quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

Aluísio de Azevedo (O Macaco Azul)


Ontem, mexendo nos meus papéis velhos, encontrei a seguinte carta:

Caro Senhor.
Escrevo estas palavras possuído do maior desespero. Cada vez menos esperança tenho de alcançar o meu sonho dourado. - O seu macaco azul não me sai um instante do pensamento! É horrível! Nem um verso!
Do amigo infeliz
PAULINO


Não parece um disparate este bilhete?

Pois não é. Ouçam o caso e verão!

Uma noite - isto vai há um bom par de anos - conversava eu com o Artur Barreiros no largo da Mãe do Bispo, a respeito dos últimos versos então publicados pelo conselheiro Otaviano Rosa, quando um sujeito de fraque cor de café com leite, veio a pouco e pouco, aproximando-se de nós e deixou-se ficar a pequena distância, com a mão no queixo, ouvindo atentamente o que conversávamos.

- O Otaviano, sentenciou o Barreiros, o Otaviano faz magníficos versos, lá isso ninguém lhe pode negar! Mas, tem paciência! O Otaviano não é poeta!

Eu sustentava precisamente o contrário afiançando que o aplaudido Otaviano fazia maus versos, tendo aliás uma verdadeira alma de poeta, e poeta inspirado.

O Barreiros replicou, acumulando em abono da sua opinião uma infinidade de argumentos de que já me não lembro.

Eu repliquei firme, citando os alexandrinos errados do conselheiro.

O Barreiros não se deu por vencido e exigiu que eu lhe apontasse alguém no Brasil que soubesse arquitetar alexandrinos melhor que Sua Excelência.

Eu respondi com esta frase esmagadora:

- Quem? Tu!

E acrescentei, dando um piparote na aba do chapéu e segurando o meu contendor, com ambas as mãos pela gola do fraque:

- Queres que te fale com franqueza?... Isto de fazer versos inspirados e bem feitos; ou, por outra: isto de ser ou não ser poeta, depende única e exclusivamente de uma coisa muito simples...

- O que é?

– É ter o segredo da poesia! Se o sujeito está senhor do segredo da poesia, faz, brincando, a quantidade de versos que entender, e todos bons, corretos, fáceis, harmoniosos; e, se o sujeito não tem o segredo, escusa de quebrar a cabeça pode ir cuidar de outro ofício, porque com as musas não arranjará nada que preste! Não és do meu parecer?

- Sim, nesse ponto estamos de pleno acordo, conveio o Barreiros. Tudo está em possuir o segredo!...

E, tomando uma expressão de orgulho concentrado, rematou, abaixando a cabeça e olhando-me por cima das lunetas: - Segredo que qualquer um de nós dois conhece melhor que as palmas da própria mão!...

- Segredo que eu me prezo de possuir, como até hoje ninguém o conseguiu, declarei convicto.

E com esta frase me despedi e separei-me do Artur. Ele tomou para os lados de Botafogo, onde morava, e eu desci pela rua Guarda Velha.

Mal dera sozinho alguns passos, o tal sujeito de fraque cor de café com leite aproximou-se de mim, tocou-me no ombro, e disse-me com suma delicadeza:

- Perdão, cavalheiro! Queria desculpar interrompê-lo. Sei que vai estranhar o que lhe vou dizer, mas...

- Estou às suas ordens. Pode falar.

- É que ainda há pouco quando o senhor conversava com o seu amigo, afirmou a respeito da poesia certa coisa que muito e muito me interessa... Desejo que me explique...

Bonito! pensei eu. É algum parente ou algum admirador do conselheiro Otaviano, que vem tomar-me uma satisfação. Bem feito! Quem me manda a mim ter a língua tão comprida?...

- Entremos aqui no jardim da fábrica, propôs o meu interlocutor; tomaremos um copo de cerveja enquanto o senhor far-me-á o obséquio de esclarecer o ponto em questão.

O tom destas palavras tranquilizou-me em parte. Concordei e fomos assentar-nos em volta de uma mesinha de ferro, defronte de dois chopes, por baixo de um pequeno grupo de palmeiras.

- O senhor, – principiou o sujeito, depois de tomar dois goles do seu copo - declarou ainda há pouco que possui o segredo da poesia... Não é verdade?

Eu olhei para ele muito sério, sem conseguir perceber onde diabo queria o homem chegar.

– Não é verdade? – insistiu com empenho. – Nega que ainda há pouco declarou possuir o segredo dos poetas?

- Gracejo!... Foi puro gracejo de minha parte... respondi, sorrindo modestamente. Aquilo foi para mexer com o Barreiros, que - aqui para nós - na prosa é um purista, mas que a respeito de poesia, não sabe distinguir um alexandrino de um decassílabo. Tanto ele como eu nunca fizemos versos, creia!
 
- Ó senhor! Por quem é não negue! Fale com franqueza!
 
- Mas juro-lhe que estou confessando a verdade...
 
- Não seja egoísta!
 
E o homem chegou a sua cadeira para junto de mim e segurou-me uma das mãos.
 
- Diga! – suplicou ele - Diga por amor de Deus qual é o tal segredo, e conte que, desde esse momento, o senhor terá em mim o seu amigo mais reconhecido e devotado!

- Mas, meu caro senhor, juro-lhe que...

O tipo interrompeu-me, tapando-me a boca com a mão, e exclamou deveras comovido:

- Ah! Se o senhor soubesse, se o senhor pudesse imaginar quanto tenho até hoje sofrido por causa disto!

- Disto o quê? A poesia?

- É verdade! Desde que me entendo, procuro a todo o instante fazer versos!... Mas qual! em vão consumo nessa luta de todos os dias os meus melhores esforços e as minhas mais profundas concentrações!... É inútil! Todavia, creia, senhor, o meu maior desejo, toda a ambição de minha alma, foi sempre, como hoje ainda, compor alguns versos, poucos que fossem, fracos muito embora. Mas, com um milhão de raios! Que fossem versos! E que rimassem! E que estivessem metrificados! E que dissessem alguma coisa!

- E nunca até hoje o conseguiu?... interroguei sinceramente pasmo.

- Nunca! Nunca! Se o metro não sai mau, é a ideia que não presta; e se a ideia é mais ou menos aceitável, em vão procuro a rima! A rima não chega nem à mão de Deus Padre! Ah! Tem sido uma campanha! Uma campanha sem tréguas! Não me farto de ler os mestres; sei de cor o compêndio do Castilho; trago na algibeira o Dicionário de consoantes; e não consigo um soneto, uma estrofe, uma quadra! Foi por isso que pensei cá comigo: "Quem sabe se haverá algum mistério, algum segredo, nisto de fazer versos?... algum segredo, de cuja posse dependa em rigor a faculdade de ser poeta?..." Ah! e o que não daria eu para alcançar semelhante segredo?... Matutava nisto justamente, quando o senhor, conversando com o seu amigo, afirmou que o segredo existe com efeito, e melhor ainda, que o senhor o possui, podendo por conseguinte transmiti-lo adiante!

- Perdão! Perdão! O senhor está enganado, eu...

- Oh! não negue! Não negue por quem é! O senhor tem fechada na mão a minha felicidade! Se não quer que eu enlouqueça confie-me o segredo! Peço-lhe! Suplico-lhe! Dou-lhe em troca a minha vida, se a exige!

- Mas, meu Deus! O senhor está completamente iludido... Não existe semelhante coisa!... Juro-lhe que não existe!

- Não seja mau! Não insista em recusar um obséquio que lhe custa tão pouco e que vale tanto para mim! Bem sei que há de prezar muito o seu segredo mas dou-lhe minha palavra de honra que me conservarei digno dele até à morte! Vamos! declare! Fale! Diga logo o que é, ou nunca mais o largarei! Nunca mais o deixarei tranquilo! Diga ou serei eternamente a sua sombra!

- Ora esta! Como quer que lhe diga que não sei de semelhante segredo?!

- Não me negue por tudo o que o seu coração mais ama neste mundo!

- O senhor tomou a nuvem por Juno! Não compreendeu o sentido de minhas palavras!

- O segredo! O segredo! O segredo!

Perdi a paciência. Ergui-me e exclamei disposto a fugir:

- Quer saber o que mais?! Vá para o diabo que o carregue!

- Espere, senhor! Espere! Ouça-me por amor de Deus!

- Não me aborreça. Ora bolas!

- Hei de persegui-lo até alcançar o segredo!
* * *

E, como de fato, o tal sujeito acompanhou-me logo com tamanha insistência, que eu, para ver-me livre dele, prometi-lhe afinal que lhe havia de revelar o mistério.

No dia seguinte já lá estava o demônio do homem defronte da minha casa e não me largava a porta.

Para o restaurante, para o trabalho, para o teatro, para toda a parte, acompanhava-me aquele implacável fraque cor de café com leite, a pedir-me o segredo por todos os modos, de viva voz, por escrito e até por mímica, de longe.

Eu vivia já nervoso, doente com aquela obsessão. Cheguei a pensar em queixar-me à polícia ou empreender uma viagem.

Ocorreu-me porém, uma ideia feliz, e mal a tive disse ao tipo que estava resolvido a confiar-lhe o segredo.

Ele quase perdeu os sentidos de tão contente que ficou. Marcou-me logo uma entrevista em lugar seguro; e, à hora marcada, lá estávamos os dois.
– Então que é?... perguntou-me o monstro, esfregando as mãos.

- Uma coisa muito simples, segredei-lhe eu. Para qualquer pessoa fazer bons versos, seja quem for, basta-lhe o seguinte: - Não pensar no macaco azul. - Está satisfeito?

- Não pensar no...

- Macaco azul.

- Macaco azul? O que é macaco azul...?

- Pergunta a quem não lhe sabe responder ao certo. Imagine um grande símio azul ferrete, com as pernas e os braços bem compridos, os olhos pequeninos, os dentes muito brancos, e aí tem o senhor o que é o macaco azul.

- Mas que há de comum entre esse mono e a poesia?...

- Tudo, visto que, enquanto o senhor estiver com a ideia no macaco azul, não pode compor um verso!

- Mas eu nunca pensei em semelhante bicho!...

- Parece-lhe, é que às vezes a gente está com ele na cabeça e não dá por isso.

- Pois hoje mesmo vou fazer a experiência... Ora quero ver se desta vez...

- Faça e verá.
* * *

No dia seguinte, o pobre homem entrou-me pela casa como um raio. Vinha furioso.

- Agora, – gritou ele - é que o diabo do bicho não me larga mesmo! É pegar eu na pena, e aí está o maldito a dar-me voltas no miolo!

- Tenha paciência! Espere alerta a ocasião em que ele não lhe venha à ideia e aproveite-a logo para escrever seus versos.

- Ora! Antes o senhor nunca me falasse no tal bicho! Assim, nem só continuo a não fazer versos, como ainda quebro a cabeça de ver se consigo não pensar no demônio do macaco!
* * *

E foi nestas circunstâncias que Paulino me escreveu aquela carta.

Fonte:
Aluísio de Azevedo. Demônios. Publicado em 1895.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

Varal de Trovas n. 548

 

Otto Lara Resende (Mãe, filha, amiga)


Acordei ontem e disse à minha mulher: “Acho que a Clarice morreu”. (Anteontem, tinha mais uma vez combinado com Rubem Braga de ir visitá-la. Tão pertinho, e não fomos.)

Daí a pouco telefonou Evandro Carlos de Andrade: “Clarice morreu”. Levei um choque.

O telefone tocou e fiquei com medo de ser a Clarice, para me passar um pito. Há tempos ela me telefonou: queria vir jantar aqui em casa. Não veio. Há dias, pouco antes de saber-se doente, telefonou para um amigo e começou a chorar. Queria ouvir uma voz humana, disse ela. E tinha sido atendida com um alô tão doce, tão bom, que se pôs a chorar.

Algumas vezes passamos anos sem nos ver. Um sábado dou com ela na Rua Prado Júnior. Saltei do carro e rimos e falamos e nos abraçamos. Tinha comigo um dos meus filhos, então com seis anos. Esquecera-se da Clarice, que não via há muito. “Quem é aquela moça loura?” – me perguntou ele. E antes que eu respondesse: ‘Ela tem dentro dela uma coisa que pula o tempo todo. Ela tem filho?

Uns dois anos depois, alta noite, eu estava batendo papo com Clarice em seu apartamento do Leme e, de repente, ela me deu uma resposta: “Diga ao seu filho que eu posso ser mãe, sim. Posso ser mãe dele. Posso ser sua mãe, Otto. Posso ser mãe da humanidade. Eu sou a mãe da humanidade”. Foi tudo num crescendo avassalador.

Uma vez eu estava aqui mesmo onde me encontro e o telefone tocou. Era de tarde. Clarice me passou a maior espinafração e desligou. Ficamos amuados, achei que ela foi muito injusta comigo. Meses depois, fui visitá-la. Sentado no chão, batemos um papo interminável, maior que a noite. Clarice sabia tudo. “Eu sou burra” – disse ela muitas vezes. Tinha a centelha do gênio. Era um exemplo brutal da singularidade da pessoa humana.

Clarice era Clarice. Nunca, em tempo algum, haverá outra, haverá duas Clarices. Com seu jeito brusco e carinhosíssimo. Amiga insuperável, de generosidade oceânica. E toda mediúnica, adivinhante. Sabia tudo. Depois do incêndio em que se queimou, fomos almoçar com ela, Antonio Callado e eu, e de repente ela explodiu para cima de mim: “Que é que você está me olhando? Quer ver as minhas cicatrizes?” E exibiu as pernas de que ela e nós tentávamos fugir. Mãe da humanidade. Sim, ela podia ser. Podia tudo. Estou destroçado.

Clarice, minha filha. A vida separa, isola. A morte talvez junte, congregue. Clarice, minha amiga de toda a vida. Minha amiga na morte. Felizes os que foram convidados para sempre. Até já, Clarice.

Fonte:
Jornal O Globo. Rio de Janeiro: 10 dez 1977.

Hinos do Brasil (Paraná e Santa Catarina)

HINO DO ESTADO DO PARANÁ

Letra por Domingos Virgílio Nascimento
Melodia por Bento João de Albuquerque Mossurunga


Entre os astros do Cruzeiro,
És o mais belo a fulgir
Paraná! Serás luzeiro!
Avante! Para o porvir!

O teu fulgor de mocidade,
Terra! Tens brilho de alvorada
Rumores de felicidade!
Canções e flores pela estrada.

Entre os astros do Cruzeiro,
És o mais belo a fulgir
Paraná! Serás luzeiro!
Avante! Para o porvir!

Outrora apenas panorama
De campos ermos e florestas
Vibras agora a tua fama
Pelos clarins das grandes festas!

Entre os astros do Cruzeiro,
És o mais belo a fulgir
Paraná! Serás luzeiro!
Avante! Para o porvir!

A glória... A glória... Santuário!
Que o povo aspire e que idolatre-a
E brilharás com brilho vário,
Estrela rútila da Pátria!

Entre os astros do Cruzeiro,
És o mais belo a fulgir
Paraná! Serás luzeiro!
Avante! Para o porvir!

Pela vitória da mais forte,
Lutar! Lutar! Chegada é a hora.
Para o Zenith! Eis o teu norte!
Terra! Já vem rompendo a aurora!

Entre os astros do Cruzeiro,
És o mais belo a fulgir
Paraná! Serás luzeiro!
Avante! Para o porvir!
= = = = = = = = = = = = =

 
HINO DO ESTADO DE SANTA CATARINA
Letra por Horácio Nunes
Melodia por José Brazilício de Souza


Sagremos num hino de estrelas e flores
Num canto sublime de glórias e luz,
As festas que os livres frementes de ardores,
Celebram nas terras gigantes da cruz.

Quebram-se férreas cadeias,
Rojam algemas no chão;
Do povo nas epopeias
Fulge a luz da redenção. (bis)

No céu peregrino da Pátria gigante
Que é berço de glórias e berço de heróis
Levanta-se em ondas de luz deslumbrante,
O sol, Liberdade cercada de sóis.

Pela força do Direito
Pela força da razão,
Cai por terra o preconceito
Levanta-se uma Nação. (bis)

Não mais diferenças de sangues e raças
Não mais regalias sem termos fatais,
A força está toda do povo nas massas,
Irmãos somos todos e todos iguais.

Da liberdade adorada.
No deslumbrante clarão
Banha o povo a fronte ousada
E avigora o coração. (bis)

O povo que é grande mas não vingativo
Que nunca a justiça e o Direito calou,
Com flores e festas deu vida ao cativo,
Com festas e flores o trono esmagou.

Quebrou-se a algema do escravo
E nesta grande Nação
É cada homem um bravo
Cada bravo um cidadão. (bis)

Fontes:
Wikipedia
PR
SC

Trovas enviadas por A. A. de Assis

Jaqueline Machado (O criador e a criatura: Frankestein, de Mary Shelley)

O Criador esboçou o homem à sua semelhança, isto é, a imagem espiritual da paz e do amor.

Sim. Nem sempre a beleza dotada de formas, cortes e molduras possui graciosidade. Os sentimentos, precursores da harmonia fazem florescer sorrisos, olhares doces e alguns gestos nobres, que fazem do ser humano, um sagrado e brilhante tesouro de Deus. O paraíso está instalado no íntimo de cada um. E Deus só enxerga o nosso interior... Mas eis que a cobiça e a soberba, com frequência tornam as pessoas brutas e sem fulgor.

No livro, Frankenstein, da autora Mary Shelley, o cientista cujo nome vai no título da obra, imerso em seus delírios e vaidades exclama: “Fui surpreendido pelo fato de que dentre tantos homens de gênio que assim como eu, dedicam –se à ciência, somente a mim foi reservado um segredo tão surpreendente”. Tal segredo consistia em dar vida a coisas mortas.

Depois de passar meses confinado num laboratório fazendo experimentos com pedaços de pessoas mortas, de suas mãos, ele vê surgir o milagre. Finalmente o Dr. Victor Frankenstein dá vida e sentido a sua criação.

A façanha estava cumprida. Porém, ao se deparar com aquele ser gigante, de pele amarelada, olhos fundos e lábios enegrecidos, seus nervos se ruborizam de pavor e, ele acaba fugindo da própria obra.

Ao brincar de Deus, a Natureza volta-se contra o cientista e o monstro cuja personalidade era um misto de fera e gente, sentindo –se em completo abandono, parte em vingança assassinando vários membros da família do cientista.

Essa história nos remete a refletir sobre a pobre e triste trajetória da humanidade que, dando as costas para a luz, partiu rumo às guerras, aos homicídios, as confecções de bombas, até chegarmos aos avanços científicos atuais, onde o homem revestido em sua tecnologia de ponta está prestes a se auto substituir por uma nação de androides fleumáticos e artificiais em suas ideias emocionais.

Victor, arrependido e imergido nas dores de seu remorso, parte para os Alpes afim de isolar-se do mundo. Mas como toda ação é portadora de múltiplas reações, ele tornara–se uma espécie de reinvenção do mitológico Prometeu que ao roubar a luz de Zeus para dar aos homens, teve que suportar sentir o seu fígado sendo devorado diariamente por sua própria consciência.

Em suma, a mensagem de Mary Shelley consiste no seguinte recado:

“Humanidade, não brinque de Deus. Seja humilde. Cuidado com suas criações! Se tiver que inventar, invente novas formas de amar. Porque somente o amor perpetua a verdadeira felicidade.

Fonte:
Texto enviado pela autora.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

Solange Colombara (Portfólio de Spinas) 16

 

Cecília Meireles (Antologia Poética) = 4 =

ALVA

DEIXEI meus olhos sozinhos
nos degraus da sua porta.
Minha boca anda cantando,
mas todo o mundo está vendo
que a minha vida está morta.

Seu rosto nasceu das ondas
e em sua boca há uma estrela.
Minha mão viveu mil vidas
para uma noite encontrá-la
e noutra noite perdê-la.

Caminhei tantos caminhos,
tanto tempo e não sabia
como era fácil a morte
pela seta do silêncio
no sangue de uma alegria.

Seus olhos andam cobertos
de c9res da primavera.
Pelos muros de seu peito,
durante inúteis vigílias,
desenhei meus sonhos de hera.

Desenho, apenas, do tempo,
cada dia mais profundo,
roteiro do pensamento,
saudade das esperanças
quando se acabar o mundo…
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DESAMPARO

DIGO-TE que podes ficar de olhos fechados sobre o meu peito,
porque uma ondulação maternal de onda eterna
te levará na exata direção do mundo humano.

Mas no equilíbrio do silêncio,
no tempo sem cor e sem número,
pergunta a mim mesmo o lábio do meu pensamento:

quem é que me leva a mim,
que peito nutre a duração desta presença,
que música embala a minha música que te embala,
a que oceano se prende e desprende
a onda da minha vida, em que estás como rosa ou barco...?
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ÊXTASE

DEIXA-TE estar embalado no mar noturno
onde se apaga e acende a salvação.

Deixa-te estar na exalação do sonho sem forma:
em redor do horizonte, vigiam meus braços abertos,
e por cima do céu estão pregados meus olhos, guardando-te.

Deixa-te balançar entre a vida e a morte, sem nenhuma saudade.
Deslizam os planetas, na abundância do tempo que cai.
Nós somos um tênue pólen dos mundos...

Deixa-te estar neste embalo de água geando círculos.
Nem é preciso dormir, para a imaginação desmanchar-se em figuras
ambíguas.

Nem é preciso fazer nada, para se estar na alma de tudo.
Nem é preciso querer mais, que vem de nós um beijo eterno
e afoga a boca da vontade e os seus pedidos…
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GARGALHADA

HOMEM vulgar! Homem de coração mesquinho!
eu te quero ensinar a arte sublime de rir.
Dobra essa orelha grosseira, e escuta
o ritmo e o som da minha gargalhada:

Ah! Ah! Ah! Ah!
Ah! Ah! Ah! Ah!

Não vês?
É preciso jogar por escadas de mármore baixelas de ouro.
Rebentar colares, partir espelhos, quebrar cristais,
vergar a lâmina das espadas e despedaçar estátuas,
destruir as lâmpadas, abater cúpulas,
e atirar para longe os pandeiros e as liras...

O riso magnífico é um trecho dessa música desvairada.

Mas é preciso ter baixelas de ouro,
compreendes?
— e colares, e espelhos, e espadas e estátuas.
E as lâmpadas. Deus do céu!
E os pandeiros ágeis e as liras sonoras e tremulas...

Escuta bem:
Ah! Ah! Ah! Ah!
Ah! Ah! Ah! Ah!

Só de três lugares nasceu até hoje esta música heroica:
do céu que venta,
do mar que dança,
e de mim.
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ORFANDADE

A MENINA de preto ficou morando atrás do tempo,
sentada no banco, debaixo da árvore,
recebendo todo o céu nos grandes olhos admirados.

Alguém passou de manso, com grandes nuvens no vestido,
e parou diante dela, e ela, sem que ninguém falasse,
murmurou: “A MAMÃE MORREU”.

Já ninguém passa mais, e ela não fala mais, também.
O olhar caiu dos seus olhos, e está no chão, com as outras pedras,
escutando na terra aquele dia que não dorme
com as três palavras que ficaram por ali.

Fonte:
Cecília Meirelles. Viagem. Lisboa: Império, 1938.

Eça de Queirós (Um Poeta Lírico)

Aqui está, simplesmente, sem frases e sem ornatos, a história triste do poeta Korriscosso. De todos os poetas líricos de que tenho notícia, é este, certamente, o mais infeliz. Conheci-o em Londres, no hotel de Charing-Cross, uma madrugada regelada de Dezembro. Tinha eu chegado do continente, prostrado por duas horas de Canal da Mancha… Ah! que mar! E era só uma brisa fresca de Noroeste: mas ali, no tombadilho, sob uma capa de oleado de que um marujo me tinha coberto, como se cobre um corpo morto, fustigado da neve e da vaga, oprimido por aquela treva tumultuosa que o paquete ia rompendo aos roncos e aos encontrões — parecia-me um tufão dos mares da China…

Apenas entrei no hotel, gelado e estremunhado, corri ao vasto fogão do peristilo, e ali fiquei, saturando-me daquela paz quente em que a sala estava adormecida, com os olhos beatamente postos na boa brasa escarlate… E foi então que vi aquela figura esguia e longa, já de casaca e gravata branca, que do outro lado da chaminé, de pé, com a taciturna tristeza duma cegonha que cisma, olhava também os carvões ardentes, com um guardanapo no braço. Mas o porteiro tinha rolado a minha bagagem, e eu fui inscrever-me ao bureau. A guarda-livros, tesa e loura, com um perfil antiquado de medalha safada, pousou o seu crochê ao lado da sua chávena de chá, acariciou com um gesto doce os dois bandós louros, assentou corretamente o meu nome, de dedinho no ar, fazendo rebrilhar um diamante, e eu ia subir a vasta escadaria, — quando a figura magra e fatal se dobrou num ângulo, e murmurou-me num inglês silabado:

— Já está servido o almoço das sete…

Mas eu não queria o almoço das sete. Fui dormir.

Mas tarde, já repousado, fresco do banho, quando desci ao restaurante para o lanche, avistei logo, plantado melancolicamente ao pé da larga janela, o indivíduo esguio e triste. A sala estava deserta numa luz parda; os fogões flamejavam; e fora, no silêncio do domingo, nas ruas mudas, a neve caía sem cessar de um céu amarelento e baço. Eu via apenas as costas do homem; mas havia na sua linha magra e um pouco dobrada uma expressão tão evidente de desalento, que me interessei por aquela figura. O cabelo comprido, de tenor, caído sobre a gola da casaca, era, manifestamente, de um meridional; e toda a sua magreza friorenta se encolhia ao aspecto daqueles telhados cobertos de neve, na sensação daquele silêncio lívido… Chamei-o. Quando ele se voltou, a sua fisionomia, que apenas entrevira na véspera, impressionou-me: era um carão longo e triste, muito moreno, de nariz judaico e uma barba curta e frisada, uma barba de Cristo em estampa romântica; a testa era destas que, em boa literatura, se chama, creio eu, fronte: era larga e era lustrosa. Tinha o olhar encovado e vago, com uma indecisão de sonho nadando num fluido enternecido… E que magreza! quando andava, a calça curta torcia-se em torno da canela como pregas de bandeira em torno dum mastro: a casaca tinha dobras de túnica ampla; as duas abas compridas e agudas eram desgraçadamente grotescas. Recebeu a ordem do meu almoço, sem me olhar, num tédio resignado: arrastou-se para o balcão onde o maitre do hotel lia a Bíblia, passou a mão pela testa com um gesto errante e dolente, e disse-lhe numa voz surda:

— Número 307. Duas costeletas. Chá…

O maitre do hotel afastou a Bíblia, inscreveu o menu — e eu acomodei-me à mesa, e abri o volume de Tennyson que trouxera para almoçar comigo — porque, creio que lhes disse, era domingo, dia sem jornais e sem pão fresco. Fora continuava a nevar sobre a cidade muda. A uma mesa distante, um velho cor de tijolo e todo branco de cabelo e de suiças, que acabara de almoçar, dormitava de mãos no ventre, boca aberta, e luneta na ponta do nariz. E o único som vinha da rua, uma voz gemente que a neve abafava mais, uma voz pedinte que à esquina defronte garganteava um salmo… Um domingo de Londres.

Foi o magro que me trouxe o almoço — e apenas ele se aproximou, com o serviço do chá, eu senti logo que aquele volume de Tennyson nas minhas mãos o tinha interessado e impressionado; foi um olhar rápido, gulosamente fixado na página aberta, um estremecimento quase imperceptível, — emoção fugitiva, decerto, porque depois de ter pousado o serviço, rodou sobre os calcanhares e foi plantar-se, melancolicamente, à janela, de olho triste e posto na neve triste. Eu atribuí aquele movimento curioso ao esplendor da encadernação do volume, que eram os Idílios de El-Rei, em marroquim negro, com o escudo de armas de Lançarote do Lago — o pelicano de ouro sobre um mar de sinopla.

Nessa noite parti no expresso para a Escócia, e ainda não tinha passado Iorque, adormecida na sua gravidade episcopal, já me esquecera o criado romanesco do restaurante de Charing-Cross. Foi só daí a um mês, ao voltar a Londres, que entrando no restaurante, e revendo aquela figura lenta e fatal atravessar com um prato de rosbife numa das mãos e na outra um pudim de batata, senti renascer o antigo interesse. E nessa noite mesmo, tive a singular felicidade de saber o seu nome e de entrever um fragmento do seu passado. Era já tarde e eu voltava do Covent-Garden, quando no peristilo do hotel encontrei, majestoso e próspero, o meu amigo Bracolletti.

Não conhecem Bracolletti? A sua presença é formidável; tem amplidão pançuda, o negro cerrado da barba, a lentidão, o cerimonial dum paxá gordo; mas esta ponderosa gravidade turca é temperada, em Bracolletti, pelo sorriso e pelo olhar. Que olhar! Um olhar doce, que me faz lembrar o dos animais da Síria: é o mesmo enternecimento. Parece errar no seu fluido macio a religiosidade meiga das raças que dão os Messias… Mas o sorriso! O sorriso de Bracolletti é a mais completa, a mais perfeita, a mais rica das expressões humanas; há finura, inocência, bonomia, abandono, ironia doce, persuasão, naqueles dois lábios que se descerram e que deixam brilhar um esmalte de dentes de virgem!… Ah! mas também este sorriso é a fortuna de Bracolletti.

Moralmente, Bracolletti é um hábil. Nasceu em Esmirna de pais gregos; é tudo o que ele revela: de resto, quando se lhe pergunta pelo seu passado, o bom grego rola um momento a cabeça de ombro a ombro, esconde sob as pálpebras cerradas com bonomia o seu olho maometano, desabrocha o sorriso duma doçura de tentar abelhas e murmura, como afogado em bondade e em enternecimento:

— Eh! mon Dieu! Eh! mon Dieu!…

Nada mais. Parece, porém, que viajou, — porque conhece o Peru, a Crimeia, o Cabo da Boa Esperança, os países exóticos — tão bem como Regent-Street: mas é evidente para todos que a sua existência não foi tecida, como a dos vulgares aventureiros do Levante, de ouro e estopa, de esplendores e pelintrices. É um gordo e, portanto, um prudente: o seu magnífico solitário nunca deixou de lhe brilhar no dedo, nenhum frio jamais o surpreendeu sem uma peliça de dois mil francos, e nunca deixa de ganhar, todas as semanas, no Fraternal Clube, de que é um membro querido, dez libras ao whist. É um forte.

Mas tem uma debilidade. É singularmente guloso de rapariguinhas de doze a catorze anos, gosta delas magrinhas, muito louras, e com o hábito de praguejar. Coleciona-as pelos bairros pobres de Londres, com método. Instala-as em casa, e ali as tem, como passarinhos na gaiola metendo-lhe a papinha no bico, ouvindo-as palrar todo baboso, animando-as a que lhe roubem os xelins da algibeira, gozando o desenvolvimento dos vícios naquelas flores da lama de Londres, pondo-lhes ao alcance as garrafas de gin para que os anjinhos se embebedem; — e quando alguma, excitada, de álcool, de cabelo ao vento e face acesa, o injuria, o arrepela, baba obscenidades, — o bom Bracolletti encruzado no sofá, de mãos beatamente cruzadas na pança, o olhar afogado em êxtase, murmura no seu italiano da costa síria:

— Piccolina! Gentilleta!

Querido Bracolletti! Foi, realmente, com prazer, que o abracei, nessa noite, em Charing-Cross: e como nos não víamos há muito, fomos cear juntos ao restaurante. O criado triste lá estava no seu balcão, curvado sobre o Journal des Débats. E apenas Bracolletti apareceu, na sua majestade de obeso, o homem estendeu-lhe silenciosamente a mão; foi um aperto de mãos solene, enternecido e sincero.

Bom Deus, eram amigos! Arrebatei Bracolletti para o fundo da sala, e vibrando de curiosidade, interroguei-o com sofreguidão. Quis primeiro o nome do homem.

— Chame-se Korriscosso — disse-me Bracolletti, grave.

Quis depois a sua história. Mas Bracolletti como os deuses da Ática que, nos seus embaraços no mundo, se recolhiam à sua nuvem. Bracolletti refugiou-se na sua vaga reticência.

— Eh! mon Dieu!… Eh! mon Dieu!…

— Não, não, Bracolletti. Vejamos. Quero-lhe a história… Aquela face fatal e byroniana deve ter uma história…

Bracolletti então tomou todo o ar cândido que lhe permitem a sua pança e as suas barbas — e confessou-me, deixando cair as frases às gotas, que tinham viajado ambos na Bulgária e no Montenegro… Korriscosso foi seu secretário… Boa letra… Tempos difíceis… Eh! mon Dieu!…

— De onde é ele ?

Bracolletti respondeu sem hesitar, baixando a voz, com gesto repassado de desconsideração:

— É um negro de Atenas.

O meu interesse sumiu-se com a água que a areia absorve. Quando se tem viajado no oriente e nas escalas do Levante, adquiri-se facilmente o hábito, talvez injusto, de suspeitar do grego: aos primeiros que se veem, sobre tudo tendo uma educação universitária e clássica, o entusiasmo acende-se um pouco, pensa-se em Alcibíades e em Platão, nas glórias duma raça estética e livre, e perfilam-se na imaginação as linhas augustas do Pártenon. Mas, depois de os ter frequentado, às mesas redondas e nos tombadilhos das Messageries, e principalmente depois de ter escutado a lenda de velhacaria que eles têm deixado desde Esmirna até Tunes, os outros que se veem provocam, apenas, estes movimentos: abotoar rapidamente o casaco, cruzar fortemente os braços sobre a cadeia do relógio, e aguçar o intelecto para rechaçar a escroqueria.

A causa desta reputação funesta é que a gente grega, que emigra para as escalas do Levante, é uma plebe torpe, parte pirata e parte lacaia, bando de rapina astuto e perverso. A verdade é que apenas soube Korriscosso um grego, lembrei-me logo que o meu belo volume de Tennyson, na minha última estada em Charing-Cross, me desaparecera do quarto, e recordei o olhar de gula e de presa que cravara nele Korriscosso… Era um bandido!

E durante a ceia não falamos mais de Korriscosso. Serviu-nos outro criado, rubro, honesto e são. O lúgubre Korriscosso não se afastou do balcão, abismado no Journal des Débats.

Nessa noite aconteceu, ao recolher-me ao meu quarto, que me perdi… O hotel está atulhado, e eu tinha sido alojado naqueles altos de Charing-Cross, numa complicação de corredores, escadas, recantos, ângulos, onde é quase necessário roteiro e bússola.

De castiçal na mão, penetrei num passadiço onde corria um bafo morno de viela mal arejada. As portas aí não tinham números, mas pequenos cartões colados onde estavam inscritos nomes: John, Smith, Charlie, Willie… Enfim, eram evidentemente as habitações dos criados. De uma porta aberta saía a claridade de um bico de gás; adiantei-me, e vi logo Korriscosso, ainda de casaca, sentado a uma mesa alastrada de papéis, de testa pendida sobre a mão, escrevendo.

— Pode-me indicar o caminho para o número 508? — balbuciei.

Ele ergueu para mim um olhar estremunhado e enevoado; parecia ressurgir de muito longe, de um outro universo; batia as pálpebras, repetindo:

— 508? 508?…

Foi então que eu avistei, sobre a mesa, entre papéis, colarinhos sujos e um rosário — o meu volume de Tennyson! Ele viu o meu olhar, o bandido! E acusou-se todo numa vermelhidão que lhe inundou a face chupada. O meu primeiro movimento foi não reconhecer o livro: como era um movimento bom, e obedecendo logo à moral superior do mestre Talleyrand, reprimi-o; apontando o volume com um dedo severo, um dedo de Providência irritada, disse-lhe:

— É o meu Tennyson…

Não sei que resposta ele tartamudeou, porque eu, apiedado, retomado também pelo interesse que me dava aquela figura picaresca de grego sentimental, acrescentei num tom repassado de perdão e de justificação:

— Grande poeta, não é verdade? Que lhe pareceu? Tenho a certeza que se entusiasmou…

Korriscosso corou mais. Mas não era o despeito humilhado do salteador surpreendido, era, julguei eu, a vergonha de ver a sua inteligência, o seu gosto poético adivinhados — e de ter no corpo a casaca coçada de criado de restaurante. Não respondeu. Mas as páginas do volume, que eu abri, responderam por ele; a brancura das margens largas desaparecia sob uma rede de comentários a lápis: Sublime! Grandioso! Divino!

— Palavras lançadas numa letra convulsiva, num tremor de mão, agitada por uma sensibilidade vibrante…

No entanto Korriscosso permanecia de pé, respeitoso, culpado, de cabeça baixa, com o laço da gravata branca fugindo para o cangote. Pobre Korriscosso! Compadeci-me daquela atitude, revelando todo um passado sem sorte, tantas tristezas de dependência… Lembrei-me que nada impressiona o homem do Levante, como um gesto de drama e de palco; estendi-lhe ambas as mãos num movimento à Talma, e disse-lhe:

— Eu também sou poeta!…

Esta frase extraordinária pareceria grotesca e impudente a um homem do Norte; o levantino viu logo nela a expansão de uma alma irmã. Porque, não lhes disse? O que Korriscosso estava escrevendo, numa tira de papel, eram estrofes: era uma ode.

Daí a pouco, com a porta fechada, Korriscosso contava-me a sua história - ou antes fragmentos, anedotas desirmanadas da sua biografia. É tão triste, que a condenso. De resto, havia na sua narração lacunas de anos; - e eu não posso reconstituir com lógica e sequência a história deste sentimental. Tudo é vago e suspeito.

Nasceu com efeito em Atenas; seu pai parece que era carregador no Pireu. Aos 18 anos, Korriscosso servia de criado a um médico, e nos intervalos do serviço frequentava a Universidade de Atenas; estas coisas são frequentes as menores, como ele dizia. Formou-se em leis: isto habilitou-o, mais tarde, em tempos difíceis, a ser um intérprete de hotel. Desse tempo datam as suas primeiras elegias num semanário lírico, intitulado Ecos da Ática. A literatura levou-o diretamente à política e às ambições parlamentares. Uma paixão, uma crise patética, um marido brutal, ameaças de morte, forçam-no a expatriar-se. Viajou na Bulgária, foi em Salônica empregado numa sucursal do Banco Otomano, remeteu endechas dolorosas a um jornal da província - a Trombeta da Argólida. Aqui há uma dessas lacunas, um buraco negro na sua história. Reaparece em Atenas, com fato novo, liberal e deputado.

Este período de glória foi breve, mas suficiente para o por em evidência; a sua palavra colorida, poética, recamada de imagens engenhosas e lustrosas, encantou Atenas. Tinha o segredo de florir, como ele dizia, os terrenos mais áridos, duma discussão de imposto ou de viação fazia saltar éclogas de Teócrito. Em Atenas este talento leva ao poder: Korriscosso era indicado para gerir uma alta administração do Estado, o ministério, porém, e com ele a maioria de que Korriscosso era o tenor querido, caíram, sumiram-se, sem lógica constitucional, num destes súbitos desabamentos políticos tão comuns na Grécia, em que os governos se aluem, como as casas em Atenas — sem motivo. Falta de base, decrepitude de materiais e de individualidades… Tudo tende para o pó num solo de ruínas…

Nova lacuna, novo mergulho obscuro na história de Korriscosso…

Volta à superfície, membro de um clube republicano de Atenas, pede num jornal a emancipação da Polônia, e a Grécia governada por um concílio de gênios. Publica então os seus Suspiros da Trácia. Tem outro romance de coração… E enfim — e isto disse-me, sem explicações, — é obrigado a refugiar-se em Inglaterra. Depois de tentar em Londres várias posições, coloca-se no restaurante de Charing-Cross.

— É um porto de abrigo! - disse-lhe eu, apertando-lhe a mão.

Ele sorriu com amargura. Era decerto um porto de abrigo, e vantajoso. É bem alimentado; as gorjetas são razoáveis; tem um velho colchão de molas, mas as delicadezas da sua alma são, a todo o momento, dolorosamente feridas…

Dias atribulados, dias crucificados, os daquele poeta lírico, forçado a distribuir numa sala, a burgueses estabelecidos e glutões, costeletas e copos de cerveja! Não é a dependência que o aflige; a sua alma de grego não é particularmente ávida de liberdade, basta-lhe que o patrão seja cortês. E, como ele me disse, é lhe grato reconhecer que os fregueses de Charing-Cross nunca lhe pedem a mostarda ou o queijo sem dizer “if you please”; e quando saem, ao passar por ele, levam dois dedos à aba do chapéu, isto satisfaz a dignidade de Korriscosso.

Mas o que o tortura é o contato constante com o alimento. Se ele fosse um guarda-livros dum banqueiro, primeiro caixeiro dum armazém de sedas… Nisso há uma sombra de poesia — os milhões que se revolvem, as frotas mercante, a brutal força do ouro, ou então dispor ricamente os estofos, os cortes de seda, fazer correr a luz nas ondulações das moiras, dar ao veludo as molezas da linha e da prega…. Mas num restaurante como se pode exercer o gosto, a originalidade artística, o instinto da cor, do efeito, do drama - a partir nacos de rosbife ou de presunto de Iorque?!… Depois, como ele disse, dar a comer, fornecer alimento, é servir exclusivamente a pança, a tripa, a baixa necessidade material: no restaurante, o ventre é Deus: a alma fica fora, com o chapéu que se pendura no cabide ou com o rolo de jornais que se deixou no bolso do paletó.

E as convivências, e a falta de conversação! Nunca se voltarem para ele senão para lhe pedirem salame ou sardinhas de Nantes! Nunca abrir os seus lábios, de onde pendia o parlamento de Atenas, senão para perguntar: - Mais pão? Mais bife? — Esta privação de eloquência lhe é dolorosa.

Além disso o serviço impede-lhe o trabalho. Korriscosso compõe de memória; quatro passeios pelo quarto, um repelão ao cabelo, e a ode sai-lhe harmoniosa e doce… Mas a interrupção glutona da voz do freguês, pedindo nutrição, é fatal a esta maneira de trabalhar. Às vezes, encostado a uma janela, de guardanapo no braço, Korriscosso está fazendo uma elegia: são tudo luares, roupagens alvas de virgens pálidas, horizontes celestes, flores de alma dolorida… É feliz; está remontado aos céus poéticos, nas planícies azuladas onde os sonhos acampam, galopando de estrela em estrela…. De repente, uma grossa voz faminta berra de um canto:

— Bife e batatas!

Ai! As aladas fantasias batem o voo como pombas espavoridas! E aí vem o infeliz Korriscosso, precipitado dos cimos ideais, de ombros vergados e as abas da casaca balançando, perguntar com o sorriso lívido:

— Passado ou meio cru?

Ah! é um amargo destino!

— Mas — perguntei-lhe eu — por que não deixa este covil, este templo do ventre?

Ele deixou pender a sua bela cabeça de poeta. E disse-me a razão que o prende: disse-me, quase chorando nos seus braços, com nó da gravata branca no cangote: Korriscosso ama.

Ama uma Fanny, criada de todo o serviço em Charing-Cross. Ama-a desde o primeiro dia em que entrou no hotel: amou-a no momento em que a viu lavando as escadas de pedra, com os braços roliços nus, e os cabelos louros, os fatais cabelos louros, deste louro que entontece os meridionais, cabelos ricos, de um tom de cobre, dum tom de ouro-mate, torcendo-se numa trança de deusa. E depois a carnação, uma carnação de inglesa de Yorkshire — leite e rosas…

E o que Korriscosso tem sofrido! Toda a sua dor exala-a em odes — que passa a limpo ao Domingo, dia de repouso e dia do Senhor! Leu-as. E eu vi quanto a paixão pode perturbar um ser nervoso: que ferocidade de linguagem, que lances de desespero, que gritos de alma dilacerada arremessados dali, daqueles altos de Charing-Cross, para a mudez do céu frio! É que Korriscosso tem ciúmes. A desgraçada Fanny ignora aquele poeta a seu lado, aquele delicado, aquele sentimental, e ama um policial. Ama um policial, um colosso, um Alcides, uma montanha de carne eriçada duma floresta de barbas, com o peito como o flanco de um couraçado, com pernas como fortalezas normandas. Este Polifemo, como diz Korriscosso, tem, ordinariamente, serviço no Strand; e a pobre Fanny passa o seu dia a espreitá-lo de um postigo, dos altos do hotel.

Todas as suas economias as gasta em quartilhos de gin, de brandy, de genebra, que à noite lhe leva em copinhos debaixo do avental. Mantém-no fiel pelo álcool; o monstro, plantado enormemente a uma esquina, recebe em silêncio o copo, atira-o de um golpe às faces tenebrosas, arrota cavamente, passa a mão cabeluda pela barba de Hércules, e segue taciturnamente, sem um obrigado, sem um amo-te, batendo o lajeado com a vastidão das suas solas sonoras. A pobre Fanny admira-o babosa… E talvez nesse momento, à outra esquina, o magro Korriscosso, fazendo no nevoeiro um esguio relevo de poste telegráfico, soluce com a face magra entre as mãos transparentes.

Pobre Korriscosso! Se ele ao menos a pudesse comover… Mas quê! Ela despreza-lhe o corpo de tísico triste; e a alma não lha compreende…Não que Fanny seja inacessível a sentimentos ardentes, expressos em linguagem melodiosa. Mas Korriscosso só pode escrever as suas elegias na sua língua materna… E Fanny não compreende grego… E Korriscosso é só um grande homem — em grego…

Quando desci ao meu quarto, deixei-o soluçando sobre o catre. Tenho-o visto depois, outras vezes, ao passar em Londres. Está mais magro, mais fatal, mais mirrado de zelos, mais curvado quando se move pelo restaurante com a travessa do rosbife, mais exaltado no seu lirismo… Sempre que ele me serve dou-lhe um selim de gorjeta: e depois, ao retirar, aperto-lhe sinceramente a mão.

Fonte:
Eça de Queirós. Contos. 1902. Publicado originalmente em 1880 em O Atlântico.

domingo, 13 de fevereiro de 2022

Versejando 101

 

Humberto de Campos (O Sapateiro)

Sempre que as mulheres realizam uma nova conquista política, obtendo novos lugares, novos postos de relevo na vida civil, surgem de toda a parte os argumentos sobre a sua suposta inferioridade mental, como se fosse possível contestar com teorias aquilo que é contrariado pela evidência incontrastável dos fatos. Forte, ou fraca, auxiliada pelos deuses ou pelo demônio, o certo é que a mulher se tem manifestado, por mais de uma vez, superior ao homem, pela agudeza, pela perspicácia, e, não menos, pelo bom senso com que resolve determinados problemas da vida.

Um caso que me vem à memória toda a vez que se levantam discussões sobre essa matéria debatidíssima, é o que ocorreu, há anos, em Baixa Verde, localidade sertaneja do Rio Grande do Norte, e que me foi contado, há seis ou oito anos, no Senado, pelo atual ministro da Marinha, o ilustre Sr. desembargador Ferreira Chaves.

Andava o Sr. Manoel Lourenço pelos quarenta anos de vida, dos quais vinte e cinco haviam sido consumidos em calçar de chinela e tamancos a décima parte da população local, quando lhe apareceu na oficina, para encomendar um sapatinho de cordavão, a risonha Clotildinha, meninota de quatorze anos, mais ou menos, pertencente a uma família modesta, mas honrada, residente no lugar. Respeitoso, o Manoel Lourenço ajoelhou-se no chão, marcou no tijolo, com dois riscos de faca, o tamanho do pé, apanhou-lhe a altura com uma tira de papel dobrado, e, não sabe como, ao erguer-se, estava inteiramente transfigurado de coração.

À noite, o pobre sapateiro não pode dormir. Mal fechava os olhos, e surgia-lhe no pensamento a perna morena da Clotildinha, a emergir do mistério da saia curta, de chita encamada, como se fosse o caule duplo de uma rosa em botão, cujo perfume lhe ficava eternamente vedado. E tanto o mísero se preocupou, aflito, com o caso, que, um mês depois, estavam casados, com todos os sacramentos e todas as bênçãos, a menina e o sapateiro da Baixa Verde.

Só depois de casado, porém, foi que o Sr. Manoel Lourenço verificou a barbaridade que cometera. Menina ainda, a Clotildinha podia ser, pela sua idade, pelas suas maneiras e, principalmente, pelo seu físico, sua filha e, até - quem sabe? - sua neta. E era pensando nisso que a mantinha a seu lado carinhosamente, paternalmente, tratando-a como quem trata uma criança.

Quem não gostava desses modos era, porém, a Clotildinha. O Manoel Lourenço tinha ido buscá-la à casa materna para mulher, para companheira, para sócia da sua vida e do seu destino, era natural, portanto, que a tratasse como tal, fazendo-lhe participar da existência em comum, e, até, dos negócios comerciais da sua oficina.

Certa manhã, havia o Manoel Lourenço acordado cedo e, como de costume, chamou a menina, ordenando-lhe que se sentasse a seu lado, na beira da rede, para conversarem. A moça sentou-se, e conversavam os dois, como pai e filha, com os olhos pregados no teto, quando viram, de repente, correr um camundongo, um ratinho de meia polegada, o qual, passando entre os caibros e as telhas, se foi perder, em cima, nos buracos da cumeeira. Ao ver o rato, Clotildinha virou-se, de súbito, para o marido, e pediu, dengosa:

- Sabes, Manoel, que é que eu queria?

- Que é? - indagou o esposo, divertindo-se com aquela alegria.

- Eu queria que tu matasses aquele rato e fizesses um par de sapatos para mim!

O sapateiro achou graça na infantilidade da moça, e retrucou, rindo:

- Que tolice, Clotilde! Tu não vês que o couro daquele camundongo não dá para um par de sapatos?

A moça encarou-o com as faces em brasa, e, pondo a cabeça no seu peito, gemeu, na ânsia de possuir o seu sapato:

- Dá, Manoel, dá!

E ao seu ouvido, com a voz tremula:

- Olha, Manoel, o couro... espicha!

E abraçou-o, chorando.

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925.

Baú de Trovas XLII


Um sacrilégio me pesa
na oração de cada dia:
— é que mais me agrada a reza
porque diz: "Ave, Maria..."
ABÍLIO LESSA
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Quando, cheio de alegria,
te encontrei, jamais supus
que naquele instante havia
encontrado a minha cruz...
ADALBERTO DUTRA DE REZENDE
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FItando-te o corpo esguio
e o rosto lindo, não nego:
somente agora avalio
a desventura de um cego!
ADELINO MOREIRA MARQUES
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Para esquecer-te, outras amo,
mas vejo, por meu castigo,
que qualquer outra que eu ame
parece sempre contigo.
ADELMAR TAVARES
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Por um beijo a minha vida!
Que te quero como um louco!
Perdoa se peço tanto
e te ofereço tão pouco!...
ALBANO LOPES DE ALMEIDA
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A visão do teu retrato
confesso que me faz mal:
aumenta mais a vontade
de rever o original...
ALBERTINA CASTRO BORGES
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Se não me fere a desgraça,
por divina recompensa;
quem te fez filha da graça,
fez de mim filho da crença!
ALFREDO BENVENUTO DA SILVA
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Minha nau abarrotada
cortando os mares avança,
e a própria carga pesada
é toda a sua esperança!...
ALÍRIO RAMOS
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Eu só queria que a vida
me fizesse acreditar
que a ventura já perdida
nunca mais pode voltar...
ALOYSIO DE MOURA
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Muito confiei na Inocência
de uns olhos sentimentais;
hoje me acusa a consciência
como inocente demais...
ALVES JÚNIOR
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Vou dar-lhe um beijo amoroso,
mas, por favor, não se oponha!
— Se beijar é vergonhoso,
quero morrer de vergonha!
ANA MARIA MOTTA
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Debaixo da nossa cama,
que tu deixaste vazia,
o meu chinelo reclama
o teu chinelo, Maria!
ANIS MURAD
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Não pode guardar segredo
a timidez do olhar mudo.
Um olhar furtado a medo,
nada dizendo, diz tudo!
ANTÍDIO DE AZEVEDO
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Oh! Que esquisita Ironia!
Infelizmente é verdade;
o amor de apenas um dia
deixou-me eterna saudade...
APARÍCIO FERNANDES
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Saudade, casa gostosa,
velha casa dos meus pais;
no jardim, só tinha rosa,
mas lá dentro, amor demais!
ARTHUR BASAGLIA
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Uma saudosa lembrança
que o tempo não desvirtua:
a noite, a música, a dança...
Eu mudei, mas não a lua.
EDUARDO DOMINGOS BOTTALLO
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Este ardor por quem se quer
e esta ânsia de imensidade
tem como causa a mulher
e como efeito a saudade.
EUGÊNIO MORATO
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Não houve nem despedida...
Foi de repente o abandono!
Perdi meu chão (triste vida)
e até hoje perco o sono!
GIVA DA ROCHA
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Eu ouço a voz da experiência
na humildade que ficou
dos retalhos da existência
que o passado costurou,
HÉLIO CASTRO
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Tirem-me tudo que tenho,
neguem-me todo o valor!
Numa só coisa me empenho:
a de humilde Trovador!
LUIZ OTÁVIO
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Paixões -eu digo e sustento -
pela inconstância da forma
são dunas de sentimento
que o tempo varre e transforma!...
MARIA HELENA DE 0. COSTA
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No jardim de rima a prosa
do meu peito sonhador,
és o cravo e eu a rosa
na primavera do amor...
MARIA NELSÍ SALES DIAS
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No turbilhão dos desejos
nasceu este amor risonho!
Batizei-o com meus beijos,
na catedral do meu sonho!
OLY B. GAMA
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Está na família, eu creio,
nossa esperança futura
de alcançar, o que é um anseio,
a paz... que o mundo procura!
THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA
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Passa, fingindo não ver-me.
Passo como indiferente.
Só ela sabe o que eu sinto..
só eu sei o que ela sente...
VULMAR COELHO
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Vista seda ou popeline,
seja Amélia ou seja Inês,
toda mulher se define
no dia em que diz: "Talvez!.. .
WALDIR NEVES
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Quando estamos abraçados
não há mais belo momento.. .
Somos dois sonhos ligados
pela mão de um sentimento.
WALTER GOMES DA SILVA
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Quando, manhã bem cedinho,
abrindo os olhos desperto,
através do teu carinho,
vejo logo um céu aberto!
WALTER SIQUEIRA
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Às vezes, nesse desgosto,
entregue à meditação,
eu chego a sentir teu rosto
repousando em minha mão!
ZÁLKIND PIATIGORSKY

Fontes:
Aparício Fernandes. A Trova no Brasil: história e antologia. São Cristovão/RJ: Artenova, 1972.
Informativo da UBT São Paulo. n. 493 – agosto 2019.

Lendas Indígenas do Paraná - 8 (Foz do Iguaçu, Guaratuba e Londrina)


Foz do Iguaçu  

A Lenda das Cataratas


Existem duas lendas sobre as Cataratas do Iguaçu. A primeira diz que os índios Caigangues, que habitavam as margens dos rios Iguaçu e Paraná, acreditavam que o mundo era governado por M’Boy, ou Mbá, um deus que tinha a forma de uma serpente e era filho de Tupã. O cacique dessa tribo, chamado Igobi, tinha uma filha, Naipi, tão bonita que as águas do rio paravam quando a jovem nelas se mirava.

Devido à sua beleza, Naipi foi consagrada ao deus M’Boy, passando a viver somente para o seu culto. Havia, porém, entre os Caigangues, um jovem guerreiro chamado Tarobá, que ao ver Naipi por ela se apaixonou. No dia em que foi anunciada a festa da consagração da bela índia, enquanto o cacique e o pajé bebiam, Tarobá fugiu com a linda Naipi, numa piroga que seguiu rio abaixo, arrastada pela correnteza.

Quando M’Boy soube da fuga de Naipi e Tarobá ficou furioso. Penetrou, então, nas entranhas da terra e retorcendo o corpo produziu uma enorme fenda, que formou uma catarata gigantesca. Envolvida pelas águas desta imensa cachoeira, a piroga dos índios fugitivos caiu de grande altura, desaparecendo para sempre.

Diz a lenda que Naipi foi transformada em uma das rochas centrais das cataratas, perpetuamente fustigada pelas águas revoltas. E Tarobá foi convertido em uma árvore, situada à beira do abismo e inclinada sobre a garganta do rio. Debaixo dessa árvore acha-se a entrada da gruta, de onde o monstro vingativo vigia, eternamente, as suas duas vítimas.

A segunda lenda diz que quando o deus Mbá morreu, Jacira, chorando sem parar, sentou-se sobre uma grande rocha de onde escorria um filete de água. Este filete foi aumentando com suas lágrimas, cada vez mais, até se transformar em cascatas. Assim nasceram as Cataratas do Iguaçu: das lágrimas de Jacira. E dizem que se você apurar os ouvidos escutará uma voz vinda das águas, chamando:

– Mbá, Mbá, Mbá...
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Guaratuba

A Lenda do Brejatuba

Itacunhatã, assim é chamada uma rocha que forma o conjunto do morro do Cristo. Nome originário dos índios tinguis, que habitaram o litoral. Itacunhatã era um guerreiro famoso e perdido de amores por Juracê, da família dos Carijós.

Num passeio no alto do Brejatuba, Itacunhatã achou que havia conquistado Juracê. Ao envolvê-la em seus braços, Juracê esquivou-se e saiu correndo. Quando, de repente, caiu do alto do morro, sendo engolida por uma onda. Itacunhatã atirou-se para salvá-la, mas as ondas recuaram, ele foi de encontro às pedras e acabou morrendo.

O mar arrependeu-se e trouxe a jovem de volta para ser salva por Itacunhatã, que já não podia mais salvá-la. E assim o mar tem feito, trazendo sempre Juracê em suas ondas, para que um dia seja pega e salva por Itacunhatã
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Londrina

Guairacá


Guairacá, lobo dos campos e das águas, era o cacique corajoso, aquele que defendia os  guaranis e a terra com denodo e bravura, desde o baixo Iguaçu até o Paranapanema e do Tibagi ao Paranazão. Era uma região ambicionada notadamente pelos castelhanos, que já haviam dominado os rio da Prata e Paraguai. Os castelhanos sempre quiseram invadir essas terras. Mas sempre enfrentaram os bravos de Guairacá, dos cem mil arcos vencedores.

Um outro guerreiro de grande valor o sucedeu quando de sua morte e comandou os guerreiros no agitado período daquele pedaço do Brasil: Mbiaçá. Numa homenagem póstuma, ele chamou aquela região de Guairacá para que todos se lembrassem daquele que rechaçara as tentativas dos homens estranhos. Foi este fato que, por muitos e muitos anos, frente a toda a sorte de inimigos impediu que a terra e a gente fossem avassaladas pelos estrangeiros, castelhanos e portugueses, que abreviaram seu nome para Guairá, tendo sido cantado em prosa e verso:

“Andava Guairacá mui valeroso,
Astuto, sábio, artero e mui valiente
Compuzo una terrible palizada
De aguas y comidas abastada.

El fuerte fué con mana fabricado
A los lados con muchos torreones,
Estaba a todas partes resguardado
Con sus trincheras, fosas y bastiones.
Sin duda Satanás ha revelado
A Guairacá el modelo y invenciones.”

Fonte:
Renato Augusto Carneiro Jr (coordenador). Lendas e Contos Populares do Paraná. Curitiba : Secretaria de Estado da Cultura , 2005.

sábado, 12 de fevereiro de 2022

Adega de Versos 70: Antonio Manoel Abreu Sardenberg

 

Silmar Böhrer (Croniquinha) - 45 -

Verão é uma palavra curtinha, pequena, que quer dizer "algo de bom". Surgiu do latim "veris", que significa bom tempo.

Assim, desde priscos anos as pessoas esperavam chegar o verão para respirar dias mais alegres, mais soltos, à vontade.

Manhãzinhas, abrimos a janela, esticamos os braços e abraçamos os trinta graus de um janeiro calorento. Alguns reclamam, mas certamente a maioria de nós gosta mais dos dias em que pode andar à vontade em termos de vestimenta e alimentos leves.

O verão é a estação da leveza. Acordamos leves, trabalhamos leves, comemos leves, dormimos leves, sonhamos levezinho, acordamos levemente.

Preguiça pesada.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Leandro Bertoldo Silva (Maternidade)

Maternidade era uma das palavras esquecidas no seu dicionário. Era fácil demais para algumas pessoas pensarem nisso, não para ela, de corpo perfeito e vida em liberdade. Por isso, seu ventre crescido estava na contramão de todos e recordava sua rejeição. Daquele invólucro perfeito, ficariam cicatrizes, marcas que sobreporiam ao efemeramente físico e atingiriam sonhos interrompidos.

Dejanira era mulher do mundo. Esse era o resguardo que nunca pensou em abandonar, nem sequer substituí-lo por um momento que fosse. Sentia-se sem vida, apesar da vida que crescia dentro de si. E, agora, mesmo sendo duas, teimava em sua solidão. O tempo passava, mas não levava a angústia que aumentava a cada dia que a circunscrição de seu estado apontava. Já dividia seu alimento, mesmo sem sua permissão, como seria dividir o resto? Era o que pensava desolada e inquieta. Só havia um jeito: acabar logo com aquilo. Porém, o feto crescido já era uma criança e, antes mesmo de pensar em qualquer outra coisa, de seu corpo redondo começou a emergir um líquido que, ao rebentar da bolsa, jorrou junto com uma sensação indefinível que a urgência do momento não permitiu reflexões. Elas só vieram quando, já com a criança liberta deitada em seu peito em meio aos médicos, começou a cantarolar uma cantiga de ninar no mesmo momento em que seus seios saciavam o filho que calava a ouvir.

Seus olhos recém-maternos se iluminaram, e o coração, que antes rejeitava, agora acalentava e se punha a descobrir uma desconhecida impressão felina e protetora.

A mulher do mundo sem fronteiras não sabia se o choro convulso que irrompia naquele instante era amor ou remorso, talvez fossem os dois. Aquele momento eternizado na música que embalava sua criança fazia pensar: afinal, é a mãe quem dá à luz um filho ou é o filho que faz nascer a mãe?

Fonte:
Leandro Bertoldo Silva. Entrelinhas contos mínimos. Disponível na Árvore das Letras. 9 maio 2021. Texto enviado pelo autor.

Nic Cardeal (Poemas Avulsos)

COMO DESENHAR O VENTO

Antes do vento
você deve sentar-se à beira
tomar gosto por coisas voantes
saber distinguir o barulho de asas ao longe
cuidar para não colocar os pés sobre as miudezas do reino
então olhar o horizonte devagar
bem devagar
de um modo tão específico
que seja possível traçar as inquietudes do sopro.

– Sim, todo vento é uma soma incalculável de sopros,
cada sopro
uma ondulação da vida feita de sopros,
quem sabe de algum deus
[mas não te enganes, não o teu Deus, nem o meu Deus!]

Depois do vento
você deve sentar-se à beira
tomar tento por movimentos de dentro
saber conhecer de nuvens
e divagar
bem devagar
de um modo sereno
como se fora a rotina das borboletas
levando consigo, em saltitantes caminhos,
a lembrança da lentidão das lagartas.

Ainda que o vento não chegue tão cedo
você deve sentar-se à beira
e ouvir o sopro
– o suave murmúrio de um deus
a dizer que viver
não passa de um mero intervalo
entre alguns dos teus melhores infinitos.

Só então terás desenhado o vento.
O sopro.
À beira do teu tempo.
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ENIGMA

Depois dos olhos
– espelhos ou janelas d'alma –
haverei de restar-me inteira
ainda que desfeita a casa da pele que se faz de minha efêmera morada?

Depois do corpo
em que limites do tempo estarei erguida?
Restará identidade, ego, persona?
Como sairei da existência, depois de finda a carne e caídos os ossos de volta à terra?

Depois desse palco
haverá continuidade do ato?
Quem escreverá novo script, roteiro?
Em que cenário atuarei o retorno aos planos das possibilidades dos mundos?
Saberei resgatar minha alma destituída do que em mim transformou-se em ausência?
Haverá presença, certeza, consciência?

Depois do silêncio
serei eu da mesma essência do vento, da água, do sopro,
da luz que, mesmo adormecida, prossegue iluminando a escuridão da semente depois de mim parida?
De que adianta a vida sussurrando rouca à procura de razão
se não aprendemos nada sobre as passagens estreitas que nos espreitam, inquietas,
como oráculos misteriosos, soletrando-nos segredos de outros mundos,
fazendo-nos quase enigmas de nós mesmos
à procura da melhor revelação?

– Será a imaterialidade o melhor lugar de se habitar?
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TÃO INÚTIL QUANTO AS DISTÂNCIAS

Estender os dedos para tocar os céus, sonhar que se está tocando os céus,
como uma oração sem planejamentos, sem palavras.

Tocar os céus com a alma, em súbito desejo de esperança,
como a criança que sonha um sonho intensamente vívido,
porque vívida é a saudade que se alonga entre os olhos de quem fica.

Não adianta dizer que isso também passa,
que tudo passa,
se você ainda não percebeu,
apenas nós somos os passantes
– Você sabe por que passamos?

Porque vivemos fora do tempo
– ou no passado,
escancarando baús de recordações cortantes,
ou no futuro,
angustiando pretensos subjuntivos inexperientes.

Os pássaros não se importam em passar pela vida,
apenas vivem cada dia
como se fora um único e constante voo em direção ao Maior.

As abelhas colhem o néctar para o mel e,
enquanto exercem seu ofício,
não se preocupam com o mel
– por que se afligir com o que ainda não existe?

As estrelas que cintilam no céu já partiram
– somente sua luz ainda está a nos tocar os olhos –
colhemos lembranças tardias de sua imensidão.

Os gafanhotos vivem cerca de míseros oito meses
e, por não o saberem,
nada os incomoda além do momento contido no instante.

– Por que te preocupas com a distância entre teus dedos e a esperança?
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Nic Cardeal (Eunice Maria Cardeal), catarinense radicada em Curitiba/PR, graduada em Direito, é autora dos livros “Sede de céu – poemas” (Editora Penalux, 2019) e “Costurando ventanias – uns contos e outras crônicas” (Editora Penalux, 2021). Publicou textos em 46 antologias e coletâneas, no Brasil, na Alemanha e em Portugal. Faz parte do movimento “Mulherio das Letras” desde a sua criação, em 2017. Seus escritos estão compilados na página do Facebook, “Escrevo porque sou rascunho”. Possui textos publicados em diversas revistas e blogs eletrônicos. Também publica, como autora e colaboradora, na revista eletrônica ‘Revista Feminina de Arte Contemporânea Ser MulherArte’.

Fonte:
Enviado por Isabel Furini.

Samuel da Costa (Pessoas são como flores)



- Lembre se Lili meu anjo, às vezes pessoas parecem flores! - diz Rosa Sousa Andrade sentada revirando seu jardim diante da imponente mansão dos Sousa Andrade.

- Como assim Dona Rosa? - respondeu um tanto assustada a jovem que estava atrás e, em pé da sexagenária, Lilibete que se aproximou bem devagar. E não compreendeu como a velha senhora, um pouco surda e quase cega, poderá notar sua presença.

- São bonitas, frágeis, breves e às vezes espinhosas meu anjo! Então filha, quando se forma? - pergunta a elegante senhora, em tom maternal, sem se levantar, pois ainda estava sentada a cuidar das plantas.

- Fim deste ano, pretendo acabar a faculdade. Ainda esse ano Dona Rosa! - diz a jovem incisiva e desafiadora.

Por mais que se esforçasse, Lilibete não poderia imaginar como a senhora requintada a sua frente um dia foi amiga de infância de sua avó. Elas brincavam neste mesmo jardim quando crianças. Os Caetanos há séculos servem os Sousa Andrade, tempos que remontam a escravidão negra.

E que de uma forma ou outra este laço se mantivesse. Lilibete olhava para Dona Rosa que por momento algum não se deu o trabalho de levantar ou mesmo olhar para ela enquanto conversavam. E não poderia deixar de pensar, na frase irônica proferida pela velha senhora: ‘’- Ás vezes pessoas parecem flores!’’
Logo Lilibete conclui o óbvio, aquela velha senhora conservadora como era, mas parecia ter parado no tempo: sim, as pessoas são frágeis, selvagens, imprevisíveis, doces, breves e também cheias de espinhos. Que nossa passagem por aqui é breve, um lampejo apenas, neste ponto as duas mulheres tão diferentes entre si concordavam. E Rosa de Sousa Andrade trajando seu macacão cor-de-rosa com seu tom de voz deixava bem claro para Lilibete: Aquela mulher a detestava.

- O que veio fazer aqui menina?

- O Gustavo está me esperando!

- Sabe que não gosto desse tipo de coisa na minha casa menina, e não gosto mesmo!

Aquele namoro entre o neto da poderosa Rosa de Sousa Andrade com Lilibete Caetano era mais que um ‘’caso amoroso’’ entre as duas famílias. Histórias recheadas de romances proibidos, filhos ilegítimos e amores velados, e pura hipocrisia de uma cidade provinciana e interiorana. Gerando um ciclo de amor e ódio que parecia não ter fim, entre as duas famílias. Coisas que remetem ao tempo em que pessoas vindas da África eram vendidas em mercados públicos. Ao se reconhecerem e mais tarde se conhecerem na faculdade de direito Gustavo e Lilibete começarem e terminarem o namoro por várias vezes. Dona Rosa sempre atenta no que acontece na família, tinha motivos para se preocupar. Não bastará ver o neto Gustavo se envolver e, mais tarde presidir o Centro Acadêmico de Direito, com suas greves e passeatas. Agora esse caso do neto com uma negra filha da empregada, e pior de tudo uma Caetano. Aquilo era demais para a velha e conservadora Rosa Sousa Andrade. Não bastará o escândalo ficar muito sepultado, mas ainda vivo na cabeça de algumas pessoas. O escândalo velado que Rosa e Adélia eram irmãs por parte de pai, tais coisas vez ou outra surgiam e ressurgiam.

Para Rosa aquilo mais parecia um pesadelo sem fim, uma maldição que pairava entre os Sousa Andrade que os unia aos Caetano. Uma união que ela jurava não atingir sua geração e gerações futuras, e mandar os filhos estudarem fora da cidade e até no estrangeiro, por exemplo, não foi o bastante.

- Nós vamos nos casar Dona Rosa! E não há nada que a senhora possa fazer a respeito!

Diz a Lilibete incisiva. Ambos não sabiam, mas ao se casaram mesmo anos depois, mais que uma união entre famílias aquilo fora um acerto de contas com o passado. E sim pessoas são como flores como disse Rosa Sousa Andrade: breves, delicadas e insistentes no dom de renovar à vida.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

Daniel Maurício (Poética) 21

 

Sammis Reachers (Flashes: Pequenos toques de humor Ácido)

O motorista era o Jaime Cigano.

A mulher entra no veículo e, sem nem cumprimentar o profissional, indaga:

- Motorista, de que lado do ônibus fica o sol?

- Do lado de fora, senhora. Tenha um bom dia.
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Motorista Cocoroca, linha 730 (Charitas x Castelo), O chofer já cansado, devido ao engarrafamento quilométrico no centro do Rio. Tudo parado, em todas as direções: Minutos se passam e o veículo só consegue andar dez metros. Ele imobilizado na fila do meio, corre uma transeunte e bate com toda força na porta. Cocoroca, mesmo fora de ponto e sob o risco de tomar uma multa, abre. A mulher coloca um pé na escada e dispara:

- Oi, o trânsito está engarrafado?

Cocoroca não aguenta:

- Se ele estivesse dentro de uma garrafa... Mas me parece que congestionado ele está. Não lhe parece?
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O mesmo Cocoroca, a mesma linha. Uma chuva torrencial desabando, nosso amigo na última viagem para em frente à  Central do Brasil, para o embarque de passageiros. Ao abrir a porta, escuta esta:

- Quanto custa esse ônibus?

- Não sei... Isso só o dono da empresa pode lhe informar, pois foi ele quem comprou.
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Motorista Fernando e cobrador Silvio, carro cheio, ponto cheio, de repente uma mulher empaca na porta e pergunta, já berrando:

- Ô motorista, esse ônibus é o 49?

- É sim.

- E você vai direto nessa rua aqui? - disse ela, apontando para a frente, por sinal a única rua que havia.

- Não senhora, direto não. Eu vou parando.
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Motorista Hélio "Lindão":

- Seu motorista, esse ônibus pode levar meu cachorrinho?

- Aí do lado tá escrito "carrocinha"?
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Mesmo Hélio:

- Passa no shopping?

- Passa sim.

- Mas passa na porta?

- Eu nunca tentei, mas se tirar as escadas eu tento.

- Cavalo!

Fonte:
Ron Letta (Sammis Reachers). Rodorisos: histórias hilariantes do dia-a-dia dos Rodoviários. São Gonçalo: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

Rita Mourão (Poemas Escolhidos) = 5 =

DESCOMPASSO


Enquanto o tempo vagueia,
reinvento palavras que me abasteçam.
Trago em minha bagagem a solidão dos barcos vazios,
o marulhar do silêncio que só sabe dialogar com minha alma.
Viver é uma travessia arriscada, me aproximo de uma terceira margem,
Ela existe, ou é apenas uma simbologia?
Indago por mim. Só o ontem responde.
O tempo e eu, nunca estamos afinados.
Fui me perdendo quando me vi à deriva.
A vida me fez barco, o tempo tirou-me os remos.
E à revelia dos meus quereres, eu, esvaziada de mim,
adentro a densa neblina da terceira margem..
" Eu, rio abaixo, rio afora, rio adentro".
Eu sem adornos de adjetivos.
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EPIFANIA


Tenho mais afinidade com o silêncio,
ele me fala de eternidade e a eternidade me atrai.
É entre vírgulas, interrogações e reticências
que aposso da epifania do meu existir,
milagre de uma nova anunciação.
O silêncio e eu sempre estamos alinhados.
As respostas que procuro
se encontram nas dobras da solidão
e a solidão só entende a linguagem do silêncio.
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INCÓGNITA

Toco-me e não me sinto.
O tempo me fez estranha de mim.
Perdi-me quando rasguei meus sonhos
e me fiz solidão.

Metade de mim é saudade,
a outra metade incógnita.
Será que um dia me encontrarei
pelos labirintos da vida?
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OUSANDO

Tenho os meus desertos íntimos,
recantos de miragens, reflexos de securas.
Enquanto o mundo se abastece de complexidades
eu me abasteço de ousadia.
Haverá sempre um verbo que me impulsiona,
não me satisfaço com tempos passivos,
quero a regência dos vocábulos fortes,
quero a profundidade de todas as auroras.
Descubro-me soletrando a palavra esperança
e me vejo às margens de um recomeço
porque viver é reaver distâncias
e poetar é um jeito de manipular lonjuras.
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RESGATE

Abre-te palavra, derrama sobre mim
a seiva que te faz viva.
Faça nascer sobre meu corpo o legado de outras vozes
que souberam reinventar o amor.
Quero-te plena,
alongando os substantivos que me circundam,
resgatando as palavras de amor que aos anos se subjugaram,.
Quero-te sobre a haste de um renovo completo,
sem que haja procuras recriadas.
Quero-te assim, densa, profunda, amante,
varando os desertos de um tempo de securas.
Quero-te, renascida, pronta para resgatar princípios.

Fonte:
Rita Mourão. Maria, Marias. Ribeirão Preto/SP: Ed. da autora, 2021.
Livro enviado pela poetisa