quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

Afrânio Peixoto (Trovas Populares Brasileiras) – 5

Atenção: Na época da publicação deste livro (1919), ainda não havia a normalização da trova para rimar o 1. com o 3. Verso, sendo obrigatório apenas o 2. Com o 4. São trovas populares coletadas por Afrânio Peixoto.
 

A flor da quaresma abre,
logo depois cai no chão...
São assim os meus desejos,
vem chegando, lá se vão.
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A flor de minha esperança
expandiu perfume santo.
Hoje triste se retrata
na lagoa de meu pranto.
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As nuvens pretas são chuva,
as brancas são ventania,
não se me acaba a esperança
de te lograr algum dia.
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Botei o preto por gala,
o branco por bizarria,
o verde por esperança
de ainda gozar-te um dia.
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Coração que bate, bate,
quando não puder, descansa.
O alívio de quem ama
é viver só de esperança.
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Correu no céu uma estrela:
Deus te salve zelação!
Corresse eu para os teus braços,
junto do teu coração.
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Depois de um dia vem outro,
depois de outro, outro vem...
Não te entregues ao primeiro,
espera o que te convém.
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Dia e noite, céus e terra,
pela sorte a gente chama ...
Eu não! Só tenho um desejo:
– É dormir na tua cama.
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Dos teus braços para dentro
não admito ninguém.
Espera, tem paciência,
que eu mesmo serei teu bem.
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Garça branca, cor da neve,
plumosa bem como arminho,
voa, voa, vem depressa
pousar aqui no meu ninho.
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Lá em cima daquele morro
corre água de beber.
Ou mais cedo ou mais tarde
hei de em teus braços morrer.
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Manjericão quer dizer
uma esperança perdida.
Quem não goza o que deseja
melhor é perder a vida.
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Meu amor caiu doente,
eu também adoeci.
Eu queria tratar dele,
para ele tratar de mim.
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O desejo em peito triste,
é flor no sertão nascida,
que vinga, floresce e morre
sem se tornar conhecida.
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O mar se embalança e cai
nos alvos seios da praia:
Deus queira, de um tombo assim
que nos teus braços eu caia.
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O verde é cor de esperança,
prometida a quem quer bem.
Nosso dia não é chegado,
não desespere, meu bem!
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O verde diz esperança,
esperança tenho em Deus,
inda pretendo passar
meus braços por entre os teus.
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Plantei um pé de pimenta
pra comer, quando for dando.
Tenho uma menina em casa,
que pra mim estou criando.
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Quem espera, desespera,
quem espera, sempre alcança.
Não há maior alívio
do que viver de esperança.
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Quem me dera estar agora
onde está meu pensamento!
De Porto Alegre para fora,
de Cacheira para dentro.
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Quem me dera ter agora
um cavalinho de vento,
para dar um galopinho
onde está meu pensamento.
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Quem não bota água no cravo,
como quer que o cravo pegue?
Não me dando as esperanças.
como quer que eu viva alegre ?
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Se eu soubesse com certeza
que tu me tinhas amor,
caía nesses teus braços
como o sereno na flor.
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Tudo muda neste mundo,
só meu mal não tem mudança.
O bem de ontem é saudade,
o bem de hoje é esperança.
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Uma esperança, algum dia,
consoladora, nos diz
que entre os dias desgraçados
lá vem um dia feliz.
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Um desencontro no mundo
me desanima a esperança:
Ver cobiçar quanto foge,
desprezar quanto se alcança.
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Vai-se um ano e vem o outro,
pensas tu que desespero?
Ama a quem for de teu gosto,
que amor de dois eu não quero.
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Você diz que hei de ser sua,
pois tem querer e poder...
Isto não basta, benzinho,
faça antes por merecer!

Fonte:
Afrânio Peixoto (seleção). Trovas populares brasileiras. RJ: Francisco Alves, 1919.

Carlos Drummond de Andrade (Trem de Contos) Vagões 82, 83 e 84


GOVERNAR


Os garotos da rua resolveram brincar de governo, escolheram o presidente e pediram-lhe que governasse para o bem de todos.

— Pois não — aceitou Martim. — Daqui por diante vocês farão meus exercícios escolares e eu assino. Clóvis e mais dois de vocês formarão a minha segurança. Januário será meu ministro da Fazenda e pagará o meu lanche.

— Com que dinheiro? — atalhou Januário.

— Cada um de vocês contribuirá com um cruzeiro por dia para a caixinha do governo.

— E que é que nós lucramos com isso? — perguntaram em coro.

— Lucram a certeza de que têm um bom presidente. Eu separo as brigas, distribuo tarefas, trato de igual para igual com os professores. Vocês obedecem, democraticamente.

— Assim não vale. O presidente deve ser nosso servidor, ou pelo menos saber que todos somos iguais a ele. Queremos vantagens.

— Eu sou o presidente e não posso ser igual a vocês, que são presididos. Se exigirem coisas de mim, serão multados e perderão o direito de participar da minha comitiva nas festas. Pensam que ser presidente é moleza? Já estou sentindo como este cargo é cheio de espinhos.

Foi deposto, e dissolvida a República.
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HISTÓRIA MAL CONTADA

A história de Chapeuzinho Vermelho sempre me pareceu mal contada, e não há esperança de se conhecer exatamente o que se passou entre ela, a avozinha e o lobo.

Começa que Chapeuzinho jamais chegaria depois do lobo à choupana da avozinha. Ela vencera na escola o campeonato infantil de corrida a pé, e normalmente não andava a passo, mas com ligeireza de lebre.

Por sua vez, o lobo se queixava de dores reumáticas, e foi isto, justamente, que fez Chapeuzinho condoer-se dele.

Estes são pormenores da versão da história, ouvida por tia Nicota, no começo do século, em Macaé. Segundo ali se dizia, Chapeuzinho e o lobo fizeram boa liga e resolveram casar-se. Ela estava persuadida de que o lobo era um príncipe encantado, e que o casamento o faria voltar ao estado natural. Seriam felizes, teriam gêmeos. A avozinha opôs-se ao enlace, e houve na choupana uma cena desagradável entre os três. O lobo não era absolutamente príncipe, e Chapeuzinho, unindo-se a ele, transformou-se em loba perfeita, que há tempos ainda uivava à noite, nas cercanias de Macaé.
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IDÍLIO FUNESTO

A maior tristeza de Gregório era não entender a língua dos sapos brasileiros, que ele sabia ser muito rica em expressões idiomáticas, e particularmente aberta a efusões amorosas.

“Se eu aprendesse um pouco das finezas da língua deles”, lastimava-se, “seria o mais afortunado dos amantes, além de brilhar em tertúlias, pelo pitoresco de minha conversa. Mas dos sapos sei quase nada, e as mulheres não parecem dispostas a conceder-me seus favores por esse mínimo que adquiri passando noites em claro à margem do brejo.”

Um sapo condoeu-se de sua ignorância específica, e prometeu dar-lhe aulas intensivas por duas semanas, findas as quais Gregório se tornaria conversador cintilante e conquistador irresistível.

Mas o sapo não nascera para professor, e tudo se turvou na cabeça do aluno, que aprendeu apenas a coaxar, sem modulação nem sintaxe. Ganhou apelido de “Sapinho” porque era de porte reduzido. Renunciou à convivência humana e foi morar em frente ao brejo. Numa noite de luar, uma rã escutou sua algaravia, apaixonou-se por ele, e foram viver juntos. Os sapos, indignados, mataram-no. A rã admite que fez mal em se deixar seduzir por erros de linguagem: imaginara estar ouvindo um português mavioso.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. 1981.

Estante de Livros (Margot, de Alfred de Musset)


Numa bela narrativa, o famoso novelista francês Alfred de Musset (Paris/França, 1810 – 1857) retrata com perfeição como as diferenças de cultura e de classe determinam o desfecho de uma história de amor na França do século XIX.

Em Margot, do francês Alfred de Musset, uma velha senhora vive tranquilamente em Paris no começo do século XIX com sua dama de companhia, que na verdade revela-se uma ladra. Depois de tentar substituí-la sem sucesso por duas vezes, a Senhora Doradour manda buscar então a filha dos zeladores de sua casa de campo, uma jovem de 16 anos que é o orgulho da família Piédeleu. Graciosa e ingênua, a jovem Margot troca então o interior pela efervescente Paris.

Na mansão da senhora Doradour, tudo para ela é deslumbramento, dos espelhos do quarto à banheira de água morna enfeitada de grifos dourados. Mas principalmente Gaston, filho da dona da casa, um oficial dos Hussardos que passa ali alguns dias de folga e que, ao parar diante da janela, a surpreende no banho, despertando nela ilusões pueris. Descobrindo-se subitamente apaixonada, a jovem conhece então as agruras de um amor impossibilitado pelas diferenças sociais na França do século XIX. Sem ter seus sentimentos correspondidos, a inocente Margot torna-se protagonista de uma história de arrebatamento e frustração.

A obra confirma a versatilidade do estilo de Musset, que, nela, atinge momentos de inigualável sutileza.

Acompanhamos nessa curta história, a imagem do autor de como são as jovens: inocentes e sonhadoras, que se apaixonam profundamente e que são capazes de morrer, se não correspondidas.

Para época, é uma imagem muito comum das garotas, apesar de muito estereotipada. O livro também explora as relações sociais da época, principalmente as diferenças entre classes sociais.

É um romance muito bem escrito, com uma leitura fluida. Mas o melhor do livro é o final: realmente surpreendente.

Musset por vezes indica alguns pensamentos filosóficos:

"É que a sabedoria é um trabalho, e para ser apenas razoável, temos de dar um monte de problemas, enquanto que para bobagens, você só tem que deixar ir. "

Uma análise profunda do psicológico despertar do amor em Margot, ao pensar na "alegria de uma família".

"Sentar-se entre os seus oito irmãos, ela brilhou e se alegraram a vista, como um milho em um buquê de trigo. "

terça-feira, 27 de dezembro de 2022

José Fabiano (Muros de Trovas) 04

 

Silmar Böhrer (Croniquinha) 70


Domingo? Oba!

Acordar sem pensamentos, com preguiceiras, alma flutuando. Abrir os olhos sem buscas de nada, sorriso para o Outro no espelho, sentir-se  apenas.

Café bebido, olhares primeiros, primeiras conversas. Crescentes. Risadinhas, risadas, gargalhadas. Elas liberam, combatem, aliviam,  desestressam. Sem custo.

Alguém me contou que risadas são um remédio e tanto.

E saber-se que tudo isso não seria possível se não estivéssemos aqui com otimismo, alacridade, olhares para o alto, respirando fundo.

É a essência? É o sumo? Nem pensei...

Mas se estiver no bojo do pote, deve ser misturado aos mistérios do dia a dia.

Carregar as baterias com luz solar, ares puros, ouvindo os pássaros, o joão-de-barro se desmanchando em cantos, os beija-flores bebericando, olhar o céu azul, contemplar...

Domingo é para desligar ?

Escondo a prancheta, abandono as ideias, guardo a caneta.

Ave, domingo !

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Cecy Barbosa Campos (Ensaio de carnaval)


Fevereiro sombrio na mente de Turíbio. Os dias de sol e as noites quentes não conseguiam clarear as ideias que lhe vinham à cabeça ou esquentar a friagem que lhe ia na alma.

Nem parecia que o Turíbio tinha nascido num dia de Carnaval, bem no meio da folia. A mãe se recusou a abandonar o desfile por causa do neném que estava pra nascer, e foi aquele corre-corre na hora do samba, com a cabrocha parida e o Turíbio berrando pra alegria de todos os amigos da escola.

Cresceu no samba e até compositor ele era. No ano passado, foi o campeão, ganhou o concurso do samba enredo de parceria com um mais letrado, que arrumou as palavras e pôs no papel a inspiração do Turíbio, pois, além da música, a inspiração era dele.

Quieto, parado, alguma coisa havia com o Turíbio. Cadê aquela animação, aquela alegria que contagiava, que se espalhava por todo lugar em que o moço chegava?

Ele andava zonzo, ninguém sabia, mas andava zonzo, com os ouvidos cheios da risada cantante de Clodomira, que, rindo, se esquivava e ia pra longe, nem sempre querendo os afagos do "nego" que em outro tempo era o seu xodó. E, zonzo, lembrava dos carinhos da mulata e dos seus recuos, e sua risada, num riso crescente, virava deboche nos ouvidos de Turíbio e punha loucura na sua cabeça.

Já nâo era de hoje que nos ensaios da escola sentia que os requebros de Clodomira não eram pra ele. Não eram pra ele o gingado sensual, o sorriso rasgado, o olhar cobiçoso. Companheira de tantos carnavais, desde o primeiro em que tinham resolvido dividir o barraco, os trapos, as misérias e as gostosuras da vida, era cheia de dengos, não esquecendo de preparar um quitute caprichado e a batida preferida do seu nego, o que cada vez mais prendia o Turíbio.

Entretanto, agora... Andava com um jeito desligado, um olhar debochado, que punham Turíbio roendo ciúme, criando maldade, odiando e querendo a sua Clodô.

— Mulata boa, a danada... Mas traição nâo aturo. Acabo com ela, com o outro e comigo, que vida sem ela não é vida... la pensando confuso, seguindo com os olhos a cabrocha faceira, esquecido do samba que jorrava na quadra, pasmaceira nas pernas dormentes, sem sangue, que o sangue subia à cabeça a cada requebro de sua Clodô.

À frente, ela seguia sem ver nem sentir, sem lembrar do seu nego, das juras trocadas, de nada lembrava, senão do seu samba e do novo amado, que em passos treinados driblava com ela no meio da quadra.

O cheiro suado e a linguiça frita aguçavam os sentidos do negro Turíbio, que via e ouvia, num mesmo compasso, as risadas e o corpo da sua Clodô, que ia e que vinha, num crescendo de ânsia, jogado pro lado daquele malandro, novato no morro, mas já estimado e parte da ala a desfilar na Avenida.

— Que é isso, compadre?! Esquecendo do samba? Tá doente?

Notou, espantado, o amigo do peito, que viu o sem graça do Turíbio, parado no meio da quadra, sem passo e sem fala. Porém, o samba não deixa parar pra saber e, seguindo o batuque, perdeu, outra vez, o Turíbio de vista, que depois noutra volta veria e levava prá pinga a fim de animar.

Quem viu primeiro foi a mulata Clodô. Atrás da barraca de linguiça frita, no meio do abraço do seu novo amado, envolto em fumaça e faca na mão. Tempo não teve pra gritar ou correr. Foi só gemer e cair com o amante, num tombo só, num só sangue, enquanto pro lado caía o Turíbio. Vida pra ele não mais queria, pois tudo se fo¬ ra com o amor de Clodô. Com olhos vidrados, banhado em seu sangue, ainda ouviu os acordes do samba que a turma tocava.

Era o seu samba, a sua vitória que, no ano passado, empolgara aos amigos e à Clodomira, que requebrava o dia inteiro, repetindo o refrão. E, a ouvir o seu samba, Turíbio se foi, com um sorriso feliz, lembrando da glória.

— Acudam! Socorro! Desgraça!

Gritou alguém que chegou àquele canto do terreno baldio, que servia de banheiro ou refúgio para os amantes cansados do samba. Logo, a multidão correu, deixando a quadra. Compreendendo a tragédia, após um momento de impacto, todos repetiram em coro o refrão do samba do Turíbio, em homenagem ao amigo querido.

A Rádio Patrulha, subindo o morro, acabou com o ensaio que já havia acabado.

Fonte:
Cecy Barbosa Campos. Recortes de Vida. Varginha/MG: Ed. Alba, 2009.
Livro enviado pela autora.

Dorothy Jansson Moretti (Folhas Esparsas) 2


DE VOLTA ÀS RAÍZES


Viajando por caminhos olvidados,
Eunice, deslumbrada, se reclina
às janelas de tempos já passados
que a luz do seu talento descortina.

E vêm à tona vultos embuçados
viver de novo as sagas da campina,
atravessando escarpas e valados,
ao sol, à chuva, ao vento ou à neblina.

Nessa volta saudosa até as raízes,
ela nos mostra, em gama de matizes,
o que foi nossa terra e nossa gente.

E nos envolve tanto em seu relato
que nos sentimos parte do retrato,
quais fantasmas roubados ao presente.
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GRAÇAS À MINHA CIDADE

Itararé que amo tanto,
que me viste, pequenina,
da brisa ao meigo acalanto,
a correr pela campina,

ou de teus rios num recanto,
me envolver na espuma fina,
ver o sol no eterno encanto
ir descansar na colina...

Segui sempre te querendo,
e extasiada estou vivendo
a sublime maravilha

de entre sonhos tão antigos,
ter IRMÃOS nos meus amigos,
e me chamares de FILHA!

(Declamada pela autora ao receber seu título de CIDADÃ ITARAREENSE)
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GRUTA DAS ANDORINHAS

Um cataclismo parte o chão rochoso
E o rio se atira para o novo leito;
em paredões de granito limoso,
corre o Itararé, rude e violento.

Agora para, retomando alento,
na gruta escura, no silêncio umbroso,
mas logo segue aos saltos, barulhento,
e some, além, esquivo e misterioso,

À tarde, as andorinhas, em revoadas,
descem, doidas, quais flechas disparadas,
buscando nas cavernas o degredo.

E o mistério do rio... sempre inviolável...
Nada se sabe do abismo insondável.
Só as andorinhas... mas guardam segredo.
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RIO VERDE

Mudaste quase nada... eu mudei tanto, tanto,
que nem sabes quem. sou, se me encontras agora;
mas tu conservas sempre o teu eterno encanto,
és ainda o meu doce e lindo rio de outrora.

Ao sabor da água verde e da calma sonora,
eu flutuava, feliz, ao teu meigo acalanto,
e os sonhos que afagava, então, a mil por hora,
vinham estimular-me o cérebro, entretanto.

És sempre o mesmo rio, as encantadas águas
Em que segues levando as delícias e as mágoas,
rolando ao mesmo tom, mesma tranquilidade.


Não mudaste... eu mudei... porém, se na memória,
revives, como eu, daquele tempo a história,
hás de estar, como estou... morrendo de saudade.
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RUA SÃO PEDRO

Nossa rua comprida, tão bonita...
Sobre a raiz da árvore eu sentava,
e quanta vez corri, chorosa e aflita,
quando um “bicho peludo” me queimava!

Bonito quando as tropas de boiada
ou de mulas, que vinham lá do Sul,
passavam lentas, em fila espaçada,
erguendo poeira para o céu azul!

Meus pais e alguns amigos, na calçada,
divertidos, a olhar a criançada,
sorviam goles de bom chimarrão.

E à noite, em roda, sob a luz da lua,
nosso riso inocente enchia a rua,
na cadência feliz de uma canção!
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Fonte:
Dorothy Jansson Moretti. Folhas esparsas: sonetos. Itu/SP: Ottoni, 2006.
Livro enviado pela poetisa.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

Isabel Furini (Poema 37): Moradia

 

Antonio Brás Constante (Objetos perdidos e bem esquecidos)


Geralmente as coisas perdidas pelas pessoas causam-lhes verdadeiro pânico. Perder um relógio, um anel ou mesmo uma carteira traz transtornos e sofrimentos aos seus donos, que por um azar do destino, ficam sem seus utensílios que, ou eram muito úteis, ou muito importantes ou muito caros.

Existem todos os tipos de acontecimentos que nos levam a perder algo. Um esbarrão, ou mesmo um bolso folgado, um furo na calça ou bolsa. Há quem consiga perder as chaves da casa (dentro de casa), os óculos ou mesmo o endereço anotado com todo cuidado.

Outros chegam ao extremo de esquecerem onde colocaram os lembretes que deveriam informar-lhes exatamente das coisas que não poderiam esquecer. Porém, nem tudo que é perdido se deseja reencontrar, um bom exemplo são as famigeradas balas perdidas, que vivem soltas e voando pelo ar a procura de alguma parede, árvore ou corpo para se alojar.

Essas balas em geral, nunca acham o caminho de volta para comungarem com o “indivíduo” que as disparou, ao contrário, se afastam dele o máximo possível, encontrando idosos e crianças entre outras vítimas inocentes, que acabam se transformando em moradia temporária para elas. Ainda assim, tem gente que insiste em dizer que não quer falar sobre o assunto, para eles esta história de balas perdidas entra por um ouvido e sai pelo outro. Esse é um tipo de atração realmente fatal (e sem a cruzada de pernas da Sharon Stone), para quem por acidente encontra estes minúsculos projéteis perdidos e mortais.

Uma das causas mais frequentes para a perda de pertences é a bebedeira. Através dela as pessoas perdem a noção do ridículo, o caminho de casa, o casamento, ou algumas vezes o celular. Por exemplo, fulano acorda às onze horas da manhã, com uma bruta dor de cabeça. A última coisa de que se recorda é que pediu o quinto uísque em um bar perto do serviço, não lembrando mais o que lhe motivou a ir beber, mas ao verificar seus pertences descobre que seu celular sumiu. Imediatamente liga para o número de seu telefone:

- Alô? Aqui é o Clovis. Olha este celular aí é meu. Onde posso pegá-lo?

- Sim, claro. Aqui é da boate super alegre “pepino feliz”, realmente estávamos atrás do dono deste aparelho, que entre outras coisas, fez um belíssimo strip-tease em cima do balcão de bebidas, antes de sair acompanhado de dois belos rapazes vestidos de marinheiros. Era o senhor?

- Err... Não... Desculpe, foi engano.

Realmente, existem coisas que devem permanecer perdidas, e as lembranças de uma bebedeira, são um bom exemplo…
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Nilto Maciel (O Sonho da Princesa)


Fugiu do castelo montada num cavalo branco. A noite parecia a mais escura de todas. E se bruxas saíssem em seu encalço? E se vampiros sedentos de sangue virgem a esperassem nos atalhos? E se o dragão, aquele imenso monstro, aparecesse? Pela estrada, porém, seu pai, o rei, todo dia cavalgava. E nunca o atacaram seres maus. Se o atacassem, seriam dizimados por sua furiosa espada. E pelas armas dos leais soldados.

Havia, porém, outro perigo. Se o cavalo deixasse a estrada e se metesse na floresta? Não, aquele cavalo, o predileto do rei, não se atreveria a cometer tamanha insensatez. Nem ele, nem outro. Nem mesmo cavalos cegos.

Reclusa no castelo, a princesa imaginava reinos distantes e, sobretudo, seu príncipe encantado. Quando o conhecesse, imediatamente se casaria com ele. Teriam muitos filhos e viveriam felizes para sempre. No reino do faz-de-conta.

No meio da noite, a princesa sentiu sono e fadiga. Freou o animal e apeou. A estrada parecia sem fim. O reino de seu pai abarcava o mundo. E onde ficava o reino onde vivia o príncipe de seus sonhos? Olhou para o céu. As estrelas a protegeriam das trevas. As nuvens deslizaram mais e a vaga luz da Lua chegou até aquele perdido pedaço do reino. Que maravilha! A princesa ensaiou passos de dança. Rodou, rodopiou, sorrindo. Parou, cambaleou, olhando para o animal. E teve um grande susto. Havia um chifre no meio da testa dele.

Era um licorne.

Fonte:
Nilto Maciel. Pescoço de Girafa na Poeira. Brasília/DF: Secretaria de Cultura do Distrito Federal/Bárbara Bela Editora Gráfica, 1999.
Livro enviado pelo autor.

Luiz Damo (Trovas do Sul) XXXVII


A chuva, que a água destila,
rega a terra e se esparrama,
mas a que vem da pupila
é pranto que alguém derrama.
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A iminência do perigo
não deve ser olvidada,
porque a presença do amigo,
pode vir de forma errada.
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A vida tem semelhança
à vela acesa, luzindo,
que ao pedestal da esperança
lenta, vai se consumindo.
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Bem mais que esposa e marido
nasce um elo, ou relação,
que deverá ser mantido
longe da separação.
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Duas mãos tem a ruela
para chegar a um destino,
mas uma só tem aquela
que leva ao porto divino.
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Fartos de notoriedade,
gestos dignos de louvores,
dão mais vida à humanidade
e realce aos seus autores.
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Feliz da terra que ostenta
vivo o sonho da mudança,
fonte de luz que a sustenta
no alicerce da esperança.
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Jamais posso imaginar,
ou projetar meu porvir,
sem ao passado voltar
e no agora me inserir.
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Mesmo que tarde pareça
para um sonho acalentar,
prossiga e nunca pereça
fazendo dele outro altar.
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Ninguém atende a um chamado
quanto ao bom elevador,
salvo se estiver quebrado,
sem cordas ou sem motor.
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No livro, o leitor se apega,
para obter conhecimento,
na leitura à vida agrega
mais vigor e crescimento.
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Nunca ultrapasse o portal
do bom-senso e do pudor,
para que o sonho vital
não sucumba inerte à dor.
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O deserto prolifera
e a vida emite um clamor:
derramai, ó Deus, na terra,
as chuvas do eterno amor!
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Pela boca o peixe acaba
quase sempre sendo morto,
no engodo que à água desaba
junto de um arame torto...
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Pelas essências da fruta
conheces a procedência,
lapidada ou mesmo bruta,
revela as suas essências.
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Pendente, a planta revela:
pode haver queda iminente.
Melhor passar longe dela
que envolver-se em acidente.
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Se à Terra a fé persistir
e a esperança for mantida,
nada há que faz desistir
alguém de lutar na vida.
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Se falares o que queres,
sem pensares nas propostas,
não colhes do que disseres
o que esperas das respostas.
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Seja qual for o conceito
para exprimir a amizade,
vem o amor e acaba eleito
precursor de uma unidade.
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Se o cabelo denuncia
sem esconder a verdade,
toda a vaidade anuncia
sombras da real idade.
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Se o opulento viver bem,
sempre envolto em regalias,
diz tudo ter e o que tem,
não passa de fantasias.
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Sob as brasas da aparência
se esconde toda a ilusão,
e às cinzas da prepotência
a falsa imaginação.
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Temos motivos de sobra
para alguém não nos cobrar
e se algo a vida nos cobra
seja para equilibrar.
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Um dos milagres da vida
está no alcance da mão,
mais que oferecer comida,
é dar guarida a um irmão.
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Vejo à noite e à imensidão,
somente trevas sem fim,
por não ver o lado bom
da estrela que brilha em mim.
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Fonte:
Luiz Damo. A Trova Literária nas Páginas do Sul. Caxias do Sul/RS: Palotti, 2014.
Livro enviado pelo autor.

Aparecido Raimundo de Souza (Bucólico)


EDUARDO, AOS QUINZE ANOS, em cega obediência aos prementes desejos do seu desassossego, queria receber um sorriso dela. Ganhar de Ana Flor (era esse, o nome da jovem, um ano mais nova), um olhar demorado, trocar um “olá”, um “oi”, um “tudo bem?”. Na hora em que chegavam em frente ao portão da escola, ele imprimia um breve tempo em retardo para que ela subisse as escadas se antecipando a ele. Gostava de vê-la pelas costas. Um perfume suave emanava de seu corpo e batia em cheio dentro de seu nariz. Ele absolvia aquela fragrância com sofreguidão, tal como buscava no espaço o ar que o mantinha vivo. Na saída, Eduardo se deleitava acompanhando os passos dela até onde morava e a deixava no portal de sua residência.

Quanto a isso, havia uma urgência prementíssima que saltava de dentro de sua inquietação como um tigre furioso de encontro a uma presa incauta. Ele desejava estar ao lado dela todas as horas do dia e da noite. Desfrutar junto ao seu bem querer aqueles momentos em que ela se punha sentada num dos bancos do jardim defronte da igreja matriz para espiar a imensidão do mar. Nessas horas, os olhos de Ana Flor ficavam distantes. Brilhavam com uma intensidade paranormal. Os pensamentos, ah, os pensamentos, sabem Deus por onde vagavam...

Eduardo pressagiava mais em seus desvarios. Sua alma se via desprendida do corpo. Parecia tocar as mãos da charmosa, acariciar seus cabelos, mergulhar demoradamente dentro de sua tristeza para tentar entender de onde vinham, a um só tempo, tantas melancolias e sofrimentos.

Tinha consciência que maquinava, num futuro próximo, dar um jeito de ser a estrada onde ela passaria, o chão onde pisaria. Se possível, a cama onde as noites, em seu quarto, se deitaria para dormir. Também intentava se transformar nos cadernos dentro da mochila. No lápis, na borracha, na caneta esferográfica. Virar o autor dos romances que ela lia, o marcador de páginas que levava à boca... a xícara que tomava o café, a cadeira onde se acomodava para estudar, a escova que deslizava em seus cabelos compridos, as músicas que ouvia nos fones de ouvido certamente imbuída no mais belo tom romântico. Eduardo, aos quinze, “quimerava” em ser o sol que banhava todos os domingos o corpo dela na piscina do clube da cidade.

Daria a vida para ser o par de tênis, as meias, o chuveiro quente, o sabonete, a espuma, a toalha, os chinelos, o vento sibilante que soprava forte e majestoso tentando levantar (sem conseguir), a sua sainha plissada acima dos joelhos. Ele ansiava mais: na verdade, pelejava pelo impossível. Lutava ferrenhamente pelo inalcançável. Se esforçava além das suas faculdades de entendimento insistindo em não deixar perecer seus sonhos num redemoinho de ondas fortes de um mar bravio em colisão com uma cordilheira de rochas à semelhança de uma ilha inesperada no meio do nada. Ele necessitava urgentemente tê-la sua.

Como um presente, como uma prenda, como uma graça alcançada. Todavia, não sabia como por seus objetivos em prática visando o almejo dos sonhos desejados. Tinha pulsante, na consciência, que carecia de uma convicção robusta que prescindisse e voasse além do “sentir algo diferenciado”. Um fato robustecido e végeto (bem nutrido) o bastante, que transpusesse o banal corriqueiro e se sobrepusesse ao desejo abissal se estendendo para um horizonte inaudito, tipo um amanhã que ultrapassasse o incomum e o raro, como uma constrição que o envolveria acima de suas forças por aquela menina um ano mais nova que ele. Às vezes, Ana Flor parecia tão frágil e débil desprotegida e minguada, que seus olhos tinham vontade chorar de modo copioso.

Sentia tudo isso quando na sala de aula ela se punha quase diante dele. Bastava um esticar de braço e a tocaria. Todos os dias, o ano inteiro, mesmo espaço mesmos colegas, idênticos professores... iguais trabalhos sendo pesquisados na biblioteca. Apesar das tantas tarefas curriculares, Eduardo capturava em seus menores gestos, uma solidão descomedida, e a achava, por tudo, cada vez mais bonita e atraente, principalmente quando a graciosa se misturava às colegas da turma onde sentavam quase a se esbarrarem umas às outras. Eduardo, nas aulas de inglês, mal escutava o que dizia o professor. As matérias suplementares só não se tornavam enfadonhas porque se constituíam no único elo real que o prendia às ininterrupções dela, ao seu lado a lado.

Na hora do lanche, por azar seu, a turma debandava. A escola inteira virava uma balbúrdia só. Mas a pétala mimosa, seguia um padrão diferente. Ana Flor não se misturava à confusão, ao burburinho. Ao contrário das demais garotas da idade, se recolhia sorrateira, num cantinho afastado e ficava sentada até a hora em que a campainha voltava a tocar anunciando o fim do recreio. Todos corriam para o tédio dos bancos das carteiras. Eduardo seguia firme no seu posto. Contemplava a sua paixão no solitário do incansável, como um menino bobo. Perdia um tempo enorme em deslumbramentos infantis. Por conta, viajava para longe da Terra e, ao menor movimento dela, pulava correndo na realidade que atropelava. Sua pequena dor de adolescente descompassava.

Sua pele suava fria. Se fizera comum sentir ímpetos de se aproximar, puxar conversa, porém, um medo impiedoso, sem pé nem cabeça, um receio maior e grandioso de levar um fora tolhia seus movimentos mais bacocos (toscos e idiotas). Ana Flor se constituíra, indubitavelmente, na dileção que fluía de dentro dele. O desejo tresloucado que alimentava em seu âmago um silêncio perene. Igualmente, o sofrimento extremamente desagradável que se estampava nas saliências de seu semblante.

“Será que ela sabe da minha existência? — Pensava o tatarola (pateta) com seus receios e apreensões.  O que pensaria dele? Deveria, com toda certeza, achá-lo um abestalhado!”.

— Mãe Santíssima, como me achego a essa joia de valor inestimável?

Assim voaram os anos. Ambos cresceram. Ela, aos vinte, mudou de rua, de casa, de escola, mas não de hábitos. Continuava todas as tardes indo até a calçada defronte a igrejinha onde se sentava no mesmo banco de pedra e ficava a contemplar os pombos, o mar imenso e distanciado. Ele, aos vinte e um, trabalhava no posto de gasolina manobrando os carros dos clientes, ora lavando os automóveis dos ricos da cidade, ora abastecendo os que vinham de fora. Ana Flor também arranjou um emprego de balconista numa lojinha de roupas para senhoras e crianças defronte. Nas horas de folga, ele se punha a olhar longamente para ela, a observar seus gestos mais sutis através da vitrine. A se debulhar apaixonado, os quatro pneus furados, como se tivesse com a cabeça e os pensamentos fora de órbita.

E estava! Ela saia às seis e ele, cinco minutos antes dela. A jovem seguia a pé para o novo bairro onde passara a morar. Continuava com os pais. A mãe fora nomeada promotora de justiça do fórum local, o pai ganhava nome e fama como renomado advogado. Por vezes, ela obstruía a marcha. Parava aqui e ali, arrancava uma flor acolá, cheirava, tornava a seguir adiante e quase chegando em destino, dava uma derradeira estancada. Contemplava a noite se aproximando. Ele, endoidecido, roendo as unhas, os batimentos acelerados, distava alguns passos atrás. Escoltava a pérola nacarada sem dizer nada, sem se deixar perceber. Como um anjo apenas observava e sofria. Padecia e observava, em um silêncio sempiterno (perene, infinito), a sua dor esfomeada de amor. Um afogo supliciado e inquieto de amor pelo gostar que, dia após dia, parecia crescer mais e mais dentro de seu peito em frangalhos.

E junto com essa tribulação, literalmente mais e mais ele se afeiçoava dela. Até que um dia... um dia (sempre existe um dia na vida de cada um de nós), ele finalmente criou coragem, se encheu de força rija, poderosa e dominadora, superando a própria razão. Deixou de lado o terror, a desesperança, a inquietação e resolveu que chegara a hora de se aproximar. Roubou uma rosa bonita de uma residência onde um jardim bonito crescia à natureza notória e indubitável:

— Hoje falo com ela. Me declaro. Sou um homem, ou um rato?

Nessa hora, Ana Flor, como sempre seguia na sua rotina. Voltava para o aconchego de seu lar. Agora não mais na mesma escola. Vinda da cidade próxima. Ela cursava a faculdade de direito, Eduardo medicina.

Ana Flor saltava da van escolar, ele minutos depois de outra condução. A maviosa parava aqui, estancava ali, fingia derrubar alguma coisa.  Olhava para trás e pressentia o contínuo dele em seu encalço. Nesse começo de noite ela percebeu que ele se achegara além da linha divisória do “de sempre”. Tinha pleno conhecimento que aquele rapaz a seguia. Todos os dias. De longe, a passos calculados. Fazia muitos anos... não falava nada, só marcava território. Depois desaparecia.  Então aconteceu:

— Ana, eu queria te dar esta flor...

Ana se virou pasma e junto trouxe no rosto uma candura indescritível:

— Posso me sentar ao seu lado?

Ela fez um gesto com a cabeça sinalizando um “sim” cheio de dulçor:

— Pode.

Eduardo se acomodou, ainda receoso.  Ela ajeitou o rosto, se abriu numa carinha de apaixonada. Seus lábios, de perto eram mais sensuais e tentadores. A boca perfeita...

— Desde que te vi, pela primeira vez, tanto tempo passado, e você sabe disso, senti que você seria a mulher da minha vida...

Ana Flor nada disse. Apenas ouvia. E sorria. Seu interior dava a impressão de explodir a qualquer momento:

— Ana... quer ser a minha... meu Deus... quer ser a minha namorada?  

Eduardo, desde os quinze anos, em cega obediência aos prementes desejos do seu desassossego, queria receber um sorriso dela. Ganhar de Ana Flor (era esse, o nome da jovem, um ano mais nova) um olhar mais demorado, trocar um “olá”, um “oi”, um “tudo bem?”.

Na hora em que chegavam em frente ao portão da escola, ele imprimia um breve tempo para que ela subisse as escadas se antecipando a ele. Gostava de vê-la pelas costas. Um perfume suave emanava de seu corpo e batia em cheio dentro de seu nariz Ele absolvia aquela fragrância com sofreguidão, tal como buscava no espaço o ar que o mantinha vivo:

— Ana, me diga alguma coisa. Por tudo quanto é sagrado. Eu te amo. Eu te amo desde...

Ana Flor colocou sua mochila de lado, tomou as mãos dele entre as suas. Num gesto inesperado, pegou a flor que ele roubara e a colocou nos cabelos:

— Eu também te amo, Eduardo. Sempre o amei. Mas tinha medo...

Um novo sorriso inundou seu rosto e ela então deixou fluir o que igualmente sentia:

— Achava que você me faria à corte... mas você só me seguia... me dava esperanças, me vigiava na loja... Eduardo, eu também te amo.

Tomou fôlego e com a mesma empolgação, completou:

— Claro que aceito ser a sua namorada, sua esposa, mulher, mãe de seus filhos... preciso dizer mais alguma coisa?

O céu inteiro veio abaixo. Eduardo, por dentro, parecia que se detonaria por inteiro no segundo seguinte. Fez-se em lágrimas de contentamento, as mãos tremeram, o coração bateu mais forte, a alma disparou em festa, seus medos, receios... Ana Flor o abraçou. Naquele trocar de sensações a radiosa selou todos os temores e receios de Eduardo. Desta feita, foi a vez dela em tomar a iniciativa. Um beijo apaixonado, longo, sem pressa, envolvente e vulcânico se entrelaçou na troca de salivas. Abraçados no calor daquele momento, a emoção, falou mais alto. O AMOR, FINALMENTE, VENCEU.     

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

domingo, 25 de dezembro de 2022

George Abrão (Coincidência)


Há alguns anos, quando eu ainda trabalhava na Caixa, em visita a uma empresa a qual eu estava tentando conquistar como cliente, conversando com o seu proprietário - um senhor já idoso - e com o gerente da mesma - um pouco mais jovem - falávamos sobre amenidades.

A certa altura o assunto versava sobre nossas naturalidades. O proprietário disse-nos ser natural de São Paulo e perguntou-me de onde eu era: respondi-lhe ser de Jaguariaíva. Quando o gerente declinou a sua, riu um pouco e nos disse:

- Sou de Ortigueira, na realidade da localidade denominada Serra dos Mulatos.

Como eu conhecia bem aquela região, elogiei sua beleza natural, ressaltando a bela mata e a serra em si, passando a lhes narrar um episódio ocorrido comigo naquele local:

“Estando viajando com mais dois amigos e, ao passar pela Serra dos Mulatos, um deles comentou que gostaria de comprar mel de um produtor, pois naquela região quase todos os sitiantes eram pequenos apicultores. Então resolvemos adentrar no primeiro sítio que encontrássemos para tentar comprar o mel desejado.

“Fizemos isso e ao encontrar um portão bem feito e ladeado por plantas ornamentais, seguimos pela estrada bem cuidada até que chegamos a uma residência toda pintada de banco e com um jardim florido na frente.

“Batemos palmas e um senhor, apresentando-se como Bianor de Almeida, nos atendeu. Após explicarmos o que queríamos, ele nos disse ter mel de alguns tipos (conforme a flor de onde era extraído o néctar), sendo que o melhor deles era o de flor de laranjeira, que estava sendo centrifugado e que isso demoraria um pouco, mas que entrássemos para esperar.

“Então convidou-nos para ir até o barracão onde estava sendo executada a centrifugação, mas antes pediu-nos licença e entrou na casa, voltando logo em seguida. Ao chegarmos ao barracão onde o mel era beneficiado, vimos um jovem girando a manivela de uma centrífuga manual. O mel, separado da cera, caia num recipiente de metal passando por uma peneira onde ficavam algumas impurezas. Ele nos mostrou as instalações, bem como os tipos de mel que produzia: de capixinguí, de eucalipto e o de laranjeira, explicando-nos também os procedimentos para a coleta dos variados néctares.

“A seguir, verificando a quantidade de mel no recipiente de metal, pegou alguns vidros e encheu-os com o líquido dourado através de uma torneirinha. Então convidou-nos para irmos até à sua residência que era uma casa simples, mas de muito bom gosto, com muitas flores no jardim e tendo na frente uma ampla varanda também com diversas folhagens ornamentais. Num amplo anexo, havia uma grande cozinha para onde ele nos dirigiu apresentando-nos à senhora sua esposa. Era uma cozinha muito bem cuidada, com um grande fogão de barro aos fundos e, sobre o mesmo em varas nas dependuradas nas vigas, com arame, havia abundância de defumados como linguiça e peças de suíno. Sobre a mesa coberta com uma bela toalha e ladeada por bancos de madeira, já estavam arrumadas as xícaras, tendo no meio um grande pão caseiro, uma broa de centeio, um pote com mel e biscoitos caseiros de polvilho.

“O Sr Bianor convidou-nos a sentar e nós não nos fizemos de rogados, pois era um verdadeiro banquete o que se encontrava à nossa disposição, complementados por café, leite e linguiça frita. Escusado dizer o tanto que comemos, parecia que havíamos voltado da guerra. O casal sentou-se conosco e logo entabulamos uma gostosa conversa, na qual ele contou-nos ser ali mesmo da região e ter dois filhos que estudavam em Curitiba vindo somente em feriados prolongados ou nas férias. Disse também que gostavam muito quando recebiam visitas, pois isso era raro.

“Apresentamo-nos também e quando eu disse-lhes ser natural de Jaguariaíva, disse-me conhecer um amigo que morava lá, deu-me seu nome e, por coincidência, tratava-se de meu avô materno, que já havia falecido há alguns anos.

“Após terminarmos o lanche, conversamos mais um pouco e lhe dissemos estar na hora de ir, pois já se fazia tarde.

“Meu amigo pediu-lhe cinco vidros de mel e o outro um. Eu disse-lhe que levaria dois. Ele preparou uma caixinha com os vidros e disse que nada cobraria, pois havíamos lhe dado grande prazer com a visita e a conversa. Fizemos-lhe ver que isso não seria justo, pagamos e nos despedimos, sendo que eu disse-lhe vir visitá-lo em outra ocasião, o que acabou não ocorrendo.”

Quando concluí o relato, percebi que o gerente tinha um sorriso nos lábios, dizendo:

- Senhor George, coincidências sempre acontecem, mas como a de hoje foi uma coisa incrível, pois o Sr. Bianor de Almeida era o meu pai, e o senhor esteve em minha casa quando eu estudava na capital!

Fonte:
George Roberto Washington Abrão. Momentos – (Crônicas e Poemas de um gordo). Maringá/PR, 2017.
Ebook enviado pelo autor.

Estro Poético n. 1


 Alfredo dos Santos Mendes
Lagos/Portugal

Glosa:
A Rosa


MOTE:
A rosa que tu me deste,
Peguei-lhe, mudou de cor,
Tornou-se, de azul celeste,
Como o céu do nosso amor!
JOÃO DE DEUS


GLOSA:
 Muitos anos já passaram.
E muitas rosas murcharam,
Menos a que me trouxeste.
Ao vê-la tão delicada,
Penso estar enfeitiçada…
A rosa que tu me deste.
 
Tenho por ela ternura.
Pois sei que a sua frescura,
Simboliza nosso amor.
Hoje a prova me foi dada,
Por estar contigo zangada,
Peguei-lhe, mudou de cor.
 
As suas folhas mirraram.
Foram caindo e ficaram,
Perdidas no chão agreste.
Desesperada chorei.
E assim que a rosa beijei,
Tornou-se, de azul celeste.
 
Foram horas de magia.
E a partir daquele dia,
Foi-se o ciúme e a dor.
E logo nesse momento,
Ficou um céu luarento,
Como o céu do nosso amor.
* * * * * * * * * * * * * * * * * *  

AFONSO ALVES FRANCISCO
Paraná


Utopia

Pequeno eu sou
grande eu queria ser
ir além do além
além do infinito
ser maior do que os sonhos
de tudo eu saber
um ser tão grande
que não pudesse ser finito.
* * * * * * * * * * * * * * * * * *

ANA MARIA NASCIMENTO
Ceará


Glosa:
Ser Imortal

MOTE:
Quando a morte nos ocorre
Deus vem aqui nos buscar
pois o trovador não morre...
muda apenas de lugar.
Ademar Macedo
Santana do Matos/RN, 1951 – 2013, Natal/RN

GLOSA:
Quando a morte nos ocorre
deixando consternação
nosso Bom Pai nos socorre
no momento da aflição.

Quem faz verso sempre diz
Deus vem aqui nos buscar,
por isso aceito feliz
seguir para o novo lar.

E chegando ao céu discorre
com total encantamento
pois o trovador não morre...
com esse acontecimento.

Fazendo verso, afinal,
consegue logo julgar
que aquele que é imortal
muda apenas de lugar.
* * * * * * * * * * * * * * * * * *

A. A. DE ASSIS
Maringá/PR


Teu beijo pela internet,
vem sempre com tal calor,
que qualquer dia derrete
meu pobre computador
* * * * * * * * * * * * * * * * * *

ANA PAULA COSTA BRASIL
Santana de Parnaíba/SP


Você!

Corri... como corri
Para pular em seu colo
Fundir nossos corpos
Morder seus lábios
Acariciar seu corpo... sentir sua pele
Provar de seu gosto... descobrir minha alma
Mesclar nossos braços... misturas os cabelos
Entrelaçar nossas pernas
Mas... Corri... como corri
Quando vi que você não era você
Que eu nem mesmo conhecia você
Eu fantasiava... construía um você
Como corri por não saber quem é esse outro você
Que não é o meu você
Você... meu você
Fez-me viver... fez-me voltar a sonhar
Fez-me querer... fez-me fazer
Você... o outro você
Fez-me chorar... fez-me sofrer
Fez-me esquecer
O quanto amei
Oh! Meu você
O você que construí para amar
O meu você
* * * * * * * * * * * * * * * * * *
APARECIDO DONIZETTI HERNANDEZ
Itapevi/SP

Amor Oculto
 
Quanto te esperei... quanto te esperei!...
Não viestes..., onde estavas?
Não respondas, eu sei...
Estavas junto aos anjos.

Te esperei... e quanto te esperei!...
Não perguntarei onde estavas,
Pois sei, estavas junto aos anjos
Esperando a hora de vires,
Mas será que é essa a hora?!
Quanto te esperei!... esperei...

Somente agora os anjos a deixas vir,
Deixarás os céus com anjos tristonhos
E me fará feliz!
* * * * * * * * * * * * * * * * * *

RAFAEL DOS SANTOS BARROS
Pernambuco


As Mãos de Vitalino

Vitalino com mãos sujas e santas
modelava em barro os nordestinos
e transportava a dor e os desatinos
para os bonecos tantas vezes, tantas.

Bonecos mudos, quantas vezes quantas,
Minha alma cega por meus olhos viu?
A tua dor meu coração sentiu
no canto triste que ainda hoje cantas.

Soprou a vida num boneco mudo
que sem falar, assim, dizia tudo
dos nordestinos, dos desatinos seus,

advertência dos que nascem pobres
pelas mãos rudes que ficaram nobres,
abençoadas pelas mãos de Deus.
================
Vitalino Pereira da Silva nasceu no dia 10 de julho de 1909, no Sítio Campos, em Caruaru, Pernambuco. Seu pai, humilde lavrador, preparava o forno para queimar peças de cerâmica que sua mãe fazia, para melhorar o orçamento familiar. E sua mãe, artesã, preparava o barro que ia buscar nas margens do Rio Ipojuca. Depois, sem usar o torno, ia fazendo peças de cerâmica utilitária, que vendia na feira. Levava a cerâmica nos caçuás (cestos grandes) colocados nas cangalhas do jegue (burrico). Com apenas seis anos (1915), Vitalino iniciou-se na arte do artesanato de barro. O material que ele usava para as suas peças era o massapê, que retirava da vazante do Rio Ipojuca e transportava em balaios para casa. O barro era molhado e deixado em um depósito por dois dias para ser curtido, sendo então amassado e modelado. As peças eram cozidas em forno circular, construído ao ar livre, atrás da casa.

Sua capacidade criadora se desenvolveu de tal maneira que acabou se tornando o maior ceramista popular do Brasil.  No início, a aplicação da cor nos bonecos era feita com barro de diferentes tons — tauá, vermelho, branco. Depois, Vitalino passou a usar produtos industriais na pintura dos seus bonecos. As peças da primeira fase não possuíam marca de autoria. Posteriormente, o artista passou a assinalar com lápis e tinta preta as iniciais V.P.S., no reverso da base dos grandes grupos, e, a partir de 1947, começou a utilizar o carimbo, também de barro, com as mesmas iniciais V.P.S., adotando, em 1949, o seu nome de batismo. Casado com Joana Maria da Conceição, teve 18 filhos e, destes, somente cinco viveram até a idade adulta. Dono de um grande talento musical, aprendeu a tocar pífano (espécie de flauta sem claves e com sete furos) e, com apenas 15 anos, montou sua própria banda, a Zabumba Vitalino.

Mestre Vitalino morreu de varíola aos 20 de janeiro de 1963 A partir dessa época, os bonecos de barro de Vitalino ganharam fama como obras de arte e passaram a percorrer o Brasil e o mundo. Sua produção é estimada em cerca de 130 peças, que são cuidadosamente reproduzidas pela família. (Fonte: http://www.construirnoticias.com.br/asp/materia.asp?id=908)

* * * * * * * * * * * * * * * * * *

DIANA CAMARGO
São Sepé/RS


É Tempo de Primavera

É tempo de primavera...
De flores e cores por todos os cantos
Pássaros em bandos que revoam seus cios
E cantam frenéticos no encanto da amada.
É tempo de primavera...
Que leva pra longe os dias sombrios
E traz numa brisa o cheiro suave
Das belas floradas dos grandes ipês.
É tempo de primavera
Da vida que brota por todos os lados
Beija-flores alegres multicoloridos
De flores em flores em busca do néctar.
É tempo de primavera...
E a vida é mais leve nas ruas e parques
Sorrisos estampam os rostos alegres
Parece que o sol fica mais radiante.
É tempo de primavera!
* * * * * * * * * * * * * * * * * *

MARILENE BORBA
Osório/RS


Inspiração de Um Poeta
     
Quisera ser a água
de uma fonte cristalina.
Quisera ser uma flor, o sol, as estrelas
que o poeta ilumina
a fazer um verso, dois, vários...
e vibrar com uma poesia, com um poema
que fale de amor, de alegria, de paz,
de acalanto
e até de desencanto,
pois o poeta também sente dor.
* * * * * * * * * * * * * * * * * *

Quadra Humorística

Quem fala de mim, quem fala?
Quem fala de mim, quem é?
É algum chinelo velho
que não me serve no pé.
* * * * * * * * * * * * * * * * * *

JUSSÁRA C. GODINHO
Caxias do Sul/RS

Nascimento e Morte de um Rio
 
Nasci sereno
manso e cristalino
por entre os verdes
doce vale menino

Cresci robusto
forte e valente
e fui andando
emocionando gente

Atravessei cidades
quase poderoso
mas tanta maldade
Deixou-me horroroso

Os lixões, lixos, lixinhos
Deixaram-me malcheiroso
afogaram meus peixinhos
Não sou mais um rio garboso
* * * * * * * * * * * * * * * * * *

LÍGIA ANTUNES LEIVAS
Pelotas/RS


De dor ou de amor...

Somos presença fugidia
Somos ao mesmo tempo
solidão e multidão
desapego e rebeldia;
- E o próximo minuto?
...total imprevisão:
- De amor ou de dor?
Apenas de perplexidade
ante a perenidade
...momentânea...
desse apenas
   segundo
cheio de eternidade
* * * * * * * * * * * * * * * * * *

ANTÔNIO ROBERTO FERNANDES
São Fidélis/RJ, 1945 – 2008, Campos dos Goytacazes/RJ


Emoção

Quando não há mais nada a ser falado,
quando os olhares não se cruzam mais,
é hora de se ver que há algo errado
nos relacionamentos conjugais.

Já não importa aí quem é culpado,
nada resolvem cenas passionais
nem simpatias contra o mau-olhado
ou conselheiros matrimoniais.

É o fim. Pronto. Acabou. Não tem mais jeito.
Se, de emoção, um dia ardeu o peito
que dela reste uma lembrança boa.

Não se deve é fechar-se numa esfera,
sem ver que pode estar à nossa espera
outra emoção no olhar de outra pessoa.
* * * * * * * * * * * * * * * * * *

LUCAS COZZA BRUNO
São Paulo/SP


Retrato do Passado

Memórias que nunca
vão ser esquecidas,
memórias que
marcam histórias;
histórias que
são tesouros e insucessos,
registros que
não se apagam
como os que trazem sorte:
os trevos de quatro folhas.
Nunca me esquecerei
das histórias felizes,
onde tive grandes conquistas,
vidas impressas
e reveladas
numa folha de papel
que nunca serão
deixadas de mão...
...ou melhor, da memória.
* * * * * * * * * * * * * * * * * *

REGINA BERTOCCELLI
São Paulo/SP


Rondel:
Através da vidraça

 
Através da vidraça vejo o céu nublado
e os respingos da chuva na calçada.
Sozinha, penso no meu amado
com a alma angustiada.

Em breve virá a madrugada
e muito já terei chorado.
Através da vidraça vejo o céu nublado
e os respingos da chuva na calçada.

Sopra um vento forte e gelado
que estremece a janela molhada.
Com o coração triste e encarcerado
repouso minh'alma extenuada.
Através da vidraça vejo o céu nublado...
=============
Rondel é uma variação do francês “Rondeau” (plural = rondeaux). É um poema de estrutura rígida, composto sempre por duas quadras e uma quintilha, de modo que os dois primeiros versos da primeira quadra repitam-se no final da segunda, e o primeiro verso da primeira quadra feche a quintilha e, conseqüentemente, o poema. As rimas podem seguir, também, uma estrutura fixa, do tipo ABAB BAAB ABABA, mas a métrica é livre (o dicionário Houaiss diz: “(...) sem esquema fixo de rima ou de metro”.

Quanto às suas origens, remontam ao período medieval. O rondel possui uma clara semelhança com a “bailada” galego-portuguesa e com a balada provençal, ambas medievais. Especula-se, ainda, sobre sua possível origem latino-medieval, dada a existência de rondéis latinos, e também se tem pensado que se trata de forma popular adaptada às modas da corte.

É um termo também usado na música clássica (rondó) e designa um movimento no qual um tema é repetido periodicamente, com ou sem modificações, no padrão A B A C A D, etc., onde A é o tema recorrente e B, C, D, etc. são temas ou desenvolvimentos diversos.

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NELCI MELLO
Maringá/PR


Construção

Construí minha morte.
O ingênuo faz o dia, a vida, o futuro.
Que futuro?
Nascituros condenados. Todos.
Só a morte é perene e bela, quando construída.
Despedi-me a cada aurora, a cada tarde, na poesia à mesa.
Mesmo no silêncio, despedi-me a cada instante.
Contei da minha morte pelos olhos deitados sobre ti
E te amei até morrer.
- Bela morte – a Construída.

(Poesia agraciada com Menção Honrosa no concurso Servir com Arte - 2008, da Secretaria de Estado da Administração e da Previdência do Estado do Paraná)
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MESSODY RAMIRO BENOLIEL
Rio de Janeiro/RJ


Inveja
maltrata
enruguece
somente
invejosos
contumazes
= = = = = = = = =
Aldravia trata-se de um poema sintético, capaz de inverter ideias correntes de que a poesia está num beco sem saída. Essa forma nova demonstra uma via de saída para a poesia – aldravia. O Poema é constituído numa linométrica de até 06 (seis) palavras-verso. Esse limite de 06 palavras se dá de forma aleatória, porém preocupada com a produção de um poema que condense significação com um mínimo de palavras, conforme o espírito poundiano de poesia, sem que isso signifique extremo esforço para sua elaboração.
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NEMÉSIO PRATA CRISÓSTOMO
Fortaleza/CE


Quem me dera acontecer
por um só dia ser rei,
em versos imprimiria
um real decreto-lei:
que caia "Chuvas de Versos",
pra saciar os mais dispersos
corações da nossa grei!
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GUILHERME DE ALMEIDA
Campinas/SP,  1890 – 1969,  São Paulo/SP


Haicai:
Mocidade


Do beiral da casa
(telhas novas, vermelhas!)
vai-se embora uma asa.
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RACHEL RABELO
Pernambuco


Ser tão sertão

No trajeto vislumbro tais belezas
das paisagens de luz deste sertão,
que são típicas desta região
completando meu ser de sutilezas.

O teu povo traduz as realezas
conquistadas nas artes da paixão,
na poesia que vem do coração
retratando histórias e certezas.

Lá teu sol nasce já metrificado
vem na chuva um canto ritmado
entoando os ensaios da natura;

tua noite tem brilho diferente
que envolve num manto transparente
as sementes da arte e da cultura!
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BELMIRO BRAGA
Vargem Grande/MG, 1870 – 1937, Juiz de Fora/MG


Epigrama

– Um certo orador maçante,
das margens do Paraibuna,
ao falar, de instante a instante,
vai esmurrando a tribuna.
E quem o conhece, sente,
por mais ingênuo e simplório,
que os murros são simplesmente
para acordar o auditório.
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Epigrama (do Grego, literalmente, "sobre-escrever"), é uma composição poética breve que expressa um único pensamento principal, festivo ou satírico, de forma engenhosa.
O Epigrama foi criado na Grécia Clássica e, como o significado do termo indica, era uma inscrição que se punha sobre um objeto - uma estátua ou uma tumba, por exemplo.
Os epigramas sobre as tumbas formaram uma classe à parte e se denominaram Epitáfios ou Epicédios, designando um poema engenhoso que tinha a característica de ser breve, para poder passar por rótulo ou inscrição.
A maioria dos epigramas gregos pode ser encontrada na Antologia Palatina. Além dos gregos, destacaram-se na composição de epigramas os romanos Catulo e Marco Valerio Marcial.  (Fonte: Wikipedia)

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EFIGÊNIA COUTINHO
Balneário Camboriú/SC


Meu Gato

Meu gato é uma tentação,
Fez em meu coração seu ninho
Deixando-me sentir toda magia
Do seu amor em plena energia,
Aplacando minha sofreguidão,
Ele vem sempre de mansinho,
Com seu olhar me encantando,
Com seus pelos macios me acarinhando,
Arrancando de mim muito tesão.
Que gato mais manhoso!
Se em seu trabalho se estressa,
Comigo muda de opinião,
Pois eu vou mais que depressa,
Faço-lhe um carinho bem gostoso,
Sossegando o seu coração.
Assim tudo vira uma folia,
Quando o meu gatinho chega,
Em meu colo ele se aconchega
E de afagos me extasia!
Ó meu Gatinho!...
Como eu adoro seu carinho!
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ALEXANDRE O’NEILL
(Alexandre Manuel Vahía de Castro O'Neill de Bulhões)
Lisboa/Portugal, 1924 - 1986


Cão
 
Cão passageiro, cão estrito,
Cão rasteiro cor de luva amarela,
Apara-lápis, fraldiqueiro,
Cão liquefeito, cão estafado,
Cão de gravata pendente,
Cão de orelhas engomadas,
De remexido rabo ausente,
Cão ululante, cão coruscante,
Cão magro, cão tétrico, maldito,
A desfazer-se num ganido,
A refazer-se num latido,
Cão disparado: cão aqui,
Cão além, e sempre cão.
Cão amarrado, preso a um fio de cheiro,
Cão a esburgar o osso
Essencial do dia a dia,
Cão estouvado de alegria,
Cão formal de poesia,
Cão-sonêto de ão-ão bem martelado,
Cão moldo de pancada
E condoído do dono,
Cão: esfera do sono,
Cão de pura invenção, cão pré-fabricado,
Cão-espelho, cão-cinzeiro, cão-botija,
Cão de olhos que afligem,
Cão-problema…
Sai depressa, ó cão, deste poema!
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MARCOS ASSUMPÇÃO
Niterói/RJ


A Mágica Que Existe Em Você
 
 Não é preciso mágica pra pensar
Pra descobrir que nenhuma força
É maior do que pensar só em coisas boas,
E que nada é melhor que abrir a janela
Todos os dias e dizer pro mundo
Que acreditar em sonhos sempre.
 
Vale a pena.
Não é preciso mágica pra ter coragem
Pra descobrir que ela tá guardada
Dentro de cada um de nós
E que espantar seus medos e incertezas,
Bater no peito e dizer
Que o mundo lá fora te espera,
Também vale a pena.
 
Não é preciso mágica pra ter um coração
Pra descobrir que o que bate dentro do peito
É a esperança e o amor
E que só eles podem mudar
O mundo e nos fazer sonhar
Porque o sonho é a mágica
Que existe em nós.
 
Não é preciso mágica , basta abrir os olhos
E enxergar dentro de você.
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JOÃO BATISTA DOS SANTOS
Ubiratã/PR


Se o final for hoje e,
suas palavras não voltarem,
leve as recordações sublimes,
que o passado maquinou aos dias…

Leve os beijos suaves,
que na loucura de amar,
ficaram para as noites,
queimando como brasas,
se acendendo a todo instante…

Se o final for hoje,
não se esqueça de meu corpo
que te esperava nas tardes,
que os domingos encantaram…

Se o final for hoje,
olhe para o céu azul.
Talvez lá eu passe,
acenando-te com minha mão!

Deixarei cair lágrimas,
que o nosso amor reservou,
finalizando na canção da tarde…
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CONSTÂNCIO ALVES
Salvador/BA, 1862 – 1933, Rio de Janeiro/RJ


Epitáfio

Quando ele exalou sua alma,
quem estava perto, se quis
levar aos olhos o lenço,
levou o lenço ao nariz.
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Guy de Maupassant (O Ferrolho)


Os quatro copos diante dos convivas conservavam-se agora meio cheios, o que indica geralmente que os convivas o estão de todo. Começava-se a falar sem escutar as respostas, cada qual se ocupava apenas de si, e as vozes alteravam-se, os gestos exuberantes, os olhos brilhantes. Era um jantar de solteirões, de velhos solteirões endurecidos. Tinham eles fundado aquele jantar periódico uns vinte anos atrás, intitulando-o “O celibato”.

Eram, nessa altura, catorze, bem resolvidos que permaneceram solteiros. Restavam agora apenas quatro. Três estavam mortos, e os outros sete casados. Esses quatro aguentavam-se; e observavam escrupulosamente, tanto quanto as suas forças permitiam, as regras estabelecidas no começo dessa curiosa associação. Tinham jurado desviar do que se chama o bom caminho todas as mulheres que pudessem, especialmente as dos amigos mais íntimos. De maneira que, mal um deles abandonava a sociedade para fundar família, tinha o cuidado de se zangar irremediavelmente com todos os seus companheiros. Deviam, também, em cada jantar, confessar-se, contar, com todos os pormenores, todos os nomes, todos os mais precisos esclarecimentos, as suas últimas aventuras. Daí, essa espécie de rifão familiar entre eles: “Mentir como um celibatário.”

Professavam, além disso, o mais completo desprezo pela Mulher, a quem consideravam “animal de prazer”. Citavam, a cada momento, Schopenhauer, o seu deus; reclamavam o restabelecimento dos haréns e das rodas, tinham mandado bordar nas toalhas e nos guardanapos, que serviam para o jantar do Celibato, esse preceito antigo: Mulier, perpetuus infans e, por baixo, o verso de Alfred de Vigny: A mulher, criança doente e doze vezes impura!

De modo que, à força de desprezarem as mulheres, não pensavam noutra coisa, só para elas viviam, dedicavam-lhes todos os seus esforços, todos os seus desejos. Aqueles que tinham casado chamavam-lhes velhos gaiteiros, faziam troça e temiam-nos. Era no momento do champanhe que deviam principiar as confidências no jantar do Celibato. Nesse dia, os velhos... — porque já estavam velhos e quanto mais envelheciam mais surpreendentes aventuras contavam... — os velhos foram inesgotáveis. Cada um dos quatro, nesse último mês, tinha seduzido, pelo menos, uma mulher por dia; e que mulheres! As mais novas, as mais fidalgas, as mais ricas, as mais belas!

Tendo terminado as suas narrativas, um deles, aquele que, tendo falado primeiro, escutara depois os outros, levantou-se:

— Agora que acabamos com as mentiras, proponho-me contar-lhes, não a minha última, mas a primeira aventura da minha vida; a minha primeira queda (porque foi uma queda) nos braços de uma mulher. Oh! não lhes quero narrar o meu... como dizer-lhes?... a minha iniciação, não. “O primeiro fosso transposto... (digo fosso figurativamente), não tem nada de interessante. É realmente lamacento, e um homem sai de lá um pouco sujo, com uma encantadora ilusão de menos, um vago nojo, uma pontinha de tristeza. Essa realidade do amor, a primeira vez que se lhe toca, repugna um pouco; sonhava-se bem outra, mais delicada, mais fina. Fica-nos uma sensação moral e física de repugnância, como quando tocamos por acaso em coisas pegajosas e não temos água para nos lavarmos. Por mais que se esfregue, a imundice fica.” Fica, mas como nos habituamos, e depressa! Se habitua! Entretanto... entretanto, pela minha parte, sempre lamentei não ter podido dar conselhos ao Criador no momento em que ele organizou esta coisa. O que teria eu imaginado? Não o sei ao certo; mas creio que a teria disposto de outra forma. Havia de procurar alguma combinação mais decente e mais poética; sim, mais poética.

“Acho que o Padre Eterno se mostrou realmente muito... muito... naturalista. Faltou-lhe a poesia na sua invenção.

“Ora pois, o que eu lhes quero contar é a minha primeira mulher de sociedade, a primeira mulher de sociedade que seduzi. Porque, ao princípio, somos nós que nos deixamos apanhar, enquanto depois... sucede o mesmo.

“Era uma amiga de minha mãe, mulher aliás encantadora. Criaturas dessas, quando são castas, é geralmente por estupidez, e quando lhes dá para o amor, são furiosas. Acusam-nos de as corrompermos! Uma coisa assim... Com elas, é sempre a lebre que principia e nunca o caçador. Oh! bem sei que não dão mostras de se mexer, mas mexem-se; fazem de nós quanto querem sem o parecer; e depois acusam-nos de as termos perdido, desonrado; aviltado, sei lá!

“Aquela de quem falo sentia seguramente um furioso desejo de se fazer aviltar por mim. Teria trinta e cinco anos; eu apenas contava vinte e dois. Pensava tanto em a seduzir como em me fazer frade. Um dia, pois, como a visitasse e visse espantado como estava vestida, um roupão consideravelmente aberto, aberto como a porta de igreja quando toca para a missa, pegou-me na mão, apertou-a, vocês sabem, apertou-a como elas apertam em tais momentos — e com um sorriso meio estático, suspirando profundamente, disse-me: “Oh! Não olhe para mim desse modo, meu filho!”

“Pus-me mais vermelho que um pimentão e ainda mais tímido que de costume, naturalmente. Bem desejava sair dali, mas ela segurava-me a mão, e com firmeza... Colocou-a sobre o seu peito, um peito abundante, e disse-me:

“Veja, veja como o meu coração palpita.” E era verdade, ele batia. Eu começava a fechar a mão, mas não sabia como fazer aquilo nem por onde principiar. Mudei depois.

“Como eu continuasse com a mão sobre o seio dela, com a outra mão a segurar o chapéu, e continuasse a olhá-la com um sorriso confuso, um sorrir apalermado, um sorriso de medo, ela endireitou-se de repente e, num tom irritado: “Oh! O que faz, jovem, é indecente e mal-educado.” Retirei a mão bem depressa, deixei de sorrir e balbuciei umas desculpas, e levantei-me, e saí atordoado, de cabeça perdida.

“Mas tinha sido apanhado, sonhei com ela. Achava-a encantadora, adormeci, imaginei que a amava, que a tinha amado sempre, e decidi ser empreendedor até à temeridade.

“Quando a voltei a ver, ela teve para mim um pequeno sorriso de soslaio. Oh! Como esse pequeno sorriso me perturbou! E o seu aperto de mão foi longo, de uma insistência significativa.

“A partir desse dia fiz-lhe a corte, ao que parece. Ela, pelo menos, afirmou-me depois que eu a tinha seduzido, atraído, desonrado, com um raro maquiavelismo, uma habilidade consumada, uma perseverança de matemático e velhacarias perversas.

“Mas uma coisa me perturbava estranhamente. Em que lugar se realizaria o meu triunfo? Eu vivia com a família, e a minha família, nesse ponto, mostrava-se intransigente. Eu não tinha a audácia necessária para transpor, com uma mulher pelo braço, uma porta de hotel em pleno dia; não sabia a quem pedir conselho.

“Ora, a minha amiga, conversando jovialmente comigo, afirmou-me que todo o rapaz devia ter um quarto na cidade. Nós habitávamos em Paris. Foi um raio de luz; aluguei um quarto, e ela foi lá.

“Foi lá num dia de novembro. Essa visita, que eu quisera adiar, perturbou-me muito porque não tinha lume. E não tinha lume porque a chaminé estava entupida. Justamente na véspera tinha eu feito uma cena ao senhorio, antigo negociante, e ele prometera-me vir pessoalmente com o limpa-chaminés, dentro de dois dias, para examinar atentamente as obras que havia para fazer.

“Apenas ela entrou, eu declarei-lhe: “Não tenho lume, porque a chaminé está entupida.” Ela nem deu mostras de me escutar, balbuciou: “Não faz mal, tenho-o eu...” E como eu ficasse surpreendido, ela calou-se, toda confusa; depois, continuou: “já nem sei o que digo... estou louca... perco a cabeça... Que faço eu, Senhor? Porque vim eu aqui, infeliz? Oh, que vergonha! Que vergonha!...” E atirou-se, soluçando, nos meus braços.

“Acreditei nos seus remorsos e jurei-lhe que a respeitaria. Então, ela atirou-se-me aos pés, gemendo: “Mas não vês que te amo, que me venceste, que me enlouqueceste!

“Julguei oportuno começar logo as hostilidades. Mas ela estremeceu, levantou-se, fugiu até um armário para se esconder, exclamando: “Oh! Não olhes para mim, não, não! Envergonho-me à luz do dia. Se tu ao menos me não visses, se estivéssemos às escuras, de noite ambos... Que pesadelo! Oh! A luz do dia!”

“Corri para a janela, fechei as portadas, cruzei os cortinados, pendurei um sobretudo numa fenda de luz que passava ainda; depois, com as mãos estendidas para não tropeçar nas cadeiras, o coração palpitante, procurei-a, encontrei-a.

“Foi uma nova viagem, a dois, às apalpadelas, os lábios unidos, para o outro canto, onde era a minha cama. Não íamos a direito, decerto, porque encontrei primeiro o fogão, depois a cômoda, depois, enfim, o que procurávamos

“Esqueci então tudo, num êxtase frenético. Foi uma hora de loucura, de arrebatamento, de sobre-humana loucura; depois, tendo-nos invadido uma deliciosa lassidão, adormecemos nos braços um do outro.

“E sonhei. Mas eis que em sonho me pareceu que me chamavam, que gritavam por socorro; depois, recebi uma pancada violenta; abri os olhos!...

“Oh!... o sol poente, vermelho, magnífico, entrava de roldão pela minha janela escancarada, parecia olhar-nos da linha do horizonte, iluminava com um clarão de apoteose o meu leito tumultuoso, e deitado sobre ele uma mulher desvairada, que gritava, esbravejava, contorcia-se, agitava-se de pés e mãos para agarrar uma ponta de lençol, um pedaço de cortina, qualquer coisa, enquanto de pé no meio do quarto, atarantados, lado a lado, o meu senhorio, de sobrecasaca, acompanhado pelo porteiro e por um limpa-chaminés preto como o diabo, nos contemplavam estupefatos.

“Ergui-me furioso, prestes a saltar-lhe ao pescoço, e gritei: “Que fazem vocês aqui, com mil raios?”

“O limpa-chaminés, perdido de riso, deixou cair a folha de ferro que levava na mão. O porteiro parecia aparvalhado; e o senhorio balbuciou: “Mas, senhor, nós vínhamos... vínhamos... por causa da chaminé.” Berrei: “Desapareçam, com mil diabos!”

“Ele então tirou o chapéu com ar confuso e polido e, saindo recuando, murmurou: “Perdão, senhor, queira desculpar; se eu soubesse que o incomodava, não vinha. O porteiro afirmou-me que o senhor tinha saído. Queira desculpar.” E partiram.

“Desde então, meus amigos, não fecho nunca as janelas, mas verifico sempre as fechaduras.”
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Conto publicado originalmente em 1882.