quarta-feira, 4 de outubro de 2023

Maria Amélia Vaz de Carvalho (A Cigana)

Quando o gajeiro gritou do alto das vergas — Terra! — toda a gente que vinha a bordo da galera Terrível sentiu uma grande e indefinida alegria.

Subiram uns para o tombadilho, outros deixaram-se ficar no convés, e os passageiros da proa, os mais pobres, encarapitaram-se na amurada; começaram todos a olhar com uma ansiedade febril para a faixa escura que pouco a pouco avultava no horizonte.

A viagem tinha sido longa; a galera levara cinquenta dias para chegar do Rio de Janeiro.

Mas, todas essas penas, todo esse aborrecimento que assaltam o viajante que durante dias e dias não vê mais que o céu e o mar, desaparecem como que por encanto ante essa palavra mágica, solta pelo gajeiro — Terra!

Os passageiros eram, na maior parte, gente de baixa condição e de ambições modestas: tinham sido no Brasil carroceiros, feitores de roça, carpinteiros e pedreiros. Vinham com pouco dinheiro, mas traziam grande abundância de saudades; tinham sofrido, padecido longe da pátria, mas como ela os ia compensar de todas essas amarguras! A alegria bailava em todos os olhos.

Ah! o capitão Navarro, apesar de ter feito aquela viagem cinquenta vezes, também vinha contente e esfregava as mãos, tomado de um júbilo desmedido.

Quando o piloto se correspondia com o castelo da barra, o capitão impaciente, mas sem perder o seu aspecto risonho e benévolo, perguntava:

— Deixam-nos ou não nos deixam entrar a barra?

— Estão agora a perguntar-me se morreu alguém a bordo.

— Ora essa! Morto estou eu por me ver em Massarelos. Querem ver que ainda temos que ir dar com os ossos em Vigo? Com mil bombas! Era o que me faltava agora!

Mas não aconteceu o que o capitão receava: do castelo fizeram sinal que a galera podia entrar, e foi com uma voz vibrante de entusiasmo e de um prazer intenso que o capitão comandou a manobra.

A galera como um cavalo que obedece facilmente à pericia de um ótimo cavaleiro, projetou a barra em meio das exclamações dos impacientes e saudosos passageiros.

A galera fundeou defronte de Massarellos.

No dia seguinte, já não havia ali senão parte da tripulação e um ou outro marinheiro que não tinha família e que olhava para o cais com repugnância e com desdém.

As capoeiras em redor do tombadilho estavam despovoadas, a roda do leme reluzia ao sol, parada, sem movimento, as tampas enceradas da meia laranja abriam-se como as asas de uma enorme borboleta em repouso, e as mangueiras de linho cheias, retesadas, levavam o ar à cabine e ao porão.

Um belo dia de agosto!

O capitão Navarro assistia ao descarregar sentado em uma barrica de farinha de mandioca; o contra-mestre no portaló* olhava mais lentamente para o Douro como quem procura enxergar uma coisa desejada e cobiçada.

— Ainda nada? – perguntou o capitão.

— Admira, capitão! Das outras vezes pouco se deixa esperar essa visita.

E com a mão em quebra-luz continuava a observar o movimento dos botes e das catraias.

De repente, a Cigana, uma cadela de fila que era o ídolo de toda a tripulação do navio, deu um salto, subiu as escadas do portaló, e alongando o pescoço, meneou festivamente a cauda e ladrou de contente...

Era um latir alegre e de boa feição, o latir que ouvimos aos cães das nossas casas, quando recolhemos depois de longa ausência.

— Espera! – disse o contra-mestre – a Cigana tem faro. Aí vem a sua gente, capitão!

Navarro ergueu-se, olhou e viu um barco que, à força de remos, se dirigia para a galera.

— Até que enfim! – disse o capitão, e desceu cheio de contentamento as escadas do portaló...

A cadela, vendo descer o dono, acompanhou-o e saltou ao mesmo tempo que ele para o interior do barco.

O contra-mestre olhava de cima aquele quadro e murmurava entre alegre e melancólico:

— Parece que é bom ter família e ter uma pequerrucha bonita como a do capitão que nos venha dar um abraço quando vimos de longe...

— Assim será, meu contra-mestre, mas quando essa filha vem de luto, devendo vir vestida de cores alegres; quando ela nos vem dizer com a voz abafada em lágrimas e soluços — A mamãe morreu! — não me parece que seja muito para invejar, meu rude celibatário, que não tens outro afeto senão pela tua galera e pelo mar, a quem confiaste a tua mocidade e a quem confiarás um dia o repouso do teu corpo!

De sorte que aquele momento tão apetecido pelo capitão foi-lhe amargurado pela notícia da morte da mulher que ele estremecia deveras.

Eram quatro os afetos do capitão: a mulher, a filha, a Cigana e a sua bonita e garbosa galera.

O primeiro afeto desaparecera, restavam-lhe ainda os três; não tinha muito que se queixar do destino: a galera ali estava capaz ainda de arrostar com sessenta viagens, a filha dependurava-se-lhe do peito amplo e largo, cheia de viço e de adorável meiguice, e aos pés de ambos, arrojava-se latindo baixo a Cigana, acariciando-os com os olhos onde havia o indefinido das vagas, e como que um lampejo umedecido de uma ternura doce e humana.

A filha de Navarro, depois de haver chorado no peito do pai, abaixou-se e passou a mão pela cabeça da cadela.

— Quando partir de novo, papá, deixe-me a Cigana, sim? A mamãe era tão amiga dela!

A Cigana, parecendo compreender aquelas palavras, endireitou-se, e pousando as patas no colo da menina, beijou-lhe carinhosamente as mãos...

Quando Navarro chegava do Brasil e ia passar algum tempo em Lessa com a família, levava sempre em sua companhia o seu querido animal! Imagine-se como este seria mimado, festejado e cheio de afagos quando souberam que uma vez no alto mar...

Não sei quantas milhas devorava nesse momento a galera. Era meio-dia, fazia um sol de rachar, os marinheiros à proa comiam o rancho, e na tolda não estava senão o capitão, a Cigana, e o homem do leme. O piloto fora buscar em seu beliche um mapa que o capitão lhe pedira, e demorara-se mais que o tempo necessário. Navarro ergueu-se do banco de vime e encostou se às grades da ré.

Como foi aquilo? Vertigem? Congestão cerebral?

Foi ele encostar-se à grade, estar ali coisa de dois ou três minutos, e de súbito borcar-se-lhe o corpo nas ondas...

O homem do leme viu aquilo, e aflitivamente exclamou:

— Jesus! Acudam!

E quando os passageiros correram ao tombadilho e a tripulação veio saber o que sucedera, o piloto, pálido e assustado, mandou recolher todo o pano; podia ver-se ao longe em meio das águas, que faiscavam e transluziam os raios do sol, um ponto negro e que pouco a pouco parecia afastar-se, afastar-se...

Os dois escaleres da ré foram descidos ao mar, e dentro deles os mais robustos dos tripulantes.

— Parecia que ele não estava bom! – disse o homem do leme. – Que eu só reparei nele quando o vi no ar...

— Deitem-lhe a boia! – gritou o contra-mestre.

Naquele momento de ansiedade, procurou-se a boia e não se encontrou.

O contra-mestre estava desesperado, as pragas mais violentas saiam-lhe em borbotões por entre os dentes, que apertavam estreitamente o tubo fumoso do cachimbo.

O navio afrouxara a sua marcha, contudo os escaleres ainda iam bastante longe do ponto negro que todos julgavam ser o capitão.

— Lá bom nadador é ele, – dizia o contra-mestre - mas se ha tubarões assim! – e reunia os dedos em pinha. Estendia os braços, dependurava-se da grade da popa, e com gestos ansiosos tentava animar os marinheiros dos escaleres.

— Força, rapazes!

No rosto de todos os passageiros lia-se um grande terror e uma pena profunda. Era impossível escapar. O capitão apesar de bom nadador já estava velho e cansado, depois os tubarões...

Os marinheiros contavam casos horrendos que haviam presenciado, e em que figuravam esses assanhados tigres do mar.

— Valha-nos o senhor de Matosinhos! – conclamavam num grito lancinante aqueles homens, que tantas vezes tinham lutado heroicamente contra as coléricas sanhas da tempestade, e que adoravam o bondoso velho, o seu capitão.

O ponto negro ia-se distinguindo mais nitidamente: às vezes afundava-se, outras vezes imergia-se; e enquanto os escaleres voavam, o contra-mestre continuava a gritar, posto que as suas vozes já não pudessem ser ouvidas pelos que iam em salvamento de Navarro.

Quando o vulto estava à distância de uma milha, o contra-mestre exclamou, firmando a vista:

— Ou eu me engano, ou o capitão não vem sozinho... esperem! É a Cigana que traz a reboque o patrão!...

Era a Cigana efetivamente. Quando o velho caíra no mar, o animal atirara-se logo atrás, e mergulhando conseguira apertar nos dentes as roupas do capitão, e desde esse instante nunca mais o largara.

Quando os escaleres se aproximaram dos dois, a pobre Cigana estava quase exausta e sem forças. Arrancaram-lhe a custo da boca o seu querido fardo e ela continuou a nadar frouxamente sem poder resistir às ondas que a levavam de chofre de encontro aos escaleres.

Quis subir, galgar a borda de um dos escaleres, e não pôde, resvalou na água, ganindo dolorosamente, sendo preciso que um dos marinheiros a puxasse com força, arrebatando-a assim à morte inevitável.

Da galera, aplaudiram a ação da Cigana, e quando ela e o capitão chegaram, não sei bem qual dos dois foi mais abraçado.

— Bravo, Cigana! – exclamou o contra-mestre - Não há homem que te valha. Dá cá um abraço!

O capitão foi levado por dois marinheiros para a sua cabine, enquanto a Cigana, resfolegando alto, com os olhos embaciados, o corpo escorrendo água e todo trêmulo, tentava arrastar-se para onde lhe levavam o dono.


Ora, aqui está porque a Cigana era tão querida e estimada na pequena e alegre casa do capitão em Lessa, e aqui está a razão por que a filha do velho e bondoso Navarro lhe pedia com tão amável meiguice que deixasse ficar a Cigana quando em outra vez tivesse de fazer viagem.

Quando a galera Terrível partiu, não levava a seu bordo nem o capitão nem a Cigana. Porque?

Se o leitor é pai, diga-me, se no caso do capitão Navarro, teria forças de fazer-se ao largo e deixar sozinha uma filha de quinze anos, graciosa e encantadora.

Não tinha forças para tal, acreditamos.

Ao capitão sucedeu o mesmo. Despediu-se dos seus companheiros, chorou quando viu pela primeira vez a Terrível fazer-se de vela sem ele, mas ficou em terra.

Tinha saudades, isso tinha, do mar, da solidão majestosa das águas, da melancolia das horas da calma, das tempestades que, de quando em quando, o visitavam, mas fitava os olhos azuis da filha e bebia neles consolações que lhe amorteciam essas mágoas.

Às vezes, saia de casa acompanhado pela Cigana, e ficava-se á beira do mar, observando os navios que passavam à distância, absorvendo a plenos pulmões o saudável ar marítimo, regalava-se conversando com os pescadores e com os embarcadiços, e nessas tardes recolhia mais alegre e com o corpo mais direito e rejuvenescido. Outras vezes, ia num bote pelo ameníssimo rio Lessa acima, e nessas excursões levava quase sempre a sua querida Luiza, e quase sempre nesses passeios em que ele contava à filha as peripécias de toda a sua vida trabalhosa, encontrava-se com outro bote em que ia ao leme um moço de vinte anos, elegante e galhardo que o cumprimentava respeitosamente.

Na terceira vez que aquele encontro se deu, o velho disse á filha:

— Não sei se conheço aquele moço! É o filho único de um meu antigo companheiro. O pai está rico, está. Eu também por aquele preço podia estar como ele ou melhor. Que se ele tem muito de seu, a mim me deve. Joaquim Antonio Ferreira, que depois foi feito Conde da Guaratiba, bem queria que eu fosse capitão de uma sua barca, recusei, porém, sempre, e apresentei-lhe um dia Gouvêa, o pai desse rapaz, que afinal de contas depois de seis ou sete viagens felizes à África, deixa a vida do mar e foi um dos que mais lotes de escravos levava aos armazéns de Vallongo... Ser rico à custa de tantas lágrimas não era para o filho de meu pai...

E aqui entrava o capitão a contar a Luiza coisas da sua mocidade, e absorvido nessas recordações não reparava que a filha seguia com a vista ansiosa o barco em que ia o herdeiro do milionário Gouvêa.

Luiza amava, e amava como o primeiro e grande afeto de quinze anos.

Segregada das moças da sua idade, não tinha a quem confiar tantos e tão amantíssimos segredos: embriagada por aquele amor, deixava-se ir deliciosamente pela correnteza, sem medo de encontrar um dia a voragem que a tragasse, o abismo em que se lhe afundasse a honra e a vida.

Nunca tinha falado ao noivo da sua alma; via-o de longe, ora passar a cavalo pela rua em que morava, ora no rio quando o pai a levava aos costumeiros passeios.

Conhecia-o pelas cartas, que lia, relia e decorava, e a todas elas respondera, menos à última cujo conteúdo a trazia surpresa, enlevada, vibrante...

O não responder a essa carta era como que um assentimento a um pedido que nela se fazia.

O velho capitão nessa noite pedira à filha que lhe lesse uns livros de viagem. Luiza lia perfeitamente, com uma entoação harmoniosíssima, e dando com a voz um relevo maravilhoso à narrativa. O capitão, com o corpo reclinado na poltrona, o cachimbo apertado nos dentes, e a cabeça da Cigana nos joelhos, sorria na plena beatitude de um gozo indefinido. De vez em quando, acordava daquela deliciosa sonolência e emendava as incoerências e os enganos do escritor.

— Nada, nada, isso não é assim. Venham cá dizer-me  que passei por esse ponto mais de trinta vezes...

Às dez horas serviu-se o chá, a Cigana foi levada para o quintal, e Luiza acompanhou o pai até o limiar do quarto.

— Deus te abençoe, minha filha - disse o velho ao despedir-se, e beijou Luiza na testa.

— Hoje tenho pouco sono, papá, fico ainda a ler um pouquinho na sala, se o papá quiser alguma coisa chame-me, sim? Vou acabar de ler este livro, acho-o muito bonito. Gosto tanto da vida do mar!

— Filho de peixe sabe nadar. –  volveu o capitão sorrindo com o divino sorriso dos pais, que se creem únicos senhores dos afetos dos filhos.

Passada meia hora, ouviu-se no quintal o ladrar contínuo, frenético e raivoso da Cigana.

O capitão gritou da cama:

— O que é aquilo, filha? A Cigana está hoje como nunca a vi. Vai sossega-la, se não tens sono, e prende-a. Naturalmente os pescadores saltaram-me à fruta. É o que é. Deixa-los lá, coitados! Estes dias tem havido pouco peixe. Não vá a Cigana fazer alguma das suas... Ora vai, anda, tem paciência... Eu não vou porque me sinto fatigado e esquisito hoje... A Cigana ouvindo-te, sossega...

Luiza desceu ao pátio.

Abriu com mão trêmula a cancela e encostou-se vacilante, agitada e convulsa ao muro. O ladrar da cadela cessara. Adiantou-se. No fundo do jardim sob a lataria, um vulto encostado à parede. A pobre menina levou as mãos ao peito, como para sossegar a doida violência do coração que parecia sufoca-la; quis falar e não pôde. O corpo vergava-se-lhe frouxo, mole, sem forças...

De repente saiu das sombras das árvores a Cigana, que se arrastou para Luiza, ganindo dilacerantemente, movendo com dificuldade a cauda, com a parte posterior do corpo quase paralítica, escorrendo-lhe da boca uma baba espessa, com os olhos dilatados desmedidamente...

Naquele olhar que a claridade da lua deixava distinguir havia um pedido, uma súplica.

— Cigana! – exclamou Luiza.

Ouvindo aquela voz, a cadela, que se sustentava dificilmente nas patas dianteiras, ergueu ainda, por um supremo esforço, a cabeça, e, tomada de uma ânsia aflitiva, convulsionando-se-lhe o corpo num estremecimento instantâneo, soltou um gemido rouco, estrebuchou violentamente, e caiu morta aos pés da filha do capitão.

— A sua Cigana é muito má, mas ainda é mais gulosa,. – disse o vulto que se escondia sob a lataria.

— Que mal lhe fez este animal, sr. Gouvêa? – perguntou repreensivamente Luiza, estrangulando-se-lhe a voz na garganta.

— Boa pergunta! Não subisse eu tão depressa para o muro e estava derrubado a estas horas! O demônio do bicho! Mas vinha prevenido, atirei-lhe uma bola, que lhe derrubou como se fosse manteiga. Ora deixe lá o cão, querida, não se faça piégas...

Luiza interrompeu bruscamente aquelas palavras tolíssimas, e endireitando o corpo, ergueu a voz quebrada pelas lágrimas:

— Saia, saia depressa; se não quer que meu pai venha aqui matar, sem ser tão covardemente como o senhor acaba de matar a minha pobre Cigana.

E enquanto o vulto marinhava pelo muro, a desditosa criatura abraçava a Cigana, e chorava como somente uma vez em vida chorara, quando lhe levaram para fora de casa o corpo de sua mãe.

— Cigana, minha pobre Cigana! – repetia Luiza, fui eu que te matei!

No outro dia murmurava o capitão, fingindo-se sereno e forte para poder consolar a filha:

— Vão lá depois fazer bem... Eu mandava prender a Cigana para que não fizesse mal a ninguém, e pagaram-me desta forma!...

E o velho, para não chorar também, fingia que não reparava nas lágrimas que rolavam como pérolas pelo rosto descolorido e pálido da filha.
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* portaló = Lugar por onde se entra em um navio ou por onde passa a carga.

Fonte:
Disponível em Domínio Público.
Maria Amália Vaz de Carvalho. Contos e Phantasias. Publicado originalmente em Porto, 1880.
Convertido para o português atual por J. Feldman

Benjunior (Benevides Garcia) Poemas Escolhidos 3


CAMPO DE ROSAS

"Ah, se eu pensasse um campo de rosas...
... e tivesse a luz de olhares infinitos
traria a imensidão deste céu
para dentro das minhas limitações...”
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CANTIGA PARA PASSAR O TEMPO

Ah, esse vento que passa
Essa chuva que cai
A manhã que surge
A tarde que morre
A vida que vai...
Às vezes,
O frio
Impiedoso
Esse ar triste,
Saudoso...
Sonhos,
Esperanças,
Lembranças...
E depois esse fogo
Que crepita na alma
Que queima e arde
Numa voraz paixão...
Ah, tudo passa...
Passam as flores na praça
Passa a água do rio
Passam os carnavais
Os felizes natais
E tudo o mais...
Passam os pássaros no céu
O rosto e o véu
Passa o riso
Passa o vento
Passa a chuva
Passa a vida
Passa tudo o que se vê...
E depois...
De certo tempo
Esse lamento
Sem você!…
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CARMIM

Hoje
Não quero nada...
Não quero flores na janela
Nem o olhar da amada
Não quero telas de sangue [das tardes que morrem...]
Não quero cravo na lapela
Nem morrer em filmes de bang-bang...
...
Ah... pensando bem, quero sim...
Quero dos teus lábios o carmim:
Um beijo assim
Levará minha alma ao paraíso...
O que mais será preciso?
Se ando tão indeciso...
É longa a estrada do querer
E depois que encontra o que se quer
Voltar  para quê?…
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O ENTARDECER DA VIDA

E o que farei se
acordar
para a mesma vida
de sempre
minha alma desnuda,
solitária, vazia?...
Ah, comboio invisível
que pouco a pouco
tudo leva, tudo arrasta
para o entardecer da vida!...
Onde terei deixado
meus sonhos do amanhã
se de mãos vazias
esqueci de dar corda
para o meu coração?...
Nada!...,
Não há mais músicas
nos meus ouvidos...
Nada!...,
Nem há lembranças
na minha tristeza...
É tempo de dar risadas
na escuridão
Fugir pelos caminhos inquietos
ser rio, ser barco, ser só
Levar-me cada vez mais longe
Deixar a poesia
meus sonhos,
minha fantasia
para perder-me
na tua ausência…
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PROMESSA

O caminho que seguirei
Está repleto de lembranças
É saudade que não cala
É espera e é chegada...
O caminho por onde irei
Guarda a poesia nas flores
E o silêncio nos espinhos.
No pó dos meus passos
Toda a minha esperança.
Na distância do meu cansaço
A ternura do amanhã...
O caminho que farei
Está delineado nos meus sonhos.
Não é o antes, nem o depois
É o agora que se eterniza
Na paisagem de nós dois…
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SAUDADE

“Disseram que a saudade
esteve por muito tempo à minha procura.
Bateu palmas, fez serenata,
brincou com as crianças que passavam na rua
e depois em silêncio partiu...
Ainda que o sol se ponha
haverá outro dia amanhã.
Mesmo que os sonhos se forem
outros virão certamente.
Não há mal que sempre dure,
nem bem que nunca acabe...”
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TARDE AZUL

Olhando por esta janela antiga
Nem mais sei o que eu sou.
Já não ouço mais meus blues,
Nem tempo tenho
Para ver o sol nascer.
Só restam lamentos
Nas minhas tardes azuis,
Uma tristeza profunda,
Vontade de não mais ser...
Como um espantalho
Levado pelo vento
Vou seguindo a vida,
Enquanto a vela do tempo queima,
Esquecido dos deuses,
Ermo de amores,
Carente de pensamentos,
Distante de tudo,
Crivado de dores...
Sou agora aquele que nunca foi.
Aquele que nunca ousou.
Alguém que nunca amou...

Fonte: Facebook do poeta.

Estante de Livros (“Uma lágrima de muher”, de Aluísio de Azevedo)


Uma lágrima de mulher (1880), novela de estreia de Aluísio Azevedo, apresenta a faceta romântica desse autor responsável pela introdução do Naturalismo no Brasil.

A narrativa constitui-se com estrutura de folhetim. O leitor acompanhará a desventura amorosa de Miguel, jovem de origem humilde que não mede esforços para unir-se à Rosalina. Com expressiva carga de emotividade e em estilo adjetivado, a ideia de que a infelicidade está associada à soberba e de que o excesso de dinheiro gera a corrupção dos princípios morais firma-se como principal advertência nesse relato que antecipa alguns dos temas explorados no romance realista.

O relacionamento não é bem aceito pelo pai de Rosalina e eles se separam. Parece que o risco da morte e nem mesmo a distância, são obstáculos suficientes para impedir o coração apaixonado de Miguel, em busca de rever sua amada. Mas será que, caso se reencontrem, ainda haverá amor correspondido?

RESUMO
O romance narra a história dos amigos italianos Miguel e Rosalina, que viveram desde a infância em uma pequena comunidade de pescadores chamada Lipari. Rosalina morava com o pai Maffei, a velha Ângela e o cão Castor em uma casinha branca. Miguel era um vagabundo abandonado a sorte, seus pais já tinham partido desta vida e nenhuma fortuna deixou a ou pupilo senão uma rabeca e o dom de tocá-la.

O velho Maffei tendo a filha moça já feita partira em busca de fazer fortuna e a deixara sob os cuidados de Ângela. Mal sabia o desgraçado que a menina tomaria por namorado Miguel, o moço fazia composições à namorada e lhe declarava ao som da rabeca nos finais de tarde. Assim decorreram dois anos de ausência e de namoro, até o retorno do velho pescador que logo fez romper o romance que reprovou assim quando soube. Rosalina rapidamente escreveu ao amado sobre o fim do romance e a partida para Nápoles que se daria em breve, no mesmo papel pedia um encontro para dar-lhe adeus.

Findando a tarde os enamorados se encontraram bem próximos à casinha branca, tomados pelo choro misturados a leves e confusos sorrisos sentiram seus lábio uma atração que somente os que amam sentem e o beijo se fez. Mas logo se desfez com a invasão da luz vermelha da lanterna manobrada por Maffei, este fez o jovem casal o acompanhar até a casinha, Miguel levava a amada nos braços desfalecida e ao chegar a deitou em seus aposentos, em seguida acompanhou o velho para fora da casa e próximo a um penhasco que desabava no mar. Lá travaram uma luta como duas feras lutando por sobrevivência, até que o mais forte viu rolar no precipício o corpo do jovem músico. Após o regresso da luta, raiado o dia o velho partiu com a família deixando pra trás o cão e uma casinha banca agora tomada por fogo e por cinzas.

A jovem saiu do campo e foi apresentada a uma vida de luxo, já não mais vestia, comia e falava como antes. Aprendeu a ser uma senhora, que vivia e se apropriara dos altos salões. Esquecera, durante os quatro anos, que um dia sofreu com a morte do jovem Miguel. Até que um dia saiu atordoada do salão de sua elegante casa e foi para seu aposento, estendendo um lenço de renda na janela e lembrando a figura do tocador de rabeca.

O que sucedeu na noite da batalha viria a perturbar o futuro. Miguel havia sobrevivido ao acidente e logo amanheceu já estava em terra firme, resistira ao mar e se pôs a caminhar até a casinha branca, onde não encontrou muito além de cinzas e o pobre Castor, com quem compartilhou de sua desgraça. O tempo e a necessidade o fizeram mestre de quatro pupilos, meninos que ficaram inconformados com o dia em que Miguel avisou a partida em busca da amada. Soubera que a fidalga estava prometida a um nobre.

Miguel recebeu a parte em dinheiro que lhe era direito por o tempo de serviço e partiu com o pescador Sombra da Noite, o velho conhecia a vida de ostentação que Maffei mantinha, bem como a estrutura da elegante mansão em Nápoles. Partiu com eles o dócil companheiro Castor. Lá chegando logo se dirigiram a tal residência donde no salão os pares bailavam, Miguel fez um caminho indicado pelo seu guia e se dispôs a tocar a rabeca em frete a janela do quarto da amada, até que o músico não correspondido voltou aos navegantes, para o lugar onde estavam hospedados.

Logo recomendou à Sombra da Noite que entregasse um bilhete marcando encontro com Rosalina. A grande noite chegou e o lencinho de renda francesa foi posto à janela como sinalização a entrada do amante. Os dois estremeceram, Rosalina estava mudada e superficial, dizia ser o pai único culpado de sua sorte e Miguel partiu com essa informação e uma idéia a ser materializada.

Um sábado a noite a casa de Maffei estava esplêndida, era aniversário de Rosalina, as portas se escancaravam ao público. O moço tocador de rabeca estava no jardim como um bicho que fareja sua presa e lá estava: o velho fidalgo sentado em um banco se afastara do barulho de salão. Miguel de pronto o surpreendeu, e o sugou a vida roubando-lhe o ar. Ao amanhecer um dos funcionários deu conta do corpo estirado ao jardim…Sucederam dias de pesar e tristeza, logo suplantados pelo casamento da moça com o nobre a que estava destinada, assim teria a manutenção da vida que já tinha se habituado nas altas camadas da sociedade. Quanto ao seu matrimônio, o noivo dava-se por satisfeito por ter acesso a herança, enquanto a esposa se prostituía com os amantes que saltavam sua janela nas noites.

Até que um dia o esperançoso Miguel deu seu salto, agora não tendo mais o velho Maffei a jovem voltaria para seus braços e partiriam para a pacata colônia. Porém não tinha o músico notícias da vida da amada. Rosalina ficou surpresa, mas logo criou lamúrias e falseou a má sorte que a assolara. Não tendo mais o que criar, apontou ao amante um pequeno copo que estava em que quarto e informou que nele não mais havia veneno porque ela mesma o tomou e que em instantes partiria de seu infortúnio. E assim dramatizou, como que dá adeus ao mundo dos vivos. Miguel chorava junto ao corpo da amante até que se pôs junto dela e silenciou. Rosalina, incomodada com a situação e a insistência suscitou a vida e indagou ao amante se ele não partiria, mas o silêncio persistiu. Miguel estava morto. Pela primeira vez rolou uma lágrima pura e feminina, de quem pela primeira vez amava, agora a um cadáver. Foi assim que naquela face escorreu uma lágrima de mulher!

Fontes:
AMAZON
Resumo de ReginaMSChaves

Dicas de Escrita (Como escrever histórias) – 8, final

NÃO HÁ PORQUE TER ERROS


A arte de contar histórias, como toda arte, é subjetiva e ninguém possui a verdade. Não existem grandes filmes ou grandes romances, existem grandes histórias. A diferença está na forma escolhida para transmissão: papel ou celulóide, modulação de frequência ou performance ao vivo.

A ferramenta básica de um contador de histórias é saber olhar, mas a principal virtude tem que ser a paciência. O tempo deve passar entre escrever e reescrever, até que seu trabalho se concretize na forma de livro ou filme, poderá demorar anos. Não se desespere, é uma corrida de longa distância, não um sprint.

Da próxima vez que a inspiração surgir, você terá que estar preparado. Não se pode ser um escritor, mesmo que ruim, sem ser um grande leitor, o mesmo vale para o resto.

Não conheço um roteirista ou diretor de cinema que não assista filmes. Não digamos o teatro. Aproveitado o arrebatamento inicial, vem a parte mais importante e trabalhosa: o reescrever. Quanto mais você persistir, melhores serão as primeiras versões.

Erros não precisam ter. Existem histórias maravilhosas, tanto na literatura como no cinema, que se constroem a partir dessas supostas falhas. Porém, geralmente são obras brilhantes, únicas e irrepetíveis. Seu texto pode ser o próximo Ulisses de Joyce, mas não custa nada refletir sobre esses aspectos.

No mínimo, quando alguém detectar esses erros, você já terá sua defesa preparada. Nunca conte uma história na qual você não trabalhou (a menos que não tenha nada a ver com ela e será a oportunidade da sua vida). Se você trabalhou e reelaborou outras histórias, você terá desenvolvido seus conhecimentos e poderá improvisar melhor e sem que seu interlocutor o perceba.

Se eles pedirem conselhos sobre uma história, comece se colocando no lugar deles. Faça uma crítica construtiva, pense que seu objetivo é ajudar a melhorá-la e não destruí-la.

Analise, não critique.
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Fonte:
Pedro A. Ramos García. Cómo contar historias. in www.mailxmail.com . acesso em 26.11.2020. Tradução do espanhol por J.Feldman

segunda-feira, 2 de outubro de 2023

José Feldman (Analecto de Trivões 14)

 

Contos das Mil e Uma Noites (O simplório e o tratante)

Certo sujeito simplório seguia por uma estrada, arrastando seu asno atrás de si pelo cabresto, quando um par de malandros o viu.

Um disse ao outro: “Vou tomar o asno daquele camarada.”

Perguntou o outro: “Como irás fazê-lo?”

“Segue-me e verás,” respondeu o primeiro.

O gatuno foi até junto do asno, desprendeu-o do cabresto e entregou-o ao companheiro. Depois passou o cabresto pelo seu próprio pescoço e seguiu o João Bobo até ver que o companheiro tinha sumido com o asno e então, parou.

O simplório puxou o cabresto, mas o patife não se mexeu. O burriqueiro virou-se e, vendo o cabresto no pescoço de um homem, perguntou: “Quem és tu?”

Respondeu o tratante: “Sou teu asno, e minha história é espantosa. Sabe que eu tenho uma velha mãezinha muito piedosa e, um dia, cheguei junto a ela muito embriagado.

Ela me disse: “Ó meu filho, arrepende-te ante o Altíssimo por esses teus pecados.”

Mas eu tomei meu bordão e bati-lhe, e ela me amaldiçoou, e me transformou num asno e fez-me cair em tuas mãos. Contudo, hoje, minha mãe lembrou-se de mim e seu coração ansiou por mim; e ela me perdoou ante o Altíssimo, e o Senhor restituiu-me minha forma antiga entre os filhos de Adão.”

Gritou o simplório: “Não há Majestade e não há Poder senão em Alá, o Glorioso, o Onipotente! Com Alá sobre ti, ó meu irmão, perdoa-me o que tenho feito contigo, montando em ti, e tudo o mais.”

Então, o simplório deixou o patife ir embora e voltou para casa, bêbado de pesar e inquieto, como se tivesse tomado vinho.

Sua mulher perguntou-lhe: “Que te incomoda, e onde está o jumento?”

“Não sabes o que era aquele jumento; mas eu te contarei,” respondeu ele. Contou-lhe a história toda.

A mulher exclamou: “Ó, ai de nós, ai de nós pela punição que receberemos do Todo- Poderoso! Como pudemos usar um homem como uma besta de carga, durante todo esse tempo?”

E deu esmolas, e fez penitência, e suplicou o perdão dos Céus. O homem ficou algum tempo em casa, ocioso e inútil, até que a mulher lhe disse: “Por quanto tempo vais ficar sentado em casa, sem fazer nada? Vai ao mercado, compra-nos outro asno e vai fazer teu trabalho com ele.”

Então, ele foi ao mercado, parou junto ao local de venda de asnos, e lá viu seu próprio animal exposto à venda. Aproximou-se dele e, encostando a boca ao seu ouvido, disse-lhe: “Pobre de ti, que nunca procedes bem. Com certeza andaste bebendo novamente e batendo em tua mãe. Mas, por Alá, nunca mais te comprarei.”

E deixou-o ali e foi-se embora.

Fonte: As Mil e uma noites. (tradução de Mansour Chalita). Publicadas originalmente desde o século IX. Disponível em Domínio Público.

Gislaine Canales (Glosas Diversas) LXI

  

NUNCA...
 
MOTE:
Ao nosso espírito ardente,
na avidez do bem sonhado,
nunca o futuro é presente.
nunca o presente é passado.

Machado de Assis
Rio de Janeiro/RJ, 1839 – 1908

GLOSA:
AO NOSSO ESPÍRITO ARDENTE,

tudo é uma indagação...
O que será realmente
a causa de uma emoção?
 
Muitas vezes, nos perdemos
NA AVIDEZ DO BEM SONHADO,
sem limites, sem extremos,
num amor apaixonado!
 
E nesse sonho envolvente,
encantador e bonito,
NUNCA O FUTURO É PRESENTE,
o futuro é o infinito...
 
A vida é eterna utopia
para quem sonha acordado,
cada dia é um novo dia,
NUNCA O PRESENTE É PASSADO!
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MINHA SORTE...
 
MOTE:
Se a sorte vai onde vou,
agradeço, comovida,
à mão de Deus que traçou
os rumos da minha vida...

Maria Nascimento
Rio de Janeiro/RJ

GLOSA:
SE A SORTE VAI ONDE VOU,
eu me sinto bem contente
e muito feliz eu sou
por poder me sentir gente!
 
Por estar, assim, feliz,
AGRADEÇO, COMOVIDA,
por tudo que tenho e fiz,
pela sorte, sem medida!
 
A suavidade imperou
e agradeço, em meu caminho,
À MÃO DE DEUS QUE TRAÇOU
tudo, com todo carinho!
 
Eu sigo, feliz, vivendo
na minha estrada florida
e sempre a Deus, bendizendo,
OS RUMOS DA MINHA VIDA…
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A TARDE E EU...
 
MOTE:
Vendo a tarde entristecida
que agoniza e chega ao fim,
dou-me conta que na vida
não há vida mais em mim.

Miguel Russowsky
Santa Maria/RS ,1923 – 2009, Joaçaba/SC

GLOSA:
VENDO A TARDE ENTRISTECIDA
eu vejo a minha tristeza
também nela refletida
num tom triste, azul-turquesa.
 
Essa tarde tão tristonha,
QUE AGONIZA E CHEGA AO FIM,
tal como eu, já não mais sonha,
nem sorrir, mais, sabe, enfim...
 
Vendo a esperança perdida,
jorra o pranto, de repente,
DOU-ME CONTA QUE NA VIDA
sem amor, nem sou mais gente!
 
E prossigo a caminhada
sem nunca escutar um sim;
quem me acompanha é o nada,
NÃO HÁ VIDA MAIS EM MIM.
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CANDELABROS DE SONHOS
 
MOTE:
Embora sempre tristonhos,
são os teus olhos, querida,
dois candelabros de sonhos
pondo luz em minha vida.

Milton Nunes Loureiro
Campos/RJ, 1923 – 2011, Niterói/RJ

GLOSA:
EMBORA SEMPRE TRISTONHOS,
em teus olhos eu diviso
alegrias que entressonhos,
unem teu pranto e teu riso!
 
Como dois sóis a brilhar
SÃO OS TEUS OLHOS, QUERIDA,
numa beleza sem par
promessas de amor...guarida!
 
Eu os vejo bem risonhos,
é que os sinto com amor...
DOIS CANDELABROS DE SONHOS
que me fazem sonhador!
 
Nesse teu olhar bonito,
sinto a ilusão renascida,
como luzes do infinito
PONDO LUZ EM MINHA VIDA.
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LOUCURAS?
 
MOTE:
Na vida, a bem da verdade,
quando se trata de amor,
loucura não tem idade,
sexo, raça, credo ou cor!...

Rodolpho Abbud
Nova Friburgo/RJ, 1926 – 2013

GLOSA:
NA VIDA, A BEM DA VERDADE,
a coisa mais importante
é amar, na realidade,
sempre, sempre, a todo instante!
 
Nada nos deve impedir
QUANDO SE TRATA DE AMOR,
pois é gostoso sentir
seu inquietante calor!
 
Amar é preciosidade,
é também doce loucura...
LOUCURA NÃO TEM IDADE,
e  "é eterna enquanto dura"!
 
O coração enlouquece
com força, com muito ardor
e na loucura ele esquece
SEXO, RAÇA, CREDO OU COR!...

Fonte: Gislaine Canales. Glosas Virtuais de Trovas XI. In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. http://www.portalcen.org. Setembro de 2003.

João do Rio (Os urubus)

— Estou esperando!

— Não quero!

— Deixá-lo passar!

— Naufragou!

— Eu vinha vindo com o frescor da manhã por aquele trecho da praia de Santa Luzia, tão suave e tão formoso, onde se amontoam as coisas lúgubres da cidade — a Santa Casa, o Necrotério, o serviço de enterramentos. Entre as árvores fronteiras ao hospital vendedores ambulantes vociferavam os pregões de canjica, de mingau, de pães doces; dos bondes pejados de gente saltavam criaturas doentes, paralíticas algumas, de óculos outras. Pelas escadas de pedra lavada formigava constantemente a turba doente, mostrando as mazelas, como um insulto e uma afronta aos que estavam sãos, entre os enfermeiros do hospital, de calça de zuarte azul e dólmã pardo, nédios e sadios. Eu vinha precisamente pensando como gozam saúde os enfermeiros, e aquelas frases maçônicas fizeram-me mal. Parei, consultei o relógio. Os
quatro tipos não se ralavam mais com a minha presença. Dois olhavam com avidez os bondes que vinham da Rua do Passeio; dois estavam totalmente voltados para o lado da Faculdade. Ao aparecer um bonde, um magrinho bradou:

— Largo!

Prestei atenção. Do bonde em movimento saltou um cavalheiro defronte do Necrotério.

— De cima! bradou outro tipo.

— Última! regorgitou o terceiro.

E cercaram o cavalheiro.

— Vossa senhoria há de aceitar um cartãozinho da nossa casa. Não precisa de se incomodar. Tratamos de tudo! Faça negócio comigo!

A um tempo falavam todos, e o cavalheiro, coberto de luto, com o lenço empapado de suor e de lágrimas, murmurava, como se estivesse a receber pêsames:

— Muito obrigado! Muito obrigado!

Aproximei-me de um dos funcionários do serviço mortuário.

— Que espécie de gente é essa?

— Oh! Não conhece? São os urubus!

— Urubus?

— Sim, os urubus... É o nome pelo qual são conhecidos aqui agenciadores de coroas e fazendas para luto. Não é muito numerosa a classe, mas que faro, que atividade!

Totalmente interessado, tive uma dessas exclamações de pasmo que lisonjeiam sempre os informantes e nada exprimem de definitivo. E sorriu, tossiu e falou. Foi prodigioso.

— Os agenciadores de coroas levantam-se de madrugada e compram todos os jornais para ver quais os homens importantes falecidos na véspera. Defunto pobre não precisa de luxo, e coroa é luxo. Logo que tomam as notas disparam para a casa do morto e propõem adiantar o que for necessário para o enterro, com a condição de se lhes comprarem as coroas. Algumas casas têm mesmo nos cartões os seguintes dizeres — encarregam-se de tratar de enterros sem cobrar comissão de espécie alguma. E os títulos dessas casas davam para um tratado de psicologia recreativa. Há os poéticos os delicados, os floridos, os babosos, os fúnebres — “Tributo da Saudade, “Coroa de Violetas”, “Flor de Lis”, “Bogari”, “A Jardineira”, “Coroa de Rosas”...

— Mas... e estes homens aqui?

— Estes homens são os urubus de Santa Luzia, serviço especial e maçônico. Três ficam à entrada principal da Santa Casa. Quando avistam um tipo, brada o primeiro: estou esperando! Se o tipo não tem cara de enterro: não quero! Deixá-lo passar. Se o homem vem de tílburi, correm até aqui a acompanhá-lo... Se o tílburi segue, bradam: naufragou! E voltam ao lugar donde não saíram os outros. É interessante ouvir-lhes o diálogo. Tu é que não correste! Conheço o homem; antes fosse, era meu o negócio...

— Mas é horrível!

— É a vida, meu caro. Aqui estacionam sete agentes; o assalto ao freguês vai pela vez, como aos sábados, nos barbeiros. Quatro oferecem grinaldas aos passageiros que saltam dos bondes; três aos que vêm a pé. Ao ver o bando ao longe há a frase: De cima! Que é o sinal. Do lado de lá! quando ele salta do lado oposto. Última! quando salta no Necrotério. um dos urubus acerta, grita: “Estou empregado!” E feito o negócio o outro avança, dizendo: Grinalda! para obter como resposta: A tua é minha...

Quando aparece por acaso algum freguês conhecido de um dos agenciadores dá-se o “combate”. Os três que ficaram “desempregados”, desejando “furar” o agenciador amigo, quando não conseguem convencê-lo arranjam meio de o cacetear até que o negócio não se realize. Nessa ocasião assistimos a cenas calorosas, a conflitos sérios, em que se faz sentir a intervenção da polícia. Mas à noite, graças aos deuses, acabado o trabalho, vão todos para a venda do Antônio, à Rua da Misericórdia, beber cerveja.

— São estes então? – fiz, voltando-me.

— Estes só, não. Há outros, os que fazem ponto no Largo da Batalha e rendem estes à hora do almoço e que só têm o posto depois de ter todas as notas dos tipos que estão na secretaria e tratar de enterros.

— Como os agentes de polícia?

— Tal qual. E terminam sempre com a nota policial: quarenta anos presumíveis.

Rimos ambos. O sol está brilhante e o céu, inteiramente azul, dá-nos desejos de viver e de compreender a vida pelos seus mais ridentes aspectos.

— Os urubus devem ter nome?

— Têm, são urubus urbanos. Vê o senhor aquele? É o Chico Basílio. Há cerca de 30 anos exerce a profissão. Está vendo aquele grupo? Encontra lá o Brasilino, o Caranguejo, o Bilu, o Espanhol da Saúde, o Mangonga. Os outros são o Joaquim, o Tatuí, o Paulino, o Cá e Lá, o Buriti, o Manduca.

Neste momento um mocinho de lápis e linguado de papel na mão indagou, entrando:

— Alguma coisa de novo?

— Sim, pode entrar.

O mocinho desapareceu. O complacente informante sorria.

— Outro urubu.

— Outro?

— São os que parecem repórteres. Vêm para a secretaria da Santa Casa munidos de tiras de almaço para copiar dos livros os nomes e residências das pessoas mortas, isto é, só copiam os daquelas cujo enterro custar mais de 100$. Saem daqui para o lugar indicado e ficam às portas à espera que o corpo saia, um, dois, cinco às vezes. Quando o cadáver sai e a família ainda está aos soluços, embarafustam com as amostras de luto. Contaram-me que chegam à concorrência, a ver quem faz o luto em 24 horas mais em conta. Neste serviço conheço o Ferraz, o Saul, o Guedes, o Matos, o Araújo, o Campos, o Mesquita.

Eu ouvia o meu informante um pouco melancólico. Que diabo! Por que urubus, naquele pedaço da cidade que cheira a cadáveres e a morte?

Não há terra onde prospere como nesta a flora dos sem ofício e dos parasitas que não trabalham. Esses sujeitinhos vestem bem, dormem bem, chegam a ter opiniões, sistema moral, ideias políticas. Ninguém lhes pergunta a fonte inexplicável do seu dinheiro. Aqueles pobres rapazes, lutando pela vida, naquele ambiente atroz da morte, vestindo a libré das pompas fúnebres, impingindo com um sorriso à tristeza coroas e crepes, só para ganhar honestamente a vida, eram dignos de respeito. Por que urubus? Maçonaria da má sorte, pelotão dos tristes, seres sem o conforto de uma simpatia, no limite do nada, encarregados de fornecer os símbolos de uma dor que cada vez a humanidade sente menos.

Despedi-me, comecei a andar devagar. Um dos urubus aproximou-se.

— Estiveram contando coisas a nosso respeito?

— Não, absolutamente.

— Que se há de fazer? A comissão é tão pequena! Quando quiser uma coroa...

— Deus queira que não! fiz assustado.

E apertei a mão do homem urubu com um tremor de superstição e de susto.

Fonte: João do Rio. A Alma Encantadora das Ruas. Publicado em 1908. Disponível em Domínio Público.

domingo, 1 de outubro de 2023

Versejando 124

 

Virgínia Woolf (A Duquesa e o Joalheiro)

Oliver Bacon morava no alto de uma casa que dava para o Green Park. Tinha ali um apartamento; cadeiras com os ângulos retos salientes - cadeiras cobertas de couro. Sofás preenchiam os vãos entre as janelas - sofás cobertos de tapeçarias. As janelas, as três largas janelas, tinham sua adequada quota de filó bem discreto e cetim com figuras. O aparador de mogno salientava-se discretamente com os conhaques, uísques e licores corretos. E da janela do meio ele olhava lá embaixo os tetos luzidíos dos carros da moda amontoados nas estreitas ruas de Piccadilly. Era impossível imaginar uma posição mais central. Às oito da manhã viria seu café na bandeja, trazido por um criado; o criado desdobraria seu robe carmesim; com suas unhas compridas e pontudas ele abriria as cartas, extrairia convites brancos e grossos nos quais em áspero relevo se erigiam gravados de duquesas, condessas, viscondessas e ilustres senhoras. Depois tomaria banho; depois comeria suas torradas; depois leria seu jornal ao fogo flamejante e luzente dos carvões elétricos.

"Veja só, Oliver", diria ele, dirigindo-se a si mesmo. "Você que começou a vida numa ruela sórdida, você que..." e olharia para suas pernas, tão elegantes naquelas calças perfeitas; para suas botas; e suas polainas. Tudo muito bem-feito, brilhando; cortado no melhor pano pela melhor tesoura de Savile Row. Frequentemente porém ele se despia de tudo e voltava a ser o moleque de uma ruela sórdida. Certa vez tinha pensado que este era o cúmulo de sua ambição - vender cachorros roubados a mulheres elegantes de Whitechapel. Certa vez fizera isso. "Oh, Oliver , sua mãe se lamentou. "Oh, Oliver! Quando é que você vai tomar juízo, meu filho?"... Depois ele foi parar atrás de um balcão; vendeu relógios baratos; depois levou a Amsterdã uma preciosa encomenda... A essa memória ele exultava - o velho Oliver se lembrando do jovem. Sim, ele se dera bem com os três diamantes; e também houve a comissão sobre a esmeralda.

Depois disso foi para a sala privativa nos fundos da loja em Hatton Garden; a sala com as balanças, o cofre, as grossas lentes de aumento. E depois... e depois... ele exultava. Se aproximava das rodas de joalheiros que na tarde quente discutiam preços, minas de ouro, diamantes, informes da África do Sul, um deles punha um dedo do lado do nariz e, quando ele passava, murmurava: "Hum-m-m". Não era mais do que um murmúrio; não mais que uma cutucada no ombro, um dedo no nariz, um zumbido que corria pelo aglomerado de joalheiros em Hatton Garden numa tarde quente - há tantos anos! Mas ainda assim Oliver sentia aquilo a lhe descer pela espinha, a cutucada, o murmúrio que queria dizer: "Olhem só - ali vai ele — o jovem Oliver, o jovem joalheiro". Jovem então ele era mesmo. E se vestia cada vez melhor; e teve, primeiro, um cabriolé; e depois um carro; primeiro foi no balcão, nos teatros, e depois em poltrona na plateia. E teve uma vivenda campestre em Richmond, a cavaleiro do rio, com rosas vermelhas em treliças; de manhã cedo mademoiselle colhia uma e a pendurava em sua lapela.

"Assim que", disse Oliver Bacon, levantando-se e esticando as pernas. "Assim que..."

Ele ficou em pé, por baixo do retrato de uma velha senhora em cima da lareira, e ergueu as mãos. "Mantive minha palavra", disse ele, pondo as mãos bem juntas, palma contra palma, como se lhe prestasse homenagem. "E ganhei a aposta." Era isso mesmo. Era o joalheiro mais rico da Inglaterra; mas seu nariz, que era comprido e flexível, como uma tromba de elefante, parecia dizer quando tremia estranhamente nas narinas (sendo todo o nariz, e não apenas as narinas, que parecia tremer) que ele ainda não estava satisfeito; ainda farejava alguma coisa enterrada um pouco mais adiante. Imagine um porco gigante num pasto cheio de trufas; após desenterrar uma aqui, outra ali, ele continua a farejar sob a terra, um pouco mais longe, uma trufa maior e mais escura. Assim (Oliver fuçava pela rica terra de Mayfair procurando outra trufa, maior e mais escura, um pouco além.

Espetou então a pérola na sua gravata, para depois se encasular em seu vistoso sobretudo azul; pegou as luvas amarelas, a bengala; e balançava-se ao descer a escadaria, um pouco farejando, um pouco vendo por seu longo e afilado nariz ao sair de casa e ingressar em Piccadilly. Pois ele ainda não era um homem triste, um homem insatisfeito, um homem que procura alguma coisa escondida, apesar de ter ganho a aposta?

Balançava-se ligeiramente ao andar, como o camelo no zoo – e balança de um lado para o outro ao andar pelos caminhos de asfalto superlotados de donos de armazéns e esposas comendo de sacos de papel e jogando na trilha pedacinhos de papel prateado amarfanhado. O camelo despreza os merceeiros; o camelo está insatisfeito com seu quinhão; o camelo vê o lago azul e a fímbria de palmeiras diante dele. Assim o grande joalheiro, o maior joalheiro de todo o mundo, balançava-se descendo por Piccadilly, vestido na maior perfeição, com suas luvas, com a bengala; porém ainda insatisfeito, até chegar à loja escura e pequena, que era famosa na França, na Alemanha, na Áustria e em toda a América - a lojinha sombria numa rua que sai da Bond Street.

Atravessou-a a passos rápidos, como de hábito, e sem falar, muito embora os quatro homens, os dois mais velhos, Marshall e Spencer, e os dois rapazes, Hammond e Wicks, já estivessem lá plantados, por trás do balcão, e o olhassem com inveja ao passar.

Era tão só mexendo um dedo de sua luva cor de âmbar que ele reconhecia a presença deles. E lá se foi e fechou por trás de si a porta de sua sala privativa. A seguir destrancou o gradil da janela, Entraram os gritos da Bond Street; e o ronronar do tráfego afastado. A luz dos refletores atrás da loja se irradiava para cima. Numa árvore tremiam seis folhas verdes, pois era junho. Mas mademoiselle. tinha se casado com Mr. Pedder da cervejaria local - ninguém agora lhe espetava mais rosas na lapela.

"Pois é", semissuspirou, semirroncou, "pois é,.."

Depois ele pressionou uma mola na parede e lentamente começou a se abrir a forração de madeira por trás da qual ficavam os cofres de aço, cinco, não, seis ao todo, todos de aço polido.

Virou a chave; abriu um; depois outro. Ambos revestidos de um fundo de veludo vermelho escuro; ambos contendo joias: braceletes, colares, anéis, tiaras, coroas ducais; pedras soltas em conchas de vidro; rubis, esmeraldas, pérolas, diamantes. Tudo em segurança, em tranquila cintilação, porém ardendo eternamente com sua própria luz comprimida.

"Lágrimas!", disse Oliver, olhando as pérolas. "Sangue do coração!", disse ele, olhando os rubis. "Pólvora!", continuou, esparramando os diamantes, que assim faiscavam uns contra os outros. "Pólvora suficiente para explodir Mayfair - alto, alto, alto no céu!" Jogou a cabeça para trás e fez um som como um relincho de cavalo ao dizer isso.

Obsequiosamente o telefone tocou em sua mesa, numa voz baixa e abafada. Ele fechou o cofre.

"Em dez minutos", disse. "Antes, não," E sentou-se à sua mesa e olhou para as cabeças dos imperadores romanos estampadas na manga de sua roupa. E que de novo se despiu e uma vez mais tornou-se o garotinho que jogava bola de gude na ruela onde aos domingos vendiam-se cachorros roubados. Tornou-se aquele garotinho matreiro, astuto, de olhos como cerejas molhadas: que metia as mãos em enfiadas de tripas; que as mergulhava em panelas onde fritavam peixe; que ia em meio às multidões se safando. Era magro, ágil, seus olhos pareciam pedras lambidas. E agora - agora - os ponteiros do relógio se arrastavam. Um, dois, três, quatro… A duquesa de Lambourne esperava a seu bel-prazer; a duquesa de Lambourne, filha de uma centena de condes. Esperaria por dez minutos numa cadeira ao balcão. Esperaria a seu bel-prazer. Esperaria até que ele estivesse pronto para vê-la. Olhou para o relógio em seu estojo de couro. O ponteiro andava. E a cada avanço o relógio lhe servia - assim lhe parecia — patê de joie gras; um copo de champanhe; outro de um fino conhaque; um charuto de um guinéu. O relógio os punha ao lado dele na mesa, enquanto os dez minutos se escoavam. Ele então ouviu passos lentos e leves que se aproximavam; um farfalhar no corredor. A porta se abriu. Mr. Hammond se achatou contra a parede.

"A senhora duquesa!", anunciou.

E, achatado contra a parede, lá ficou esperando.

Oliver, se levantando, pôde ouvir o farfalhar do vestido da duquesa que vinha pelo corredor, que logo assomou, enchendo a porta, enchendo a sala com o aroma, o prestigio, a arrogância, a pompa, o orgulho de todos os duques e duquesas inflados numa só onda. E, como a onda se quebra, assim também quebrou-se ela ao sentar-se, vindo espraiar-se e derramar-se e cair sobre o grande joalheiro Oliver Bacon, cobrindo-o de cores faiscantes, rosa, verde, violeta; e de odores; e iridescéncias; e raios disparados dos dedos, raios que acenavam das plumas, que se irradiavam da seda; pois ela era muito grande, muito gorda, toda apertada em tafetá cor-de-rosa e já não mais na flor da idade. Como um guarda-sol de muitos gomos, como um pavão de muitas penas, fecha seus gomos, recolhe as penas, assim ela decresceu e fechou-se, já afundando na poltrona de couro.

"Bom dia, Mr. Bacon", disse a duquesa. Estendeu-lhe a mão que saiu pela abertura da luva branca. Oliver, ao apertá-la, inclinou-se todo. Quando suas mãos se tocaram, forjou-se mais uma vez o elo que os unia. Eram amigos, contudo inimigos; ele era mestre, ela, senhora; cada qual enganava o outro, precisava do outro, temia o outro, cada qual sentia isso e sabia disso a cada vez que se apertavam as mãos assim, nessa salinha recuada com a luz branca lá fora e a árvore com suas seis folhas e o barulho da rua na distância e por trás deles os cofres.

"E hoje, duquesa - em que lhe posso ser útil?", perguntou afavelmente Oliver.

A duquesa abriu seu coração, escancarou seu coração particular. Com um suspiro, mas sem palavras, ela tirou da bolsa um saquinho comprido de couro envernizado - que parecia um furão amarelo e magro. De uma abertura na barriga do furão ela deixou cair pérolas - dez pérolas. Que rolaram pela abertura na barriga do furão - uma, duas, três, quatro - como ovos de um pássaro celestial.

"É tudo que me resta, caro Mr. Bacon", gemeu ela. Cinco, seis, sete - rolaram para baixo, pelas encostas dos vastos flancos montanhosos que desciam formando um vale estreito entre os seus joelhos — a oitava, a nona e a décima. Lá agora se acamavam no brilho do tafetá flor de pêssego. Dez pérolas.

"Do cinturão de Appleby", disse em tom lamentoso. "As últimas... as últimas mesmo."

Oliver esticou a mão para apanhar entre o indicador e o polegar uma das pérolas. Bem redonda, bem lustrosa. Mas seria verdadeira ou falsa? Estaria ela mentindo de novo? Será que ainda se atrevia?

Ela então cruzou nos lábios seu dedo recheado e roliço.

"Se o duque soubesse...", sussurrou. "Foi um pouco de má sorte, caro Mr. Bacon..."

De novo na jogatina, será?

"Aquele vilão! Aquele trapaceiro!", sibilou ela.

O homem de osso malar saltado? Um mau elemento. E o duque era corretíssimo, reto que nem um poste; de costeletas; era capaz de picá-la em pedacinhos, de deixá-la trancada no porão, se soubesse - sei lá do quê, pensou Oliver e olhou para o cofre.

"Araminta, Daphné, Diana", lamentou-se a duquesa. "É para elas."

As senhoritas Araminta, Daphné e Diana - suas filhas. Ele as conhecia; adorava-as. Mas era Diana que ele amava.

"O senhor sabe de todos os meus segredos", disse ela, olhando de soslaio. Lágrimas escorreram; lágrimas caíram; lágrimas, como diamantes, absorvendo pó de arroz nos sulcos de sua face de cerejeira florida.

"Meu velho amigo", murmurou ela, "velho amigo."

"Velho amigo", repetiu ele, "velho amigo", como se lambesse as palavras.

"Quanto?", perguntou ele.

Ela cobriu as pérolas com sua mão.

"Vinte mil", sussurrou.

Mas seria verdadeira ou falsa, a que ele havia pegado? Ela já não tinha vendido - esse cinturão de Appleby? Ia chamar Spencer ou Hammond. "Leve esta e teste", diria. Esticou-se para alcançar a sineta.

"O senhor vai aparecer amanhã?", ela instou, ela interrompeu. "O primeiro-ministro - Sua Alteza Real..." Ela parou. "E Diana", acrescentou.

Oliver retirou a mão da sineta. Olhou além dela, para os fundos das casas de Bond Street. Mas viu, não as casas de Bond Street, e sim um rio ondulado; com trutas e salmões que se erguiam; e o primeiro-ministro; e ele também; de colete branco; e então Diana. Baixou os olhos para a pérola em sua mão. Mas como poderia testá-la, à luz do rio, à luz dos olhos de Diana? Já a duquesa não desgrudava os olhos dele.

"Vinte mil", gemeu. "Palavra de honra!"

A honra da mãe de Diana! Ele puxou para si seu talão de cheques; e tirou do bolso a caneta.

"Vinte", escreveu, Depois parou de escrever. Os olhos da senhora idosa do quadro — da velha, sua mãe — o fitavam.

"Oliver!", ela o advertiu. "Tenha juízo! Não seja bobo!"

"Oliver! suplicou a duquesa - agora era "Oliver", e não "Mr. Bacon". "Você passará todo o fim de semana?"

Sozinho nos bosques com Diana! Galopando a sós pelos bosques com Diana!

"Mil", escreveu e assinou.

"Aqui está", disse.

E eis que se abriram todos os gomos do guarda-sol, todas as plumas do pavão, a radiância da onda, as espadas e lanças de Agincourt, quando ela se levantou da poltrona. E os dois velhos e os dois moços, Spencer e Marshall, Wicks e Hammond, achataram-se por trás do balcão a invejá-lo quando ele a conduziu até a porta da loja. Ele, abanando-lhes na cara sua luva amarela, e ela com sua honra - um cheque de vinte mil libras assinado por ele — firme nas mãos.

"Serão falsas ou verdadeiras?", perguntava-se Oliver, fechando a porta da sala privativa. Lá estavam elas, dez pérolas sobre o papel mata-borrão da mesa. Levou-as até a janela para as manter sua lente na luz... Aquilo então era a trufa que ele tinha retirado da terra! Podre no centro - podre no cerne!

"Perdão, minha mãe!", suspirou, erguendo as mãos, com que contritas, para a velhota do quadro. E voltou a ser o garotinho da ruela onde aos domingos se vendiam cachorros.

"Pois", murmurou ele, pondo as palmas das mãos bem juntas, "vai ser um fim de semana inteiro.”

Fonte:
Virginia Woolf. Casa mal assombrada e outras histórias. Publicado em 1948.
Disponível em Domínio Público.

Daniel Maurício (Amar é) – 1


Não incomodes
A lua
Ela é pássaro
Da noite
Que voa
Fazendo corte
Ao apaixonado
Olhar.
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Me prove
Com teus olhos,
Mas
Só me beijes,
Se estiveres
Disposto
A me amar.
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Dos olhos polacos
Choramingam
Histórias.
Mas são
Dos lambrequins
Quase esquecidos
Que as lembranças
Gotejam.
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Mesmo
Com o coração ferido
A ela
Só cabia a amar
Pois era a única veste
Que cobria
A nudez
Da sua alma.
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Amor
Com
Amor
Se
Transborda.
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Como quem guarda
Um presente precioso
Me guardei
Me guardei
Aguardei…
Me dei conta
Do passar do tempo
E prazerosamente,
A ti,
Me desembrulhei.
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Na ausência
De palavras
Colhi
Com meu abraço
As úmidas pétalas
Que desfolhavam
Dos seus olhos.
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Na
Magreza
Dos olhos dele
Sinto n' alma
A dor
Da
Fome.
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Ah, Essas catedrais
Que se levantam!
Enquanto meus olhos
Se encantam
Silenciosamente
Uma prece escapa
Mesmo
Sem eu saber.
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Mãe.
"Patas",
Não me destes.
Mas "garras"
Tinhas de sobra.
Me ensinastes
A viver.
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Me guardo
Em tua
Eternidade
Assim
Em ti
Sempre
Existirei.
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A tua alegria
"Passarinheira"
Me fez até esquecer
De que a vida é
Passageira
E contigo
Mil planos rascunhei.
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Me acostumei a
Te chamar
De amor
Mas hoje
É outra
Pessoa
Que me responde.
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Com uma pitada de sal
Tempero
Minhas saudades
Assim
Mesmo com
O avançar da idade
Elas permanecerão
Com o mesmo sabor.
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Ah!
Como
Adoro
Passarinhar
Entre
As tuas
Pétalas.
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Abra-me
O teu céu
Que te mostrarei
As delícias
Do meu paraíso.
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A chuva
Passou
Deixando
No chão
Rastros
De esperança.
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Ah!
Essa tua lonjura!
Sedento por ti
Navego
Em mim mesmo.
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Hoje, a saudade fez um
Barulho no meu peito
Queria de todo jeito
Te trazer para perto de mim.
Abraço o teu perfume
Beijo o teu sorriso
Como se estivesse contigo
Em silêncio vendo passar o rio.
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No varal do tempo
Sequei os lenços
Da saudade
Brisa leve
Que me invade
Me tornei
Um pedacinho
De você.

Fonte: Daniel Maurício. Amar é. Curitiba: Ed. do Autor, 2021.  
Enviado pelo poeta.

Marques de Carvalho (Complicações psicológicas)

Velas soltas, bandeira encaixada no mastro grande, o minúsculo iate de Alfredo singrava galhardo as aguas do Guajará, em rumo do oceano.

Manhã clara, duma beleza diáfana e prazenteira. O rio tinha cintilações prateadas, fluindo numa suavidade infinita. Aqui e ali, para os lados da foz, os panos das embarcações tapuias espalmavam-se no horizonte, destacadas em vivo contraste sobre o azul esplendente do céu. Em terra, traquinando, borboletas enormes polvilhavam sobre os aningais das margens a luminosa poeira das asas pintalgadas. E toda a vida das matas levantava-se em gorjeios, grasnidos e aromas.

A bordo do Nymphéa, na diminuta coberta, acabara agora mesmo o serviço do café matinal. Xícaras disseminadas pelos bancos da amurada rescendiam ainda do alegre cheiro da infusão escaldante; e já os cigarros de ótimo Bragança fumegavam, — enquanto ao ruído da palestra juntava-se, à meia-nau, o ranger dos moitões e cabos do velame desfraldado.

De irrepreensível corte, a nave oferecia interior e externamente uma perfeição de linhas e uma limpeza completa. Nela estava a mirar-se, orgulhoso, o proprietário, ali deitado, à popa, em fina rede branca de fio de carretel. Eis a sua maior dita, viajar no pequeno iate, veleiro e gracioso. Nem a certeza dos bens pecuniários herdados anos antes, nem a sedução das valsas em que rodopiara outrora pelos salões à moda, enlaçando frágeis bustos de morenitas embriagantes, — tiveram jamais para Alfredo semelhante dom de encantamento, esta vertigem inefável, que recebia ao deslizar, à flor das ondas, caminho do Atlântico, a bordo da sua adorada miniatura de navio. Era, com efeito, um júbilo veemente e incomparável, uma sensação de liberdade, que o exaltava em deliciosos arroubos. Julgava-se então um ser à parte, um privilegiado da vida, — predestinada criatura para quem o dinheiro, longe de tornar-se elemento de desequilíbrio mental, com a alucinação das grandezas, fora apenas o meio de realizar aspirações de isolamento que o afastassem, com intervalos felizes, do convívio comum. E cada vez que assim velejava sobre a agua, na manhã triunfal, suas conversas com o mestre eram menos uma palestra coordenada, do que expansões da alma entusiasmada por estas fugas marítimas, em meio á rude gente da faina.

O mancebo sorvia em largos goles a brisa esperta do largo; e, impelindo a rede com o bico do pé de encontro ao anteparo metálico da amurada, exclamava num solilóquio enlevado:

— Voga, Nymphéa! Voga, meu iate! Além, numa enseadazinha da costa assoalhada e calma, — é o sossego infinito que nos aguarda: a ti, os beijos cadenciados das vagas; a mim, os ósculos da única mulher verdadeiramente sincera que já encontrei!

E seus olhos, percorrendo a coberta, beijavam também, com ternuras de pai, os âmbitos do iate.
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Podia-se afirmar que estava ali um homem verdadeiramente experimentado. Herdeiro único de grande fortuna, que o pai amoedara na vida comercial, em Belém, Alfredo vira-se emancipado, independente e cheio de saúde, aos 20 anos de idade.

Os primeiros tempos decorridos após a morte de seu progenitor foram para ele uma incessante peregrinação pelos mais remotos países. Sequioso de novidade, partira da terra paraense com a pasta pejada de cartas de ordens sobre bancos de além-mar e a alma transbordante da ânsia de tudo ver e fruir. A febre do açodamento juvenil espicaçava-lhe a indômita curiosidade. Viajou toda a Europa, num grande gozo de intelectual aproveitado. Passou depois ao Oriente, cujo exotismo tamanhas tentações lhe oferecera desde a adolescência; e assim percorreu estranhos países de lenda, rebuscando embalde as fantasias dos poetas nas decepções da desilusória realidade. Mas, cansado o próprio ideal, tornou à civilização do Ocidente, cujas requintadas complicações ainda mais o intrigaram, após a recente digressão às terras do paganismo.

De toda a parte, surgiam-lhe dúvidas ponderáveis, — terríveis incógnitas dos problemas sociológicos, que a sua alma, de tendências equitativas, em vão queria resolver. Onde está a justiça, na prática humana?

Esta hesitação, esta irresoluta indecisão que nada satisfazia, bem lhe dava a entender quão mesquinhas e oscilantes são as bases em que a sociedade assenta os princípios com os quais pretende reger-se. Chegou-lhe então o primeiro engulho do primeiro enfaro (tedioso): aos 25 anos!

Foi por causa desta decepção que resolvera fugir da Europa. Embarcou para o novo mundo, em direção aos Estados Unidos. A princípio, teve um deslumbramento sem par. Aquela admirável atividade das populações operárias, congregadas à voz do capital onipotente em torno às fornalhas, às bigornas, às maquinas, às retortas, — aquela atividade única chegou a dar-lhe vertigens de entusiasmo. Ali ele encontrava, enfim, o ideal da raça humana, buliçosa na incessante produção, colmeia enorme compenetrada de que a rapidez da vida não permite mais um instante de folga sem prejuízo imediato.

Contudo, um curto exame de poucos dias revelou-lhe que os mesmos vícios de origem lá campeavam também, trazidos no sangue europeu. A matéria podia agir com afinco maior; mas o espírito sofria de idênticas enfermidades, — a sede das aspirações irrealizadas, o embate dos preconceitos, a agrura das competências políticas e industriais, toda a emaranhada engrenagem das misérias de um século de egoística injustiça a arrastar e esmagar os fracos, os desprotegidos, os simples.

Abalou, por isso, terras afora. Veio à América Central, — emblema da inconstância da vida na inconstância dos seus governos e leis. Sem deter-se, ultrapassou o istmo, desceu mais ao sul, transpondo os alcantis dos Andes, e remirou as faces emaciadas na fria onda marulhosa do estreito de Magalhães. Além, nos países de idioma espanhol, aguardava-o uma surpresa dolorosa. Habituara-se a ouvir tratarem-nos de republiquetas e foram, na maioria, fortes nações progressistas que se lhe depararam. Onde pensava achar povos depauperados e cidades estacionárias, encontrou uma raça viril e ardorosa, e capitães magníficos, e belos núcleos urbanos, de feição moderna, amplamente revolvidos e reedificados sob a direção de patriotas inteligentes. E a convicção de que, mais uma vez, andara errada a balofa ignorância do chauvinismo brasileiro, trouxe-lhe aos olhos duas lágrimas sinceras e uma nova desilusão ao fundo da alma angustiada.

Foi após este derradeiro desgosto que regressou ao Brasil.
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Vogava sempre a embarcação, águas abaixo, impelida na dupla força do vento e da correnteza. Andava na claridade do espaço a hilariante alegria dos belos domingos nortistas. A natureza em torno possuía, nessa manhã, uma aparência de tranquilidade edênica, propícia às meditações de Alfredo.

Sempre estendido na rede, a balançar-se, fumando consecutivas cigarrilhas, o moço passava em revista, no caleidoscópio da alma, as peregrinações de antanho. Como essa quadra agitada sumira-se fugace! Perdia-se agora nos longos esbatidos das simples recordações da primeira juventude. Viagens; vai-vém do bulício humano em grandes centros populosos; cavalgadas pelas lezirias do Tejo e nas estepes russas; ascensões alpinas; travessias perigosas de barrancos na Pérsia e cataratas americanas, — tudo ficava atrás, sem saudades, na meia sombra dos fatos abandonados, para cuja observação o tempo lhe assinalava um sítio impessoal, de simples espectador desiludido.

Só lhe interessava agora o presente, que ele resumia no iate e em certa caboclinha, amante estremecida. Para esta última eram os seus garbos de cavalheiro e os seus mais assíduos pensamentos de namorado. De que servia o passado, se representava apenas a sombra de emoções extintas? A própria lembrança de antigos amores não tinha mais a força de desviar-lhe a atenção por longos minutos nem de arrancar-lhe um suspiro mais acentuado. E, contudo, se, noutros tempos, alguém lhe afirmasse que tal houvera de suceder, quiçá arriscasse ouvir esperta reprimenda!

Fossem lá dizer-lhe que as seduções da tapuia paraense, mimosa e ingênua, — duas vezes adorável pela graça e pela ignorância tímida, — seriam capazes de o transportar aos requintes da ventura, absorvendo-o de corpo e alma, perenemente, e purificando-o dos primitivos contatos como numa piscina miraculosa... Protestaria de certo, e com veemência. Mas a realidade era essa, entretanto...

No decorrer das viagens, claro está que o amor, — ao menos o que pensamos dever ser o amor, aos 25 anos, — ocupou-lhe boa parte dos sonhos e vigílias. O seu álbum de recordações amorosas oferecia uma admirável série complexa de perfis femininos, coleção cosmopolita, que abrangia desde a irresistível parisiense até a fascinante baiadeira, da mousmé, estranha na coloração estridente dos garridos arrebiques, á simples gentia sul-americana, melancólica e bondosa na sua passividade fatalista. E havia também flores de opostos climas, fitas, amuletos, cartas, — um delicado museu de objetos desbotados, trescalando o vago odor das coisas esquecidas.

Era tudo isto que desfilava pela mente de Alfredo, nesse mesmo instante. Aprazia-lhe, às vezes, no capricho da sua volúpia, evocar assim antigas épocas e rememorar passadas peripécias prazenteiras, para melhor fruir a atual ventura do seu grande e saboroso amor da maturidade. Nenhuma paixão fora comparável a esta, que tamanhas atenções lhe merecia. Das sensações antigas, nem o ressabio lhe ficara, ao toque do intenso afeto de hoje, tão fundo lhe invadira a alma, com a subjugação abençoada de predileta tirania. E por vezes, revolvendo papéis velhos, quedava-se interdito, quase envergonhado, ao lobrigar uma florzinha murcha ou triste cacho de cabelos descorados; interdito, por ter-lhes esquecido a procedência, envergonhado de havê-los guardado por tanto tempo, assim avaramente, quando nem o coração conservara o sentimento que os tornara valiosos, nem a memória volúvel pudera reter-lhes a lembrança.

Tudo passara, na dissolvência dos sonhos, na voragem dos anos. Ilusões patrióticas e entusiasmo pelos gozos instáveis, tragara-os o tempo, impassivelmente. Alfredo não lamentava este resultado; pelo contrário, sentia-se feliz ao verificar que o coração, liberto de antigas peias, estava apto a consagrar toda a energia afetiva ao doce culto de um só amor, espontâneo e livre, no seio olente da floresta compassiva.

Suas aspirações de reformas radicais, seus impulsos para a propaganda em prol dos ideais regeneradores da sociedade, perderam também o ardor militante de outrora. Evidentemente, a noção de uma justiça exata é o paradoxo mais estranho que a razão ilógica do homem criou num dia de sarcasmo, para o próprio engodo. Então, de nada valia esbaforir-se em santo frenesi, conclamando a necessidade da restauração dos princípios equitativos. A maldade humana predominaria para todo o sempre, irresistível, vencedora. Restava-lhe, pois, submeter-se ao embate da onda larga da convenção. E, vencido, era nos arcanos de um novo amor que ele, ao mesmo tempo incrédulo e piedoso, levado velozmente pelo minúsculo iate, na clara manhã ensolarada, ia buscar o doce bálsamo dos beijos sinceros, o supremo conforto para as tremendas desilusões que as complicações psicológicas lhe proporcionaram.

Fonte:
João Marques de Carvalho. Contos do Norte. Belém/PA: Typographia Elzeveriana, 1907.
Disponível em Domínio Público

Dicas de Escrita (Como escrever histórias) – 7

A REESCRITA


A maneira mais comum de contar uma história é por escrito. Mesmo no cinema, antes de o filme ser feito, uma infinidade de papéis são utilizados: tratamento, sinopse, escaleta... então agora que revisamos o enredo, os personagens e as situações da história que queremos contar, é hora de voltar a sentar-se e reescrever toda a história.

Já vimos como era importante apresentar um texto sem erros ortográficos, mas, mesmo que seja um texto não literário, é preciso ir um pouco mais longe. nunca será mal um jogo de palavras ou uma metáfora. Pense que os outros não precisam apreciar aquele texto que você acabou de entregar a eles com tanto entusiasmo.

Use uma escrita simples, concisa e não retórica. Na primeira leitura deixe claro o que está acontecendo na história. Se um texto literário é ou não um ensaio complexo sempre dificulta a leitura e pode nos fazer “perder”, não vamos acompanhar a história e acabar pensando em outra coisa. Tendemos a pensar: Todos nós podemos escrever sujeito + verbo + predicado e demonstrar o quão habilidosos somos, complicamos frases.

– As frases geniais. Por que colocar o assunto no final da frase? Por que usar uma forma verbal composta? Tive uma professora de escrita criativa que, quando se tratava de corrigir os textos que tínhamos, ela recomendou que tivéssemos sempre dois documentos do Word. Um deles seria o texto que estaríamos trabalhando e o outro seria chamado de algo como "minhasfrasesgeniais.doc". Lá nós colaríamos essas frases que nos parecem ótimas, mas não são compreendidas.

– Não abuse de figuras literárias. Use-as com moderação, intenção e traição, mas nunca recarregue o texto.

– Reescrever é o processo mais difícil. Consiste em corrigir todos os erros que estamos detectando e reanalisando o texto novamente. Geralmente acontece que, a cada leitura, corrigimos novamente. Não se preocupe, é normal, embora para alguns escritores se torna uma obsessão, um ciclo infinito a partir do qual eles pensam que eles nunca sairão. A reescrita também é a parte mais frustrante para a maioria dos escritores, embora haja alguns que gostem, a maioria prefere a parte da criação pura. Hitchcock, por exemplo, protestou nos dias de filmagem. Ele disse que já tinha visto o filme na cabeça, mas acabou lendo.

No final da reescrita você deve ter certeza absoluta de que cada palavra do seu texto é o que é porque não pode ser outro. Voltemos ao exemplo da senhora atravessando a rua. Senhora? Mulher? Dama? Fêmea?
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continua, final…

Fonte:
Pedro A. Ramos García. Cómo contar historias. in www.mailxmail.com . acesso em 26.11.2020. Tradução do espanhol por J.Feldman

Aparecido Raimundo de Souza (Silhueta disforme)

 

DE REPENTE EUSTÁQUIO se viu apalermado e sem voz. Completamente afônico. Acordou assim, sem saber o real motivo do que havia acontecido. Tentou chamar pela mãe. Nenhuma palavra lhe veio em socorro. Pulou da cama, assustado. Correu ao banheiro. De frente para o espelho, escancarou a boca em uma dezena de “ois e ais,” e nada.  Só via os movimentos dos maxilares. Nenhum som. Um apavoramento momentâneo invadiu seus olhos. Os arregalados da surpresa o deixaram perplexo. Mudo, paralisado, aparvalhado. O que teria causado tal transtorno? Como ficara impossibilitado e sem poder fazer uso das cordas vocais?  

Tentou se lembrar da noite anterior. O que fizera? Com quem estivera? Bebera algo além da conta? Ainda que tivesse se excedido, passado dos limites, o silêncio que lhe invadia não poderia simplesmente tolher a sua comunicação. Sua consciência trabalhava apressada. “Calma, muita calma nessa hora – disse de si para consigo. Isso não pode estar acontecendo.” Mas, naquele momento, o fato se fazia real. Sólido, de teor autêntico e palpável. Na sexta-feira, depois que saíra da faculdade tentou colocar as ideias em ordem. Encontrara-se com Bárbara, sua namorada. Ela o esperava num barzinho em frente ao prédio principal onde ambos estudavam.

Ele cursava direito e a jovem optara por medicina. Para Eustáquio faltava um ano, enquanto para sua futura cara metade, dois, além da residência. “Não se apavore, não se desespere nessa hora – repetiu. Isso é um pesadelo, uma brincadeira de gosto alienígena.” Lembrou que deixou a sala de aula, passou pela biblioteca, devolveu um livro que pegara sobre “Introdução ao Estudo do Direito do professor Teófilo Cavalcante.” Yara, a atendente, na hora em que ele saia, correu a avisá-lo de que havia esquecido o celular. Agradeceu a garota com um cordial “Obrigado, linda” e seguiu em frente.
 Do trajeto até o pórtico principal de acesso à via pública ligou para Bárbara:
— Oi, “mor.” Saindo. Está no bar, em nosso cantinho preferido?
Bárbara respondeu prontamente:
— Sim, “mor”, à sua espera. Acabei de ver você.
Acenou com a mão para o rapaz e completou:
— Pedi um suco de manga, seu preferido.
— Ok. Falou para o Moacir não “pegar pesado,” no gelo?
Essas foram às palavras proferidas entre a portaria da faculdade até o momento de atravessar o burburinho movimentado de carros e ônibus e galgar o pórtico que levava ao bar.

“Trajetou” o percurso sem pressa. Entrou no estabelecimento empurrando a portinhola “vai e vem.” O bar do Moacir lembrava um típico “saloon” do velho oeste norte-americano, assemelhado aqueles dos filmes de cowboy dos tempos de Butch Cassidy, Jesse James e Ringo. Do balcão, Moacir, ao vê-lo, acenou. Ele devolveu o cumprimento. Ao divisar Bárbara entre os fregueses, apressou os passos e a abraçou com carinho e ternura. Trocaram, em contínuo, um longo e apaixonado beijo:
— Minha linda!   
— Olá gatinho, tudo bem?
Bárbara em menos de uma semana completaria vinte e dois anos, enquanto ele entraria na casa dos trinta no próximo mês.

Corria o final de agosto e setembro prometia uma série de novos adventos. O principal deles: o noivado, no dia em que apagaria as três dezenas de velinhas com todos os amigos dele e dela, numa recepção previamente contratada num cerimonial próximo de onde moravam. Bárbara residia no mesmo bairro que Eustáquio, duas quadras da esquina dele. No mesmo percurso, vinte minutos da faculdade. Haviam se visto pela primeira vez quando ele se acidentara com a moto que acabara de comprar e precisou passar pela UPA. Bárbara trabalhava na enfermaria da unidade. Em resumo: foi amor aos primeiros curativos.

Desde então, nunca mais se largaram. O pedido de namoro veio em seguida, numa festividade reservada apenas às famílias envolvidas. O amor parecia ser eterno e sempre se renovava essa certeza com uma série de beijos calientes, abraços demorados e os encontros de todos os dias (sempre no bar do Moacir) ou nas horas de estudos, na biblioteca da faculdade ou no refeitório:
— Eu te amo, Bárbara.
— Eu te amo, Eustáquio.
Diante do espelho, a se ver recordando o dia anterior, notadamente pensando em Bárbara, sorriu, matreiro: “Eu te amo, Barbara.”

Desta vez, porém, só os gestos dos lábios se fizeram positivos. O som da voz acometido por alguma coisa inexplicável, morrera no fundo da garganta: “Bárbara, eu te amo.” O imensurável do distúrbio repentino pesou tenebroso no reflexo que a superfície polida e metalizada grudada na parede acima da cuba insistia reverberar: “Eu te amo, Bár....” sem sequer terminar o que pretendia, desceu do segundo andar acelerando os pés. No piso inferior, tropeçou com Lolita, a empregada, finalizando a mesa com os preparativos para o café da manhã:
— Patrãozinho, o que é isso? Precisa usar óculos...

Eustáquio devolveu a serviçal um “sai da frente” aos berros. Porém, ela nada ouviu, enquanto ele, transtornado, e aos prantos, corria em direção à cozinha buscando pela mãe. Adentrou pulando nos braços da genitora:
—  Oi filho, o que houve?
Dona Fernanda percebeu, nesse momento, que algo atípico e inabitual adejava e crescia em desacordo. Até aquela manhã bonita, nunca vira seu filho tão agitado, além, claro, do choro espasmódico que fazia as lágrimas em profusão banharem o rosto da criatura de forma aterradora.

O infeliz tentou dizer que acordara anômalo ao seu estado costumeiro. Desenhou uma série de gestos com a destra. Dona Fernanda, entretanto, não dimensionou, de pronto, o que acontecia:  
— Filho, pelo amor de Deus, o que se passa? Lolita me socorre, por tudo quanto é sagrado. Lolitaaaaaaaa...
Lolita veio ligeira, indagando da patroa o que se passava. Ao vê-la, agitada e chorosa, entrou também em pânico, pondo-se os três a se debulharem em profunda convulsão:
— Lolita, pegue o meu celular lá em cima, na cabeceira da cama e ligue para o doutor Jair. Veja se meu marido já chegou ao escritório...
— Sim senhora, dona Fernanda.

— Peça que venha urgente. Nosso Eustáquio não está em... ande, filha de Deus, vá... deslanche...
— Estou indo, patroa... estou indo...
— Rápido, criatura... acelere, “despise” do freio. Voeeeeeeee...
Em vista do trânsito caótico, o doutor Jair demorou quase uma hora para conseguir retornar à sua residência. Ingressou às carreiras, tropeçando nos móveis, ao tempo em que resmungava impropérios os mais cabeludos:
— Que foi, Fernanda. O que aconteceu?
— Nosso filho Eustáquio!
— O que houve? Nosso rebento botou um ovo?

Dona Fernanda fuzilou o marido:
— Engraçadinho. Isso não é hora de fazer piadas. O assunto é sério.
Lolita com a história do ovo bailada pelo doutor Jair igualmente se abriu em franca e sonora gargalhada:
— Lolita, sua desmiolada. Onde está a graça?
A empregada, movida pela piada ouvida do seu senhorio, não atinou com a indagação. Respondeu o que lhe veio à língua solta:
— Que graça, dona Fernanda?  Que graça?!
— Dois imbecis, tenho diante de mim. Deixem as palhaçadas para depois. Jair, seu tonto de carteirinha. Nosso filho requer cuidados...
Subiram, em fila indiana, para o andar superior. À porta do quarto de Eustáquio, ficaram boquiabertos com o cenário.

O rapaz completamente pelado, dançava freneticamente com o traseiro virado para a porta. Bailava ao som de alguma música que só ele deveria estar ouvindo. A postura de seus requebros estrambóticos e bizarros, em expressão pessoal garbosa, lembrava, ainda que muito distante, a dança do ventre. Não havia ninguém no aposento. Contudo, o doutor Jair, cenho franzido, intrigado e “estupefatado” com aquele episódio burlesco e ridículo, embrabeceu a voz e esturrou:
— Fernanda, que “diabos” está acontecendo aqui? Quem é a vagabunda destrambelhada ao lado do nosso menino?

Dona Fernanda se encheu de razão. Inflamou as ventas. Se pudesse voaria no pescoço de seu marido:
— Jair, seu desgraçado, pare de piadas. Nosso filho precisa de ajuda. Vamos. Faça alguma coisa...
— Primeiro me diga quem é a rameira desqualificada que está ao lado dele. Se não estou velho demais, afirmo que não é a Bárbara. Como você permitiu essa imundície entrar aqui?
— Jair, seu infeliz dos infernos. Deixe de ser criança. Não vejo ninguém ao lado dele. Você pirou o cabeção? Bebeu? Fumou um cigarrinho do tinhoso?
— “Diabos”, mulher. Nosso filho está grudado numa piranha. Você me tira quase às barbas do trabalho para vir aqui e assistir uma droga dessas?

O surpreendente, o inverossímil. O inaudito pasmoso e insólito. Ao pronunciar a palavra “diabos” a devassa e promíscua rapariga desapareceu. Eustáquio, num segundo, voltou ao normal da voz sucumbida. De costas para os ali presentes, num impensado se virou de vez:
— Pai, mãe, o que fazem aqui?
“Desrecordara,” obviamente, que se transformara num Adão e caminhava para seus consanguíneos envoltos numa plateia nu em pelo. A pobrezinha da serviçal, atarantada e perturbada, sem saber onde enfiar a “estuporação,” foi a que mais se aperreou. Quando mirou o herdeiro dos seus patrões, tapou os olhos numa atitude envergonhadíssima. Empreendeu meia volta e debandou escadas abaixo em tremenda correria, e, aos espaventos do susto, vociferando enquanto se benzia:
— Puxou o pai. Jumento, jumento, jumentoooooooo!...    

Fonte:
Texto enviado pelo autor.