sexta-feira, 23 de junho de 2023

Lucy V. Hay (Como Escrever um Suspense) Parte 1: Iniciando a História

A função de uma história de suspense é deixar o leitor tenso do começo ao fim. Em geral, o enredo acontece antes de um crime, ao contrário dos livros de mistério, que visam investigar o crime consumado. Um bom suspense deixa o leitor instigado, o surpreende e envolve pessoalmente com a história. Para escrever seu próprio suspense, comece elaborando personagens complexos e uma trama sólida, sempre arriscando a pele do protagonista e, por fim, revise-o até ficar perfeito.

Parte 1: Iniciando a história

1. Escolha um subgênero

Para ter uma ideia melhor de sua história, comece pesquisando os vários tipos de suspense e escolhendo o que mais tem a ver com o que você quer escrever. Eis os mais comuns:

Suspense psicológico. Em geral, essas histórias têm um protagonista com algum transtorno mental e o enredo foca nesse aspecto para se desenvolver, tratando das razões do personagem.

Suspense de mistério. Nesse caso, a trama acontece ao redor de um crime de difícil solução, com um ritmo frenético e caótico.

Suspense com ficção científica. É uma trama de suspense que se passa dentro de um universo de ficção científica, com coisas como futurismo, viagem no tempo, tecnologia, mutação, alienígenas, etc.

Suspense de espionagem, como 007. Espiões, segredos, requinte, alto escalão da política, crises internacionais, armas sofisticadas, etc.

Suspense militar. Costuma se desenvolver em meio a uma guerra, real ou fictícia.

2. Junte várias ideias para a história

Pense em um enredo marcante. Os suspenses costumam ter um protagonista em conflito com outro(s) personagem(s), seja por ter sido a vítima ou o causador de algum mal, intencional ou não. Não tenha medo de escrever com base em seus gostos, conhecimentos e pontos de vista.

Por exemplo, você pode gostar do tema “morte e renascimento”, e escrever uma história em que o protagonista não morre por pouco, causando uma mudança de consciência nele.

Outra opção pode ser um herói tentando evitar que um crime aconteça. Nessa mesma linha, seu herói pode lutar para que um desastre não aconteça e impulsionar um desenvolvimento na sociedade através da solução de um enigma.

3. Construa personagens cativantes

Um aspecto fundamental da história são os personagens. Eles são responsáveis pelo desenvolvimento da trama e o protagonista não pode ser uma pessoa ordinária. Providencie para que ele tenha uma história relevante e interessante. Assim, será mais fácil escrever algo imprevisível, que dará a energia para o enredo.

Tente não usar personagens clichê, como o investigador atormentado, o agente frio e calculista do FBI ou a repórter curiosa e ambiciosa. Prefira algo mais criativo, faça personagens complexos e diferentes.

Por exemplo, seu detetive pode ser cego e sempre ter a companhia de um cão-guia em suas investigações; o agente do FBI pode ter um passado sombrio e precisar resolvê-lo. Saia das linhas tradicionais, use características que os tornem únicos, sem estereótipos.

4. Leia outras histórias de suspense

Quanto mais intimidade com o gênero você tiver, melhor. Vá atrás de todos os sub-gêneros, informe-se sobre o que tem sido publicado. Alguns bons exemplos são:

”O Silêncio dos Inocentes” de Thomas Harris.

“Millenium: Os Homens Que Não Amavam as Mulheres” de Stieg Larsson.

“Rebecca” de Daphne Du Maurier.

“O Talentoso Ripley” de Patricia Highsmith.

“A Assombração da Casa da Colina” de Shirley Jackson.
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Lucy V. Hay é uma autora, roteirista e blogueira que ajuda outros escritores através de workshops, cursos e de seu blog, Bang2Write. Lucy é produtora de duas séries de suspense britânicas e seu romance de estreia, "The Other Twin', está sendo adaptado pela Free@Last TV, que também produziu a série indicada ao Emmy "Agatha Raisin".
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continua…

quinta-feira, 22 de junho de 2023

Daniel Maurício (Poética) 54

 

Leandro Bertoldo (A Sabedoria do desapego)

Certa vez um sábio caminhava em silêncio por uma praia deserta junto a um de seus jovens  discípulos, quando ele lhe perguntou:

— Mestre ensina-me a arte do desapego? Em minha humilde opinião é a mais preciosa de todas as artes!

— Você já construiu um castelo de areia?

— Não, Mestre! Para quê o faria?  São feitos de meras ilusões!

— Construa, cuide, aproveite, desapegue-se!  Orientou o Mestre, seriamente. Jamais altere essa ordem.

O jovem sentou-se na areia e começou a engenhar uma suntuosa arquitetura de areia. Aquelas horas que se sucederam, nas quais ele se dedicou àquele grande feito, não teve pensamentos paralelos, viveu e desfrutou daquele momento, não teve olhos para outra coisa. Estava no momento presente. Ele construiu, cuidou, aproveitou… Mas a maré subiu, as ondas se agitaram e o castelo se desmanchou.

Frustrado, mesmo já prevendo o que logicamente aconteceria, ele se recolheu ao descanso ali nas proximidades onde estavam em um retiro com demais colegas.

No outro dia, novamente caminhando com seu Mestre, o jovem relatou o ocorrido no dia anterior, na praia e o Mestre outra vez lhe recomendou:

— Vá e construa um castelo de areia! Construa, cuide, aproveite, desapegue!

E o jovem discípulo bastante desanimado obedeceu e construiu outro castelo de areia, ainda maior e mais belo que o anterior.  Ele construiu, cuidou, aproveitou e veio a maré e o levou!

Assim se sucedeu na praia por quarenta dias em que passou em companhia de seu Mestre, construindo castelos de areia. Construía, cuidava, aproveitava e se decepcionava quando as ondas vinham e os levavam sem dó, nem piedade.

Pela quadragésima vez o Mestre o recomendou:

— Construa um castelo de areia!

Dessa vez, o jovem construiu, cuidou, aproveitou e se foi, sem olhar para trás! Já não estava preocupado quando as ondas viessem para destruí-lo e o tomasse dele.

O Mestre o chamou e disse:

— Agora sim, você entendeu.
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Existem histórias que que é preciso se calar após a leitura para que possamos refletir… Essa é uma delas.

Fonte:
Árvore das Letras. Site do escritor.
https://arvoredasletras.com.br/2023/06/10/a-sabedoria-do-desapego/

Luiz Poeta (Poemas Escolhidos) – 15 –

ENTRA SEM PEDIR


Entra nos meus sonhos sem pedir...
Com suavidade e emoção
E não quererás nunca fugir
Do conforto do meu coração.

Entra... o nosso amor não se perdeu...
Quando tu quiseres retornar,
Dorme no meu sonho... eu serei teu;
Entra sem pedir que eu vou gostar.

Entra... quando o frio te envolver,
O meu coração vai te aquecer;
Pelo tempo que o amor quiser...

E quando estiveres sem carinho,
Pede, que eu sou um menininho
Procurando o amor... de uma mulher.
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EU TE DIRIA TANTO...

São tantas as palavras que eu diria...
poesia não se faz sem que ela diga
o que o encantamento fantasia,
e eu te diria tanto... minha amiga.

O amor nasce da dor... que ironia...
mas ele tem o dom da eternidade,
amar é celebrar a alegria...
... lembrar com alegria é ter saudade.

Não posso te abraçar fisicamente...
abraço a solidão e não reclamo,
porque, quando a saudade está presente

até a minha dor torna-se escassa
e então volto a sonhar e, enfim, te amo
e a dor brinca de amar... mas logo passa.
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NUM SIMPLES TOQUE

Tu és pétala de rosa... me maltrata
Maltratar teu coração num simples toque...
Meu amor por teu amor é sem retoque
Como um rosto que o espelho não retrata.

Tens espinhos, mas ferir-me só me mostra
Que no fundo te proteges do que eu sinto;
Meu amor é inevitável, não te minto:
Só de ver-te, aos teus pés ele se prostra...

Se tu partes, teu perfume é que fica
No silêncio, percorrendo os sonhos meus;
É difícil te perder tão sem adeus,
Quando a dor do meu amor te identifica...

Fecho os olhos quando quero te sonhar,
Entretanto, como pétala de flor,
Tu te soltas pela luz do meu olhar
E te perdes numa lágrima... de dor.
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QUEM HÁ DE

- Quem há de... - indagaste-me, vaidosa
fazer minha razão titubear?
Bailávamos... estavas tão charmosa,
e eu, perdido inteiro, em teu olhar.

- Quem há de... - retruquei - que causa às rosas
inveja, mesmo ao se despetalar?
e tu sorriste tão... maravilhosa...
que nem meu coração quis mais pulsar.

Fazendo do salão, a alegoria
do enredo de um sonho particular,
o enlevo conduziu-me à fantasia

e quando me dei conta, despertei...
- Quem há de ser feliz sem se deixar
levar por este sonho que eu... sonhei?
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SEM AVISO

A dor não marca hora... chega sem aviso,
a morte tem um guizo que só Deus escuta
porque ele acende a luz, que torna clara, a gruta,
matando a dor astuta só com um sorriso.

A dor só vai embora, quando a catapulta
de pétalas do amor sufoca o implacável
furor desse amargor, que é tão inaceitável,
que até seu próprio autor mantém sua arma oculta.

Então, o que resulta desse antagonismo,
antítese humana e sobrenatural,
é sempre a razão que olha o bem e o mal

e chega à conclusão que para ser feliz,
o amor entende a dor que é mestra e ele, aprendiz,
olhando sempre a vida com fé e otimismo.

Fonte:
Luiz Poeta. Nuvens de versos. Campo Mourão/PR: Ed. Jfeldman, 2020.

Machado de Assis (Lágrimas de Xerxes)

Suponhamos (tudo é de supor) que Julieta e Romeu, antes que Frei Lourenço os casasse, travavam com ele este diálogo curioso:

JULIETA. Uma só pessoa?

FREI LOURENÇO. Sim, filha, e, logo que eu houver feito de vós ambos uma só pessoa, nenhum outro poder vos desligará mais. Andai, andai, vamos ao altar, que estão acendendo as velas... (Saem da cela e vão pelo corredor).

ROMEU. Para que velas? Abençoai-nos aqui mesmo. (Para diante de uma janela). Para que altar e velas? O céu é o altar: não tarda que a mão dos anjos acenda ali as eternas estrelas; mas, ainda sem elas, o altar é este. A igreja está aberta; podem descobrir-nos. Eia, abençoai-nos aqui mesmo.

FREI LOURENÇO. Não, vamos para a igreja; daqui a pouco estará tudo pronto. Curvarás a cabeça, filha minha, para que olhos estranhos, se alguns houver, não cheguem a reconhecer-te...

ROMEU. Vã dissimulação; não há, em toda Verona, um talhe igual ao da minha bela Julieta, nenhuma outra dama chegaria a dar a mesma impressão que esta. Que impede que seja aqui? O altar não é mais que o céu.

FREI LOURENÇO. Mais eficaz que o céu.

ROMEU. Como?

FREI LOURENÇO. Tudo o que ele abençoa perdura. As velas que lá verás arder hão de acabar antes dos noivos e do padre que os vai ligar; tenho-as visto morrer infinitas; mas as estrelas...

ROMEU. Que tem? arderão ainda, nem ali nasceram senão para dar ao céu a mesma graça da terra. Sim, minha divina Julieta, a Via-Láctea é como o pó luminoso dos teus pensamentos, todas as pedrarias e claridades altas e remotas, tudo isso está aqui perto e resumido na tua pessoa, porque a lua plácida imita a tua indulgência, e Vênus, quando cintila, é com os fogos da tua imaginação. Aqui mesmo, padre. Que outra formalidade nos pedes tu? Nenhuma formalidade exterior, nenhum consentimento alheio. Nada mais que amor e vontade. O ódio de outros separa-nos, mas o nosso amor conjuga-nos.

FREI LOURENÇO. Para sempre.

JULIETA. Conjuga-nos, e para sempre. Que mais então? Vai a tua mão fazer com que parem todas as horas de uma vez. Em vão o sol passará de um céu a outro céu, e tornará a vir e tornará a ir, não levará consigo o tempo que fica a nossos pés como um tigre domado. Monge amigo, repete essa palavra amiga.

FREI LOURENÇO. Para sempre.

JULIETA. Para sempre! amor eterno! eterna vida! Juro-vos que não entendo outra língua senão essa. Juro-vos que não entendo a língua de minha mãe.

FREI LOURENÇO. Pode ser que tua mãe não entendesse a língua da mãe dela. A vida é uma Babel, filha; cada um de nós vale por uma nação.

ROMEU. Não aqui, padre; ela e eu somos duas províncias da mesma linguagem, que nos aliamos para dizer as mesmas orações, com o mesmo alfabeto e um só sentido. Nem há outro sentido que tenha algum valor na terra. Agora, quem nos ensinou essa linguagem divina não sei eu nem ela; foi talvez alguma estrela. Olhai, pode ser que fosse aquela primeira que começa a cintilar no espaço.

JULIETA. Que mão celeste a terá acendido? Rafael, talvez, ou tu, amado Romeu. Magnífica estrela, serás a estrela da minha vida, tu, que marcas a hora do meu consórcio. Que nome tem ela, padre?

FREI LOURENÇO. Não sei de astronomias, filha.

JULIETA. Hás de saber por força. Tu conheces as letras divinas e humanas, as próprias ervas do chão, as que matam e as que curam... Dize, dize...

FREI LOURENÇO. Eva eterna!

JULIETA. Dize o nome dessa tocha celeste, que vai alumiar as minhas bodas, e casai-nos aqui mesmo. Os astros valem mais que as tochas da terra.

FREI LOURENÇO. Valem menos. Que nome tem aquele? Não sei. A minha astronomia não é como a dos outros homens. (Depois de alguns instantes de reflexão) Eu sei o que me contaram os ventos, que andam cá e lá, abaixo e acima, de um tempo a outro tempo, e sabem muito, porque são testemunhas de tudo. A dispersão não lhes tira a unidade, nem a inquietação a constância.

ROMEU. E que vos disseram eles?

FREI LOURENÇO. Coisas duras. Heródoto conta que Xerxes um dia chorou; mas não conta mais nada. Os ventos é que me disseram o resto, porque eles lá estavam ao pé do capitão, e recolheram tudo... Escutai; aí começam eles a agitar-se;  ouviram-nos falar e murmuram... Uivai, amigos ventos, uivai como nos jovens dias das Termópilas.

ROMEU. Mas que te disseram eles? Contai, contai depressa.

JULIETA. Fala a gosto, nós te esperaremos.

FREI LOURENÇO. Gentil criatura, aprende com ela, filho, aprende a tolerar as demasias de um velho lunático. O que é que me disseram? Melhor fora não repeti-lo; mas, se teimais em que vos case aqui mesmo, ao clarão das estrelas, dir-vos-ei a origem daquela, que parece governar todas as outras... Vamos, ainda é tempo, o altar espera-nos... Não? teimosos que sois... Contar-vos-ei o que me disseram os ventos, que lá estavam em torno de Xerxes, quando este vinha destruir a Hélade com tropas inumeráveis. As tropas marchavam diante dele, a poder de chicote, porque esse homem cru amava particularmente o chicote e empregava-o a miúdo, sem hesitação nem remorso. O próprio mar, quando ousou destruir a ponte que ele mandara construir, recebeu em castigo trezentas chicotadas. Era justo; mas para não ser somente justo, para ser também abominável, Xerxes ordenou que decapitassem a todos os que tinham construído a ponte e não souberam fazê-la imperecível. Chicote e espada; pancada e sangue.

JULIETA. Oh! abominável!

FREI LOURENÇO. Abominável, mas forte. Força vale alguma coisa; a prova é que o mar acabou aceitando o jugo do grande persa. Ora, um dia, à margem do Helesponto, curioso de contemplar as tropas que ali ajuntara, no mar e em terra, Xerxes trepou a um alto morro feitiço, donde espalhou as vistas para todos os lados. Calculai o orgulho que ele sentiu. Viu ali gente infinita, o melhor leite mungido à vaca asiática, centenas de milhares ao pé de centenas de milhares, várias armas, povos diversos, cores e vestiduras diferentes, mescladas, embaralhadas, flecha e gládio, tiara e capacete, pelo de cabra, pele de cavalo, pele de pantera, uma algazarra infinita de coisas. Viu e riu; farejava a vitória. Que outro poder viria contrastá-lo? Sentia-se indestrutível. E ficou a rir e a olhar com longos olhos ávidos e felizes, olhos de noivado, como os teus, moço amigo...

ROMEU. Comparação falsa. O maior déspota do universo é um miserável escravo, se não governa os mais belos olhos femininos de Verona. E a prova é que, a despeito do poder, chorou.

FREI LOURENÇO. Chorou, é certo, logo depois, tão depressa acabara de rir. A cara embruscou-se-lhe de repente, e as lágrimas saltaram-lhe grossas e irreprimíveis. Um tio do guerreiro, que ali estava, interrogou-o espantado; ele respondeu melancolicamente que chorava, considerando que de tantos milhares e milhares de homens que ali tinha diante de si, e às suas ordens, não existiria um só ao cabo de um século. Até aqui Heródoto; escutai agora os ventos. Os ventos ficaram atônitos. Estavam justamente perguntando uns aos outros se esse homem feito de ufania e rispidez teria nunca chorado em sua vida, e concluíam que não, que era impossível, que ele não conhecia mais que injustiça e crueldade, não a compaixão. E era a compaixão que ali vinha lacrimosa, era ela que soluçava na garganta do tirano... Então eles rugiram de assombro; depois pegaram das lágrimas de Xerxes... Que farias tu delas?

ROMEU. Secá-las-ia, para que a piedade humana não ficasse desonrada.

FREI LOURENÇO. Não fizeram isso; pegaram das lágrimas todas e deitaram a voar pelo espaço fora, bradando às considerações: Aqui estão! olhai! olhai! aqui estão os primeiros diamantes da alma bárbara! Todo o firmamento ficou alvoroçado; pode crer-se que, por um instante, a marcha das coisas parou. Nenhum astro queria acabar de crer nos ventos. Xerxes! Lágrimas de Xerxes eram impossíveis; tal planta não dava em tal rochedo. Mas ali estavam elas; eles as mostravam, contando a sua curiosa história, o riso que servira de concha a essas pérolas, as palavras dele, e as constelações não tiveram remédio, e creram finalmente que o duro Xerxes houvesse chorado. Os planetas miraram longo tempo essas lágrimas inverossímeis; não havia negar que traziam o amargo da dor e o travo da melancolia. E quando pensaram que o coração que as brotara de si tinha particular amor ao estalido do chicote, deitaram um olhar oblíquo à terra, como perguntando de que contradições era ela feita. Um deles disse aos ventos que devolvessem as lágrimas ao bárbaro, para que as engolisse; mas os ventos responderam que não e detiveram-se para deliberar. Não cuideis que só os homens dissentem uns dos outros.

JULIETA. Também os ventos?

FREI LOURENÇO. Também eles. O Aquilão queria convertê-las em tempestades do mundo, violentas e destruidoras, como o homem que as gerara; mas os outros ventos não aceitaram a ideia. As tempestades passam ligeiras; eles queriam alguma coisa que tivesse perenidade, um rio, por exemplo, ou um mar novo; mas não combinaram nada e foram ter com o sol e a lua. Tu conheces a lua, filha.

ROMEU. A lua é ela mesma; uma e outra são a plácida imagem da indulgência e do carinho; é o que eu te disse há pouco, meu bom confessor.

JULIETA. Não, não creias nada do que ele disser, frei amigo; a lua é a minha rival, é a rival que alumia de longe o belo rosto do galhardo Romeu, que lhe dá um resplendor de opala, à noite, quando ele vem pela rua...

FREI LOURENÇO. Terão ambos razão. A lua e Julieta podem ser a mesma pessoa, e é por isso que querem o mesmo homem. Mas, se a lua és tu, filha, deves saber o que ela disse ao vento.

JULIETA. Nada, não me lembra nada.

FREI LOURENÇO. Os ventos foram ter com ela, perguntaram-lhe o que fariam das lágrimas de Xerxes, e a resposta foi a mais piedosa do mundo. Cristalizemos essas lágrimas, disse a lua, e façamos delas uma estrela que brilhe por todos os séculos, com a claridade da compaixão, e onde vão residir todos aqueles que deixarem a terra, para achar ali a perpetuidade que lhes escapou.

JULIETA. Sim, eu diria a mesma coisa. (Olhando pela janela) Lume eterno, berço de renovação, mundo do amor continuado e infinito, estávamos ouvindo a tua bela história.

FREI LOURENÇO. Não, não, não.

JULIETA. Não?

FREI LOURENÇO. Não, porque os ventos foram também ao sol, e tu que conheces a lua, não conheces o sol, amiga minha. Os ventos levaram-lhe as lágrimas, contaram a origem delas e o conselho do astro da noite, e falaram da beleza que teria essa estrela nova e especial. O sol ouviu-os e redarguiu que sim, que cristalizassem as lágrimas e fizessem delas uma estrela; mas nem tal como o pedia a lua, nem para igual fim. Há de ser eterna e brilhante, disse ele, mas para a compaixão basta a mesma lua com a sua enjoada e dulcíssima poesia. Não; essa estrela feita das lágrimas que a brevidade da vida arrancou um dia ao orgulho humano ficará pendente do céu como o astro da ironia, luzirá cá de cima sobre todas as multidões que passam, cuidando não acabar mais e sobre todas as coisas construídas em desafio dos tempos. Onde as bodas cantarem a eternidade, ela fará descer um dos seus raios, lágrima de Xerxes, para escrever a palavra da extinção, breve, total, irremissível. Toda epifania receberá esta nota de sarcasmo. Não quero melancolias, que são rosas pálidas da lua e suas congêneres; — ironia, sim, uma dura boca, gelada e sardônica...

ROMEU. Como? Esse astro esplêndido...

FREI LOURENÇO. Justamente, filho; e é por isso que o altar é melhor que o céu; no altar a benta vela arde depressa e morre às nossas vistas.

JULIETA. Conto de ventos!

FREI LOURENÇO. Não, não.

JULIETA. Ou ruim sonho de lunático. Velho lunático disseste há pouco; és isso mesmo. Vão sonho ruim, como os teus ventos, e o teu Xerxes, e as tuas lágrimas, e o teu sol, e toda essa dança de figuras imaginárias.

FREI LOURENÇO. Filha minha...

JULIETA. Padre meu, que não sabes que há, quando menos, uma coisa imortal, que é o meu amor, e ainda outra, que é o incomparável Romeu. Olha bem para ele; vê se há aqui um soldado de Xerxes. Não, não, não. Viva o meu amado, que não estava no Helesponto, nem escutou os desvarios dos ventos noturnos, como este frade, que é a um tempo amigo e inimigo. Sê só amigo, e casa-nos. Casa-nos onde quiseres, aqui ou além, diante das velas ou debaixo das estrelas, sejam elas de ironia ou de piedade; mas casa-nos, casa-nos, casa-nos...

Fonte:
Machado de Assis. Páginas Recolhidas. Publicado originalmente no RJ: Editora Garnier, 1899.
Disponível em Domínio Público

quarta-feira, 21 de junho de 2023

Tertúlia da Saudade 07: Cláudio de Cápua

 

A. A. de Assis (Geraldo amava Teresa)

Geraldo Henrique amava de paixão Teresa Helena. Teresa Helena amava de paixão Geraldo Henrique. Havia entre os dois, porém, um porém que atrapalhava: Teresa era rica à beça, Geraldo era um bom moço, todavia modestinho.

Deu então que o pai de Teresa, a mãe de Teresa, os irmãos de Teresa, todos em coro insistiam que aquilo não poda dar certo; era um desatino. Mocinha dengada, acostumada a ter tudo do bom e do melhor, como se sentiria se de repente tivesse que mudar de vida?

Fez-se na casa dela uma reunião de família para discutir a questão em pauta. Ficou decidido que o pai de Teresa daria um jeito de, sem humilhar o despretensioso pretendente, convidá-lo para uma conversa amistosa. Na hora agendada, entrou o rapaz meio assustado, mas de cabeça erguida, no escritório do possível futuro sogro.

Homem prático, o pai de Teresa foi direto ao tema: “Sei que minha filha e você têm projetos sérios. Se essa é a vontade dela, respeito e acato. Gostaria apenas de saber até que ponto você se sente em condição de manter uma família etc. etc.”. Geraldo Henrique não perdeu a dignidade: “Conforto igual sua filha tem na sua casa estou longe de prometer, mas o senhor pode ter certeza de que ela será sempre tratada com o maior carinho”.

– Você tem um emprego?

– Tenho, sim senhor. Trabalho num escritório de contabilidade.

O pai de Teresa, hábil negociador, viu logo que a solução estava ali.

– Ótimo. Além de ganhar um genro, vou ganhar um bom companheiro de trabalho. Estou exatamente precisando de um contabilista de máxima confiança para assumir a chefia das minhas contas. Garanto que o salário será bastante atrativo. Aceita?

Geraldo Henrique não conseguia crer no que estava ouvindo. O pai de Teresa cutucou:     

– Aceita ou não aceita? Se aceita, volte aqui amanhã cedo com os seus documentos e minha secretária providenciará o que for necessário.

Foi tudo assim mesmo, a galope. Uma semana depois, o recatado candidato a genro estava ali convocando a primeira reunião com o pessoal da contabilidade para discutir a nova política da casa e demais detalhes.

O pai de Teresa não era bobo não. Em silêncio, já havia algum tempo vinha estudando o jeitão do mancebo. Tinha o principal para dar certo: honesto, leal, seguro de si. E mais: pelo que ficou sabendo mediante pesquisa, tratava-se de excelente profissional.

Três meses após, o primeiro grande resultado: com o novo sistema adotado na administração, Geraldo Henrique descobriu uma série de furos nas contas da empresa e pôs tudo a limpo, de modo que no final do ano o lucro foi superanimador. De pronto Geraldo foi promovido a sócio.

Teresa Helena, a moça dengada que antes estava pronta para se casar com um moço modestinho, acabou tendo um casamento chique, lua de mel num navio, e mora hoje numa casa grande, bonita, rodeada de jardins.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo, Maringá/PR, 16.3.2023)

X Jogos Florais da UBT Campos dos Goytacazes - 2023 (Trovas Premiadas)


ÂMBITO NACIONAL
(lírica/filosófica)   

VETERANOS

Tema: Enredo

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VENCEDORES
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1º. Lugar:
Luiz Antônio Cardoso
Taubaté/SP

Tramei o melhor enredo
com sonhos, amor e paz,
mas veio o acaso e, em segredo,
deixou tudo para trás!...

2º. Lugar:
Manoel Cavalcante
Pau dos Ferros/RN

A Vida é um filme moderno
num belo enredo que explora
a finitude do eterno
e a eternidade do agora.

3º. Lugar:
Cézar Defilippo
Juiz de Fora/MG

Se a vida é um texto em tragédia      
entro em cena com sorriso,                
troco o enredo por comédia    
e interpreto de improviso.
         
 4º. Lugar:
Olympio Cruz Simões Coutinho
Belo Horizonte/MG

O nosso amor sem segredo
é o amor que eu sempre quis:
um filme de belo enredo
que teve um final feliz.

5º. Lugar:
Carolina Ramos
Santos/ SP

A vida é um intenso enredo
e sua leitura assusta.
 - Cada página ...  um segredo...
e entendê-lo, como custa!...

6º. Lugar:  
Dulcídio de Barros Moreira Sobrinho
Juiz de Fora/MG

Traças, no viver mortal,
os próprios enredos teus,
porém, o enredo final,
quem escreve é a Mão de Deus.

7º. Lugar:
Jerson Lima de Brito
Porto Velho/RO

Não me aflige o recomeço
e, embora a queda atormente,
encaro as dores e teço
um enredo diferente.

8º. Lugar:
Jair Zabotini
Bauru/SP

O final da minha trama
será, sempre, meu segredo,
porque destruí, na chama,
até o rascunho do enredo.

9º. Lugar:  
Carolina Ramos
Santos/SP

Nós dois...  Enredo tão lindo
para uma história de amor!
- E a vida o rasgou, sorrindo,
ao rimar amor... e dor!  

   10º. Lugar:
Luciano Izidoro de Borba
Tombos/MG

No enredo de cada vida,
por maior que seja a dor,
há uma grande saída:
- Seguir a trilha do amor!

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TROVA DESTAQUE
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 Paulo Roberto Oliveira Caruso
Rio de Janeiro/RJ

Quando escrevo o meu enredo
Deus é sempre o revisor;
sigo em frente, vou sem medo,
pois eu sei do Seu amor.
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ÂMBITO NACIONAL
(lírica/filosófica)   

NOVO TROVADOR

Tema: Regresso

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VENCEDORES
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1º. Lugar:
Wanda Cristina da Cunha e Silva
São Luiz/MA

Pra que serve a despedida,
se na saudade me expresso?
Transformo a tua partida
na espera do teu regresso.

2º. Lugar:
Mônica Monnerat
Santos/SP

No regresso à antiga casa,
dos meus tempos de criança,
sinto a emoção que extravasa,
a cada simples lembrança...

3º. Lugar:
Adelgício Ribeiro de Paula
Franco da Rocha/SP

Andei pelo mundo afora
porém, agora me apresso
pois tem alguém que me adora
esperando o meu regresso.

4º. Lugar:
Ana Welter
Toledo/PR

A emoção de maior brilho,
que aquele momento encerra,
ver a mãe que abraça o filho,
em seu regresso da guerra.

5º. Lugar:
Mônica Monnerat
Santos/SP

Regresso neste momento
a minha terra querida.
Cada cantinho, um fragmento,
da aurora da minha vida.

6º. Lugar:
Darcy Bandeirante de Azevedo Costa
Taubaté/SP

Depois de longa jornada,
hoje regresso ao meu lar,
com minha alma renovada...
repleta de amor pra dar.

7º. Lugar:
Antônio Roseli Nunes Pacheco
Itaperuna/RJ

Regressa, meu filho amado
pra esse velho que te adora;
o portão tem cadeado,
mas pra ti eu abro agora!

8º Lugar:
Luciano Dionísio dos Santos
Caruaru/PE

Desde tenra meninice,
palmilhando essa distância,
hoje, aporto na velhice,
de regresso à velha infância.

9º. Lugar:
Adelgício Ribeiro de Paula
Franco Rocha/SP

Um dia, contrariado,
resolvi sair de casa,
agora, mais resignado,
minha volta já se atrasa.

10º. Lugar:
Maria Luíza Peres Campos
Cambuci/RJ

Com soluços eu parti
busquei nos livros acesso.
Oh! Cambuci, eu venci,
mas hoje estou de regresso!
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ÂMBITO NACIONAL
(humorística)   

Tema: Rival

= = = = = = = = =
VENCEDORES
= = = = = = = = =


1º. Lugar:
Ângela Ramalho Xavier
Maringá/PR

Da rival quero distância,
passo longe, sem ruído,
mas em caso de vacância,
vou querer o seu marido.

2º. Lugar:
Sônia Nuss
Itaperuna/RJ

Com o rival, fico esperto,
na conquista, mato ou morro,
e se o morro não for perto,
é para o mato que eu corro!

3º. Lugar:
Janilce Simões
Campos dos Goytacazes/RJ

Pegou-me a frase de efeito
que a minha rival usou:
“Quem é que tem mais direito,
quem casou ou quem levou?”

4º. Lugar:
Elvira Drumond
Fortaleza/CE

Com ironia e desdém,
diz a moça pra rival:
— Sonhei contigo, meu bem,
chorava em teu funeral!

5º. Lugar:
Márcia Jaber
Juiz de Fora/MG

Um bilhete decidido
para a rival em questão:
- Podes levar o marido,
mas sem ter devolução.

6º. Lugar:
José Arthur Basaglia
São Paulo/SP

Discuto em qualquer lugar,
eu só, comigo somente,
porque gosto de brigar
com rival inteligente.

7º. Lugar:
Arthur Thomaz da Silva Neto
Sumaré/SP

Ah! Isso me deixa louco!
Ser rival de gente bela…
Faço tudo e mais um pouco,
mas ele é que sai com ela.  

8º. Lugar:
Dulcídio de Barros Moreira Sobrinho
Juiz de Fora/MG

O galo, esperto e vivido,
diz não ter rival de fato,
mas seu filhote nascido,
tem bico igual ao do pato.

9º. Lugar:
Dulcídio de Barros Moreira
Juiz de Fora/MG

O marido, no seu posto,
invocando a lei dos justos,
aceita rival disposto
a ressarcir os seus custos.

10º. Lugar:
Marciano Medeiros
Parnamirim/RN

Zé Cornélio, antigo alferes,
ao ver seus chifres crescidos,
ficou rival das mulheres,
tomando uns quinze maridos!
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ÂMBITO ESTADUAL
(lírica/filosófica)

Tema: Trama

= = = = = = = = =
VENCEDORES
= = = = = = = = =


1º. Lugar:
Maria Lúcia Spadarotto Neves
Itaperuna/RJ

Entrelaçada de amor
e envolvida em tua trama,
vou contigo aonde for...
Esta é a sina de quem ama!

2º. Lugar:
Maria Madalena Ferreira
Magé/RJ

Quem deve não fica impune,
um dia a "conta" aparece,
porque... ninguém fica imune
às tramas que a vida tece.

3º. Lugar:
Sérgio Bernardo
Nova Friburgo/RJ

Com tramas que ocultam dores,
quantos, em falsas comédias,
escrevem e são atores
das suas próprias tragédias.

4º. Lugar:
Sérgio Bernardo
Nova Friburgo/RJ

Do amor levado ao desgaste,
em cada cena infeliz,
tu simplesmente atuaste...
A trama fui eu que fiz.

5º. Lugar:
Paulo Cézar Tórtora
Rio de Janeiro/RJ

Perfeito na criação,
tudo em tramas bem urdidas,
o Supremo Tecelão
assim tece nossas vidas.

6º. Lugar:
Maria Madalena Ferreira
Magé/RJ

Sei que vives a sofrer,
mas sê forte, coração!
- Quem não se deixa envolver
nas tramas de uma paixão?

7º. Lugar:
Maria Caraline de Almeida Carvalhal
Itaperuna/RJ

Perdida nas entrelinhas
da vida, com várias tramas,
sei que nem todas são minhas,
então, não as torno dramas.

8º. Lugar:
Alba Helena Corrêa
Niterói/RJ

O ciúme urdiu a trama,
com poder devastador
e deixou vazia a cama:
o templo do nosso amor

9º. Lugar:
Edmar Japiassú Maia
Miguel Pereira/RJ

Sem talento, em cena aberta,
nas tramas que a vida armou,
vejo a plateia deserta:
que mau artista que eu sou!

10º. Lugar:
Ivone Marques Moreira
Nova Friburgo/RJ

Entre promessas e juras,
no seu jeito sedutor,
vivemos nossas loucuras
na doce trama do amor!
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ÂMBITO MUNICIPAL
Campos dos Goytacazes/RJ

(lírica/filosófica)

Tema: Campistês*
* Campistês = dialeto de Campos dos Goytacazes
= = = = = = = = =
VENCEDORES
= = = = = = = = =


1º. Lugar:
Cláudia Maria Guimarães Suheth

De “cabrunco”* e “lamparão”**
não sei “nadica de nada”,
é só “campistês”, irmão,
de uma terra abençoada!
= = = = = = = = =
* CABRUNCO = expressão usada para dar uma entonação mais forte a determinada coisa, no sentido bom ou ruim. Demônio, peste, desgraça. Deriva de "carbúnculo", doença bovina. Ex: O cigarro faz um mal do cabrunco; Vini Jr. é o cabrunco com a bola nos pés!
** LAMPARÃO = (xingamento) desgraçado, coisa ruim, filho da mãe...

= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  =

2º. Lugar:
Elyzabeth Carvalho Tavares da Silva

No cabelo, prendi “frisos*”,
e pedi o “engomador**”.
Ao me verem, ouvi risos,
envolta no “enxugador***”.
= = = = = = = = =
* FRISO - grampo de cabelo
**ENGOMADOR - ferro de passar
***ENXUGADOR - toalha de banho

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3º. Lugar:
Amália Marins

Esse cara é um “lamparão”,
já quebrou o “ingomadô”!...
O “tisgo”* caiu no chão,
mandei pro “consertadô”!
= = = = = = = = =
* TISGO = maldito.
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4º. Lugar:
Talita Batista

Sou goitacá, sou "cabrunca",
minha língua é o português,
mas não vou renegar nunca
meu linguajar campistês!

5º. Lugar:
Baurete Carvalho

Cabrunco, me apaixonei,
que sujeito “lamparão”!
Ah, “siminino*”, chorei,
fez “pocar**” meu coração!…
= = = = = = = = =
* SIMINO = alguém que não sei ou esquecí o nome (masculino)
**POCAR - estourarr
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6º.Lugar:  
Carlos Augusto Souto Alencar
“Dijaoje*”, meu irmão,
afirmo em bom português
que sou “tisgo” e “lamparão”
defendendo o “campistês”.
= = = = = = = = =
*DIJAOJE = desde já hoje; desde hoje cedo
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7º. Lugar:
Carlos Augusto Souto Alencar
O “campistês”, “siminina”,
“evem”* da nossa Baixada.
É cultura que fascina
e deve ser preservada.
= = = = = = = = =
* EVEM = vem, chega
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8º. Lugar:
Maria Lúcia Monteiro Xavier

Campos, bom pra se morar,
gente de bom coração,
“eita” povo pra falar,
esse tal de “lamparão”!

9º. Lugar:
Thays de Souza

Aqui na nossa cidade,
tem “cabrunco” e “lamparão”,
que causam curiosidade,
em todo nosso povão!

10º. Lugar:
Baurete Carvalho

O linguajar campistês,
típica expressão campista,
utiliza o português
com gíria regionalista.

Graciliano Ramos (Moqueca)

— Vou contar a história da cachorra e do porco brabo, anunciou Alexandre aos amigos uma noite escanchado na rede. Já falei nisto uma vez, se não me engano, quando me referi ao veado e às duas araras. Lembram-se? Os senhores conheceram nesse dia o alcance da lazarina (
espingarda de cano fino e comprido)que meu irmão tenente me ofereceu. Ora muito bem. Essa cachorra de que vou tratar hoje era uma pobre de Cristo, feia, magra e apareceu aí no pátio, sem ninguém saber donde tinha vindo, esfomeada e cheia de peladuras. Latia que era um Deus nos acuda, coçava-se nas estacas das cercas, esfregava-se nas pernas da gente e fazia nojo. Eu por mim não queria aquela infeliz em casa, mas Cesária, que tem um coração de ouro, tomou conta dela, deu-lhe comida e curou-lhe os achaques.

— Foi porque vi logo que a cachorra era diferente das outras, explicou Cesária, lá da esteira. Preta como carvão, tinha a ponta do rabo branca e uma estrela na testa. Estes sinais não falham.

— Estão ouvindo? exclamou Alexandre encantado com a sabedoria da mulher. Essa Cesária nasceu de encomenda. Que tino! Pois eu não percebi nada: a cadelinha preta, de rabo branco e estrela na testa, parecia-me igual às outras. E nem prestei atenção às primeiras habilidades dela. Depois é que assuntei: aquilo não era procedimento de cachorro ordinário. Diga-me uma coisa, mestre Gaudêncio, com franqueza: o senhor acredita em artes do diabo?

— Sem dúvida, seu Alexandre, respondeu o curandeiro. Quem não acredita? Tenho tirado com reza muito espírito mau do couro de cristão.

— Pois, mestre Gaudêncio, continuou o dono da casa, foi no capeta que eu pensei quando a cachorra botou para fora o que sabia. Mas Cesária fez uma oração forte em cima dela, o estouro que eu esperava não veio e, com os poderes de Deus, ficou provado que a bichinha era bem procedida. Entendia perfeitamente a linguagem das pessoas. Eu às vezes dizia, para experimentá-la: — “Moqueca, você hoje vai dormir no chiqueiro das cabras.” Ela balançava a cabeça, metia-se no chiqueiro e não saía de lá nem por decreto. — “Moqueca, vá comprar um quilo de bacalhau na cidade.” Moqueca segurava o dinheiro com os dentes, galopava para a rua, entrava numa bodega, ia direito à barrica de bacalhau, fazia a compra, pagava, tudo sem erro, pois ninguém se enganava com as intenções dela. Acabado o negócio, voltava correndo, carregando o embrulho.

Contava como um cobrador de imposto, e quando um caixeiro lhe deu no troco uma nota falsa, Moqueca latiu, protestou, chamou a atenção do povo e da autoridade. Estas miudezas não têm relação com o porco brabo: servem apenas para mostrar que a cachorra sabia onde tinha as ventas. A especialidade dela era a caça. Caçava sozinha bichos pequenos: enchi a casa de coelhos, preás, mocós, tatus, cotias e aves de pena. E se achava roteiro de animal graúdo, chegava aqui ladrando, corria de um lado para outro, fazia barulho. Só se acomodava na capoeira. Foi num desses dias que se deu a desgraça, de que talvez vossemecês tenham tido notícia, porque o caso se espalhou. Moqueca estava pejada (
prenhe), com a barriga pela boca, e a gente esperava que a qualquer momento desse cria. Uma tarde apareceu aí no pátio, latindo, subiu ao copiar e roçou-se nas minhas pernas, dizendo lá na língua dela que havia no mato um bicho grosso, bom para matar. Tentei sossegá-la e falei assim: — “Moqueca, você com esse bucho não aguenta rojão. Vá deitar-se, vá coçar as pulgas e descansar.” Ela não aceitou o conselho e continuou a puxar-me a perna da calça com os dentes. Como não havia meio de aquietá-la, fui buscar a espingarda no jirau, pus a tiracolo o aió (bolsa para caça), onde guardava o chumbeiro, o polvarinho e as espoletas. Entramos na catinga, e aí a pobrezinha começou a mexer-se com dificuldade, arfando, num trote curto, o focinho para cima, farejando mal. Parece que havia sinais cruzados de animais diferentes, porque a cachorra ia e vinha, latindo esmorecida, sem atinar com um rastro.

Aborrecido daqueles manejos, sentei-me, acendi um cigarro e peguei a falar só, recordando coisas antigas, do tempo em que eu e Cesária vivíamos de grande. Os latidos enfraqueceram, enfraqueceram, afinal se sumiram. Pensei no bode, na onça, no papagaio que não mostrou para quanto prestava porque morreu de fome, no olho coberto de formigas, este olho que nunca pude encaixar direito no buraco do rosto e assim mesmo enxerga melhor que o outro. Ora muito bem. Onde andaria o diabo da Moqueca, pesada, com aquela barriga que estava por acolá, perdida entre cipós e espinhos, correndo atrás de um vivente ligeiro? Levantei-me, decidido a voltar para casa, ajeitei no ombro a correia do aió e a espingarda. A cadelinha que fosse para o inferno: ia recolher-me, não havia de ficar ali, esperando os caprichos dela. Ainda levei a mão à orelha, estive um minuto procurando a voz de Moqueca no barulho da catinga. Afastei-me desanimado, entrei numa vereda, com o pensamento longe da caça. Ia anoitecendo. Ouvi pancadas de asas; os olhos de um bacurau desceram e subiram, como duas tochas. Depois foram miados de gato, roncos de suçuarana, urros de bois assustados. Tudo se calou. Quando pisei no copiar, estirei a vista pelo mato e percebi sem querer, muito para lá da ribanceira do rio, a umas duas léguas daqui pouco mais ou menos, a cachorra fincando os dentes no sedenho (
traseiro) de um bicho acuado junto a um mulungu (árvore ornamental). Em redor havia umas coisinhas que não distingui bem. Encostei a espingarda à cara, dormi na pontaria, a carga bateu na pá do bicho. Botei-me para ele. Andei, cortei caminho, cheguei a um mulungu, onde um porco brabo espumava, sangrava e estrebuchava, com vontade de morrer. A cachorra já tinha morrido e estava num estrago medonho: o espinhaço quebrado no meio, as tripas de fora, completamente espatifada. Pelos buracos da barriga tinham saído vários cachorrinhos que, ali perto, criaturas de boa raça, latiam danadamente, os dentinhos agarrados no couro do porco. Latiam direito, em conformidade com o costume. Mas um diferia dos outros: fazia “Hom! hom! hom!”, muito rouco e muito fanhoso. Pobre da Moqueca. Um fim tão triste!

Fui examinar os cachorrinhos, saber por que um gorgolejava daquele jeito. Sabem o que havia acontecido? No momento de estripar a mãe o porco tinha cortado o pescoço dele. E o infeliz, sem cabeça, queria proceder como os irmãos. Coitado. Finou-se ali, com poucos minutos de vida, roncando em cima da obrigação. Quem é bom já nasce feito, não é verdade? O sangue tem muita força. Escaparam três cachorrinhos.

— Me arranje um, seu Alexandre, pediu o cego. Estou precisando de guia e um animal desses vinha a propósito.

— Não é possível, seu Firmino, respondeu o dono da casa. Andaram por aí uns tempos, mas desapareceram, acabaram-se. O que tem valia não dura, seu Firmino.

Fonte:
Disponível em Domínio Público.
RAMOS, Graciliano. Histórias de Alexandre. Publicado originalmente em 1944.

segunda-feira, 19 de junho de 2023

A. A. de Assis (Jardim de Trovas) 29

 

Silmar Böhrer (Croniquinha) 86

Crepúsculos? Ah, os crepúsculos! Aqueles do outono. Tardinhas viram pinturas imensas, cenários de encantamentos, céus, pura inspiração. Mudam os ventos da estação, mudam os ares dos dias, mudam os responsos da vida.

Folhas esparsas, a atmosfera embalsamada de aromas. As flores. Dálias, cravinas, margaridas, gérberas, gerânios, lírios do brejo. Cores das calendas. A poesia rabiscada nas vidraças suadas das noites frias. Ali dentro o pinhão na chapa, o vinho na taça, dissabores transformados em opimos (abundantes) sabores.

Quem dera que os dias dos humanos fossem sempre feitos de delícias e encantos. Que os arautos bissextos trouxessem alvíssaras de tempos melhores, manhãs, tardes e noites fartas de iluminuras, estações perenes de bom viver.
Fonte:
Texto enviado pelo autor

Humberto de Campos (A Manicure)

O merceeiro Agostinho Pereira Alvares, proprietário de um dos estabelecimentos mais afreguesados do Engenho Novo, não havia saído, jamais, do seu bairro, para fazer a barba e cortar o cabelo. Sempre que, de dois em dois meses, lhe vinha a ideia de praticar essas medidas higiênicas, mandava ele chamar o barbeiro à sua casa de comércio, submetendo-se à tesoura e à navalha do fígaro em um compartimento nos fundos da mercearia.

Um destes dias, porém, com a noticia de que toda a cidade entrava em melhoramentos para receber o soberano dos belgas, resolveu o futuro capitalista vir, também, à zona urbana, para uns reparos estéticos na sua própria pessoa. Tornava-se preciso que o rei o encontrasse de cabelo cortado e barba feita, e era evidente que esse trabalho só podia ser efetuado por um verdadeiro mestre da arte, como deviam ser, naturalmente, os do centro da cidade.

Tomada essa deliberação, meteu-se o acreditado comerciante, sábado último, em um bonde, e saltou na rua Floriano Peixoto, enfiando-se, pressuroso, pela primeira barbearia que encontrou aberta.

- Cabelo e barba! - pediu, arrogante, libertando-se, com um soco, do formidável colarinho que o asfixiava.

Enfiada, que foi, a toalha pelo pescoço do freguês, começou o barbeiro, um mulato de nariz de batata e cabeleira revolta, a tosquiar a vítima. Terminado o serviço, que não primava, aliás, pelo asseio, o fígaro convidou-o, gentil:

- O "comendador" não quer "fazer" as unhas? Nós temos, aí, para os fregueses, uma boa manicure...

Nesse momento apareceu à porta dos fundos, escandalosamente decotada, e rescendente de si mesmo, uma cafuza de dentes alvíssimos, que cumprimentou, sorrindo, o Agostinho. O merceeiro correspondeu ao cumprimento, olhou as unhas formidáveis, que ele costumava aparar com a faca de cortar sabão, e aquiesceu, condescendente:

- Vamos lá ver isso! Vamos lá!

Uma hora depois, com os dedos ardendo, e com as unhas cortadas até o sabugo, saía o honrado negociante à porta da barbearia. regressando, de pronto, ao Engenho Novo.

No dia seguinte, à tarde, foi, porém, a rua Floriano Peixoto alarmada por um vozerio infernal. Avisado do caso, o guarda civil correu para o local, e viu: no salão da barbearia, andando de um lado para outro, como um possesso, o Agostinho, do Engenho Novo, trovejava, indignado:

- Patifes!... Canalhas!... Ladrões!... Estavam os dois combinados para essa traição, os miseráveis!

Penetrando na casa, o guarda interveio:

- Que é isso, camarada? Que foi que aconteceu?

E o merceeiro, apoplético:

- Foi este homem; este barbeiro, que, de combinação com aquela mulher, me fez uma patifaria, uma canalhice, uma perversidade. Eu vim aqui para cortar o cabelo, e ele me pôs na cabeça uns piolhos; e para que eu não os pudesse tirar, chamou a mulher, e mandou-me cortar as unhas. Veja isto!

E com as grandes mãos estendidas, mostrando os dedos enormes, de sabugo à mostra:

- Canalhas!... Patifes!... Miseráveis!...

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925.
Disponível em Domínio Público

Gislaine Canales (Glosas Diversas) LVI


SEDENTA
 
MOTE:
Sedenta do teu carinho,
imagino em sonhos vãos,
tuas mãos tecendo um ninho
para aninhar minhas mãos...

Adélia Victória Ferreira
Sete Barras/SP, 1929 – 2018, São Paulo/SP

GLOSA:
Sedenta do teu carinho,
eu uso a imaginação
e me lanço no caminho
que leva ao teu coração!
 
Quase em êxtase de amor
imagino em sonhos vãos,
ouvir teus "sins" com fervor,
e nunca escutar os "nãos"!
 
Já não estou mais sozinho,
pois eu sinto junto a mim,
tuas mãos tecendo um ninho
e me acarinhando, assim!
 
Sonhando eu me realizo,
os sonhos são meus irmãos
que trazem o paraíso
para aninhar minhas mãos…
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  =

  
CONFISSÕES DE AMOR...
 
MOTE:
Às vezes, doces sonatas,
noutras, preces de louvor;
Sempre belas serenatas
tuas confissões de amor!

Lisete Johnson
Butiá/RS, 1950 – 2020, Porto Alegre/RS

GLOSA:
Às vezes, doces sonatas,
eu escuto embevecida,
e com elas me arrebatas
e enfeitas a minha vida!
 
São sempre canções bonitas...
noutras, preces de louvor;
com mensagens infinitas
que têm imenso valor!
 
Os meus anseios desatas
com palavras de emoção,
sempre belas serenatas
que falam ao coração!
 
Vais meus sonhos realizando
com teu canto sedutor...
Fico feliz, escutando
tuas confissões de amor!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  =

  
FARIA TUDO...
 
MOTE:
Ah, se eu pudesse saber
qual a mulher que ele quer...
Que não iria eu fazer
para ser essa mulher!?

Magdalena Lea
Rio de Janeiro/RJ, 1913 - 2001

GLOSA:

Ah, se pudesse saber
qual o perfil preferido,
quando ele for escolher
o seu amor mais querido!?
 
Se eu pudesse, então, sonhar,
qual a mulher que ele quer...
aquela a quem vai amar...
coisas  faria – quaisquer!
 
Tudo com muito prazer
certamente eu o faria...
Que não iria eu fazer
para ter essa alegria?
 
Pagaria qualquer preço,
nem pensaria sequer,
me viraria do avesso
para ser essa mulher!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  =

   PINHEIRO
 
MOTE:
Vem trovador, vem correndo
ao meu Paraná, porque,
o pinheiro está morrendo...
de saudade de você!
Neide Rocha Portugal
Bandeirantes/PR

GLOSA:

Vem trovador, vem correndo
pra amenizar esta dor
da falta que estás fazendo...
Vem trazer-me o teu amor!
 
Traze logo essa ternura
ao meu Paraná porque,
é muito grande a tortura
da tua ausência. Em mim, crê.
 
Escuto vozes dizendo
chorando forte num grito:
o pinheiro está morrendo...
com  o seu porte bonito!
 
Se esse pinheiro morrer,
meu pensamento antevê
que essa morte deve ser
de saudades de você!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  =

 
  LUAR... NA VELHICE
 
MOTE:
Juventude, não cobice
somente o sol a brilhar...
Sempre, no céu, da velhice,
brilha também o luar!

Sebas Sundfeld
Pirassununga/SP, 1924 – 2015, Tambaú/SP

GLOSA:

Juventude, não cobice
para si, a eternidade,
não é só a meninice
que nos traz felicidade!
 
Não queira no seu presente,
somente o sol a brilhar...
também é lindo o poente,
do dia quando a findar!
 
Envelheça com meiguice,
com bom humor e alegria,
sempre, no céu, da velhice,
vemos um sol de poesia!
 
Enfrente o tempo,  altaneiro,
no fim do seu caminhar
e verá que o tempo inteiro
brilha também o luar!

Fonte:
Gislaine Canales. Glosas Virtuais de Trovas X. In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. http://www.portalcen.org. Agosto 2003.

Sílvio Romero (O Pássaro preto)

(Folclore do Pernambuco)


Uma vez um homem pobre tinha um pássaro preto que estimava muito, e, tendo um filho muito travesso, foi um dia o menino levar a comida ao pássaro e o soltou. O pássaro voou e levou o menino preso pelo bico. Depois de uma grande viagem, largou-o num rico palácio.

Mandou por a mesa para o almoço, a qual apareceu bem preparada, e, tendo ele de sair logo depois, deu ao pequeno uma chave, dizendo que só abrisse o primeiro dos quartos que havia na frente da sala, e que eram sete.

O menino, logo que o padrinho (assim chamava ao pássaro) saiu, foi e abriu o primeiro quarto, e lá encontrou grande porção de cavalos; ele se divertiu a ponto de se esquecer de comer.

No dia seguinte o pássaro, antes de sair, deu-lhe a chave do segundo quarto, e ele o abriu e encontrou uma porção de selins e arreios.

Assim o pássaro foi-lhe dando as diferentes chaves dos quartos até o quinto. O terceiro era cheio de moças brancas, o quarto de mulatinhas, e o quinto de espadas.

Passaram-se tempos e o menino ficou moço feito, e pedia tudo ao padrinho, que lhe respondia que, se ele lhe fizesse sempre a vontade, seria dono de tudo o que ali havia. Depois de vistos os cinco quartos, o padrinho deu-lhe a sexta chave, mas lhe dizendo que não abrisse aquele quarto, do contrário perderia tudo que ele lhe havia prometido.

O moço, não se podendo conter, foi infiel, e abrindo o quarto, achou um belo rio de prata, e nele meteu o dedo, que ficou prateado. Pensando que o padrinho não viesse a descobrir, enrolou o dedo numa tirinha de pano; mas o pássaro que adivinhava tudo, quando chegou, viu o dedo atado, e lhe disse: «Já sei que abriste o quarto!» ao que ele respondeu com medo: «Abri, meu padrinho, mas vosmecê não me castigue.»

Disse-lhe o padrinho: «O castigo será amanhã quando de novo me desobedeceres.»

Deu-lhe a chave do sétimo quarto, e saiu. O moço não se conteve, e abriu o quarto, onde havia um rio de ouro.

Quando o pássaro voltou deu-lhe o castigo prometido: tirou-lhe a roupa e mergulhou-o no rio de prata, e, depois, no rio de ouro, e, quando acabou, deitou-o fora de casa, dando-lhe uma varinha de condão.

O moço começou a andar e foi ter em um reino. Aí encontrou um negro velho, a quem chamou pai Gaforino, e lhe pediu que lhe cedesse a sua roupa velha e suja para encobrir a sua cor e poder entrar na cidade.

O negro cedeu; mas uma princesa, que estava na janela do palácio, chegou a ver ele vestir a roupa velha do preto e, conhecendo que ele se encaminhava para o palácio, disse ao rei que queria se casar com o pior negro que ali chegasse.

O pai, ficando admirado pelo mau gosto da filha, não teve outro remédio senão mandar chamar o negro e contratar o casamento, com o que o moço disfarçado em negro ficou espantadíssimo, porque não pensava que tivesse sido visto por ninguém. Aceitou a princesa por mulher e, sempre muito desconfiado, não se deitava na cama com ela, e sim numa tábua ao pé do fogo.

O rei teve tão grande desgosto, que pôs-se de cama em estado de morrer. A família então fez uma promessa à Padroeira que se o rei escapasse, mandava fazer uma festa na igreja que durasse três dias. O médico receitou ao rei que comesse três pássaros de plumas; e tendo sabido o negro que os dois genros, que o rei tinha, haviam saído a procurar, cada qual montado em seu cavalo, pediu à sua varinha de condão uma carruagem e um rico vestuário e três pássaros de plumas. Meteu-se na carruagem com os pássaros, e saiu. Mais adiante encontrou os genros do rei. Eles perguntaram se aqueles pássaros eram de pluma e se os queria vender. Respondeu que eram de pluma, mas que só os cedia se deixasse ele os ferrar a cada um num quarto com o seu ferro.

Os moços consentiram, e voltaram para o palácio com os três pássaros, que o rei comeu e ficou bom. Seguiu-se a festa dos três dias. O negro mandou que sua mulher fosse à igreja ver a festa, e, ocultamente, pediu à sua varinha de condão que lhe desse uma linda carruagem e um vestido da cor do campo com todas as suas flores.

Assim foi, e a mulher seguiu. Depois ele pediu a mesma coisa para si e lá se apresentou com tanta rapidez que a mesma mulher não podia pensar que fosse ele. As duas irmãs casadas que a princesa tinha, com inveja, e desconfiadas, estando na igreja, diziam escarnecendo: «Com um moço assim é que tu devias ter casado e não com um negro.» Ela recebeu tudo com tristeza.

No segundo dia de festa, o negro pediu à varinha de condão que fizesse aparecer uma carruagem ainda mais rica e um vestido cor do mar, com todos os seus peixinhos, e para ele a mesma coisa, tudo isto sem a mulher saber; e quando voltaram todos da festa, já ele estava no palácio aquecendo fogo com sua roupa de negro.

No terceiro dia pediu uma carruagem ainda mais rica e um vestido da cor do céu com todas as suas estrelas, e o mesmo para ele. Neste mesmo dia houve festa em palácio e foram convidados todos os genros do rei e mais mulheres, que se apresentaram muito ricamente vestidas. Então o preto apresentou-se na sua cor verdadeira, e nos mesmos trajes com que estava no dia em que ferrou os cunhados, por seus cativos.

Eles ficaram muito espantados, e ainda mais quando o moço foi chamado para a mesa, e disse que não se assentava na mesma mesa com os seus cativos. Então o rei lhe perguntou quais eram ali os seus escravos, e ele apontou para os seus dois concunhados que estavam ferrados nos quartos, como el-rei podia examinar.

O sogro os chamou para um camarim, e lá ficou convencido da realidade, sendo que as mulheres dos dois moços se atiraram da varanda do palácio abaixo, e eles as acompanharam, ficando o rei tão desgostoso, que em pouco tempo morreu, ficando o pai Gaforino senhor de todo o reino.

Fonte:
Sílvio Romero. Contos populares do Brasil. Lisboa/Portugal: Nova Livraria Internacional, 1885.
Disponível em Domínio Público.

domingo, 18 de junho de 2023

Varal de Trovas n. 583

 

Marques de Carvalho (Um esgotado)

O pobre Heitor foi levado à sepultura numa triste e chuvosa manhã de abril. Como não tivesse bens que deixassem aberta a possibilidade de um galanteio póstumo, nas folhas de um testamento, acompanhou-o até Santa Isabel apenas o bom compadre Fernandes, o inestimável enfermeiro nos poucos e longos dias de sofrimento.

O largo circulo de seus amigos eximiu-se do incômodo da viagem de bonde, desculpando-se com o mau tempo, quando, mais tarde, um ou outro defrontava com o paciente Fernandes.

Não obstante, aquele infeliz fora, na vida, um mourejador (
trabalhador dedicado) notável. Toda a cidade conhecia-lhe o nome. Fizera-o à custa de muitos anos de improbo trabalho, numa repartição movimentada e importante. Quando fechava o serviço oficial, não era para casa que ia o Heitor: tomava o caminho do diário onde colaborava e que lhe devia grande parte de seus melhores êxitos.

Quantas noites não passou ele em claro, numa superexcitação agridoce, obsidiado pela ideia de um artigo sensacional, entusiasmado por uma nova seção, enervado na improfícua procura de um termo próprio, de um vocábulo justo, que exata e completamente interpretasse o seu pensamento!

Mas era mais do que um jornalista, o Heitor: era um literato de vocação. Seu anelo mais veemente consistia na publicação de um livro, novela ou contos, que fosse a definitiva consagração do seu nome de escritor. Muito jovem, fizera nas letras uma estreia banal, quando estudante. Lançara, como tantos, um manifesto político em verso e cometera sonetos como toda a gente os perpetra, aos 20 anos. Porém depressa lhe disse o bom senso não serem os versos o seu forte e Heitor dedicou-se à prosa. Tivera, ao princípio, um estilo guindado, quase gongórico (
estilo barroco de Luís de Góngora): influência de Camilo Castelo Branco, que o impressionara violentamente.

Fez-se pesquisador de vocábulos raros e tentou remoçar, com honras de neologismos, termos veneradamente arcaicos. Seu critério, entretanto, aconselhou-o com brandura a emancipar-se de alheias influências, a mostrar-se nú ao publico, sem artifícios de linguagem. Foi-lhe salutar a própria observação: a forma tornou-se mais simples, a expressão mais singela, a ideia mais clara.

Sucedia que voltava alta noite do trabalho, fatigadíssimo, os olhos avermelhados, o cérebro oco e pesado; e, na veemência de seu amor às letras, assim mesmo sentava-se à mesa, a rabiscar tiras consecutivas, a esmo, com desespero.

Davam-se, então, alternadamente, grandes, desencontradas lutas naquele espírito. Vinham-lhe às vezes, à lembrança do êxito de um livro novo, reviviscentes entusiasmos. O clangoroso clarim da emulação retinia-lhe aos ouvidos, animadoramente. Sentia-se Heitor capaz de grandes cometimentos, fazia projetos e planos de romances, — uma edição de luxo, à Guillaume, com gravuras artísticas, executadas em Paris. Era um dos seus sonhos mais persistentes um livro amazônico, todo cheio de vinhetas com paisagens nossas, que interpretassem, nas linhas do desenho, as perspectivas que o texto havia de pintar ainda mais eloquentemente do que o lápis. À ideia dessas ilustrações, seu espírito alcandorava-se em grandes esperanças. Todo o corpo vibrava-lhe de emoção artística, pré-gozando os aplausos incondicionais de seus conterrâneos.

E projetava de uma assentada dois romances e três ou quatro contos. Preparava-se para escrever, limpava a pena, dispunha meticulosamente o papel diante de si e... fitava o texto, à espreita da primeira palavra, como se tivesse de agarra-la de surpresa; mas a frase tornava-se arredia, ocultava-se em um burburinho de pensamentos e o tempo fugia, na desanimada esterilidade de Heitor.

Chegavam-lhe depois à memória as ruidosas ovações feitas a outros escritores, a aceitação de seus livros, a popularidade de seus nomes em todo o país. Tentava, num esforço de energia, vencer a improdutividade, forçar a ideia; tornava a molhar a pena, endireitava o papel: tudo era inútil. Estava escrito que nada poderia fazer.

Deitava-se então, num desânimo, soprava a luz; ficava na escuridão da sua soledade, os olhos escancarados, com um ofego de raiva a secar-lhe a goela. Era justamente isso a sua arrelia. Uma vez deitado, tinha, logo depois, a inteligência lucidíssima: organizava as ideias, formulava frases mentalmente, alinhava períodos inteiros. E, numa crispação, conhecia que, se escrevesse assim, teria garantido o agrado publico, que é o vestíbulo da imortalidade para o escritor. Saltava ás pressas para o chão, acendia a vela, atirava-se à mesa: — mas o encantamento quebrava-se, permanecendo ali apenas o homem de letras impotente, o jornalista esgotado, o funcionário embrutecido, que longas horas de trabalho material impossibilitaram para as elucubrações artísticas.

Vinham-lhe então vibrantes assomos de trêmulos desesperos. Infeliz Heitor!

Uma feita, lembrou-se de buscar na história antiga assunto para uma novela. Naturalmente, o clarão deslumbrante da Grécia chamava-lhe a inteligente atenção e Heitor deliberou logo que a vida helénica da era pré-messiânica seria a preferida da sua pena. Sem grande esforço, pressentiu que série de quadros impressionadores poderiam inspirar-lhe os requintes daquela civilização assombrosa, mesmo em suas desabridas paixões carnais, em seus vícios triunfantes. E que belas perspectivas havia de esboçar, na frase curta e incisiva a que insensivelmente afeiçoara-se-lhe o estilo!

Assuntos não lhe faltavam. Toda a série de lendárias hetairas (
meretrizes), — Taís, Safo, Aspásia, — prestar-lhe-ia ensejo para admiráveis páginas. E sonhava então fazer obra nova, fazer obra sua, propriamente do seu cérebro. Queria divorciar-se de intenções preconcebidas, seguir trilha não arroteada ainda. Sua novela seria em todos os sentidos original, — que não fossem imputar-lhe a pecha de imitador dos Flauberts, dos Anatoles France, dos Pierres Loüys.

Excelentemente educado, encontrara Heitor em consecutivas viagens ótima ocasião para ilustrar-se. Seu espírito, em assuntos de arte, possuía um admirável senso estético, que a contemplação dos grandes trabalhos geniais de todas as épocas havia criado e corrigido. Sonhara, de imediato, fazer ilustrar o seu volume com silhuetas de Carlos Aguiar, paisagens de De Angelis e deliciosos molhos de flores de Julieta França. Havia de enchê-lo de iluminuras, deliciosamente. Seria um livro amoroso, toda a nudez do amor helênico trescalando vivida volúpia no texto e fulgurando em vinhetas, numa exuberância de corpos juvenis, como harmonioso hino à forma imortal. E todas estas ideias vinham-lhe ao cérebro sem baixa concupiscência, antes por entusiasmo artístico, elevado e regenerador.

Entretanto, nada fazia. Quedava-se horas inteiras sentado à secretária, já pensativo, já distraído, rabiscando palavras ermas de senso, ao acaso. E que não havia modo de surpreender a ideia matriz, fundi-la na primeira frase, definitiva e triunfal. Todos os períodos pareciam-lhe inservíveis, sem nervos. Tocava-os com a vista, sopesava-os com o espírito: eram expressões moles como enguias, que escorregavam-lhe dos sentidos e caíam numa laxidão (
fadiga) para o ouvido, seguidas da saudade dolorosa daquele impotente sonhador.

Quando adoeceu, Heitor pressentiu que estava tudo acabado. Ia morrer. Subiram-lhe então as lágrimas às pálpebras, rolaram pelas faces como pesadas, ardentes pérolas em fusão: lamentava o passado, arrependia-se de tantos anos de transigência com a inércia. Dizia-lhe a consciência que era de sua culpa, se tão pequena bagagem literária legava à Amazônia, — embalde o infeliz, para desculpar-se a si próprio, estivesse no direito de invocar a absorvente tirania da existência, a ingratidão universal. E, em poucos dias, então, cobriu-se-lhe de cãs a desgrenhada cabeça cismadora.

No instante em que expirou, esboçava Heitor um meio sorriso translúcido: dir-se-ia estar a ver perpassarem ainda as frotas de Alexandre, mar Jônio afora, ao som dos instrumentos músicos de cortesãs sagradas, eretas à proa e à popa, adoravelmente nuas.

Fonte:
Disponível em Domínio Público
João Marques de Carvalho. Contos do Norte. Belém/PA: Typographia Elzeveriana, 1907.
Atualização do português por J. Feldman