quinta-feira, 11 de maio de 2023

Sílvio Romero (Folclore do Pernambuco: O matuto João)

Havia um homem de nome Manoel, casou-se com uma mulher chamada Maria e tiveram um filho que se chamou João. Os pais, por serem muito pobres, não lhe ensinaram a ler; porém João era muito ativo. Um dia saiu de casa com uma cachorrinha que sua avó lhe tinha dado e foi passear. No caminho soube que no Reino das três princesas havia grande festa e um casamento, dentro de quinze dias, com uma das filhas do rei, se decifrasse uma adivinhação. Já muitos homens tinham morrido na forca por não poderem decifrar a adivinhação.

João, chamado o amarelo, voltou para casa e disse ao pai que ia pelo mundo afora ganhar a sua vida. O pai consentiu e a mãe lhe preparou um pão muito grande e envenenado e arrumou-o na trouxa. João partiu com a sua cachorrinha. Não sabendo bem os caminhos, perdeu-se nas montanhas, e, depois de andar muito errado, deu n'uma campina já de noite. Aí dormiu. No dia seguinte passou ele um rio, que tinha tido uma grande enchente e onde viu um cavalo morto, e os urubus já lhe estavam dando cabo. Como havia correnteza, ás aguas puxavam o cavalo rio abaixo. João reparou naquilo e seguiu seu caminho.

O sol já pendia quando ele sentou-se debaixo de um pé de arvore para comer o seu pão, e nisto deu-lhe o coração aviso que não comesse sem experimentar em sua cachorrinha. Logo que ele deu o pão à cachorrinha, ela expirou. Muito sentido com isto, ele pegou-a nos ombros, e os urubus começaram a atrapalha-lo. Para ver-se livre, ele enterrou a cachorra, mas os urubus a desenterraram, a comeram e morreram. 

João pegou nos urubus e pôs nas costas e seguiu. Chegou a uma estalagem, e, não vendo ninguém, entrou pela porta adentro. Lá no fundo avistou sete homens todos armados de espingardas. Estavam sem comer há três dias e logo que viram o João avançaram para ele e lhe tomaram os urubus. João largou-se à toda pressa e deixou-se atrás; mas vendo que o não seguiam voltou e achou-os todos mortos. Escolheu das sete espingardas a melhor e largou-se. 

Chegando adiante, encontrou uma grande campina; já morto de fome e sede, sentou-se debaixo de um arvoredo. Nisto voa do capim grosso uma ynhambu-apé [perdiz]. O tiro errou e foi dar numa rolinha que estava entre as folhas. João apanhou a rola e a depenou; mas não achou com que fizesse fogo para assa-la. Tinha ali uma santa-cruz e tirou dela uma lasca e fez fogo, assou a rola e comeu; mas tinha muita sede e, não achando água, pegou um cavalo, que andava ali pastando, montou nele e pôs-se a correr até o cavalo ficar bem suado — a ponto de correr o suor e ele aparar e beber. 

Seguiu sua viagem e passou num campo e viu uma cova onde havia uma caveira; falou-lhe e notou que a caveira também lhe falava. Mais adiante encontrou um burro amarrado debaixo de uma árvore a cavar com os pés e conheceu que o burro cavava uma botija de dinheiro. Seguiu e foi ter ao palácio do rei e levar a sua adivinhação à princesa, certo de que ela não acertaria. 

Apresentou-se o João e disse que era pretendente à mão da princesa, pois ela era incapaz de decifrar a sua adivinhação. Riram-se muito dele. «Ora! disseram, quando outros homens sábios não saíram-se bem, tu que és um pobre matuto e amarelo é que hás de casar com a filha do rei!» 

O matuto insistiu e foi falar ao rei. O rei lhe disse: «Sabes tu a quanto te arriscas?» João respondeu que a tudo estava disposto. Chamada a princesa e muito confiada em si e debicando o rapaz, manda-lhe que proponha a sua adivinhação. O matuto assim falou:

“Saí de casa com massa e pita;
A massa matou a pita,
A pita matou três,
Os três mataram sete,
Dos sete escolhi a melhor:
Atirei no que vi
E matei o que não vi,
Com madeira santa
Assei e comi;
Bebi água sem ser dos céus,
Vi o morto carregando os vivos,
Os mortos conversando os vivos;
O que o homem não sabe,
Sabia o jumento:
Ouça tudo isto para seu tormento.”

A princesa mandou repetir, e não foi capaz de decifrar. E casou com o João.

Fonte:
Disponível em Domínio Público.  
Sílvio Romero. Contos Populares do Brazil.  Rio de Janeiro: 1894.

Doralice Gomes da Rosa (Canteiro de Trovas)


Abrindo as portas da vida,
a juventude é o centro...
E a velhice, intrometida,
vai entrando porta a dentro...
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A lua entrou em recesso
por ciúme e por vaidade
quando as luzes do progresso
deram mais brilho à cidade.
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A noite, sem teus abraços,
minha saudade se agranda...
Parece-me ouvir teus passos
no silêncio da varanda...
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A saudade me fez triste
por uma lembrança antiga...
Diz a ele que me viste,
porém nada mais lhe diga...
= = = = = = = = = 

A vida passa depressa,
igual a um rio que corre:
para o que nasce - começa.
Termina - para o que morre.
= = = = = = = = = 

Cai a chuva, e com malícia,
num jeito todo atrevido,
vai moldando com perícia
teu corpo sob o vestido.
= = = = = = = = = 

Das sobras do teu carinho
fiz os meus versos tristonhos,
embriagada no vinho
da cantina dos meus sonhos.
= = = = = = = = = 

Deixei caminhos risonhos,
dos grilhões cortei os laços,
cruzei a ponte dos sonhos
e fui morar em teus braços.
= = = = = = = = = 

De que nos vale a riqueza
e uma vida de esplendor,
quando nos falta a grandeza
de um mundo com mais amor.
= = = = = = = = = 

Enquanto o rio chora as mágoas
pelas cheias impolutas,
o sarandeio das águas
acarinha as pedras brutas.
= = = = = = = = = 

Estas rugas no meu rosto
que o tempo deixou sem ver,
são rabiscos de um sol posto
desenhando o entardecer.
= = = = = = = = = 

Este amor que nós vivemos
se eterniza a cada hora.
tanto que nós esquecemos
que existe um mundo lá fora...
= = = = = = = = =  

Eu quis falar de ternura,
quis abrir meu coração,
quando vi tanta amargura
nos olhos do meu irmão.
= = = = = = = = = 

Me chamastes de caipira?
Não me confunda, índio vago*:
– Sou gaúcha que suspira
pelas belezas do pago!...
= = = = = = = = = 
* Índio vago = Denominação dada ao antigo gaúcho, em sentido depreciativo, andarengo, pessoa que viaja muito, que não tem ocupação séria e vive à custa dos outros.
= = = = = = = = = 

Minha morada é singela,
com riquezas não me iludo:
há tanto amor dentro dela
e uma paz que me dá tudo.
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Montei meu pingo* e num “upa”
parti, deixando meu povo,
levando em minha garupa
a aurora de um sonho novo.
= = = = = = = = = 
Pingo = cavalo, no linguajar gaúcho.
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Murchavam, por falta d’água,
as flores do campo santo...
Desafoguei minhas mágoas
e reguei-as com meu pranto!
= = = = = = = = = 

Não quero saber de intriga,
pois cheguei à conclusão:
É melhor viver sem briga,
do que brigar sem razão.
= = = = = = = = = 

Na solidão do meu rancho,
nossa rede, que ironia,
ainda presa no gancho,
embala a noite vazia.
= = = = = = = = =

Na vida qualquer riqueza
perde sempre seu valor
quando nos falta a beleza
de um mundo com mais amor.
= = = = = = = = = 

No delírio da cachaça,
me sinto dono do mundo:
bebo no bico, na taça,
e até num copo sem fundo...
= = = = = = = = = 

No jardim da mocidade
plantei amor, plantei flores,
colhi carinho e amizade
e a rosa dos trovadores.
= = = = = = = = = 

No lugar do meu ranchinho,
desprovido de artifício,
o progresso abriu caminho
a um majestoso edifício!...
= = = = = = = = = 

No meu peito, ódio não medra,
não há lugar pra revolta,
se alguém jogar-me uma pedra,
recebe flores de volta.
= = = = = = = = = 

No picadeiro da vida
sou um palhaço tristonho
chorando a ilusão perdida
desse amor que foi um sonho.
= = = = = = = = = 

O sol e a lua se amaram,
às escondidas, ao léu.
Tempos depois despontaram
milhões de estrelas no céu.
= = = = = = = = = 

O tempo, em louca voragem,
já varreu tudo o que quis.
Só não levou-me a coragem
de ser bom e ser feliz.
= = = = = = = = = 

Pra chegar no meu ranchinho,
não precisa desafio:
basta seguir o caminho
que desemboca no rio.
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Por uma batalha inglória
não despreze a fé cristã.
Terás sempre uma vitória
ao viver outro amanhã.
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Progresso! Onde estão meus campos?
Só vejo asfaltos, imóveis...
Em lugar dos pirilampos
brilham faróis de automóveis.
= = = = = = = = = 

Quem cultiva a valentia,
e vive a fazer maldade,
cuidado que a ventania
faz frente à tempestade.
= = = = = = = = = 

Quem levar o beijo a sério,
e analisar com carinho:
– Num adulto ele é mistério...
– Na criança dá sapinho...
= = = = = = = = = 

Quem visitar meu rincão,
vai ver só que maravilha:
– A gloriosa tradição
desta terra farroupilha.
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Queria ter a existência
passageira de uma flor:
-Morrer na doce inocência.
com todo o seu esplendor!
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Se eu morrer ainda nova,
partirei com alegria:
lá no céu vou fazer trova
pra Deus e a Virgem Maria...
= = = = = = = = = 

Se nos causa grande dor,
nesta vida, amar alguém,
é melhor sofrer de amor
que chorar sem ter ninguém.
= = = = = = = = =

Sinto em cada trova escrita.
que a saudade amarelou,
a lembrança mais bonita
que a tua ausência deixou...
= = = = = = = = = 

Sonhei, em loucos desejos,
ser um beija-flor colosso,
fechando um colar de beijos
na curva do teu pescoço.
= = = = = = = = =

Teu amor é uma jangada
que aportou, com muito jeito,
e agora vive ancorada
nas amarras do meu peito...
= = = = = = = = = 

Teus olhos trazem mensagem
de luz, de amor, de carinho...
São dois fachos de coragem
brilhando no meu caminho.
= = = = = = = = = 

Todas manhãs, na ramagem
das madressilvas em flor
escuto a doce mensagem
de um sabiá trovador!
= = = = = = = = = 

Todo conselho é pequeno,
se, na canha afoga o tédio.
Chega um, diz que é veneno,
vem outro, diz que é remédio...
= = = = = = = = = 

Vejo em tudo encantamento,
vejo no espinho uma flor.
Até no choro do vento
ouço mensagens de amor.
= = = = = = = = = 

Fonte:
Enviado pelo editor (Milton S. Souza)
UBT Porto Alegre/RS.Terra e Céu XXVII. Doralice Gomes da Rosa e Conrado da Rosa. (Coleção Terra e Céu). Cachoeirinha/RS: Texto Certo, 2016.

Vasco de Castro Lima (Fixação Definitiva da Forma do Soneto)

Coube a Fra Guittone d'Arezzo (1230-1294) a fixação categórica da forma do soneto. Não alterou profundamente a estrutura do poema inventado na corte de Frederico II. Todavia, é inegável, foi ele quem, por assim dizer, confirmou, com pequenos retoques, a sua validade, a solidez de sua constituição histórica, a sua genuína legalidade.

A disposição das estrofes, e também das rimas, variara por alguns anos; mas 'Guittone, embora respeitando, a princípio, o critério biestrófico (uma oitava e um sexteto), estabeleceu a estruturação definitiva do soneto: a "forma tetrapartida", dois quartetos e dois tercetos, contendo, ao todo, quatro rimas (duas, com distribuição modificada, nos quartetos; e duas, diferentes delas, nos tercetos).

Esta configuração, dita oficial, foi seguida pelos seus discípulos e coevos; e é, ainda hoje, aceita e acatada como a forma que se poderia classificar de "ideal":
ABBA ABBA CDC DCD

Guittone, veja-se, deixou que os tercetos (a parte mais obre) continuassem com as rimas alternadas (cruzadas). E, quanto aos quartetos, decidiu, inovando, que as rimas passassem a ser emparelhadas (abraçadas) no interior, e abertas nas extremidades. No seu entender, quebraria, com isso, a corrente de 14 rimas, todas alternadas.

Capacitadas fontes (entre as quais a "Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura" — Editorial VERBO, de Lisboa; a "Enciclopédia Universal Ilustrada Europeo-Americana" — Espasa Calpe S.A. Madrid, etc.) afirmam que foi Guittone d'Arezzo o primeiro a usar este esquema rimático. Descendo a detalhes, Guittone chamou a atenção dos poetas para a pausa que deve haver entre as quadras e os tercetos; a independência, embora pouco acentuada, que convém existir entre as próprias quadras; e a supressão da "cauda", ou "estrambote", excrescência que considerou desnecessária, conquanto já estilizada, então, por alguns poetas da escola siciliana.

Julgava ele que, assim, poderia fazer da primeira parte (os dois quartetos) uma espécie de introdução à ideia que se desdobraria, inteira, na segunda parte (os dois tercetos). Supõem muitos que, com essa estratégia, com esse ardil, o soneto passou a exercer uma função semelhante à dos epigramas dos antigos.

Guittone, ao plantar essa árvore encantada, antecipou, também, que o soneto se comporia melhor com versos decassílabos de rimas graves, argumento praticamente decisivo para lhe atribuir a origem italiana. É bom lembrar que a língua francesa não se ajusta a essa particularidade. Não foi por motivo outro que os franceses inventaram o verso alexandrino (dodecassílabo), mais adequado à natureza do seu idioma. Até por fundamento etimológico, o vocábulo soneto, tanto nas línguas neolatinas, corno célticas, provém do ítalo sonetto, estando no mesmo caso quartetto e terzetto.

Guittone desempenhou, portanto, um papel importantíssimo na cristalização da estrutura do soneto. Pôs em prática o ideal de perfeição da escola siciliana.

Com o correr do tempo, a rigidez na ordem das rimas deixou de ser uma obrigatoriedade, embora jamais fosse abolido o dever de se utilizar o mínimo de quatro e o máximo de cinco rimas, em todo o poema. Fora disso, tudo pode, até, ser poesia, mas não é o soneto clássico.

Os quartetos, normalmente, podem ser armados com:

ABBA ABBA
ABAB ABAB
ABBA BAAB
ABAB BABA

Quanto aos tercetos, que se movimentam com relativa liberdade, comportam muitas variações, como:

CDC DCD
CCD EED
CDE CDE
CCD EDE
CDE DCE
CCD DEE
CDD DCC
CDE EDC
CDE DEC
CDD CEE
CDC EDE etc.

Ao ser criado, era, apenas, uma canção de amor. Mas, como acontece em qualquer atividade recém-vinda ao mundo, as primitivas manifestações do soneto foram, também, deturpadas. Logo no início, sua aplicação desviou-se um tanto das belas-artes. Por pouco tempo, felizmente.

Primeiro, como lembra Klabund, "os güelfos e gibelinos dele se serviram, a fim de fazerem suas polêmicas em versos". Güelfos e gibelinos eram nomes que provinham de famílias alemãs rivais. Em 1215, travaram-se contendas fratricidas, do mesmo tipo, entre duas grandes famílias florentinas. Os guelfos apelaram para o ex-rei da Germânia, Otto, que havia sido destronado por Frederico I e os gibelinos para o próprio Frederico II — dividindo, assim, a nobreza de Florença e de outras cidades da Itália. Os partidários do papado se declararam guelfos. Lutas aguerridas desuniram a Itália e ensanguentaram as povoações. Os guelfos levaram vantagem em Florença, Milão, Bolonha, Ferrara, Pádua e Mântua. Os gibelinos, em Cremona, Modena, Rimini, Pavia, Siena, Lucca e Pisa. Os vencidos eventuais de cada partido eram massacrados, ou então exilados, como foi o caso de Guido Guinizelli e de Dante (guelfos).

Essas guerras civis só chegaram ao término após a transferência do papado para Avignon, na França. Haviam começado no século XII, cessando as hostilidades somente no fim do século XV, em 1494.

Também foi, o soneto, segundo a Enciclopédia Mirador Internacional, "recheado com todas as invenções provençais, muitas coincidentes com os conceitos dos poetas eróticos romanos (e, portanto, dos epigramistas gregos)".

Como, porém, teria de acontecer, o soneto, retornando à finalidade lírica para a qual foi criado, começou a se espalhar por todos os países, fazendo carreira.

Contra as artificialidades acima referidas, surgiu a reação de Guido Guinizelli (1240-1276), criando a Escola do "Dolce Stil Nuovo".

De acordo com a mesma fonte (Enc. Mirador), "nessa escola se desenvolveu a concepção platônica do amor, transfigurando-se a dama num ser superior e angélico; nada há de pecaminoso ou torpe no amor; as comparações do poeta são tiradas da natureza; combinam-se a devoção e a visão filosófica".

Seguiram-no Guido Cavalcanti (1255-1300), seu discípulo, e Dante Alighieri (1265-1321).

Guido Cavalcanti, nobre no sangue e na poesia, dispensava ao soneto carinhos enternecedores. Dante e Guido foram contemporâneos, amigos e participantes da nova escola. E Dante considerava tanto o valor literário de Guido, que lhe dedicou seu livro de estreia, a "Vita Nuova".

Na opinião idônea do historiador suíço Jacob Burckhardt (1818-1897), "Dante não precisaria ter escrito a "Comédia" para ser o primeiro poeta dos tempos modernos; bastariam, para isso, os sonetos (e a prosa com que os explica) da "Vita Nuova". Dante foi o primeiro a ver sua própria alma; o espírito humano dera um forte passo no conhecimento de sua própria vida secreta".

Ambos, Guido e Dante, praticamente, viram o soneto nascer. Então, esse poema, vagindo e, depois, mal engatinhando, já era grande, e maior, muito maior, viria a ser, pouquíssimos anos depois, com Petrarca.

São, ainda, palavras de Burckhardt, sobre a força do seu destino, promissor e radioso, já naquela época: "O soneto deve ser tomado como uma inefável bênção para a poesia italiana. A nitidez e a beleza de sua estrutura, o convite que fazia para elevar o pensamento na segunda parte, que se move mais rapidamente, a facilidade com a qual podia ser decorado, fizeram-no apreciado mesmo pelos maiores mestres. O soneto forçava a uma concentração de sentimentos, de modo tal que se tornou para a literatura italiana um condensador de pensamentos e emoções, como não havia na literatura de qualquer outro povo moderno".

Fonte:
Vasco de Castro Lima. O mundo maravilhoso do soneto. 1987. Disponível no Secular Soneto. Acesso em 11 maio 2023.

quarta-feira, 10 de maio de 2023

Therezinha D. Brisolla (Trov’ Humor) 08

 

João do Rio (Penélope)

Ora, precisamente, naquela tarde, tendo deixado o seu automóvel no canto da Avenida, a generala Alda Guimarães subia a rua do Ouvidor a pé, para a prova dos vestidos de meio luto no grande costureiro da moda.

Ia, como sempre, impenetrável. Alda Guimarães, que extraordinária mulher! Quando o marido morrera seis meses antes, ela já tinha uma legenda de honestidade heroica. O general, seu padrinho de batismo, e seu esposo, casara aos sessenta anos quando ela tinha vinte. Em vez de ciumento era paternal; em vez de fechá-la, passeava-a por todos os salões, dava recepções, queria mostrá-la como o facho da sua glória. E, apesar dos maldizentes dizerem Alda quase virgem, nunca ninguém ousou lhe atribuir sequer um flirt. Alda não amava o marido como o Romeu; mas respeitava-o. Assim, morto o marido e ela rica, bela, esplêndida, séria - o entusiasmo em torno da sua carne e da sua fortuna, foi grande. Rapazes das melhores famílias, aos quais nunca dera atenção, propunham-se para amantes e para maridos; maridos das suas amigas faziam questão de consolá-la. Se não se fechasse, teria a impressão de que a punham em leilão.

Alda Guimarães fechara-se no seu palacete de S. Clemente. A sociedade causava-lhe ainda mais horror sem a companhia do seu velho esposo. Certo não agia de tal modo por hipocrisia, e sim porque nunca amara, porque lhe parecia impossível o desejo e ainda mais o prazer. À sua camarada, a sra. Lúcia de Villaflor, cujos amantes eram inumeráveis, ela confessava:

- Que hei de fazer, se não sinto simpatia por ninguém?

- Mas, minha querida, uma senhora bonita e rica, sem um homem!

- Irei viajar com a Leônia, ao acabar o luto.

Estava convencida da própria invulnerabilidade. E ria, ao pensar naqueles homens todos da sua roda que tanto a irritavam com propostas indecorosamente idiotas. Ainda o melhor da coleção fora o general, bom, sem pretensões.

Era esse o estado de alma e de corpo de Alda Guimarães, ao subir a rua do Ouvidor, caminho do costureiro, quando viu num mostrador de modista uma curiosa e linda série de véus. Parou; deu-lhe vontade de comprar alguns; entrou. Como as vendedoras estivessem ocupadas, notou que vinha do fundo, servi-la, um rapaz, quase menino. Era moreno, forte, com dois grandes olhos molhados e um cabelo tão lindo que só o S. Sebastião de Guido Reni teria igual.

A sua ousadia era misturada de timidez. Ela sentiu o coração bater, um grande calor subir-lhe ao rosto. Reparou-lhe nas mãos. Eram grandes, másculas. Deviam ser quentes... Essa opinião atravessou-lhe o cérebro cristalizando a ideia de que seria bom tocá-las. Foi instantâneo. Encostou-se ao balcão para não cometer a tolice. Mas se retinha o ímpeto, olhava mais o rosto do adolescente, e via uma boca rasgada, vermelha, primaveral. Ele não se apercebia do efeito produzido. O seu esforço era para vender bem.

– Veja vossência estas voilletes...

Tinha uma voz quente, igual, envolvente, jovem.

- Não, decididamente não escolho hoje. Voltarei.

Saiu. Quase a correr. Pareceu-lhe que se operara nos objetos, nas coisas, nas pessoas uma transformação. Tudo esplendia, tudo ria, tudo era suave e alegre. No costureiro escolheu mais três vestidos, depois das provas. Depois na rua lembrou-se de tomar chá e resolveu logo o contrário. Passou pela casa dos véus, olhou sem querer e não viu senão as vendedoras. Tomou o automóvel. Os seus pulsos batiam e as extremidades estavam geladas, as extremidades dos seus lindos dedos. Em casa, foi-lhe impossível jantar. Quis ler. Suspirou, incapaz de atenção. Dentro dos seus olhos, enchendo-lhe os sentidos estava a figura morena e forte, com os cabelos em cachos e as mãos que deviam ser quentes. Deitou-se. Revolveu o leito. Que solidão! Que imensa solidão! Nem a si mesma ousava confessar a impressão instantânea...

No dia seguinte, porém, como acordasse fatigada da agitada insônia, as palavras que dormiam no seu lábio ansiosas soaram a contragosto.

Seria uma simples incidência do desejo esparso na cidade, aproveitando o momento de abandono de sua alma, o momento em que estava menos preparada a resistir? Mas resistir a quê? O rapaz era um simples empregado de casa de modas, que não lhe dera nenhuma atenção especial. Nem podia. Nem devia. Nem ela consentiria. O desagradável é que ele não existia socialmente, não tinha um nome, um título, uma família ao menos. Nunca por consequência poderia pensar em fazer-lhe a corte. Loucura! Ela, generala, ela que se recusara às tentações dos leões dos salões, ela que afastara propostas de homens admirados, ela invulnerável tendo no cérebro a hipótese não de um flirt mas de qualquer coisa de mais positivo com um pobre pequeno. E ao lembrá-lo assim com pena, via-o de novo, modesto, ingênuo, jovem, tão jovem! Não era possível que outras mulheres ainda não tivessem reparado naquela juventude. Com certeza, pobre, já teria tido amantes ordinárias, dessas mulheres que estragam os rapazes e que são livres, inteiramente livres... Talvez mesmo, num estabelecimento onde entram tantas mulheres elegantes, alguma grande cocotte. Mas não! Ele não parecia contaminado. Ele era novo em folha. Coitado.

Uma languidez, entremeada de agitações, reteve-a nos aposentos até a hora do almoço. Desceu. Almoçou como quem tem medo de perder o comboio. Sentou-se ao piano. A música pareceu-lhe o muro imponderável do isolamento em que vivia. Não pôde mais. Subiu. Vestiu-se com requintes e imensas bondades para Leônia, mandou preparar o automóvel, seguiu para a cidade achando urgente escolher os modelos dos novos vestidos. Quando o automóvel parou, foi como se de repente tivesse de decidir da vida. Tinha um enorme peso nos ombros, arfava, tremia, e as vozes chegavam-lhe aos ouvidos como aumentadas por um tubo acústico. Sentia a vertigem e não sabia bem por quê. Andou assim pela rua. Parou diante da montra, ergueu os olhos para ver através dos vidros o interior do estabelecimento. As vendedoras moviam-se servindo as freguesas. Lá ao fundo o rapaz estava a despachar uma cliente. Tinha outro fato. Estava de claro. O esplendor da sua mocidade era maior.

Entrou, sem hesitar; foi direto a ele.

- Pode mostrar-me os véus de ontem?

Ele fez um rápido esforço para recordar-se.

- Ah! Perfeitamente. Um momento, minha senhora...

E ela ficou, humilhada, com o temor de que alguém da loja fosse desconfiar. Passara uma tarde inteira, uma noite inteira, a manhã toda a pensar naquele ente, ela que bastaria acenar para ter vários secretários de legação, e ele não se lembrava dela - vulgar, vulgaríssimo, talvez nos braços de outra criatura. Mas ele vinha solicito, comercial, querendo mostrar-se negociante, com o orgulho infantil de vender bem.

- Nem lembrei que vossência esteve cá ontem. São tantos os fregueses!

Essa ingenuidade deu a ela um pouco de ousadia:

- Que memória!

- Mas logo lembrei. Até estive a mostrar-lhe umas voilettes.

E sorria. Ela então pôs-se a ver os véus de que não tinha aliás necessidade. Ele abria caixas e caixas. Sobre o vidro do balcão jaziam rendas, gazes, tecidos aéreos de todas as cores. Ela, inconscientemente, estabelecera a confusão fatigosa como um estrategista, para tocar uma daquelas mãos que deviam ser quentes e macias. No momento propício, vinha-lhe um frio e não ousava. Para não o desagradar, apartava mais um véu, e continuava. Sofregamente as suas lindas mãos contraíam-se de jaspe sobre o multicor das gazes. O seu colo arfava. Sentia a boca seca, não podia quase falar. Que iria acontecer se conseguisse? Ele compreenderia? Ele falaria cheio de vaidade com a aventura enorme? Ele não recusaria. E depois? E depois?

- Veja a senhora este que é o mais fino.

Ele curvara-se, segurando o véu com as duas mãos. Ela pendeu para a frente de modo a sentir-lhe a respiração. Cheirava a flor murcha. O seu respirar era um arfar de olores. Alda, com um indizível prazer que a percorria toda. estendeu ambas as mãos. Os seus dedos como por acaso roçaram pelas mãos do rapaz. Não se enganara! Elas tinham um morno calor suave ao gelo dos seus dedos.

- Perdão! – disse ele largando o véu.

Ela olhou-o com toda a súbita paixão do instinto, sem forças. Ele ainda não compreendia, tão longe da possibilidade que a sua juventude não tremia. Mas o olhar continuou, continuou carregado de desejo e de súplica, pesado de coisas loucas e deliciosas. Ele sorriu meio indeciso. Ela suspirava forte. olhando-o. Um risco de malícia ingênua clareou-lhe a boca vermelha. Ela estendeu o véu, sem dele despregar o olhar que sorria. Os olhos dele como quiseram adivinhar. Uma onda de sangue encheu-lhe o rosto.

- Minha senhora...

- Como se chama?

- Ferreira. Manoel Ferreira. Onde devo mandar os véus?

No cérebro de Alda Guimarães uma luta entre o receio e o desejo retinha sua resposta.

Com violência e em seu desvario dizia-lhe todos os pavores do preconceito. Com maior força os sentidos inebriados arrastavam-na. Manoel! Um nome bom, macio. E aquelas mãos, aquele hálito, aquela saúde esplendorosa, aquele cabelo... Que fazer? Que fazer? Dar a direção da sua casa? Nunca se comprometeria até aquele ponto. Ia dizer alguma coisa e disse:

- Por que não os leva o senhor mesmo?

Depois da pergunta, o sentimento de pudor foi tanto, que não percebeu o rapaz, tão atônito quanto ela, baixando a voz, murmurando:

- Só quando fechar a loja! É longe?

Foi preciso que ele repetisse a pergunta. Como despedaçada ela indicou o palacete, saiu sem o olhar, trêmula, palpitante, com a face afogueada e os lábios secos. Chegou assim até o automóvel, teve que cumprimentar o secretário da Bélgica, solteiro; recebeu já instalada a saudação longa do velho Lloyd Balfour da embaixada americana, e quando mandou tocar, sucedera-lhe à atordoação um nervosismo de se explicar a si mesma, de se desculpar, de salvar-se do instante alucinado. 

Ela que jamais tivera uma aventura, ela que não pecara por não sentir necessidade alguma, ela honesta que compreendia o outro sexo pelas profissões: um diplomata é um diplomata, um general é um general, um jardineiro é um jardineiro vendo de súbito num pequeno caixeiro de modas um homem! Como podia se ter dado esse horror delicioso? Era preciso afastar as suspeitas dos criados. Lamentáveis, aliás. Porque livre não era livre, e temia preconceitos quando todas deviam fazer coisas idênticas. 

Para se desculpar encontrava na memória as intrigas e as calúnias do seu mundo contra várias senhoras bem recebidas: o escândalo de Sofia Marques com o motorista, o divórcio de Adalgisa Gomensoro por causa de um rapaz que ninguém conhecia, mil histórias outras. Depois, ninguém saberia se ela realmente realizasse. A essa hipótese, um tremor a sacudia. Podia ser um mariola que a difamasse e que até explorasse. Mas tratava-se de um quase menino. Ele não podia ter mais de dezoito anos. E tinha a face ingênua no envolvente e rápido vigor, acrescido de manhãs passadas ao ar livre - porque necessariamente com aqueles ombros, aquela cinta estreita, aquelas mãos, Manoel havia de remar. E as palavras objetivaram-lhe na mente a criatura inteira. Que vergonha! Como seria bom acariciá-lo, beijar-lhe a cabeleira negra, os olhos molhados de luxúria ingênua, apertar-lhe os braços e adormecê-lo de encontro ao peito...

Desse confuso pensar surgiu-lhe a ideia de estabelecer um plano capaz de evitar todas as suspeitas, apesar de não ter nenhum projeto, nem mesmo o de mandar entrar o rapaz. Saltou assim no palacete, pálida, resoluta como um estrategista, espiando nos olhos dos criados a possível desconfiança, subiu aos aposentos acompanhada de Leônia, Leônia a sua defesa! Mas acabava de enfiar um roupão, quando Leônia indagou:

- A senhora não sai mais hoje?

- Por quê?

- Porque se não sair e não receber nenhuma das suas amigas, eu pediria para sair esta noite. É o meu dia de passeio e iria ao teatro.

Alda Guimarães estarreceu. Era a fatalidade. Iria ficar só com o seu desejo? Jamais! Jamais! Não poderia resistir. Voltou-se para dizer a Leônia que adiasse o teatro. Mas ouviu-se dizer:

- Não; podes ir...

E imediatamente achou que devia responder aquilo mesmo, e imediatamente admirou a calma, a naturalidade com que respondera. Leônia não acreditaria no que poderia estar para acontecer. Assim, desde a resposta, dividiu-se em mente: A Alda picada pela tarântula representava um estado de sub-nconsciência, e Alda calma assistia à representação como no cinematógrafo. Que inteligência! Que lucidez!

- Vou passar a noite lá embaixo, ao piano... Podes sair já.

Preparou-se com cuidado, vestiu um vestido absolutamente de interior tanto no seu mole e flutuante modelado a exteriorizava. Desceu para o jantar. A vida solitária, a tristeza dessa vida como a sentia agora no seu interminável bocejo sem preocupações. Era possível existir assim? Não jantou quase. O copeiro grave passava os pratos, sem que ela os tocasse. Antes da sobremesa ergueu-se. Voltara-lhe a ansiedade como um acesso de febre. Todos os ruídos da rua chegavam-lhe aos ouvidos como chamadas de campainha - as chamadas que anunciariam a presença do pobre pequeno. Afinal não se tratava de nenhum personagem! Era pueril o seu medo.

- Antônio, se vier hoje um menino com uma encomenda de véus, manda-o entrar. Quero vê-los à noite antes de os comprar.

- Sim, minha senhora.

- Ah! Não estou para ninguém.

Foi para a pequena saleta íntima, onde havia dois enormes divãs. A saleta, mobiliada com muito gosto, era como certos salões de França, depois das relações com o Grão-Turco - meio francesa meio otomana. E dava para a galeria de entrada. Recostou-se, fechou os olhos. Todo o seu ser enchia de imagem e do desejo da imagem que a desnorteara. O coração batia-lhe de modo que sentia nas artérias do pescoço o seu desordenado bater. Agora, posto que não tivesse definido o futuro, só a assaltava um receio: viria ele? No imenso silêncio, o receio era quase angústia. Era capaz de não vir! Timidez decerto. Talvez, porém não tivesse agradado. Podia ser... O ridículo de desejar e ser repelida... 

Pela primeira vez reparou de fato numa pêndula (relógio de pêndulo) de Boule que o falecido general comprara em Paris num leilão do Hotel Druot. A pêndula tinha um mostrador tranquilo e desanimado. Dizem que o tempo é breve. Não viram o tempo que leva um ponteiro a andar cinco minutos! Quanto pensamos e realizamos e queremos e arfamos na terra para o desconhecido enquanto um relógio pesponta, à toa, cinco longos, intermináveis minutos! Se ele chegasse, se ele não chegasse! O ruído do relógio parecia compor essa alternativa, falar a gangorra do seu pensamento, enquanto a sua carne era como que aos poucos aquecida por um aflitivo desejo de consolo.

De repente houve um breve retinir de campainha. Alda Guimarães teve um sobressalto como se a tivessem tocado na nuca com uma ponta de gelo. Tomou de um livro, abriu-o. Como os criados são lentos em abrir as portas! Era a eternidade positivamente. A campainha fez-se ouvir de novo, ainda mais breve e tímida. Um enternecimento pelo que aquela rápida vibração exprimia fê-la sorrir. O criado passou enfim, devagar, como compete a um criado de casa importante. Ela ouviu um rumor indistinto. O criado tornou a aparecer:

- É o rapaz com os véus. Mando entrar?

- Dê mais luz. Mande.

Fechou os olhos, de pé. Um turbilhão parecia arrastá-la. Quando os abriu, à porta da saleta, respeitoso, com um grande embrulho, estava o adolescente. Ela via-o inteiro, dos pés à cabeça, e era como se visse, vestido, um dos muitos S. Sebastião em que os sensualistas do renascimento derramaram o seu amor pela pulcra forma dos efebos entontecedores. O criado, ao lado, estava firme. Alda Guimarães fez um esforço:

- Trouxe a encomenda?

- Sim, minha senhora.

- Quero vê-los antes, à luz. Pode ir, Antônio.

- Vossência permite? gaguejou o rapaz.

- Entre. Pode desfazer o embrulho nesse divã.

Com um motivo profissional para mascarar o seu enleio andou até o divã num passo que era leve e forte, curvou-se numa curva de estatuária, sem esforço, macio e vigoroso. Talvez tivesse ainda dúvidas, juventude enrodilhada na inexperiência e assustada com aquele luxo que tornava inacessível a mulher ao lado.

Alda Guimarães sentou-se no divã, admirando-o. Como era diverso dos indivíduos que conhecera, rapazes e homens na sua sociedade - que vinca tanto as criaturas na mesma dobra!

- Vossência desculpe eu ter demorado um pouco.

Ela reparava agora no pêssego maduro que era o seu pescoço. Uma desorientada vontade de mordê-lo obrigou-a a indagar:

- Por que não mandou outro?

- Vossência disse que eu mesmo trouxesse. O que eu não pensei é que desejasse ver de novo os véus.

Essa ingenuidade trouxe a Alda uma súbita confiança.

- Não tem levado encomendas a outras casas?

- Não, minha senhora. Isso é para empregados de outra categoria, os principiantes...

- Ah! Já tem uma categoria?

- Oh! bem modesta.

- E que idade tem?

- Fiz dezoito.

- Era o que eu pensava.

Houve um enorme silêncio. Ele abria as caixinhas.

- Diga-me, Sr. Manoel, faz esporte?

- Um pouco de remo, ao domingo, para divertir.

- Era o que eu pensava. Mas para divertir? Na sua idade há outros divertimentos.

- É uma questão de gosto.

Graças ao hábito de sociedade, ela não só falava com desembaraço como falava com o tom de quem trata com um inferior. Graças ao seu oficio ele respondia com desembaraço, conservando o tom de respeito para com alguém socialmente superior. O instinto aproximava-os para a maior das igualdades. Ele indagava sem o saber com a desconfiança maliciosa: "Onde vai ela chegar?" Ela pensava, com o desejo palpitante: "De que modo resolver tudo isso?" Se ela estivesse diante de um cavalheiro da mesma roda a ânsia do imprevisto não existiria, já teria passado à declaração caso consentisse. Se ele estivesse diante de qualquer mulher não indagaria nada. Fatais estados d'alma que se dão sempre quando incide o desejo em seres de diferente situação social. E tão terríveis que o mais desvairado amor não faz esquecer nem a uma superioridade nem a outro grau abaixo. Assim ele poderia arruiná-la, difamá-la, espancá-la até. Nunca esqueceria a preferência e se não fosse muito bom, estaria perdido, cheio de ambições. Assim ela poderia sofrer, amar, perder-se. Mas seria sempre a criatura que dava a preferência...

Nenhum dos dois pensou exatamente isso. Ficaram na pergunta que é a resolução do problema imediato nesse gênero de choques, ele não ousando, ela não querendo ousar para não parecer mal. Mas as mulheres, mesmo as mais honestas como Alda Guimarães, são fortes quando desejam.

Alda Guimarães ergueu-se, tomou um dos véus na ponta dos dedos, agitou-o.

- Como é lindo, à luz!

Ele sorriu.

- Vossência acha?

- E você? Veja!

Agora tomava dos véus - um, dois, cinco - verdes, brancos, cor-de-morango, negros. Eram como amputações de asas de uma ornitologia nigromática em torno dela. As suas mãos cada vez passavam mais perto do rosto de Manoel, cujo sorriso ia se esteriotipando numa fixidez angustiosa. De repente ela voltou-se. As mãos dele caídas sentiram o roçar breve do corpo dela. Ela escorregou no divã bem junto, a cabeça erguida para ele. Manoel ficou sem coragem de avançar nem de recuar.

- Mas, minha senhora...

Os olhos dela, a boca que ela tinha formosa não podiam mais, revelavam demais - porque de súbito ela viu o semblante do adolescente convulsionar-se, os olhos luzirem, um vinco brusco tornar-lhe severo o semblante, todo ele tremer como queimado por um simoun de desejo, que lhe fazia bater os dentes, e a sua voz rouca indagar, enquanto passava a vista pelas portas:

- Não vem gente?

Alda não soube que gesto fez. Ele curvou-se, a sua boca magnífica sorveu-lhe a dela como se sedenta chupasse um fruto cheio de sumo. Ela tremeu na mesma febre passando-lhe os braços no pescoço. Então ele despejou-a no divã em súbita fúria. Um imenso, delicioso, doloroso acorde de prazer - o prazer que nenhum dos dois sonhara, sacudiu as almofadas do divã. Sem pensamentos, sem outro fim, alheios ao orbe inteiro, no frenesi de atingir ao bem supremo, atingiram o sumo gozo brevíssimo que é a felicidade única da terra.

E foi com infinita amargura que os pretendentes souberam da partida da incorruptível e formosa Alda Guimarães, oito dias depois de a verem na Avenida, em meio luto da viuvez.

Ia num péssimo vapor francês, só com Leônia e radiante. Ninguém, porém, poderia desconfiar que entre os outros passageiros, havia o amor...

Fonte:
Disponível em Domínio Público.
João do Rio. Contos, in https://pt.wikisource.org/wiki/Pen%C3%A9lope

Caldeirão Poético LXII


Delson Tarlé
(Rio de Janeiro)

RESUMO

Imenso mar de amor. Flutuo, em febre,
sobre ti. Temerário, me condeno
ao vendaval do teu corpo moreno,
em que talvez a minha nau se quebre.

Agora, ilha de paz. Sou ave, lebre,
nimbo e céu. Se teu beijo tem veneno,
tem hálito de flor... O olhar sereno
entra em mim como o luar por um casebre.

És raio, és onda, és fúria, és vendaval,
e és voo, és flor, és luar, és paz sentida,
o que minha alma espera e o corpo quer.

Alma tão pura e carne tão sensual!
Céu e Terra, Alma e Corpo, Sonho e Vida
vêm resumir-se em ti, porque és mulher.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Elton Carvalho
(Rio de Janeiro/RJ, 1916 – 1994)

LAVRADOR

Nem bem surgiu o rubro da alvorada,
nem bem a noite se aquietou no monte,
já vai o lavrador levando a enxada
e se perde nos longes do horizonte.

E, após uma exaustiva caminhada,
antes mesmo, sequer, que o sol desponte,
rega a terra querida e abençoada
o suor que lhe escorre pela fronte!

Os que tratam da terra todo o dia
e fazem do trabalho uma alegria
têm a chama divina dos heróis.

Há centelhas de luz nos seus destinos:
lavradores são deuses pequeninos
que, da terra e do nada, criam sóis!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Elza Capanema Leitão
(Rio de Janeiro/RJ)

FASCINAÇÃO

Esculpi, com ternura, a musa inspiradora,
querendo dar meu sangue à pedra dura e fria...
Manejando o buril — ardente e inovadora,
de repente, aos meus pés, Apolo ressurgia!

Uma fascinação nasceu — devastadora,
e, enamorada, eu quis, num passe de magia,
dar vida ao seu perfil de estátua sonhadora,
na luta de um artista, amante, em euforia.

Nas formas divinais, loucamente, procuro
uma prova de amor — o que a minha alma anseia,
neste abismo total —, um desejo inseguro!

Porém, inutilmente, a estátua olha distante,
sem perceber a dor e a lágrima que alteia
esta fascinação estranha e apaixonante.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Flamínio Caldas
(Campos dos Goytacazes/RJ, 1886 – 1907)

CANÇÃO DA AGONIA

Quando o sangue parar em minhas veias
e cair sobre mim o véu da morte,
tu, que quebraste todas as cadeias
por nosso amor, sê corajosa e forte!

Possam meus olhos, no final transporte,
Ver-te os olhos enxutos. Rindo, creias,
eu cumprirei contente a minha sorte,
aliviado das lágrimas alheias...

Na hora extrema, não quero ver tristeza...
Fale a voz da alegria em cada canto,
nade na luz do sol a natureza!

Que venha, então, a deusa amortecida!...
Mas não chores, que foi todo de pranto
o caminho que fiz por esta vida!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Idália Krau
(Rio de Janeiro/RJ, 1912 – ????)

A MORTE DO POETA

De asas pandas, o pássaro da morte
rondava aquela noite de tristeza...
Implacável e frio, o vento norte
nossa casa açoitava com rudeza.

O corpo de meu pai, outrora forte,
jazia inanimado sobre a mesa...
Cada círio a queimar em seu suporte,
era a lágrima, a dor chorando acesa!

Finda-se a vida, mas, nem tudo finda,
e ao ler seu livro vi que existe ainda
o eterno coração de um grande esteta;

pois, sua alma cantando em cada verso,
é a doce afirmação, para o Universo,
de que é imortal a vida do Poeta...
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Jacinto de Campos
(Canavieiras/BA, 1900 – ????, Rio de Janeiro/RJ)

AS DUAS PALMEIRAS

Quando passo, buscando a humana lida,
a alma repleta de ilusões tão várias,
junto à velha choupana carcomida,
vejo duas palmeiras solitárias...

Uma a reverdecer... a outra caída,
num desmancho de palmas funerárias...
E, ao som da harpa do vento, a que tem vida,
saudosa plange salmodias e árias...

Ó tu, que me olvidaste no caminho,
meu coração deixando como um ninho
vazio e triste ao vento balouçando,

a saudade me diz, como em segredo,
que és a palmeira que morreu bem cedo
e eu sou aquela que ficou chorando...

Fonte:
Vasco de Castro Lima. O mundo maravilhoso do soneto. 1987.