organização depois de terminar a sua lista de leitura, mas essa alternativa pode ser conveniente por enquanto.

5. Crie a cronologia de sua vida.

Preencha as prateleiras superiores com livros que você tenha lido na infância, adicionando mais para baixo todos os outros, na ordem em que os descobriu. Esse método funciona melhor para os livros com fortes lembranças associadas — e para pessoas com excelente memória.

6. Reserve uma prateleira para os seus títulos favoritos.

Não importando qual método você escolha, há a opção de manter uma prateleira especial. Sendo geralmente a mais visível, é nela em que você colocará as primeiras edições, as cópias assinadas ou, ainda, aqueles livros que mudaram a sua vida.

Continua…

Fonte:
Wikihow

sábado, 13 de março de 2021

Arquivo Spina 30

 


Fernando Sabino (Um pouco distraído)

Ando um pouco distraído, ultimamente. Alguns amigos mais velhos sorriem, complacentes, e dizem que é isso mesmo, costuma acontecer com a idade, não é distração: é memória fraca mesmo, insuficiência de fosfato.

O diabo é que me lembro cada vez mais de coisas que deveria esquecer: dados inúteis, nomes sem significado, frases idiotas, circunstâncias ridículas, detalhes sem importância. Em compensação, troco o nome das pessoas, confundo fisionomias, ignoro conhecidos, cumprimento desafetos. Nunca sei onde largo objetos de uso e cada saída minha de casa representa meia hora de atraso em aflitiva procura: quede minhas chaves? meus cigarros? meu isqueiro? minha caneta?

Estou convencido de que tais objetos, embora inanimados, têm um pacto secreto com o demônio, para me atormentar: eles se escondem.

Recentemente descobri a maneira infalível de derrotá-los. Ainda há pouco quis acender um cigarro, dei por falta do isqueiro. Em vez de procurá-lo freneticamente, como já fiz tantas vezes, abrindo e fechando gavetas, revirando a casa feito doido, para acabar plantado no meio da sala apalpando os bolsos vazios como um tarado, levantei-me com naturalidade sem olhar para lugar nenhum e fui olimpicamente à cozinha apanhar uma caixa de fósforos.

Ao voltar — eu sabia! — dei com o bichinho ali mesmo, na ponta da mesa, bem diante do meu nariz, a olhar-me desapontado. Tenho a certeza de que ele saiu de seu esconderijo para me espiar.

Até agora estou vencendo: quando eles se escondem, saio de casa sem chaves e bato na porta ao voltar; compro outro maço de cigarros na esquina, uma nova caneta, mais um par de óculos escuros; e não telefono para ninguém até que minha caderneta resolva aparecer. É uma guerra sem tréguas, mas hei de sair vitorioso.

Daí para me considerar um distraído, vai um grande passo. Esse passo quase dei outro dia, ao abrir a porta do quarto e ganhar calmamente o corredor. A empregada me olhava espavorida, mas logo pude considerar justificável a sua estranha reação, dado que me esquecera de vestir as calças.

Alarmado, confidenciei a um amigo este e outros pequenos lapsos que me têm ocorrido, mas ele me consolou de pronto, contando as distrações de um tio seu, perto do qual não passo de mero principiante.

Trata-se de um desses que põem o guarda-chuva na cama e se dependuram no cabide, como manda a anedota. Já saiu à rua com o chapéu da esposa na cabeça. Já cumprimentou o trocador do ônibus quando este lhe estendeu a mão para cobrar a passagem. Já deu parabéns à viúva na hora do velório do marido. Certa noite, recebendo em sua casa uma visita de cerimônia, despertou de um rápido cochilo e se ergueu logo, dizendo para sua mulher: “Vamos, meu bem, que já está ficando tarde.” O contrário se deu quando, recentemente, errou de porta e entrou em casa alheia, estirou-se na poltrona, abriu o jornal e tirou os sapatos, estranhando a empregada que o olhava estupefata: “Empregada nova, hein? Avise à patroa que já cheguei. E traga meus chinelos.”

Contou-me ainda o sobrinho do monstro que sair com um sapato diferente em cada pé, tomar ônibus errado, esquecer dinheiro em casa, são coisas que ele faz quase todos os dias. A mulher fica aflita, temendo que um dia ele esqueça definitivamente o caminho de casa. Perde, em média, um par de óculos por semana e nunca trouxe de volta o mesmo guarda-chuva com que saiu. Já lhe aconteceu tanto se esquecer de almoçar como almoçar duas vezes. Outro dia arranjou para o sobrinho um emprego num escritório de advocacia, para que fosse praticando, enquanto estudante.

— Você sabe — me conta o sobrinho: — O que eu estudo é medicina...

Não, eu não sabia: para dizer a verdade, só agora o estava identificando. Mas não passei recibo — faz parte de minha nova estratégia, para não acabar como o tio dele: dar o dito por não dito, não falar mais no assunto, acender um cigarro. É o que farei agora. Isto é, se achar o cigarro.

Fonte:
Fernando Sabino. Deixa o Alfredo falar. Publicado em 1976.

Mario Quintana em Prosa e Verso – 15 –


CANÇÃO DA PRIMAVERA
Para Erico Verissimo

Primavera cruza o rio
Cruza o sonho que tu sonhas.
Na cidade adormecida
Primavera vem chegando.

Catavento enlouqueceu,
Ficou girando, girando.
Em torno do catavento
Dancemos todos em bando.

Dancemos todos, dancemos,
Amadas, Mortos, Amigos,
Dancemos todos até
Não mais saber-se o motivo...

Até que as paineiras tenham
Por sobre os muros florido!
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CANÇÃO DE UM DIA DE VENTO
Para Maurício Rosenblatt

O vento vinha ventando
Pelas cortinas de tule.

As mãos da menina morta
Estão varadas de luz.
No colo, juntos, refulgem
Coração, âncora e cruz.

Nunca a água foi tão pura...
Quem a teria abençoado?
Nunca o pão de cada dia
Teve um gosto mais sagrado.

E o vento vinha ventando
Pelas cortinas de tule...

Menos um lugar na mesa,
Mais um nome na oração,
Da que consigo levara
Cruz, âncora e coração

(E o vento vinha ventando...)
Daquela de cujas penas
Só os anjos saberão!
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CANÇÃO DE OUTONO
Para Salim Daou

O outono toca realejo
No pátio da minha vida.
Velha canção, sempre a mesma.
Sob a vidraça descida...

Tristeza? Encanto? Desejo?
Como é possível sabê-lo?
Um gozo incerto e dorido
de carícia a contrapelo...

Partir, ó alma, que dizes?
Colher as horas, em suma...
Mas os caminhos do Outono
Vão dar em parte nenhuma!
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PEQUENA CRÔNICA POLICIAL

Jazia no chão, sem vida,
E estava toda pintada!
Nem a morte lhe emprestara
A sua grave beleza...
Com fria curiosidade,
Vinha gente a espiar-lhe a cara,
As fundas marcas da idade,
Das canseiras, da bebida...
Triste da mulher perdida
Que um marinheiro esfaqueara!
Vieram uns homens de branco,
Foi levada ao necrotério.
E quando abriam, na mesa,
O seu corpo sem mistério,
Que linda e alegre menina
Entrou correndo no Céu?!
Lá continuou como era
Antes que o mundo lhe desse
A sua maldita sina:
Sem nada saber da vida,
De vícios ou de perigos,
Sem nada saber de nada...
Com a sua trança comprida,
Os seus sonhos de menina,
Os seus sapatos antigos!
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CANÇÃO DE BARCO E DE OUVIDO
Para Augusto Meyer

Não quero a negra desnuda.
Não quero o baú do morto.
Eu quero o mapa das nuvens
E um barco bem vagaroso.

Ai esquinas esquecidas...
Ai lampiões de fins de linha...
Quem me abana das antigas
Janelas de guilhotina?

Que eu vou passando e passando.
Como em busca de outros ares...
Sempre de barco passando,
Cantando os meus quintanares...

No mesmo instante olvidando
Tudo o de que te lembrares.

Fonte:
Mário Quintana. Canções. Porto Alegre: Globo, publicado em 1946.

Ivan Lessa (Hamlet em mímica)

Uma das coisas boas da vida é não ter que ir ao teatro. Mas a gente só descobre isso quando tem de ir ao teatro. Mesmo sem gravata, teatro é muito chato. E depois não descobriram ainda uma solução para os intervalos. Fica todo mundo pelos corredores fazendo cara de quem está achando alguma coisa da peça e dos atores. Tudo porque se julgam na obrigação de ter uma opinião séria a respeito do teatro: as críticas são tão compenetradas, os atores tão sensíveis, ou autores dizem coisas tão sérias... Todo mundo tem medo de dizer: “Mas isso é uma besteirada horrível e não quer dizer absolutamente nada e nunca encontrei na minha vida quem falasse feito esse personagem e se encontrar viro a cara imediatamente!”. Basta uma coisa ocupar um espaço razoável nos jornais, durante determinado período, para todo mundo ter medo de rir. Agora experimente dizer isso para alguém de teatro. Ele é capaz de bater em você. O ator, por exemplo, fala de sua profissão como o dr. Schweitzer falava de seus hospitais na selva, como se houvesse algo de sagrado em se pintar todo e aparecer debaixo de um facho de luz dizendo coisas que ele não entende de uma maneira que todos entendam.

Aqui no Rio ‒ deve ser em todo Brasil ‒ o espetáculo-festinha continua, sem enredo, mas com texto, sem drama, mas com “ão” (todos terminam em “ão”: Opinião, Reação, Perversão). Descobriram que tá dando um dinheirão, embora se recusem a admitir que façam teatro para ganhar a vida, e encarem o dinheiro como uma espécie de moléstia diabólica, altamente contagiosa a necessitar urgentemente de extirpação. Quem sabe para o ano descobrem que o negócio é show (com um pouquinho de bossa nova aqui e ali para dar gosto) em “inho” ou “íssimo”. Os shows em “inho”, naturalmente, ficariam todos a cargo de Vinicius de Moraes; em “íssimo” seriam todos na cidade, bem fora da mão, com o mínimo de conforto possível e na sala de pingue-pongue de grêmios recreativos obscuros. Mas seriam feitos com um sorriso esperto trocado entre participantes e espectadores que em miúdos significaria: Brecht é fogo, hein? A gente ‒ eu e você ‒ mania Brecht, não é mesmo? E repare como ele tem coisas a dizer dentro da atualidade brasileira. Você vai se sentir lisonjeado com aquela intimidade, afinal os realizadores estão incluindo você ‒ dando parceria ‒ na sua sofisticada percepção dramático-sociológica. Você está mal sentado, é verdade, mas a rapadura do conhecimento humano está sendo dividida com você. A equipe é a mais profissional possível (os preços também) do contrário seria impossível montar esse espetáculo com grifos tão amadorísticos.

Ator é um camarada que fica em casa bolando algo inteiramente inútil feito montar Hamlet em mímica. Diretor é aquele outro que dirige esse espetáculo. Empresário é o que o financia. E o pato ‒ que vinha cantando alegremente coén, coén, o pato, meu amigo, é você.

Fonte original:
Diário Carioca.13 dez 1965. Disponível no Portal da Crônica Brasileira.

Dicas: Como Organizar uma Estante de Livros – 1

Organizar uma estante de livros pode ser algo divertido, tanto para o seu lado bibliotecário como para o lado decorador de interiores. Há diversos métodos práticos de classificação de livros, mas poucas alternativas permitem experimentar bastante em aparência e funcionalidade.


Organizando os livros

1. Doe livros que você não queira mais.

É mais fácil abandonar os livros indesejados antes de organizar a coleção inteira. Coloque em caixas aqueles títulos que nunca serão usados em uma nova leitura ou, ainda, pela primeira vez. Você pode vendê-los para livrarias de usados, sebos, casas de caridade, bibliotecas ou páginas da internet como a Estante Virtual.

2. Observe as restrições de tamanho.

Antes de elaborar um plano principal, conheça bem as suas limitações. Algumas estantes têm prateleiras com espaçamento diferente, podendo ser necessário colocar os livros de capa dura em um local e os de capa normal em outro. Livros didáticos ou de arte podem precisar ser empilhados para caber adequadamente.

Divida os seus livros para que se conformem às restrições existentes e trate a cada pilha como uma tarefa de organização isolada.

Livros grandes e pesados devem ser guardados em prateleiras resistentes, geralmente as mais baixas. Evite colocá-los acima da altura da cabeça.

3. Divida as seções de ficção e não ficção.

Tire todos os livros dos lugares e divida-os em grupos de acordo com a natureza dos assuntos. Você geralmente estará com o desejo de ler uma dessas duas categorias e, assim, essa classificação facilitará a sua escolha para uma leitura imediata.

4. Classifique as ficções por gênero ou autor.

Divida uma coleção grande e variada por gênero, mantendo cada livro em uma ou em um grupo separado de prateleiras. Em cada gênero, separe os livros alfabeticamente, pelo último nome do autor. Se você tem apenas duas ou três prateleiras de ficção ou, ainda, se a maior parte dos livros de ficção pertence a um mesmo gênero, classifique-os pelo último nome do autor, sem dividi-los.

Alguns gêneros comuns de ficção incluem mistério, obras literárias, infantojuvenil, fantasia e ficção científica.

5. Classifique os livros de não ficção por tema.

Faça-o em prateleiras separadas.

Observe o quanto você tem, de modo geral, em cada categoria.

Idealmente, você deve manter de uma a três prateleiras por categoria. Pode ser necessário pensar em temas mais amplos ou restritos para chegar a esse resultado:

Há diversos temas de não ficção, incluindo jardinagem, culinária, história, biografia, biologia e livros de referência.

Uma coleção especializada pode ser classificada com diversos subtemas. Por exemplo, uma coleção de história pode ser dividida por continente, a seguir por país e, finalmente, por período.

Se a sua residência tiver muitos livros de não ficção, opte por um método de classificação decimal.

Continua…

Fonte:
Wikihow

sexta-feira, 12 de março de 2021

A. A. De Assis (Como é o céu?)


Para quem não crê na eternidade da alma, ao fim do último suspiro a história acaba, e ponto. Segundo, porém, as estatísticas, mais de noventa por cento das pessoas acreditam que a vida prossegue após a despedida do corpo. Eu acredito.

A questão é saber para onde vamos, e como. Cada qual dá um nome: paraíso, glória, infinito, casa do Pai, reino de Deus. Para a maioria, no entanto, pelo menos na cultura ocidental, o nome mais frequente é céu mesmo. Mas como é o céu?

Difícil achar alguém que em algum momento não tenha dado uma paradinha para pensar nisso. A ideia que geralmente se tem é de que o derradeiro minuto de nossa estada neste planetinha tenha como sequência o imediato ou quase imediato ingresso na vida eterna. Cessam as batidas do coração, começam os voos da alma.

Simples assim? Ou haverá uma triagem para selecionar quem vai para onde?

Cá comigo, penso que a população do céu seja imensa. Do jeito que Deus é bom, sempre dará um jeitinho de abrir as portas do paraíso para o máximo de almas. A gente é que tem mania de condenar. A alegria de Deus é perdoar.

Sim, mas por que o céu se chama céu? Em latim céu é “coelum”, que originalmente significava “brilhante” e depois passou a significar “posição superior”, “localização em cima”. Da mesma família é “excelso” (“Gloria in excelsis Deo” – Glória a Deus nas alturas). O oposto é “inferno” (“infernus”), que significa “inferior”. Se interno é o que está inter (dentro) e externo é o que está exter (fora), inferno é o que está infer (abaixo).

Assim, ir para o “infernus” significaria inferiorizar-se, sofrer um rebaixamento, uma degradação; enquanto ir para o “coelum” (céu) corresponderia a ganhar uma promoção – a plena e eterna alegria, a felicidade máxima. Não se trata, portanto, de ir para um determinado lugar no sentido físico. A alma é imaterial.

“Ir para o inferno” – imagino então – seria morrer em estado de profunda tristeza, sentindo a alma pesada, o coração cheio de culpa, a consciência ardendo de medo e remorso, com o risco de passar toda a eternidade em permanente angústia. Almas amarguradas, sofridas, que precisam de muitas orações. Só a misericórdia de Deus pode curá-las, mediante o perdão.

“Ir para o céu”, por sua vez, seria morrer com a alma limpa, levinha, o coração sereno, a consciência em paz, e assim alcançar uma qualidade superior de existência, angelizar-se, passando a viver, espiritualmente, em estado de graça, na plenitude do amor.

Ninguém sabe quem receberá tal bênção. Só Deus sabe. Porém acredito e repito: Deus é generoso demais e certamente levará para junto dele uma multidão de filhos e filhas.

Pode ser que nem todos os eleitos, ao serem chamados, já estejam tão puros de coração a ponto de entrar diretamente no céu; muitos terão talvez de cumprir algum estágio intermediário. Mas a fé é forte e a esperança é enorme.

Quem sabe a gente um dia se encontre lá?...
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 11-3-2021)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Caldeirão Poético XXXIX

Gustavo Adolfo do Amaral Ornellas

Rio de Janeiro/RJ, 1885 – 1923

IDÍLIO


Sentamo-nos os dois à beira-mar. As brumas
pardacentos dragões que o sol vai devorando –
trepavam pelo céu; e o oceano, calmo e brando,
calçava-nos os pés de alvíssimas espumas.

Várias conchas de cor ele arrastava, em bando,
pela cauda de arminho e de nevadas plumas;
muitas – frações de aurora – iam-se abrindo, e algumas,
quais pedaços do céu, iam na areia entrando.

E enquanto ela, sorrindo, o olhar pousava em tudo,
na alva cauda do mar, nas conchas, no veludo
na arcada celestial cheia de negros véus,

via-lhe o mar na veste, a espuma nos seus folhos,
e ficava admirando a concha dos seus olhos
que vive a enclausurar dois pequeninos céus.
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Divenei Boseli
São Paulo/SP

LUZ


Se a vida fosse apenas um brinquedo
e o medo fosse apenas ilusão,
se o amor fosse despido de segredo
e a dedo se encolhesse uma emoção,

se a voz tivesse a força de um torpedo,
a pena fosse um traço de união
e as deusas, num telúrico bruxedo,
tornassem verdadeira a compreensão,

seriam não apenas operárias
da indústria, do comércio e mesmo agrárias
as tochas geradoras dessa luz

que eu penso poder ver quando a mulher
dispensa “Cirineus” e, como quer,
carrega sem ajuda a própria cruz!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Djalma Mota
Caicó/RN

SONETO DA REGENERAÇÃO


Sabemos que tem gente para tudo…
Tem até quem não goste de poesia!
Este, certamente de alma vazia,
tem no seu peito um coração miúdo

Poesia é sentimento de alegria.
É a força da expressão e, sobretudo,
transmissora eficaz do conteúdo
da essência que o poeta sempre cria.

Quem se opõe a poesia é desalmado!
Não merece amar e nem ser amado!
É um ser tristonho, de amargor profundo…

Porém, nem sempre é tarde a fazer parte
deste movimento que expressa a arte,
capaz de congraçar o amor no mundo.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Henriques do Cerro Azul
Fortaleza/CE, 1936 – 2015, Brasília/DF

CONTRASTE

 
Longe de ti, eu te imagino perto:
Vejo esse teu sorriso a todo instante;
Qual se te visse, o coração amante
É um doce ninho ao teu amor aberto.

Perto de ti, te julgo tão distante…
Nem mesmo vejo o teu sorriso incerto;
Com saudade de ti o peito aperto
Relembrando o fulgor do teu semblante.

Também tu és como eu: –  os teus sentidos
Se enganam, como os meus, pelos caminhos…
E assim passamos desapercebidos

Do erro de nossos múltiplos carinhos:
– Quanto mais longe tanto mais unidos,
– Quanto mais juntos tanto mais sozinhos !
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Maria Nascimento S. Carvalho
Rio de Janeiro/RJ

CONTRADIÇÃO


Hoje, mais uma vez, desesperada
por ser injustamente preterida,
vejo que já nasci predestinada
a amar sem nunca ser correspondida …

Mas o que mais me dói, na despedida,
é saber que fui sempre desprezada
porque foste o anjo bom da minha vida
e eu da tua jamais pude ser nada.

Se me pudesse ver da eternidade,
chorando de tristeza e de saudade
pelo amor que no tempo se perdeu,

Carlos Drummond de Andrade me diria :
“ E agora “, como vais viver Maria,
sem o José que achavas que era teu?!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Oscar Macedo
Santana do Matos/RN, ????

COMPADECIDO…


Não tendo a quem contar as minhas dores,
ao velho mar me dirigi um dia.
Para aumentar porém meus dissabores,
reconheci que ele também sofria.

Confidente dos homens sofredores,
cobriu-se, ao ver-me, de uma espuma fria
e num gesto de quem confidencia
pôs-se a escutar tranquilo os meus clamores.

Contei-lhe tudo, confessei as mágoas,
mais profundas, talvez, que suas águas,
mostrei-lhe enfim meu coração dorido.

E o mar que até então ficara mudo,
ouvindo a triste narração de tudo,
pôs-se a chorar de mim compadecido.

Fontes:
Ademar Macedo. Mensagens Poéticas.

Aparecido Raimundo de Souza (Coriscando) 9: Quase um gesto brusco


DEPOIS DO JANTAR, o Linguado Cara Mal lavada, se acomoda, mais a esposa Mimice, num sofá de canto da sala enorme (um retrátil recentemente adquirido que fica, evidentemente, numa rebarba da peça) e ligam a televisão tela plana na Netflix. Ali, agarradinhos, ambos passam a assistir, ora a uma série nova que acabara de entrar no ar, ora para terminarem os episódios derradeiros de uma trama antiga que ficara pela metade. Era praxe, esta mudança repentina de diversão.

Mandam a Zefa (Zefa é a empregada) para seus aposentos descansar por algumas horas, só voltando à cozinha tempos depois, para o preparo de uma baciada de pipocas regada a copos de refrigerantes estupidamente gelados. Todo santo dia, a mesma cena comum se repete. Mimice, nos braços do amado, aos beijos e dezenas de outras mimosidades, de quando em sempre, renova os carinhos mais acentuados.

Nestes momentos apimentados, ela fecha os olhos, abre os lábios, murmura palavras melosas e, novamente, se prende e se perde, as atenções voltadas à tela do aparelho. De súbito, entretanto, assim do nada, um fato estranho e alheio ao clima, cotidiano se faz gigantesco. Linguado muda os hábitos costumeiros sem prévio aviso e, ato contínuo, pula, como um tarado, na garganta da esposa e começa a lhe apertar o cachaço, ao tempo em que manda, cheio de ira, um aviso à infeliz, coitadinha, totalmente desprevenida e pega de surpresa:

— Meu amor, preste atenção no que vou lhe falar. Se um dia você resolver me trair, se achar um carinha mais novo e melhor que eu, pelo amor de Deus, me avisa. Me avisa, entendeu? Não vou suportar viver com um par de chifres enfeitando a minha testa. Estamos de acordo?

Mimice, num primeiro ímpeto, consegue dar um grito de espanto e terror e custa a se livrar, por mais que tente, das mãos fortes do companheiro. Ele quase a leva às raias do desespero, em face do modo como segue lhe pressionando a frágil goela. Depois de se refazer do susto repentino, e do medo de passar o resto de seus dias comendo capim pela raiz, aos prantos, a metade abundante do Linguado consegue encarar o seu pé de chinelo faltoso e, ainda segurando a cervical, balbucia, quase afônica:

— Que foi que houve, amor? Está desconfiada de mim? Só temos seis meses de casados e já está me tratando como se eu fosse uma rameira vagabunda? Que é isto, amor? Por que trairia você?

Linguado, de repente, volta a apertar, ainda com mais pressão o cangote da sua linda e adorada:

— Só lhe dei um aviso. Passei a visão... Você sentiu a visão? Se ligou na visão? Se um dia resolver me enfeitar a testa, me avisa, me avisa...

Libertada, finalmente dos modos raros e extravagantes do encolerizado e encarniçado cidadão com o qual se unira em matrimônio, a infeliz responde quase num fio de voz:

— Meu bem, por que está agindo assim?

O sujeito, com ar de quem está disposto a levar avante o que dissera e, à sério, no tocante a repetir os carinhos desamorosos e inopinados na gasnate da inimitável criatura, suspira e vocifera:

— Só lhe dei um aviso, minha querida. Fica, portanto, ligada.

Mimice, as vistas arregaladas, o medo ainda tomando conta do rosto, segurando a gorja (nesta altura, mais vermelha que olho de pinguço), solta a voz, ou o que restou dela, e o faz claro, literalmente embargada:

— Amor... Por... Por que... Não me... Por que... Não me disse... Isto mais... Mais cedo?!

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Estante de Livros (A Intrusa, de Júlia Lopes de Almeida)


Artigo Júlia Lopes de Almeida: O Discurso do Outro, de Elódia Xavier (UFRJ)


O tema da sucessora, isto é, da mulher que substitui a primeira esposa falecida, foi introduzido na literatura brasileira por José de Alencar, em 1877, sob o título sugestivo de “Encarnação”. Trata-se do último romance do painel alencarino e reflete, até certo ponto, as  precárias condições de saúde do autor, que morreria pouco  depois.

Tem, porém, o mérito de revelar um Alencar  "psicólogo", preocupado com o mundo mental de seus personagens. Hermano, o protagonista, é um caso patológico: seu amor por Julieta, a primeira esposa, chega às raias da obsessão e contra isso, Amália, a heroína, empreende uma luta sem tréguas, onde entra, em grande dose, a perspicácia das personagens femininas de Alencar. Amália encarna, para conquistar o marido, os atributos físicos de Julieta, chegando a confundi-lo e acaba salvando-o do incêndio que destrói o passado, tornando possível a plena realização  seu casamento. Alencar, fiel ao princípio romântico do primeiro e único amor, "encarna" Julieta em Amália e, como garantia de fidelidade, dá à filha do novo casal o nome de Julieta.

Carolina Nabuco, em 1934, vai trabalhar este mesmo tema em “A sucessora”, solucionando o conflito entre Marina, a segunda esposa, e Alice, a inesquecível, através da maternidade. A presença atuante de Alice, representada por um retrato pintado a óleo, ameaça a relação de Roberto e Marina, que só se salva graças à gravidez desta; a procriação que a torna superior à outra, mascada pela esterilidade. Carolina Nabuco reduplicou, aqui, os valores dominantes, enaltecendo a mulher pela sua função procriadora, promovida, assim, à "rainha do lar".

Júlia Lopes de Almeida também se ocupou deste tema e o fez bem antes de Carolina Nabuco, com “A intrusa”. É uma obra instigante, porque se presta a mais de uma leitura, como teremos oportunidade de ver; e, embora escrita em 1908 (foi publicada em folhetim no Jornal do Comércio em 1905), pertence ainda ao século XIX, pela visão de mundo apresentada.

Trata-se da história de Argemiro, viúvo, que contrata uma governanta para cuidar da casa e fazer companhia à filha, quando vier visitá-lo, pois a menina Maria mora com os avós numa chácara afastada da cidade. O protagonista conserva-se fiel à primeira esposa, a quem jurou amor eterno no leito de morte. Com a chegada da governanta, conseguida através de um anúncio no jornal, cria-se o conflito, pois a sogra, guardiã da promessa do genro, considera Alice uma ameaça perigosa e entra num processo alucinatório, imaginando sua filha traída e a situação doméstica desestabilizada pela presença da intrusa. Para evitar desastre, muda-se com o marido e a neta, para a casa do genro e, aproveitando a ausência deste, expulsa Alice.

Quando Argemiro retorna, ansioso por usufruir as benesses de sua casa, agora bem administrada pela governanta, que ele não conhece e nem faz questão de conhecer, mas que aprecia através dos benefícios que sua presença lhe proporciona, encontra a situação em pé de guerra. Alice está para partir expulsa pela Baronesa e Feliciano, remanescente da escravidão, pronto a reassumir suas funções, de que fora destituído com a chegada da governanta.

Na trama, destaca-se, ainda, o padre Assunção - é ele que desvela o passado de Alice pondo em evidência todas as suas virtudes - como também pelo segredo que ele esconde - seu amor pela primeira esposa de Argemiro, razão de ser da opção pela batina. Como era de se esperar, a entrevista de Argemiro com Alice para o acerto de contas é o momento decisivo para o desenlace feliz. É a primeira vez que o patrão vê, de fato, a governanta e, estando já cativado pelos serviços prestados, acaba se casando com ela, para alegria da filha e infelicidade da sogra.

Se a trama privilegia o personagem Argemiro e, até certo ponto, o padre Assunção, gira o tempo todo em torno da mulher; é ela que está em questão. A cena inicial apresenta uma reunião semanal em casa de Argemiro: quatro amigos jogam, conversam e, diante da decisão do dono da casa de contratar uma governanta, surgem opiniões diversas sobre a mulher, todas enfatizando o perigo que ela representa. "Feia ou bonita, a mulher é sempre perigosa" diz um dos amigos.

A alta burguesia, aliada a remanescentes aristocráticos, ocupa o espaço social do universo romanesco. Feliciano, criado pela família da Baronesa, é o empregado revoltado com sua condição social e Alice, embora dependa do trabalho para viver, pertence à média burguesia de formação liberal. Os conceitos sobre a mulher fazem parte, portanto, da ideologia dominante, uma vez que Feliciano pouco fala e Alice se resume no tema das conversas, no motivo do conflito. É enaltecida por Argemiro, que usufrui dos serviços prestados, pela menina Maria, que aproveita suas lições, pelo padre Assunção, que conhece sua história e abominada pela Baronesa, que tem ciúmes de seus poderes.

O narrador, frequentemente, se posiciona diante da condição feminina, aceitando e recusando, ao mesmo tempo, os valores vigentes. Pertence à classe dominante uma personagem feminina - a Pedrosa, cuja característica é a determinação com que manipula as pessoas para atingir seus objetivos. Dirige a carreira do marido fazendo-o de deputado, senador e, finalmente ministro. Quando o narrador diz - "Vingava-se do Destino a ter feito mulher" -, revela uma certa revolta pela inferioridade da condição feminina, mas encara esta situação como uma fatalidade. A mulher, como não pode atuar diretamente sobre a realidade, usa estratagemas e pessoas para atingir seus objetivos.

Fica tudo muito ambíguo, pois a personagem é negativa, forçando as pessoas a fazerem o que não querem. De fato, o que predomina é o status quo, onde o "destino de mulher" (para usar uma expressão de Simone de Beauvoir incorporada por Clarice Lispector no conto "Amor") é limitado pelas paredes do lar. A Pedrosa é hospitalizada pelos seus estratagemas e Alice é valorizada pelas virtudes domésticas.

A educação da mulher é outro aspecto abordado pela narrativa, através da formação da menina Maria. Entregue aos descuidados dos avós, morando na chácara, tem uma vida livre e natural, sem as repressões do processo de domesticação. O resultado é uma menina "selvagem" sem instrução; mas, sobretudo, sem o aprendizado das convenções que farão dela uma mulher. Argemiro, preocupado com a formação da filha, concorda com a Baronesa: "A avó tem razão; minha filha já está muito crescida para aqueles modos de rapaz..." (p.28) Ao final da narrativa, domesticada por Alice, a menina Maria terá não só uma boa dicção francesa, mas caberá preparar arranjos florais, fazer crochê e outras prendas consideradas, então, importantes na formação da mulher. Aliás, a narrativa está toda pontuada por preconceitos relativos à condição feminina. O sogro de Argemiro, homem cordato e pacífico, tentando controlar o ciúme doentio da mulher, lhe diz: "Mas és mulher, e vives mais do sentimento que da razão", repetindo um lugar comum da ideologia dominante. Argemiro também incorre neste tipo de preconceito, quando se surpreende diante das contas feitas por Alice: "Os seus cadernos estão numa ordem admirável. Realmente eu nunca imaginei que uma senhora  desse tanto de contas... é um guarda-livros! (p.298)

Concluindo: a partir desta leitura de “A Intrusa”, o que é ser mulher? O modelo a ser tomado é Alice, que aceita passivamente as regras do jogo (anulando-se como pessoa, pois não deve ser vista pelo patrão), zelando pela casa e pela menina Maria quando em visita ao pai. O resultado do seu trabalho torna-se logo evidente criando uma atmosfera acolhedora, que envolve Argemiro e o seduz inapelavelmente.

Como se trata de um viúvo, preso à falecida por uma promessa de amor eterno, o casamento com Alice, ao final, tem um significado especial: representa o prêmio por tantos cuidados. Alice ganha um marido pelos serviços prestados, pois ele mal a conhece; desempenhando a contento o papel de governante, ela se tornou dona da casa e viveram felizes para sempre! Será?

Se esta leitura pela ótica da condição feminina apresenta certas ambiguidades, decorrentes, talvez, do fato de se tratar de uma narrativa de autoria feminina que fala sobre a mulher dentro da perspectiva do século XIX, uma leitura de natureza político-social revela um mundo mais ordenado. Lembrando que a República, decretada há apenas dezesseis anos, ainda vivia uma fase de acertos e desacertos, sobretudo no plano social, pode-se ler A intrusa como uma metáfora deste momento da vida brasileira.

A classe nobre aí representada pela Baronesa e seu marido, muito zelosa de seus poderes já bem desgastados; a Igreja, na figura do padre Assunção, todo bondade e compreensão, além de fiel a seu grande amor pela filha da Baronesa (a aliança nobreza/clero fica patente no final); Feliciano, remanescente do sistema escravocrata, produto espúrio da nobreza, vivendo às custas de um trabalho mal feito e mal pago; Alice, a recém-chegada, representante de uma classe emergente que faz do trabalho serio um instrumento de ascensão social; e, finalmente, Argemiro (de argentum -- prata, metal), o poder econômico, senão cobiçado, pelo menos motivo dos cuidados de todos. Deve se manter fiel á nobreza com quem conviveu durante tanto tempo; mas a incapacidade da Baronesa em educar a menina Maria e a negligência de Feliciano levam o dono da casa a procurar uma governanta, que satisfaça suas necessidades de conforto e tranquilidade. É, portanto, Alice, a "intrusa" sob a ótica da nobreza, quem vai se apossar do poder econômico, pelas virtudes do caráter e do trabalho.

O trabalho é um dado importante dentro da narrativa; e ele que possibilita a ascensão social de Alice  de governanta a dona de casa. No contexto político-social, a República vai favorecer as profissões liberais, valorizando o trabalho ate então restrito às classes desfavorecidas. No contexto feminino, sob a ótica atual, a atividade de Alice é redutora: seu trabalho doméstico a mantém no plano da imanência, não lhe dando possibilidades de transcender. Simone de Beauvoir, no “Segundo Sexo”, aponta para o caráter redutor do trabalho doméstico, sempre voltado para si mesmo. Mas, dentro da perspectiva do século XIX, a realização da mulher estava limitada ao espaço doméstico; por isso, não surpreende que Alice conquiste Argemiro enfeitando a casa, cuidando do jardim e educando sua filha.

A narrativa de Júlia Lopes de Almeida conserva os valores dominantes, apesar de certa consciência feminista latente. Ainda não havia chegado o momento em que a narrativa de autoria feminina se põe a questionar o papel da mulher. Vimos como Carolina Nabuco, em “A sucessora”, soluciona o drama de Marina; ora, nada mais anti-feminista do que valorizar a mulher pela sua capacidade procriadora.

Clarice Lispector, no conto "Uma galinha", aponta, ironicamente, para esta situação, quando a ave fugitiva, após por um ovo', se transforma na "rainha da casa", escapando da panela. De fato, é a obra de Clarice que rompe com o discurso do outro, na narrativa de autoria feminina; ela problematiza o "destino de mulher", evidenciando o que há de convencional e de socialmente condicionado.

Júlia Lopes de Almeida é autora de uma obra rica variada, onde a mulher ocupa sempre o primeiro plano; e “A intrusa” é apenas um exemplo da sua capacidade  criadora, onde a condição feminina é tematizada, respeitando os valores dominantes.

Bibliografia
ALENCAR, José de. Encarnação. In: Romances ilustrados de José de Alencar. v.7. Rio de Janeiro: Jose Olympio; Brasília: INL, 1977.

ALMEIDA, Júlia Lopes de. A intrusa. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1908.

LISPECTOR, Clarice. Uma galinha. In: Laços de família. São Paulo: Francisco Alves, 1960.

NABUCO, Carolina. A sucessora. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d.

Fonte:
Periódicos da UFSC.

quinta-feira, 11 de março de 2021

Adega de Versos 2: Aldenira Silva de Oliveira (Natal/RN)

 


Carlos Drummond de Andrade (Trem de Contos) 17, 18 e 19

A MUDANÇA


O homem voltou à terra natal e achou tudo mudado. Até a igreja mudara de lugar. Os moradores pareciam ter trocado de nacionalidade, falavam língua incompreensível. O clima também era diferente.

A custo, depois de percorrer avenidas estranhas, que se perdiam no horizonte, topou com um cachorro que também vagava, inquieto, em busca de alguma coisa. Era um velhíssimo animal sem trato, que parou à sua frente.

Os dois se reconheceram: o cão Piloto e seu dono. Ao deixar a cidade, o homem abandonara Piloto, dizendo que voltaria em breve, e nunca mais voltou. O animal inconformado procurava-o por toda parte. E conservava uma identidade que talvez só os cães consigam manter, na Terra mutante.

Piloto farejou longamente o homem, sem abanar o rabo. O homem não se animou a acariciá-lo. Depois, o cão virou as costas e saiu sem destino. O homem pensou em chamá-lo, mas desistiu. Afinal, reconheceu que ele próprio tinha mudado, ou que talvez só ele mudara, e a cidade era a mesma, vista por olhos que tinham esquecido a arte de Ver.
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ANDORINHAS DE ATENAS

As andorinhas de Atenas são descendentes em linha direta daquelas que viviam no tempo de Anacreonte e que pousavam no ombro do poeta quando ele libava nas tavernas.

Esta informação, ministrada ao turista pelo guia, não mereceu crédito. Anacreonte (ponderou o visitante) não era de frequentar tavernas. Sentava-se à mesa dos poderosos e gozava de alta cotação social.

O guia não se impressionou com os conhecimentos biográficos:

— Pois olhe. Essas andorinhas foram trazidas de Samos pelo próprio Anacreonte, que por sinal selecionava as mais gordinhas para almoço.
Era doido por andorinha no espeto.

— Como pode saber disto? — objetou o turista.

— Bem se vê que o senhor não conhece a Antologia palatina.

— Conheço-a, foi objeto da minha tese de mestrado, e não vi no texto uma linha que conte essa fábula.

— Meu caro senhor, peço licença para me retirar. Quem não acredita nas minhas histórias dificilmente levará uma boa impressão de Atenas.

E afastou-se com a maior dignidade.
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A NOITE

Há tantas coisas germinando na noite, que nem sei como enumerá-las. À noite nascem as revoluções, tanto as que vão triunfar como as que só se realizam em pensamento, e são quase todas. Os revolucionários viram-se, inquietos, na cama. E também os que se converterão, pela manhã, a religiões novas. E os amorosos. Análises emocionais levadas ao extremo da tortura arrastam-se pelas horas lentas da noite. Como a noite é rica! A noite é o tempo de não dormir; é o de velar e procurar; de criar mundos.

Demétrio quis prolongar a noite obturando todas as frestas do quarto, para que não entrasse a luz. Luz não entrou. Demétrio gozou da noite plena, continuada, e todos os pensamentos lhe floresciam. Construiu sistemas filosóficos. A escuridão era propícia a teorias políticas. Nenhum crítico foi mais perspicaz do que Demétrio, na literatura e nas artes. Aquela noite era fantástica. Demétrio quis experimentar as sensações de horror, êxtase, humilhação, glória, poder e morte. Morreu, mesmo, no escuro. Tendo sentido a morte em seu interior físico, não pôde mais tirá-la de si. É o único morto, conscientemente morto, de que já ouvi falar nesta vida. A noite é Fantástica.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. Publicado em 1981.