sexta-feira, 29 de setembro de 2023

Machado de Assis (Um dístico)

Quando a memória da gente é boa, pululam as aproximações históricas ou poéticas, literárias ou políticas. Não é preciso mais que andar, ver e ouvir. Já uma vez me aconteceu ouvir na rua um dito vulgar nosso, em tão boa hora que me sugeriu uma linha do Pentateuco, e achei que esta explicava aquele, e da oração verbal deduzi a intenção íntima. Não digo o que foi, por mais que me instiguem; mas aqui está outro caso não menos curioso, e que se pode dizer por inteiro.

Já lá vão vinte anos, ou ainda vinte e dois. Foi na Rua de S. José, entre onze horas e meio-dia. Vi a alguma distância parado um homem de opa, creio que verde, mas podia ser encarnada. Opa e salva de prata, pedinte de alguma irmandade, que era das Almas ou do Santíssimo Sacramento. Tal encontro era muito comum naqueles anos, tão comum que não me chamaria a atenção, se não fossem duas circunstâncias especiais.

A primeira é que o pedinte falava com um pequeno, ambos esquisitos, o pequeno falando pouco, e o pedinte olhando para um lado e outro, como procurando alguma coisa, alguém, ou algum modo de praticar alguma ação. Depois de alguns segundos foram andando para baixo, mas não deram muitos passos, cinco ou seis, e vagarosos; pararam, e o velho — o pedinte era um velho, — mostrou então em cheio o seu olhar espalhado e inquisidor.

Não direi o assombro que me causou a vista do homem. Já então ia mais perto. Cara e talhe, era nada menos que o porteiro de um dos teatros dramáticos do tempo, S. Pedro ou Ginásio; não havia que duvidar, era a mesma fisionomia obsequiosa de todas as noites, a mesma figura do dever, sentada à porta da plateia, recebendo os bilhetes, dando as senhas, calada, sossegada, já sem comoção dramática, tendo gasto o coração em toda a sorte de lances, durante anos eternos.

Ao vê-lo agora, na rua, de opa, a pedir para alguma igreja, assaltou-me a lembrança destes dois versos célebres:

Le matin catholique et le soir idolâtre,
Il dîne de l’église et soupe du théâtre.


(A manhã católica e a noite idólatra,
Ele janta de igreja e sopa do teatro.)


Ri-me naturalmente deste ajuste de coisas; mas estava longe de saber que o ajuste era ainda maior do que me parecia. Tal foi a segunda circunstância que me chamou a atenção para o caso. Vendo que pedinte e porteiro constituíam a mesma pessoa, olhei para o pequeno e reconheci logo que era filho de ambos, tal era a semelhança da fisionomia, o queixo bicudo, o jeito dos ombros do pai e do filho. O pequeno teria oito ou nove anos. Até os olhos eram os mesmos: bons, mas disfarçados.

É ele mesmo, dizia eu comigo; é ele mesmo, le matin catholique, de opa e salva, contrito, pede de porta em porta a esmola dos devotos, e o sacristão que lhe dê naturalmente a porcentagem do serviço; mas logo à tarde despe a opa de seda velha, enfia o paletó de alpaca, e lá vai ele para a porta do deus Momo: et le soir idolâtre.

Enquanto eu pensava isto, e ia andando, resolveu ele afinal alguma coisa. O pequeno ficou ali mesmo na calçada, olhando para outra parte, e ele entrou num corredor, como quem vai pedir alguma esmola para as bentas almas. Pela minha parte fui andando; não convinha parar, e a principal descoberta estava feita. Mas ao passar pela porta do corredor, olhei insensivelmente para dentro, sem plano, sem crer que ia ver qualquer coisa que merecesse ser posta em letra de impressão.

Vi meia calva do pedinte, meia calva só, porque ele estava inclinado sobre a salva, fazendo mentalmente uma coisa, e fisicamente outra. Mentalmente nunca soube o que era; talvez refletia no concílio de Constantinopla, nas penas eternas ou na exortação de S. Basílio aos rapazes. Não esqueçamos que era de manhã; le matin catholique. Fisicamente tirava duas notas da salva, e passava-as para o bolso das calças. Duas? Pareceram-me duas; o que não posso dizer é se eram de um ou dois mil-réis; podia ser até que cada uma tivesse o seu valor, e fossem três mil-réis, ao todo: ou seis, se uma fosse de cinco e outra de um. Mistérios tudo; ou, pelo menos questões problemáticas, que o bom senso manda não investigar, desde que não é possível chegar a uma averiguação certa. Lá vão vinte anos bem puxados.

Fui andando e sorrindo de pena, porque estava adivinhando o resto, como o leitor, que talvez nasceu depois daquele dia; fui andando, mas duas vezes, voltei a cabeça para trás. Da primeira, vi que ele chegava à porta e olhava para um lado e outro, e que o pequeno se aproximava; da segunda, vi que o pequeno metia o dinheiro no bolso, atravessava a rua, depressa, e o pedinte continuava a andar, bradando: Para a missa...

Nunca pude saber se era a missa das Almas ou do Sacramento, por não ter ouvido o resto, e não me lembrar também se a opa era encarnada ou verde. Pobres almas, se foram elas as defraudadas! O certo é que vi como esse obscuro funcionário da sacristia e do teatro realizava assim mais que textualmente esta parte do dístico: il dîne de l’église et soupe du théâtre.

De noite fui ao teatro. Já tinha começado o espetáculo; ele lá estava sentado no banco, sério, com o lenço encarnado debaixo do braço e um maço de bilhetes, na mão, grave, calado, e sem remorsos.

Fonte:
Machado de Assis. Contos esparsos. Publicado originalmente em A Quinzena, nº. 7, 1º. de julho de 1886.
Disponível em Domínio Público.

quarta-feira, 27 de setembro de 2023

Edy Soares (Manuscritos (Di)versos) – 36: Os causos do meu pai

 

Geraldo Pereira (Os meus enganos)

Há coisas que acontecem comigo que o diabo duvida de costas, em noite de sexta-feira treze! São ligações telefônicas erradas, recebidas ou discadas ou são anotações de agenda trocadas na minha cabeça. Foi assim que compareci ao casamento de amiga minha, marcado para um dezenove qualquer do ano, sete dias antes e nada ou quase nada encontrei na igreja.

Indaguei do flanelinha em bom português se havia por ali um enlace matrimonial e o menino, ávido pelo trocado que não chegou a receber, de pronto confirmou. Não perguntei pelo nome da noiva, porque quem toma conta de carro ignora esses detalhes, faz o seu papel no teatro da vida e nada mais. Entrei e havia pouca gente no templo, pessoas concentradas no meio dos bancos, em torno de um bebê. Era um batizado, na verdade e eu dei com os burros n’água!

Pior com o velório! É que morreu um homônimo de uma pessoa que conheço há muitos anos, da qual me afastei pelas circunstâncias do existir e não tive dúvidas, vesti o paletó, apertei a gravata e parti em direção ao cemitério considerado, também, um parque e que de parque nada tem. Identifiquei o lugar no qual se fazia o ritual da finitude e cumprimentei a todos. Não havia um conhecido que fosse! Notei uma certa estranheza, como se estivesse completamente fora do contexto e estava. Olhei para o homem largado à própria sorte e observei que usara bigode em vida, característica ausente no meu ilustre amigo. Do celular, mesmo, contei à minha dedicada secretária o impasse. Ouvi a recomendação necessária: “Volte! Ele nunca usou bigode!” Para a família, restou a perplexidade.  Afinal, eu nunca tinha visto o pobre do defunto!

Mas, durante uma reunião em Olinda, no convento do Carmo, tocou o telefone. Nunca atendo esse equipamento quando me ocupo. A oportunidade, porém, de ir à janela e dali apreciar o mar, para mim foi uma tentação irresistível. O interlocutor, então, se apresentou: “É Valter!” Há quem pense no prenome como uma identificação definitiva, como se fosse o único no mundo com aquela nomeação. Fiz um esforço de memória, associando a voz com o nome, mas foi debalde. E ele: “Você não está me reconhecendo?” Respondi com todo cuidado: “Estou começando a reconhecer! Aos poucos saberei de quem se trata!” Ai, complementou: “Sobrinho do finado Wilson!” Piorou tudo, inibiu todas as minhas associações! Desesperado, entretanto, explicou: “É Coruja!” “Bom! Coruja eu conheço!” E o diálogo prosseguiu! Tinha morado em minha rua nos tempos de menino e virou pastor, como tantos por ai!

De outra feita, pedi à telefonista que ligasse para amigo meu que dirige instituição importante e que havia me pedido fosse resolvida uma questão de seu interesse, para continuar o trabalho que vinha fazendo. Dei como indicação o prenome e mais o cargo que exerce. A moça, muito solícita aliás, fez a conexão e passou a ligação. Como tinha resolvido tudo, disse, de logo: “Fique tranquilo! Vamos continuar juntos nessa luta pelo social! Pela gente simples e pela educação!” Ouvi de meu interlocutor de ocasião uma exclamação que estranhei, francamente: “Por que você fez isso? Eu não lhe pedi! Eu não preciso disso! Vivo aqui de meu negócio e não me meto com nada que esteja na esfera do social!” Perdão, quase peço, pois que era da iniciativa privada e não tinha a menor relação com aquilo que lhe transmitia por telefone!

Uma vez, numa sexta-feira de Carnaval – já vai longe –, recebi telefonema de uma certa criatura que procurava pelo namorado, indagando: “André está?” Ora, não existe André por aqui e ninguém com namorada, mas não perdi a oportunidade: “Está no bar da esquina, completamente embriagado!” E ela: “Eu não acredito nisso não! Ele prometeu que iria comigo ao Galo!” E eu: “Você é a quinta pessoa que liga! Ele prometeu a mais quatro!” Não hesitou em responder: “Vou matá-lo!” Não o matou, certamente!

Fonte:
Geraldo Pereira. Fragmentos do meu tempo. Recife/PE. Disponível no Portal de Domínio Público

Goulart Gomes (Poetrix) IV

Poetrix é um poema com, no máximo, trinta sílabas métricas, distribuídas em apenas uma estrofe com três versos (terceto) e título que, quanto à sua forma e conteúdo, deve ser composto conforme dispõe a Academia Internacional Poetrix.

Formas múltiplas são linguagens poéticas criadas em contextos comunicativos e constituídas como derivações do poetrix; sua elaboração tem como características básicas o dialogismo, a intertextualidade, a polissemia da linguagem, amistosidade, ludicidade e conciabilidade.

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APÓS LAVAR OS PRATOS E
FECHAR A TORNEIRA DA PIA


epitáfio da morte:
o silêncio
é para os fortes
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  AROMA

pétalas no lago
o peixe vem aspirar
o perfume, e nada
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AS POMBAS

símbolos da paz
decolam e me alvejam.
Nego o milho
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BRUXA

escrever: palavras coser, cozer
poesia, linha e pão mistura
mergulho em seu caldeirão
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CAATINGA

madeira couro areia
na terra corre
sangue, nas veias
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DALI

em minhas noites
habitam teus sonhos
noites de Gala
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DITADO IMPOPULAR 2

águas passadas
nos movem
sozinhos
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EU ESCUTO GENTE MORTA 8: SCIENCE

entre a lama e o caos
nunca vi tanto urubu:
uma cerveja para ficar pensando melhor
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GAROA DE IPANEMA

Bethânia cantava, e Felipa Pais
“meus olhos já não estão
entre os mortais”
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GRAVIDEZ

pingos pousam no brilho
a mulher cresce
nasce o filho
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GULA

o amor nos devora
come a gente
de dentro para fora
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INCONFIDÊNCIAS PASCOAIS

sonhos enforcados
corpos esquartejados
longa travessia à terra prometida
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JANELA

não posso vê-la
saio
por ela
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LIBERDADE

vento frio
sopra onde quer
cão sem coleira
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NOITE DE GALA

Com as mãos, leria
tuas tatuagens e cicatrizes
- Poeta sem tato, me dizes
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PEDRO, ANTONIO E JOÃO

muita cachaça, pouca oração
na mão direita um terço
na esquerda, um quentão
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PEDROFILIA

em múltiplas formas
sua poesia
faz meu gênero
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POETRIX AOS MESTRES BANDEIRA

vou-me embora pra Bahia

todo mundo é “meu rei”
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PRETÉRITO MAIS QUE PERFEITO

passa o carrinho
sejam doces ou salgadas
pipocam saudades
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QUEBRA CABEÇAS

não me encaixo
por mais que peças
ainda que me esqueças
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UM POETA GUIA SEU VEÍCULO
NO TRÂNSITO DE SALVADOR
LEMBRANDO QUINTANA

ônibus atravancando meu caminho
eles, lotação
eu, unozinho
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campos de girassóis
quem deu a vida
por nós?

Fonte: Pedro Cardoso & Goulart Gomes. Poemas encolhidos. SP: Scortecci, 2022.
Enviado por Goulart Gomes.

Renato Frata (Não é pedir demais)

Lá fora, o sol bate nos quarenta e pode atropelá-lo.

O asfalto avistado ao longo, parece tremer em vapores. Homens com uniforme varrem com languidez, as flores dos ipês deixadas pela noite. Há entre elas tocos de cigarros e outros lixos que o povo insensato deixou na passagem, e ali no muro, ao descuido de alguém, uma torneira chora pingos amornados.

Parece olhos cansados de chorar, mas não, é de alegria que ela verte, já que uma poça formada escorre seu excesso até a guia e dali, em outra menor, segue na descida sem se importar com a quentura que enquanto a aquece, lhe arranca a alma. Esse pequeno fiapo de água escorrida, porém, à mercê da aventura vadia que lhe toma o brio, parece rir do sol pela contraposição do cá em baixo e nem liga se logo estará seco. Aliás, nem se apercebe... E a situação sol-calor, água-frio, me dá uma ideia. Aliás, alguém poderá dizer que de jerico.

Pois como aquele filete desmiolado de água a mim exposto, dispo-me de qualquer siso ou conceito e saio em sua direção. Não sei por que, mas inadvertidamente procuro sombras que me abriguem a calva. Amparo-me no muro, me aproximo, abaixo meu corpo e abro a torneira. Sorrio como quando fazia peraltagem e nem ligo para uma senhora de bolsa e sombrinha que passa em resfolego. Tem pressa e vai. Deixo a água vazar espirrando em meus sapatos sem me preocupar se logo o terei que engraxar.

Aguardo que a água esfrie e então, como aquele moleque de ontem, colho-a e ela, também peralta, brinca de escorrer de minhas palmas. Bebo-a do que sobra. Pego mais, refresco meu rosto e fico. O Eu-Água ganha vida, mas sinto que há um vazio entre nós. Talvez saudade de um passado que se escorre pela memória, tal como ela, pela guia, para morrer mais adiante.

Inspiro solerte, olhos brilhantes, tez acetinada, rejuvenescido. Mais pessoas passam. Umas estranham, outras sorriem concordando que a velhice permite, sim, certas loucuras. Fecho a torneira e dou dois passos para voltar, mas aí, paro. Contemplo o céu, volto agora o olhar à boca seca da torneira, à poça que ainda escorre em filete mais metro, menos metro abaixo, para a morte.

Indago: devo tirar os sapatos e sapatear a poça? Minha juventude repentina pede que sim, as sobrancelhas acinzentadas não deixam.

Então me consolo, mas penso: bem que você poderia estar aqui para partilhar comigo essa arte em que nós sorrindo, levaríamos suas mãos em concha a aparar um pouco de água e, enquanto você a saboreasse, meus olhos saboreariam sua linda face e o complemento que a faz bela por inteiro.

Não é pedir muito, é?

Fonte:
Texto enviado pelo autor

Dicas de Escrita (Como escrever histórias) – 5

OS PERSONAGENS


Os personagens não são pessoas. Se você usou um modelo real para criar o protagonista da sua história, você escolheu bem, é um método rápido que funciona, mas não insista para que seu personagem aja como seu modelo faria na vida real porque uma história não é a vida real. Na melhor das hipóteses, é a vida real reinterpretada por você.

Seus personagens sempre precisam ter algo especial, uma qualidade que os torne únicos, mas ao mesmo tempo permite-nos sentir identificados com eles. De modo que seja um personagem positivo ou negativo; deveria se destacar dos demais, mas Cuidado: não é necessário que todos voem como o Superman. É o componente caráter humano do Super-Homem que nos permite sentir-nos identificados com ele. Por muito mais fantástica que seja sua história, os recursos de seus personagens, no final, estão no mais básico do ser humano. E vice-versa: não importa quão realista seja a sua história, basta descrevê-la, você já está extraindo o personagem daquela massa difusa que o cerca, você está fazendo algo especial.

A motivação é a força que faz o personagem se mover e com ele toda a história. Sim, algo acontece em cada história, cada personagem tem que se transformar durante a história. ou seja, a história conta a evolução de um personagem, pode ser uma iniciação ou uma tarde chata em casa, mas no final da história, o protagonista não é o mesmo que o começo.

Faça seus personagens falarem de acordo com suas circunstâncias e características, ouça em voz alta o que eles dizem e faça parecer que uma conversa é a parte mais complicada e mais satisfatória. Mas não devemos confundir escrever diálogos com transcrever uma conversação. Quando falamos na vida real usamos gírias, regionalismos, até alteramos a pronúncia de algumas palavras e a construção de frases dependendo do nosso interlocutor e da publicidade ou outros elementos externos e com um pouco de sorte, nossa história durará no tempo, ainda que seja compreensível, mesmo fora do nosso ambiente.

Para finalizar, liste seus personagens e conte-os. Quantos tem? Quais são as suas motivações? Que função eles desempenham na história? Se houver algum que não cumpra nenhuma função, exclua-o; Tenho certeza de que essa cena alivia a tensão do todo.

Existe um personagem cuja função é semelhante à de outro? Por exemplo, quantos amigos seu protagonista tem? Você precisa deles?
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continua…

Fonte:
Pedro A. Ramos García. Cómo contar historias. in www.mailxmail.com . acesso em 26.11.2020. Tradução por J.Feldman

terça-feira, 26 de setembro de 2023

Silmar Böhrer (Gamela de Versos) 37

 

Newton Sampaio (Dois homens feios conversam)

Os dois homens feios desembocaram na Cinelândia. Tinham saído de uma redação de jornal, onde foram encher com as garatujas cotidianas uns tristes linguados anônimos. Espiaram as grandes luzes da cidade, subindo, impressionando. Escutaram os conhecidos ruídos da metrópole, confundindo-se, apagando-se.

— Que horas são?

— Dez e meia.

— Vamos ver os cartazes deste cinema?

— Vamos.

— Olhe aqui a Kay Francis. Que tal acha essa morena?

— Notável... pelo menos no cartaz.

— Eu gosto das artistas de cinema precisamente porque elas guardam o sortilégio da distância. A distância sabe dar a todas as coisas um encanto muito maior, um legítimo sortilégio invencível.

— A distância aumenta o valor somente daquilo que já se conheceu ou se sentiu um dia. Ora, você nunca sentiu de perto a Kay Francis. Logo, você não pode acreditá-la mais bonita apenas porque essa dama está longe de nós.

— É um engano seu. A gente pode perfeitamente sentir (ora mais intensamente, ora menos intensamente) uma beleza que nossos sentidos não tocaram em tempo algum. Comigo até se dá um fenômeno interessante. Às vezes, eu chego a recompor, dentro de mim, com absoluta perfeição, uma sensação que eu jamais experimentei.

— Isso é fantasmagoria...

— Não é fantasmagoria, não. Eu o faço em plena consciência.

(O outro ficou sorrindo, incrédulo).

— Você pode sorrir à vontade. Mas ouça o seguinte: nós, os que estudamos medicina, quando nos propomos completar o exame do sistema nervoso do paciente, depois de pesquisar o sinal de Kernig, o de Romberg etc., passamos à estereognose...

— Estereognose?

— É a noção do relevo. O sentido estereognótico é o sentido do relevo.

— Mas... o que tem isso a ver com a nossa conversa?

— Apenas isto. Eu apresento aquilo que se poderia chamar, com o competente pedantismo acadêmico: hiperforça na estereognose psíquica.

— Não entendi patavina.

— Eu quis dizer que sou capaz de conhecer um relevo íntimo sem ter sentido jamais o objeto desse relevo.

— Per Baccho! Mudemos de assunto. A conversa está se complicando demais.

Então os dois homens feios perceberam que tinham deixado a Cinelândia para trás e que estavam já no extremo da praça Paris.

— Você não acha que eu converso demais?

— Isso não é um bom predicado.

— Sinto uma necessidade permanente de dar forma ao pensamento. E, quando suspendo a conversa ou a leitura, imediatamente me ponho a escrever. Garanto que hoje, antes de dormir, ainda escreverei qualquer coisa...

— Porque o ato de escrever é o jeito que o homem tem de conversar consigo mesmo!

— Meu caro, tal como o mendigo de Deus lhe pague, eu tenho uma enorme pena dos mudos. Dos mudos e dos analfabetos...

E a conversa rolou pela noite adentro. Rolou, rolou. A orgia de luz continuava. E diminuía o ruído da cidade, pouco a pouco.

O mar, o velho mar amigo, investia sem descanso na murada impassível da praça Paris. Os reclames luminosos davam sua festa noturna nas escarpas dos morros. E automóveis deslizavam no asfalto, levando para os cassinos, ou para as alcovas, lindos corpos perfumados em que se afogariam ânsias poderosas...

E os cabelos dos dois homens feios faziam cambalhotas incríveis sob o vento que vinha do mar...

(Publicado originalmente em O Dia. Curitiba, 16/05/1936. Republicado na revista Fon-fon. Rio de Janeiro, 16/01/1937.)

Fonte: Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014.

Luiz Damo (Trovas do Sul) XLVIII


A agitação que se estende
pelos tempos, sem medida,
busca o tudo e mal entende
o excesso, se falta a vida.
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A amizade é como a chama
que arde quase sem parar,
se entre brasas se esparrama
continua a alma queimar.
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Ao despertar das auroras
o homem parte em caminhada,
mas com o passar das horas
se exaure ao longo da estrada.
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Deus, o eterno poliglota,
entende as línguas humanas,
conhece o que delas, brota
nas vastas plagas mundanas.
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Deus te ilumine e te guie
nas estradas da existência,
se possível sempre adie
a ida para outra querência.
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Difícil de ser vivida
nesta vida em potencial.
aonde há tudo, menos vida,
no contexto existencial.
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Entre amor e um vil namoro,
há quem, sem amar, namore,
não querendo ouvir um choro,
nem namoro, de quem chore.
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Faz do bom-senso o caminho
e dos espinhos o incenso,
que intenso em cada raminho
surja um frutinho suspenso.
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Levar a inércia na estrada,
cresce o rol das depressões,
do êxito fecha-se a entrada
e abre-se a das decepções.
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Nenhuma nuvem suprima
do sol, seu fulgor supremo,
mas ao calor sempre imprima
um ar sedutor e ameno.
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Neste imenso Lar de Deus,
nunca caminhemos sós,
transformemos tantos Eus,
em um deslumbrante Nós.
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O amargor da frustração
rapta a doçura da vida
e prostrada à retração
chora a paz, desvanecida.
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O grande poder da chave
é fazer a porta abrir,
sua falta abre um entrave
que impede entrar ou sair.
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Para que haja aquecimento
é necessária a energia.
E, sem qualquer movimento
talvez, calor não teria.
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Pelas escarpas da inveja,
ou, planícies sem o afeto,
o homem, insano esbraveja,
conspurcando o próprio teto.
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Põe zelo e sustento à vida
com primores divinais.
nenhum temor nela incida
na busca dos ideais.
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Seja a amizade um presente
sem prazo de validade,
nunca com o amor ausente,
sempre sem rivalidade,
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Sendo a morte uma passagem
entre dois planos da vida,
ninguém faça dela a imagem
de uma batalha perdida.
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Se o sol, de brilhar cessasse,
tal uma noite infinita,
embora alguém a almejasse,
a vida estava restrita.
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Se um corpo inerte, no esquife,
nada em vida quis mudar,
nunca espere, alguém borrife,
o esquife para o salvar!
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Tão sedento, beijo a fonte,
sobre uma espectral magia,
debruçado, vejo a fronte,
mergulhada na água fria.
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Teu sonho lança os pilares
de uma nobre construção
e enquanto procrastinares
mais tardas a conclusão.
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Todo o cão que agita e late,
se não morde, muito irrita,
quem chegar á porta e bate
volta e não faz a visita.
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Todo o segredo, com zelo,
a sete chaves, mantido,
como um dia desfazê-lo
sem torná-lo conhecido?
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Tomar por base a aparência
sem qualquer discernimento,
é fugir da própria essência
pra assentar um julgamento.
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Um ar de suavidade
tem a brisa em noite amena,
tão serena a amenidade
que torna a vida mais plena.
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Fonte: Luiz Damo. As faces da trova. Caxias do Sul/RS: Ed. Do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

Jaqueline Machado (Isadora de Pampa e Bahia) Capítulo 15: Encontro de amor

Após sentir aqueles versos genuínos, absorvidos em sua alma, misturados ao DNA de suas lágrimas inocentes, Isadora voltou-se para seu próprio interior... E permaneceu inerte por algum tempo.

Sabia que precisava mover-se, e num impulso, agitou-se, logo procurando no armário o vestido mais bonito: um vestido vermelho, com fundo estampado em flores brancas, o mesmo que seu pai havia repreendido por não considerar um vestido adequado a uma prenda distinta.

Pois foi o que escolheu e, frente ao espelho da penteadeira, prendeu o cabelo, pintou os lábios, pulou a janela do quarto e foi ao encontro de seu amor.   

Ao vê-la, em pleno horário de serviço, o rapaz pareceu surpreso. Abriu um largo sorriso e correu ao seu encontro.

- Vieste mesmo... És uma prenda atrevida! Gostei. – disse o peão, tirando o chapéu em reverência à ousadia da moça.

- Vim, porque sou uma mulher de palavra e porque gostaria de te agradecer o poema.

- Gostou, prenda?

- Gostei muito!

 No calor da emoção, abraçaram-se fortemente e tornaram-se apenas um. Apenas um, não, grandiosamente um único ser, e a alma de suas naturezas sorriu. Mas logo veio o lampejo de uma falsa realidade, e disse o peão: – Acho que não devemos nos abraçar assim. Lembro que me repreendeste dizendo que somos apenas amigos.

- Verdade!  - disse Isadora.

- Que pena! – disse ele, segurando delicadamente as mãos dela.

- Pena, por quê? Isso já não é o bastante?

- Não. Amor amigo é amor de irmão. Não posso mentir: o que sinto por ti é paixão. Febre que me tira o norte.

- Eu sei, mas não podemos ser outra coisa. Por favor, aceite ser meu amigo.  

-  Céu, terra, ar, o amor da minha vida me chamou de amigo. Anjos, reúnam-se em conselho e deem a sentença do que devo fazer: fugir para outro planeta, cortar os pulsos ou arranjar outro amor, sem amor, só para enciuma-la e fazê-la entender que sou o amor da sua vida?  Anjos celestiais, entrego a decisão do que devo fazer, em vossas mãos. Votações abertas! – disse, genuíno, bradando aos céus de chapéu na mão e braços abertos.

Isadora teve um acesso de riso, e ele se vingou pegando-a no colo e dando giros no meio do arrozal. Ela escapou, e feito crianças começaram a correr um do outro, até que, ao tropeçarem numa pedra, rolaram pelo chão. Os olhares se encontraram e o primeiro beijo aconteceu.

- Sua falsa... Diz ser apenas minha amiga, e me beija desse jeito.

- Tu me beijaste.

- Não mesmo. Foste tu. Linda, amiga.

- Nos beijamos... - disse a prenda, emocionada e com o cabelo desfeito. E logo trocaram o segundo beijo.

O vento se fazia quente e pássaros pousavam sobre seus corpos, como costumam pousar em galhos de árvores para cantar as belezas da vida. Borboletas coloridas repousaram em seus ombros e águias sobrevoaram ligeiras suas cabeças, e o perfume da existência se fez presente, exalando bênçãos sagradas.

Ao se entregarem, eles sentiram a alma guardiã do amor presente, e por alguns instantes o resto do mundo deixou de existir, porque naquele momento mágico, eles eram o mundo: o mundo da perfeição. Então, sentados um frente ao outro, ficaram em silêncio, a se contemplar...

- Agora preciso fazer-te uma pergunta séria, Isadora – por que só podemos ser amigos? É porque sou negro e não passo de um simples peão? Já entendi. Sua família nunca permitiria – falou o rapaz, quebrando o silêncio.

- O problema é muito mais sério do que isso, mas não posso contar. Por favor, não estrague este momento tão lindo.

- Então, como vamos ficar?  Nos encontrando às escondidas?  Preciso pelo menos entender o motivo. Estou disposto a enfrentar qualquer coisa por ti, por favor confia em mim.

- Tens razão. Não pode haver segredos entre nós. Vou contar, mas não hoje. Beija-me outra vez, querido, amigo...
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continua…

Fonte: Texto enviado pela autora

Dicas de Escrita (Como escrever histórias) – 4

A TRAMA


Em toda história, por menor que seja, existem três partes fundamentais: apresentação, meio e fim. Para que possamos entender tanto a trama principal como a subtrama, é necessário, inevitável, que apresentemos aos personagens e proporemos as regras do jogo. Mais tarde iremos submeter a esses personagens a algum tipo de teste, sofrimento, piada macabra que permitam que evoluam e, ao final, decidiremos se eles se casam ou não, se o nosso protagonista morre ou nós lhe perdoaremos seus pecados. Parece simples, mas muitas vezes, cometemos erros de proporções.

Revise sua história e marque onde você acha que cada uma das partes começa e termina. Uma boa história tem sempre proporções harmoniosas: a a apresentação “pesa” tanto quanto o desenlace, tendo maior extensão, aproximadamente o dobro dos anteriores. Esta é apenas uma aproximação que pode-se ver facilmente em qualquer filme.

Os erros mais comuns em relação ao enredo são:

- uma abordagem muito longa que nos aborrece.

- um desenvolvimento que carece de tensão. O ideal seria que saber o interesse em como termina a história foi crescendo e que, pouco antes do desfecho, estivesse em seu ponto máximo. Mas tome cuidado com resultados precipitados. Além disso, os contadores de histórias principiantes tendem a finais dramáticos (a morte do protagonista ou a perda de uma oportunidade que não voltará a surgir) e surpresas. Ler ajuda a se livrar desses vícios.

- a falta de ritmo. Há situações muito interessantes, seguidas de outras que provocam tédio e indiferença. Além disso, o receptor tem a sensação de que essas situações não levam a lugar nenhum. Tudo o que acontece tem que acontecer porque a história precisa disso.

Uma maneira eficaz de controlar as tramas e as subtramas da nossa história é fazer uma “escaleta” (lista). Uma escaleta é a enumeração das cenas da nossa história desde o seu começo até o final. É muito importante que você diferencie dos personagens, subtramas do mesmo personagem... Você pode complicar a escaleta tanto quanto você deseja, porque quanto mais complexo você o tornar, maior compreensão você terá de sua história. Claro, lembre-se que mesmo que você faça uma lista maravilhosa, sua história não tem por que melhorar. Mesmo que os planos da sua casa tenham sido desenhados por um grande arquiteto, não garante a execução da obra.

Além disso, a escaleta serve para examinar uma história já escrita, bem como para criar uma nova. Alguns contadores de histórias acham muito mais fácil saber para onde vão, outros não e há quem se queixe de não conseguir seguir o esquema previamente traçado, dizem que seus personagens ganham vida própria e força-os a mudar a história. Qual é o problema? você sempre terá um alternativa à história que você está escrevendo.
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continua…

Fonte:
Pedro A. Ramos García. Cómo contar historias. in www.mailxmail.com . acesso em 26.11.2020. Tradução por J.Feldman

segunda-feira, 25 de setembro de 2023

Aparecido Raimundo de Souza (Ponto cego)

— VOCÊ PENSOU bem no que vai fazer, Rosana?
— Pensei, repensei e estou decidida. É agora ou nunca.
— Eu se fosse você contava até mil.
— Já contei até um milhão.
— Não parece. Conta de novo.
— Nem que a vaca vá pro brejo.
— Não esqueça das consequências. Lembre também de suas duas filhas.
— Elas me darão total razão depois do caso consumado.

— Quando elas descobrirem e entenderem o que você pretende fazer com o pai delas, evidentemente ficarão com raiva. Raiva não, ódio. Ódio mortal.
— Rayane está do meu lado. Entende um pouco da situação humilhante pela qual estou passando. Diria a você que ela sabe das sacanagens que o pai tem feito comigo. O problema, futuramente, se houver, poderá ser com a Rayssa. Embora tendo convicção de que o pai não presta, gosta dele demais...

— Pense no futuro. As duas não têm idade para certos discernimentos. O que quero dizer é que hoje elas não assimilam muitas coisas dessa loucura que é a vida adulta. Porém, amanhã, poderão ser seu inferno.
— Se acontecer, não estarei nem um pouco preocupada. Já escolhi o final da história.
— E o seu capítulo?
— Meu capítulo?
— É.

— Que capítulo? Não tenho nenhum que me recorde.
— Seu capítulo com o Bufônio.
— Acabou.
— Tem certeza?
— Como dois e dois...
— E o que virá a seguir?
— Não estou entendendo, Eugênia.
— Faço referência ao capítulo que o destino escreverá após o fato levado à cabo.

— Planejei cada detalhe com carinho.
— E se algo sair errado?
— Não sairá.
— Rosana, se você não se ama, não se gosta, não tem um pingo de ternura pela sua pele, ao menos, por amor às suas filhas, desista dessa idéia.
— Nessa altura do campeonato?
— Não descarte a possibilidade de uma possível cadeia.
— Se tudo correr conforme espero, e correrá, pode estar certa, não haverá cadeia. Demais a mais, não vou cometer nenhum crime hediondo.

— Já que levou o assunto para essa seara, tenha em mente que o crime não compensa.
— Eugênia, pelo amor de Deus, eu não vou cometer nenhuma barbaridade!
— Vai sim.
— Eu não vou matar o Bufônio. Apenas aplicar um corretivo. Um castiguinho de somenos importância para ele aprender a respeitar a esposa fiel que vive ao seu lado, a companheira que faz de tudo para manter um lar em constante harmonia.

— Você poderá perder a sua liberdade. Suas filhas ficarão jogadas ao léu. Pense. Na casa dos outros. Duas meninas que mal sabem o que é a vida...
— Rayane e Rayssa não ficarão desamparadas. Vou deixá-las com minha mãe.
— Sua mãe é de idade avançada. Não tem estrutura para aguentar uma pancada dessa envergadura. Duas crianças não são fáceis.
— Eugenia, não adiante tentar me demover dessa paranoia. Já disse, estou decidida. Aquele cachorro vai ter o que merece...

— Premeditação.
— O quê?!
— Isso que está fazendo e quer pôr em prática, não sei o que pretende, mas não importa. Se chama premeditação.
— Não faz diferença o nome que você dê ao que pretendo pôr em evidência. Sei apenas de uma coisa: Bufônio terá o que merece. Hoje me vingo. Acho que todas as mulheres que se sentem traídas deveriam seguir meu exemplo. Aposto que muitos homens metidos à besta tomariam jeito e vergonha na cara.
— E como você porá em prática essa barbárie, ou melhor, como pensa em dar cabo dela?

— Como te falei. Hoje é o aniversario do safado. Reservei uma suíte no motel aqui perto de casa para nós. Mandei preparar um jantar romântico à luz de velas, com o prato preferido dele regado ao vinho que mais aprecia. Vamos nos amar como nunca. Farei tudo o que ele gosta, numa deferência toda especial. Pretendo me transformar na prostituta que ele sempre procurou fora de casa. Sabe aquelas vagabundas bem safadas e fazem estripulias que até Deus duvida? Então...
— Na hora agá você se envolve, entra no clima e volta atrás. Vou torcer para que tal ocorra...

— Aí é que você se engana, amiga. Providenciei com uma colega de serviço, um preparado que ela me garantiu é tiro e queda. Basta adicionar o treco à bebida, no meu caso, ao vinho. Depois é partir para o abraço e comemorar.
— Pela última vez, desista.
— Nem morta!
— Parta pra outra.
— Já estou em outra. Só pretendo lavar minha honra.
— Deixa o rapaz viver a vida dele. Você é nova, não faltarão pretendentes.

— Nem te conto, Eugênia. Estou de olho no Mario do Almoxarifado. Um gato!
— Bufônio conhece o sujeito?
— Praticamente trabalham lado a lado.
— Olha, pela milésima vez. Manda o Bufônio pra casa do chapéu com aba e tudo, passa uma borracha em cima dessa sua ideia maluca. Deixa o desmiolado viver a vida dele como bem quiser.
— Sua maluca, ele vai continuar vivendo. Nada mudará.
— Tudo tomará outro rumo. Bufônio bufará eternamente nos seus ouvidos...
— Você acha que não pensei nisso? Deixa a criatura bufar...  

— Como sua amiga, numa derradeira tentativa, devo avisar que cadeia, polícia e justiça, não combinam com gente do seu tipo.
— Amiga, não vou pra cadeia. Tampouco tenho em mente me envolver com polícia ou justiça.
— Acaso pretende ser tragada pela terra? Acha que ficará invisível?
— Nem uma coisa, nem outra.

— Bem, eu tentei, Rosana. A vida é sua. Seu futuro, segundo me parece, está para correr entre seus dedos. Estou de consciência tranquila. Fiz o que pude.
— Desculpe. Obrigada pelas tentativas...
Horas depois, Rosana se encaminha, de carro, com o marido, para o motel. Ocupam a suíte presidencial, que, anteriormente deixara reservada. Pede o prato preferido dele. O vinho que mais gosta. Jantam, bebem, abraçados como dois pombinhos. Em seguida, assistem um pouco de televisão.

Na sequência da noite criança, trocam juras de eterno amor. Se amam, como nunca. Falam, e depois, de problemas os mais triviais. Bufônio não cabe em si, tamanho o contentamento que aquela recepção da amada lhe está causando. Afinal, recorda, ela nunca esquecera do dia da comemoração do seu natalício. Ao contrário dele, deixava a data transcorrer à revelia. Rosana nessas datas preparava um bolinho, reunia as crianças, e, à noite, acabava com os abraços e os parabéns dos amigos da empresa onde trabalhavam. Um ponto a favor da infeliz com quem, há vinte anos, se casara, o que lhe valera duas lindas e maravilhosas meninas, Rayane e Rayssa, respectivamente com quinze e dezenove anos.

Não seria, pois, correto, esquecer do aniversário da sua outra metade. Mas Bufônio não ligava para pequenas coisas e pouco se importava que corresse à solta. Enquanto remoía essas conjecturas, pediu à esposa que voltasse a completar os canecos. Nessa hora Rosana decidiu que se fizera chegado o momento. Dirigiu-se, então, a um painel eletrônico e acionou um botão que abria no teto, um espaço que permitia ver o céu infinito e as estrelas em todo o seu esplendor. Enquanto o mecanismo se movimentava, ela seguiu até uma pequena geladeira, renovou as duas taças e, na do marido, acrescentou o produto que a amiga lhe indicara, faria o pobre infeliz viajar na maionese. Bufônio bebeu aos goles poucos. Sorveu cada bicada lentamente, numa inocência pagã, como se saboreasse o futuro.

Ah, o futuro! Por falar nele, veio à sua mente, assim do nada, a figura da nova amante, a Lurdinha, secretária recém contratada do patrão.  Nossa, ela era o bicho, na cama! Rosana até que tentava, mas não. Em nenhum instante se comparava a Lurdinha. Lurdinha, a fogosa magnífica, a perdição endiabrada em figura de inventar estripulias. De repente, um sono profundo passou a atormentar seus olhos. Lurdinha virou figura difusa em sua cabeça. Rosana, idem. Ele não sentiu as pernas. Não conseguiu mesmo trilhar, abrir os olhos. O quarto rodou. Rosana girou. Ele, inteiro, mergulhou numa espécie de poço com luzes as mais diversificadas cores e a sensação de estar caindo preso aos travesseiros e ao lençol que baseava o colchão da alcova.

Dois homenzinhos vestidos com roupas estranhas nas cores abóbora e tomate, no mesmo instante, desceram pela abertura que dava para ver as estrelas de dentro do aposento.  As figuras em questão, menores que os anões da Branca de Neve. Traziam nas mãos uma espécie de maca. Bufônio foi colocado sobre ela e a luz o elevou para uma espécie de aeronave pousada logo acima da cobertura do motel. Num intempestivo impulso de medo e terror, desmaiou, langoroso, a sua afoiteza e, sem ter para onde correr, se acovardou completamente "submissado".

Apesar do sono profundo, gritos abafados de terror escaparam da sua garganta. Na verdade, Bufônio bufou ridículo e anedótico, aparentemente imobilizado pela letargia modorrenta da bebida em excesso e da visão dos franzinos. Seus berros lancinantes (que ele acreditava estivessem soltos boca afora), se espalharam e sacudiram o silêncio que reinava por todos os cantos do ambiente. Tudo, em seguida, para ele, virou uma tremenda escuridão. Quando acordou, foi levada a presença de uma nanica (que aliás, parecia ser a chefe suprema daquele paraíso desconhecido.

A jovem lembrava muito a Lurdinha. A donzela apareceu montada elegantemente a bordo de uma espécie de lambreta que flutuava. Sorrindo insinuante e numa voz docemente envolvente, a senhorita comunicou que ele, Bufônio, havia sido abduzido.  E, com o tal e para sempre, permaneceria aprisionado aos cuidados dela. Ele seria, dali para frente, o seu escravo. O pobre coitado se tornaria cativo num planeta ainda desconhecido em toda a galáxia. O astro luminoso tinha o esquisito nome de Oinôfub.  

Fonte:
Texto enviado pelo autor

Filemon Martins (Paleta de Trovas) 24

 

Jacira Fagundes (O velho avô)

Já não éramos tão pequenos para aquele tipo de travessura. Contávamos, na época, dez e doze anos, meu irmão e eu.

Mas na casa do avô, naquele lugar distante do mundo, eram poucas as possibilidades de brincadeiras. Nosso pai havia nos feito a proposta. Naquelas férias, primeiro passaríamos alguns dias no chalé, visitando os velhos da família. Depois pegaríamos o avião para o Canadá.

O avô, na verdade era o avô de nosso pai, estava muito velho vivendo aos cuidados da filha que lhe sobrara. Nosso pai nos convenceu, alertando de que esta talvez fosse sua última visita ao seu velho avô.

De chegada constatamos o pouco de atrativo que a casa oferecia. Na mesinha de canto da sala, um jogo de xadrez com as peças em madeira escamadas. Ao lado da mesa, uma estante que abrigava alguns livros e revistas. E no balcão, a TV, com o pior som e a pior imagem que alguém poderia imaginar.

Então, entediados, aquela manhã de céu cinzento chamou a mim e ao Zé Mauro para a diabrura.

Era o momento certo de sairmos da sala rumo às investidas nos cantos soturnos da vasta casa onde segredos e mistérios nos seriam revelados.

Nossa meta era o quarto do avô. Zé Mauro torceu a maçaneta e empurrou a porta que, para nossa felicidade, não rangeu. A fresta permitia ver com folga os movimentos do velho.

Pelo jeito que Zé Mauro passou a apertar meu braço à altura do cotovelo e pela respiração atropelada, eu deduzi que ele estava perturbado. Empurrei-o para o lado e foi a minha vez de ver o avô, apoiado na guarda da cama, tentar a façanha de enfiar um dos pés no chinelo porque o outro já estava calçado com uma alpargata azul. Enquanto tentava chegar ao chinelo que lhe escapava, ele segurava a calça do pijama que teimava em descer. Foi aí que o coitado começou a tossir, uma tosse fraquinha, mas demorada. Acho que a força que fez para tossir é que deve ter provocado a série de ploct...ploct ploct... como se alguém estivesse a estourar pipocas e algumas falhassem.

Ao invés de rir, eu me assustei. Empurrei a cabeça de meu irmão para a fresta. Mas Zé Mauro passou a sussurrar coisas meio bobas; que o avô antes era tão alto e grande, quando foi que ele encolheu, e que nem percebeu a barata enfiada no chinelo, que ele agora coça os braços, e a calça do pijama arriou de vez, e ele se coça, onde foi parar a barata?

Vem, Zé - eu lhe dei um safanão. Aqui já perdeu a graça e o quarto tá muito escuro e abafado e este cheiro. Vamos lá pra fora, no pátio, sim, é que a gente pode achar alguma coisa e se divertir, olha Zé, voltou o sol.

Nosso pai tinha razão. Foi a última vez que visitamos aquela casa onde houve, em um tempo, uma tia e um avô, parecendo ambos terem a mesma idade.

Hoje, ao acompanhar da sacada, meus dois filhos adultos com seus filhos, no pátio trocando passes com a bola, me bateu esta saudade.

António Nobre (Poemas Avulsos) – 2


AO CAIR DAS FOLHAS

(À minha irmã Maria da Glória)

Pudessem suas mãos cobrir meu rosto,
Fechar-me os olhos e compor-me o leito,
Quando, sequinho, as mãos em cruz no peito,
Eu me for viajar para o Sol-posto.

De modo que me faça bom encosto,
O travesseiro comporá com jeito.
E eu tão feliz! Por não estar afeito,
Hei de sorrir, Senhor! Quase com gosto.

Até com gosto, sim! Que faz quem vive
Órfã de mimos, viúvo de esperanças,
Solteiro de venturas, que não tive?

Assim, irei dormir com as crianças
Quase como elas, quase sem pecados...
E acabarão enfim os meus cuidados.
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EMÍLIAS
(A uma senhora que não quer ser Emília)

Emília és, quer queiras, ou não queiras:
Que lindo nome o teu, soante de brisas!
É um nome de pastoras e moleiras,
Loira morgada do solar dos Nisas!

Muitas Emílias há, entre ceifeiras,
Há Emílias nos serões das descamisas...
Se tu, Senhor! dás nome às Amendoeiras
Com o nome de Emília é que as batizas!

Que Santa Emília te acompanhe, Rainha!
E com a tua Mãe seja madrinha,
Quando ela, um dia, te levar à Igreja!

E, ó pura Glória, que em teus olhos brilha!
Doces presságios meus, que a tua filha
Seja loira também e Emília seja!
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LÓGICA

Ai daqueles que, um dia, depuseram
Firmes crenças num bem que lhes voou!
Ai dos que neste mundo ainda esperam!
Terão a sorte de quem já esperou...

Ai dos pobrinhos, dos que já tiveram
Ouro e papéis que o vento lhes levou!
Ai dos que tem, que ainda não perderam,
Que amanhã, serão pobres como eu sou.

Ai dos que, hoje, amam e não são amados,
Que, algum dia, o serão, mas sem poder!
Ai dos que sofrem! ai dos desgraçados

Que, breve, não terão mais pra sofrer!
Ai dos que morrem, que lá vão levados!
Ai de nós que ainda temos de viver!
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NOSSOS AMORES FORAM DESGRAÇADOS

Nossos amores foram desgraçados,
Desgraçada paixão! Tristes amores!
Se Deus me dá assim tamanhas dores,
É porque grandes são os meus pecados.

Quando virão os dias desejados?
Quando virá maio para eu ver flores?
Nunca mais! Ainda bem, santos horrores!
Que os pobres dias meus estão contados.

Passo os dias metido no meu moinho,
E mói que mói saudades e tristezas,
Moleiro que no mundo está sozinho.

Os lavradores destas redondezas
Queixam-se até de que a farinha à data
Tanta é que “está de rastros de barata...”
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O TEU RETRATO

Deus fez a noite com o teu olhar,
Deus fez as ondas com os teus cabelos;
Com a tua coragem fez castelos
Que pôs, como defesa, à beira-mar.

Com um sorriso teu, fez o luar
(Que é sorriso de noite, ao viajante)
E eu que andava pelo mundo, errante,
Já não ando perdido em alto-mar!

Do céu de Portugal fez a tua alma!
E ao ver-te sempre assim, tão pura e calma,
Da minha Noite, eu fiz a Claridade!

Ó meu anjo de luz e de esperança,
Será em ti afinal que descansa
O triste fim da minha mocidade!

Jaqueline Machado (O Fantasma da Ópera e a tríade da consciência)

O Fantasma da Ópera, do escritor francês Gaston Leroux, é uma misteriosa Tríade Mental formada por Erik, a mente da alma, Christine, a mente da vida, e Raoul, a mente das coisas do mundo.  

A moça, bela e talentosa, ouvia em sua cabeça uma voz que lhe inspirava a cantar. Ela pensava estar ouvindo a voz do anjo da Música, o qual seu pai, grande músico, havia dito que lhe enviaria quando não estivesse mais presente... Ao cantar, ela assemelhava-se a uma taça transbordando bebida doce e suave a quem tem sede... O seu canto era um canto de sereia a encantar a todos ao seu redor. Ela era o espírito da casa de espetáculos, e toda essa magia foi descoberta ao substituir Carlota, estrela principal do Teatro.

O Anjo da Música, Erik, era um homem que vivia escondido nos porões da casa, devido a uma má formação no seu rosto. Tornaram-se cúmplices: a moça emprestava-lhe a beleza, enquanto ele, lhe emprestava a voz. Ou seja, ela era o amor, o encanto, o útero da vida a transbordar possibilidades, talentos... Mas ele, era alma escura, o mistério, as sombras do ser... Perdido nos breus de uma profunda solidão, sofria a impossibilidade de ser amado. Mesmo assim, apaixonou-se por Christine que, por sua vez amava Raoul, namoradinho de infância, e que na história, representa as riquezas do mundo, o direito à escolha, o livre arbítrio.  

O entrelace entre a jovem e o rapaz despertou no fantasma a ira de todos os demônios. Obcecado, passou a estrategiar maneiras de separar o casal. Tudo e todos que separavam Christine de seu espaço, ele matava ou tornava distante.

Em certo momento, Christine quase aceitou se unir ao anjo, mas ela tinha medo do que é oculto, do que é subterrâneo, do que pertence aos mistérios da alma... No fim, optou pelo amor de Raoul. Achou melhor casar com as coisas do mundo, a unir-se a sua alma. Não entendeu que as perversidades de Erik, na verdade, eram uma tentativa de afastá-la do que é perecível, mas ela temia o mistério, e o via como um monstro.

A realidade do “eu” das almas, é vista de forma desfigurada diante da realidade do mundo. Inconformado, o fantasma aprisiona o casal de namorados. Mas percebendo que era inútil desejar separá-los, os liberta.

Christine morreu antes do marido. E certo dia, Raoul foi ao cemitério visitá-la. E lá, próximo ao túmulo, estava a rosa do seu eterno rival.  A tríade se reúne novamente, pois são inseparáveis...

Resumo da minha pequena Ópera explicativa: o espetáculo, o fantasma e Raoul, são os três estados de consciência de Christine. Mais do que isso, são os três estados de consciência de todos nós seres humanos.

Fonte:
Texto enviado pela autora

Renato Frata (Oportunidades)

Meu pai, de grata memória, embora às vezes, tivesse problemas com a bebida, era um homem que prezava como ninguém os preceitos de honestidade e decência. Seus oito filhos, se todos estivessem vivos, confirmariam esse caráter. Para não dizer que ela era duro até consigo que, tendo trabalhado por anos como vendedor-cobrador por esses rincões do Paraná desprovido de bancos e financeiras, carregava por um mês inteiro, até a prestação de contas no Estado de São Paulo, malas de dinheiro que recolhia das cobranças feitas para o patrão. E nunca teve que se explicar do porquê da falta de uma nota. Não, sua decência jamais permitiria ultrajar a conduta por um deslize, por pequeno fosse.

Uma vez, num jogo caseiro de canastras com apostas “leite de pato”, alguém da mesa surrupiou um coringa e ele, tendo visto, apenas olhou para a pessoa que, constrangida, a devolveu ao monte. Pois, não satisfeito, pediu licença, embaralhou novamente as cartas, colocou-as de volta à mesa e disse a que todos ouvissem: – “Vamos cuidar do que temos e de que poderemos ter, pois a ocasião, faz o ladrão.”

Muitos não entenderam o que quis dizer, mas aquele que havia agido matreiramente avermelhou as orelhas, encolheu-se e tossiu, sinal de que a lição servira. Eu, que sapeava, ri de orgulho.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

domingo, 24 de setembro de 2023

Versejando 123

 

Graciliano Ramos (Um missionário)

Depois da morte do louro, referiu Alexandre, Cesária começou a aperrear-me pedindo outro.

Eu me encafifei: — “Onde é que vou arranjar isso, filha de Deus? Que arrelia!” Mas Cesária não me largava de mão: — “Xandu, veja se me descobre um parente dele. Raça boa não falha, Xandu.” — “Está bem, está bem.” Procurei informação: a viagem seguinte sondei a velha que me tinha lambido seiscentos e vinte e dois mil e quinhentos, meses atrás. Perdi o tempo: o bicho era filho único, solteiro, não conheciam dele primos nem tios. Abri-me com Cesária: — “É melhor esquecer-se disso, minha velha. Vamos deixar de bobagem.

Ora, um dia na cidade, fiquei apreciando, numa sessão de júri, a cadência do dr. Silva, que botou para fora da cadeia, com muitas lambanças, oito ou dez protegidos do chefe político. Saí da Intendência, parei diante da casa vizinha: estavam fazendo lá dentro um discurso igual aos que tinha ouvido: — “Senhores do conselho de sentença, o meu constituinte não é criminoso.” E mais isto, e mais aquilo, e tal, enfim, etc. Cheguei a uma janela, onde várias pessoas se apertavam e batiam palmas: — “Isso mesmo. Apoiado.” Como a sala da Intendência era pequena, estavam debulhando ali o resto dos processos, calculei. Engano: a criatura que se esgoelava, sapecando em cima da gente uma penca de leis, era um papagaio miúdo e feio, de penas tristes e sujas. Se estivesse calado, não valia cinco tostões. Mas eu, pensando no desejo de Cesária, ofereci logo cem mil réis por ele, depois duzentos, trezentos, quinhentos, afinal o dono, homem de posses curtas, recebeu dinheirama grossa e me passou a gaiola. — “Você está doido, gritou o papagaio quando soube que ia viver na fazenda. Morar nas brenhas? Não nasci para isso.” Mas o jeito que teve foi acomodar-se lá:

— “Está aqui, Cesária, recomendei. Trate bem este vivente, como se ele fosse cristão. Você nem avalia o que esta coisinha tem no interior.” Cesária experimentou: — “Papagaio real. Vem de Portugal. Currupaco, papaco. Dê cá um beijo. Como vai meu louro?” — “Mal, muito obrigado, respondeu o animal furioso. Isso não é terra de gente.

Cesária se ofendeu, voltou às boas, viu que o bicho não queria aprender, já sabia tudo. Sabia, meus amigos, sabia tanto como um tabelião, mas ali passava muitas horas de língua emperrada. No fim de algumas semanas nem ligávamos importância a ele. — “Currupaco, papaco. A mulher do macaco”, dizia Cesária querendo animá-lo. E o bicho respondia sério: — “Deixe essas tolices, dona. Não sou nenhum trouxa.

Meu pai e meu sogro apareciam às vezes: — “Bom-dia, boa-tarde, sim senhor, como vai a família?” O papagaio, cochilando na gaiola, disse uma vez chateado: — “Que gente besta!” Embatuquei ouvindo aquela falta de respeito às visitas. Depois achei graça. Rezávamos o terço à noite. Os machos se ajoelhavam na esteira, Cesária e as vizinhas cantavam bem-ditos. O papagaio, lá de cima, na parede, arregalava o olho e emendava as asneiras que as devotas metiam na ladainha: — “Está errado.

Passaram-se meses, e Cesária entrou a remoer uns despropósitos: na opinião dela, era injustiça amarrar-se um ente capaz de fazer defesa no júri, citando os poréns de lei. Injustiça e desconsideração. Eu respondia: — “Isso não tem pé nem cabeça, mulher. Crie juízo.” Mas a amofinação continuava: — “O inocente nunca fez mal a ninguém, Xandu. Bem falante, com miolo para tirar da cadeia pessoas de maus bofes, vive na corrente.

Perdi a paciência: — “Eu não lhe disse que o papagaio tinha tirado presos da cadeia.” — “Não tirou porque não houve confiança nele, gritou Cesária. É miúdo, coberto de penas que não recebeu água do batismo. Mas fala como o dr. Silva. Foi o que você explicou. Tenho até vergonha de ver esse infeliz na gaiola, Xandu.

Veio-me uma ideia esquisita, que vou espichar aqui diante dos senhores. Diga-me uma coisa, mestre Gaudêncio. Vossemecê, homem sabido que lê nos livros e andou nos estudos, é quem me vai acabar esta dúvida. Será que as aves de pena e criações dessa marca têm alma?

Não acredito não, seu Alexandre, resmungou o curandeiro aprumando-se. Uns incréus chegam a dizer que os filhos de Deus, encruados nos mandamentos e nos sacramentos, não possuem almas. É embromação do tinhoso, já se sabe. Mas alma em bicho do mato, com franqueza, foi coisa que nunca me bateu a passarinha. Seu Alexandre pensa de outro modo?

Não pensava não, mestre Gaudêncio. A ponta de língua de Cesária é que deu esse palpite. Fiquei assim meio lá, meio cá, especialmente por causa daquele negócio do ensino da ladainha às devotas
 
— “Faça o que lhe mandar o coração, mulher de uma figa, destampei. Talvez você esteja certa.” Cesária tirou o animal da corrente, ele pulou da gaiola e agradeceu muito sério: — “Nossa Senhora lhe pague, dona. Não me esqueço dos benefícios que recebo.

Sim senhores, falou assim. E afastou-se emproado, arrastando os pés, foi examinar o pátio, o chiqueiro das cabras, o bebedouro, os currais, as veredas e as moitas dos arredores. Gastou uma semana ou mais nessa vadiagem: só entrava em casa na hora da comida. Levou sumiço de repente, nunca mais ninguém pôs a vista em cima dele. — “Está aí o que você fez, Cesária, desatinei. Quinhentos mil réis esbagaçados. A culpa é sua.” Ela baixou a cabeça, triste, e gaguejou com voz de choro: — “A culpa é minha, que lastimei a sorte daquele judeu. Hoje em dia a gente não deve ter pena de ninguém não. O mundo está cheio de ingratos, Xandu.” — “Acabou-se, atalhei amolado com o arrependimento da patroa. Não se trata mais disso. O que passou, passou. E de agora em diante não me entra em casa nem um periquito. Sou caipora com essa geração excomungada; já me deu dois prejuízos.

Não tornamos a mexer na história: quem não tem remédio remediado está, como dizem os mais velhos. Correu tempo, andei para cima e para baixo, do sertão à mata, engordando os nossos possuídos nos arranjos que os amigos já conhecem. Ora, numa vaquejada, parei no meio da catinga, espantado com um barulho de arrepiar, e larguei a rês que se escafedia, ali ao alcance da mão, pega não pega. Falatório comprido, uma latomia dos pecados. Sim senhores. A princípio não distingui as palavras, e julguei que aquilo fosse arte do capeta ou assombração de alma penada, porque em redor não havia casas e os caminhos estavam longe. — “Que trapalhada é esta, meu Deus?” disse comigo. E logo veio a resposta. Levei a mão à orelha e ouvi perfeitamente: — “Padre nosso, que estais no céu, santificado seja o vosso nome, venha a nós o vosso reino...” E a enfiada santa escorreu muito clara até o arremate, sem nenhum erro. Depois dela vários fregueses, já perto de mim, se espremeram, um bando deles, uns cem, calculei: — “Ave Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco, bendita sois entre as mulheres...” Fiquei de boca aberta. Quem estaria fazendo orações ali nos descampados, àquela hora, o sol nas alturas, o calor medonho queimando as folhas dos paus? Com certeza um lote de pecadores andava na penitência, procurando salvação, imaginei. Desci do cavalo, tirei o chapéu, ajoelhei-me, fiz o pelo-sinal e puxei o rosário, disposto a ajudar os penitentes.

Nisso uma nuvem de papagaios voou a poucas braças, por cima das catingueiras e das imburanas. O que vinha na frente arrumava o padre-nosso com todos os pontos e vírgulas, e os da rabada gritavam direito a ave-maria, como na igreja e no catecismo. Levantei-me numa zanga verdadeira. Cinco ou seis minutos de joelhos, batendo nos peitos, os dedos nas contas, o juízo a fervilhar. Assuntei no caso. Por isso fiz aquela pergunta, mestre Gaudêncio. Mas aí me chega uma dificuldade. Ignoro se o papagaio chefe, esfarinhado em reza, era o mesmo que fazia discurso, trepado nos autos. Acho que era, mas não posso garantir. Pensei no agradecimento a Cesária: — “Não esqueço os benefícios que recebo, dona.” E lembrei-me de uma santa missão feita dois anos antes, na cidade. Seu bispo falava no céu, no inferno, no purgatório. E quando se atrapalhava, pegava o rosário, dizia aquilo mesmo: — “Padre nosso, que estais no céu...” Um cento de beatas, ajoelhadas na grama, respondia com vontade: — “Santa Maria, mãe de Deus...” O papagaio tinha escutado o sermão, foi o que eu pensei, e queria mostrar o reino do céu à parentela.

Um missionário, com todos os ff e rr.

Fonte:
Graciliano Ramos. Histórias de Alexandre. Publicado originalmente em 1944.
Disponível em Domínio Público.

Artur de Azevedo (Por um fio!)


(Conto-Monólogo*)


És casado também?... tua esposa é ciumenta
E tem — para empregar uma expressão usada —
Cabelinho na venta?
Pois vou dar-te um conselho e não te peço nada:
Evita entrar no bonde. Acaso necessitas
De ir á Copacabana? Á Fabrica das Chitas?
À Vila Guarany?
À Muda da Tijuca? Ao Rocha? A Catumby?
Toma um carro de praça! E, se não tens dinheiro
Que afronte a proverbial ganância do cocheiro,
Enche-te de valor e vai a pé de calcantes (sapatos).
Assim se andava dantes
Por toda esta cidade,
E havia mais saúde e mais atividade.
Mas, se evitar não podes
O bonde, e um negro fado exige que tu rodes.

Dentro desse veículo
Que um pobre diabo expõe a parecer ridículo,
Nunca o banco da frente escolhas! Eu te digo
O caso excepcional que se passou comigo...
Ah! Ia-me esquecendo: eu abro uma exceção
Para o elétrico... Oh, sim! Porque essa condução
Dispensa o burro... O burro!... Ainda o sangue me ferve!
Ainda não estou em mim!... — Mas vamos ao que serve:

Eu sou casado e nunca atraiçoei Biloca
(Minha mulher assim se chama): não provoca
Os meus desejos nem mesmo a Vênus de Milo!
Se eu a visse passar, ficaria tranquilo,
Não lhe ofereceria o braço! Que mulheres
Me fariam fugir aos conjugais deveres?
Um dia, ali, na Lapa,
Eu fiz como José: deixei ficar a capa!
Por sinal, que a perdi... Que boa capa aquela!...
Vi, três dias depois, o Potifar com ela,
E assentava-lhe bem! — Mas imaginem que ontem
(Esta desgraça a toda a humanidade contém!),
Como houvesse luar e a noite convidasse,
Quis um bonde tomar que longe me levasse
Das vendas, dos cafés, dos chopes e dos quiosques,
Para aspirar a brisa balsâmica dos bosques.
Fui à Gavea. Um passeio esplêndido, bem sabem;
Mas, se passeios há que nunca mais acabem,
Esse é um deles. À volta, adormeci no bonde.

Acordei de repente e, para saber onde
Me achava, olhei ao longe e vi o mar, e logo
Pensei comigo: — Bom! Já estou em Botafogo. —
Adormeci de novo, e quatro sacalões
Fizeram-me acordar... no largo dos Leões!
Sim, senhor, foi bem boa:
O que me parecera o mar, era a lagoa
De Rodrigo de Freitas!
O marido que eu sou — um marido às direitas —
Na alcova conjugal entrou às onze e meia!
Agora vejam lá qual foi a minha ceia:
Minha mulher, de pé, as faces incendidas,
Nos olhos o sinal das lágrimas vertidas,
Quer saber de onde e como aquelas horas venho,
E me acusa, a gritar, de culpas que não tenho!
— Onde esteve o senhor metido até esta hora? —
— Biloca, ouve, meu bem: a causa da demora... —
— Não diga, que não creio! — Ó Biloquinha,
Não grites, para não despertar os pequenos! —
Enfim, passo por alto os longos pormenores
Do conflito, — eu vestido, ela em trajes menores;
Eu calmo, ela furiosa, e num ciúme absurdo
Um barulho a fazer de ensurdecer um surdo!
Às cinco da manhã dormíamos serenos,
Biloca, eu e os pequenos.

Mulher que por ciumenta o marido não poupa,
Tem o hábito mal de examinar-lhe a roupa,
Esperando encontrar um corpo de delito
Que o confunda, que o ponha atônito, contrito.
— Biloca despertou-me aos berros! Tinha achado
Um cabelo agarrado
À gola do meu fraque! Era um cabelo louro,
Um cabelo gentil, misto de seda e ouro.
Parecia, por Deus, cabelo de senhora
Que viesse de fora,
Inglesa ou alemã! — era um fio comprido:
Tinha seguramente um metro bem medido!
Um minuto depois de refletir profunda
E sossegadamente (O céu que me confunda
Se a verdade não digo!) achei que o tal cabelo
— Não cabelo, mas pelo —
Da cabeça não foi de uma mulher bonita,
Mas da cauda de um burro!
E Biloca inda grita!
Dá-lhe o mundo razão... e vão lá convence-lo
Que é pelo e não cabelo!

Toda a minha ventura eu trago por um fio!
Biloca diz que vai para casa do tio
(Já não tem pai, nem mãe) e quer judicialmente
Separar-se de mim!... Ai, o banco da frente!...

Mais uma vez repito o meu conselho: evita
Andar de bonde, e quando acaso, por desdita,
Não puderes fazer outra coisa, não vás
Para o banco da frente e sim para o de trás.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  =
Nota do autor
 * Se o leitor algum merecimento encontrar neste conto, não será, certamente, pelo assunto, que nada vale. Entretanto, acusaram-me de o haver furtado. Escrevi esses versos a pedido do distinto ator Mattos, aproveitando o fato contado por ele como sucedido a um amigo. É possivel que exista outro conto, monologo ou coisa que o valha, com o mesmo assunto, mas nunca o vi, nem o ouvi. — A. A.


Fonte:
Disponível em Domínio Público.
Artur de Azevedo. Contos em verso (contos cariocas). Publicado originalmente em 1909.
Português atualizado por J.Feldman

Hans Christian Andersen (0 moinho de vento)

Sobre a colina erguia-se um moinho de vento, de aspecto soberbo. E era mesmo soberbo!

- Não sou, absolutamente não sou orgulhoso, - dizia ele - mas sou iluminado, tanto por dentro como por fora. Tenho o sol e a lua para o uso externo e também para o interno; além disso, disponho de velas de estearina, de lâmpadas de óleo e de velas de sebo. Posso dizer, pois, que sou esclarecido! Sou uma criatura dotada de raciocínio e tão bem feita que dá gosto ver! Tenho no peito um bom esôfago; possuo lá em cima quatro dedos fixos junto da cabeça, logo abaixo do chapéu - ao passo que as aves tem apenas duas asas, que carregam às costas. Sou holandês de nascimento, como bem mostra o meu tipo: holandês, como o do Navio Fantasma, daqueles classificados entre os fenômenos sobrenaturais, ainda que eu seja perfeitamente natural. Tenho ao redor do estômago uma galeria, e , nas entranhas. peças de moradia: lá se alojam meus pensamentos. O meu pensamento mais forte, aquele que domina e manda ali, é chamado pelos outros " o homem do moinho" . Ele sabe o que quer e eleva-se muito alto, muito acima do farelo e da farinha. Tem porém, uma companheira, que se chama a "mãe", e faz as vezes de coração. E ela não anda sem tino, nem destino, não: sabe também o que quer, sabe o pode fazer; é  suave como a aragem e forte como a tempestade; é capaz de fazer uma coisa com brandura, e ainda assim, realizar o que deseja. Ela é o meu senso brando, enquanto o pai é rígido. São dois, e todavia um único ser; por isso se chamam " minha cara metade." E eles tem gurizinhos, pensamentos novos, que podem também crescer. Os pequenos é que mantém tudo em ordem. Quando, há pouco tempo, em um momento de meditação, mandei que o pai e os rapazes me inspecionassem o esôfago e o vão do peito, para verificar o que acontecera por lá - alguma coisa cá dentro de mim não funcionava bem e a gente deve examinar-se a si própria - os guris fizeram um barulho tremendo, que até nem fica próprio a quem, como eu, mora em cima de um morro. A gente não deve esquecer de que está iluminada: a opinião é uma espécie de iluminação! Mas, como ia dizendo, os guris fizeram um barulho infernal. O caçula entrou-me  até no chapéu, e, de tão contente de se ver lá, chegou a me fazer cócegas. Os pensamentos pequenos podem crescer, como me informaram; e lá por fora, pelo mundo, há também pensamentos, e nem todos proveem da minha estirpe, pois por mais que alongue a vista, não enxergo nenhum do meu tipo - ninguém, a não ser eu. Aquelas habitações sem asas, contudo, nas quais não se ouve o esôfago, também tem pensamentos que vêm aqui ter com os meus, e contratam casamento, como eles lá dizem... É esquisito, sim. Mas ora! há muita coisa esquisita: umas vêm cair aqui, outras sucedem mesmo em mim. Alguma coisa está mudada, na engrenagem do moinho. Parece que o pai, a cara metade, é que mudou: diria que ele tem agora um novo sentido, mais suave; uma companheira mais carinhosa, mais jovem, mais piedosa. É, todavia, a mesma, mas pelo efeito do tempo, talvez se houvesse tornado mais branda e mais devota. Evaporou-se o que nela havia de amargura e tudo está agora muito mais alegre na casa.

Vão-se os dias e outros vêm, sempre novos, trazendo claridade e alegria. E um dia virá, assim está dito e escrito, em que tudo se acabará para mim - embora não totalmente. Serei então demolido, mas me levantarei outra vez, novo e melhor; hei de cessar de viver, e, contudo, continuarei a existir. Ficando o mesmo, tornar-me-ei diferente. É difícil para mim compreender isso, por mais iluminado que seja - pelo sol, a lua, estearina, óleo e sebo! Minha velha construção de madeira e alvenaria há de ressurgir dos destroços.

Espero ficar com os velhos pensamentos, com o pai, a mãe, com grandes e pequenos - com a família, enfim. Pois a esse todo, que é uma  só coisa, ainda que sejam muitas, chamo eu - associação total dos pensamentos. Assim é preciso; não posso fazer  de outra  maneira.

E também eu terei de ficar eu mesmo, com o esôfago no peito, as asas na cabeça e a galeria em torno do corpo. Senão. talvez nem me reconhecesse a mim mesmo. nem os outros tampouco me reconheceriam, nem diriam:

- Lá está o moinho do morro: tem um aspecto soberbo e entretanto não é orgulhoso.

Todas essas coisas foi o moinho quem disse. E disse muito mais, mas isso é o que havia de mais interessante.

Os dias vinham e se iam, e o último chegou, afinal. Foi quando o moinho se consumiu, todo em chamas. As labaredas subiam muito alto, saíam pelo teto, tornavam a entrar, e iam lambendo e engolindo traves e tábuas, acabando por devorar por tudo. O moinho caiu, e dele nada mais restou senão um montão de cinzas. A fumaça afastou-se do lugar do incêndio, arrastada pelo vento.

O que havia de vivo no moinho subsistiu.

A família do moleiro, uma alma, muitos pensamentos, e todavia um só construiu um moinho novo, um moinho grandioso, tão parecido com o outro que o velho até havia de gostar dele. E as pessoas continuavam a dizer:

Lá em cima do morro se ergue o moinho, de soberbo aspecto.

Mas o novo estava mais bem instalado, era mais moderno, o que já se pode chamar de progresso. A madeira velha, carcomida e podre desfizera-se em cinza e pó. O corpo do moinho, contudo, não ressuscitou das cinzas, como ele esperava.

É que o velho moinho tomava todas as coisas muito ao pé da letra, o que é um erro.

Fonte:
Disponível em domínio público
Contos de Andersen. Publicados originalmente em 1837.

Dicas de Escrita (Como escrever histórias) – 3

O TEMPO É DE OURO


Agora que você sabe do que está falando, é hora de fazer uma pergunta muito importante, mais cruel: por que você acha que sua história é interessante para outras pessoas? Que tem de especial? Não há nada pior para um contador de histórias que, tendo terminado a sua narração, o destinatário olha para ele imperturbável e pergunta "E?" Concordo que existe gente insensível, mas o que não pode existir é contador de histórias insensível ou desonesto.

Por exemplo, se você for contar um dia na vida de uma mulher de classe média na sociedade vitoriana você terá que, pelo menos, tentar fazer melhor do que a Virgínia Woolf neste poderia ser o resumo de uma linha do romance Sra. Dalloway (Virginia Woolf, 1930)

Com isso não quero dizer que você não escreva mais e se dedique a contemplação dos Grandes Clássicos Universais, como alguns apontam fundamentalistas, mas a sua história tem que ter originalidade suficiente para que alguém queira ouvir.

Continuando com Virginia Woolf e sua Sra. Dalloway de 1930 (adaptado para filme por Eileen Atkins, roteiro, e Marleen Gorris, direção, em 1997), você conhece “As Horas”?  É originalmente um romance (Michael Cunningham, 1998) que foi adaptado para o cinema com roteiro de David Hare e direção de Stephen Daldry em 2002. Você se lembra do que dizia? Caso você não tenha visto ou não se lembre claramente, conta como "Uma manhã de 1923, num subúrbio de Londres, Virginia Woolf acorda com a ideia de que se tornará The Lady Dalloway. Nos anos noventa, em Nova Iorque, Clarissa Vaughan compra flores para uma festa em homenagem a Richard, um ex-amigo que sofre de AIDS e que recebeu um importante prêmio literário. Em 1949, Laura Brown, uma dona de casa de Los Angeles prepara um bolo de aniversário para o marido com a ajuda do filho pequeno. Estas são as três mulheres, e os momentos de partida, de As Horas, um romance emocionante que mergulha no mundo de Virginia Woolf com extrema sensibilidade e inteligência. Assim como o protagonista de sua obra, os personagens debatem entre a solidão, a desesperança e o amor pela beleza e pela vida até unir-se em um final transcendente."

Parece original para você? Por que alguém, setenta anos depois, ousa escrever a mesma história e, não satisfeito com isso, consegue incluir o modelo original? Há os que não gostem da “nova história” parece-nos uma homenagem e deslumbra-nos pela expertise do autor ao nos transmitir sua mensagem. Experiência que é colocada manifestar-se na hora de escolher a estrutura, criar os personagens, dar-lhes vida diante de dos nossos olhos e nos diz isso como se não fosse nada.

Releia os resumos que você fez e reflita sobre a originalidade da história que você está contando.
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continua…

Fonte:
Pedro A. Ramos García. Cómo contar historias. in www.mailxmail.com . acesso em 26.11.2020. Tradução do espanhol por J.Feldman