quarta-feira, 18 de outubro de 2023

Mensagem na garrafa – 12 -


Alexandra Dias Ribeiro


O TEMPO E OS OLHOS QUE FALAM POR SI
    
Sou uma mulher como outra qualquer. Como consequência adoro um espelho! Em algumas ocasiões fujo deles, temo a resposta à fatal pergunta: “Espelho, espelho meu…”.

Nesta noite foi diferente de todas as passadas. Após rever antigas fotografias, resolvi tirar a prova dos nove. Busquei por mim mesma vestígios daquela menina de quinze anos com a atual.

Em uma mão a foto antiga, amarelada pelo tempo. Parada em frente ao espelho tudo o que vi foi uma estranha, que assim como a foto trazia marcas do tempo. Apenas uma coisa aquelas duas pessoas tinham em comum… Os olhos. Não é por menos que dizem que nossos olhos são o espelho da alma.

O fato é que pela primeira vez em muitos anos enxerguei-me. Aquele rosto pareciam pertencer a outra pessoa, no fundo eu ainda era aquela menina de outrora.

A foto acabou esquecida em minha mão. Os olhos da estranha me olhavam profundamente desvendando segredos que eu achava que estavam esquecidos. Que bobagem a minha, quando acreditei por tanto tempo que era imutável ao tempo! Gozado, os anos deixaram marcas profundas em minha pele, mas não afetaram aqueles olhos.

Passou-se algum tempo e continuei olhando aquele fantasma diante de mim. Agora percebia que durante muito tempo procurara o espelho, mas apenas via o que deseja ver, não a realidade. Naquele momento surge do nada uma borboleta, bela por sinal, dessas coloridas que enfeitam o jardim, havendo uma coincidência. Logo atrás de mim havia pendurado um quadro. Não fora pintado por ninguém famoso, e a imagem era muito clara para se ter interpretações. Era simplesmente uma borboleta. Pintada de maneira tão realista que mais parecia uma que realmente estivesse pousado ali. Suas asas eram de um colorido vibrante, como o arco íris, contornado de um grafite. Nunca soube ao certo o porquê de minha fascinação por aquele quadro. Passei a mão na figura sentindo sua textura, acompanhando seu relevo. Difícil dizer quanto tempo fiquei ali, talvez minutos ou horas. Mas independente do tempo, foi o suficiente para eu entender o motivo daquela fascinação pelo o quadro. Sem perceber comparei-me com ela. Primeiro é simplesmente uma lagarta, depois se recolhe em seu casulo e quando volta para ver o sol o milagre aconteceu… É uma borboleta. Eu também apesar de que por pontos diferentes também já estive em um casulo, ou melhor, ainda estava.

Voltei àquela estranha no espelho… Ela continuava lá. Espreitando-me, como se perguntasse “E aí chegou alguma conclusão?”. Só que havia algo naquele olhar que eu não havia reparado antes, estavam risonhos.

Diante disso sorri, mostrando para aqueles notáveis olhos que compreendia e eles pareciam concordar… Somos como um saboroso vinho… quanto mais tempo tem a safra, se é melhor. Já dizia alguém: Mais vale a experiência, do que quantos aniversários se comemorou.

Adeus casulo.

Machado de Assis (Fulano)

Venha o leitor comigo assistir à abertura do testamento do meu amigo Fulano Beltrão. Conheceu-o? Era um homem de cerca de sessenta anos. Morreu ontem, dois de janeiro de 1884, às onze horas e trinta minutos da noite. Não imagina a força de ânimo que mostrou em toda a moléstia. Caiu na véspera de finados, e a princípio supúnhamos que não fosse nada; mas a doença persistiu, e ao fim de dois meses e poucos dias a morte o levou.

Eu confesso-lhe que estou curioso de ouvir o testamento. Há de conter por força algumas determinações de interesse geral e honrosas para ele. Antes de 1863 não seria assim, porque até então era um homem muito metido consigo, reservado, morando no caminho do Jardim Botânico, para onde ia de ônibus ou de mula. Tinha a mulher e o filho vivos, a filha solteira, com treze anos. Foi nesse ano que ele começou a ocupar-se com outras coisas, além da família, revelando um espírito universal e generoso. Nada posso afirmar-lhe sobre a causa disto. Creio que foi uma apologia de amigo, por ocasião dele fazer quarenta anos. Fulano Beltrão leu no “Jornal do Comércio”, no dia cinco de março de 1864, um artigo anônimo em que se lhe diziam coisas belas e exatas:--bom pai, bom esposo, amigo pontual, cidadão digno, alma levantada e pura. Que se lhe fizesse justiça, era muito; mas anonimamente, era raro.

– Você verá, disse Fulano Beltrão à mulher, você verá que isto é do Xavier ou do Castro; logo rasgaremos o capote.

Castro e Xavier eram dois habituados da casa, parceiros constantes do voltarete e velhos amigos do meu amigo. Costumavam dizer coisas amáveis, no dia cinco de março, mas era ao jantar, na intimidade da família, entre quatro paredes; impressos, era a primeira vez que ele se benzia com elogios. Pôde ser que me engane; mas estou que o espetáculo da justiça, a prova material de que as boas qualidades e as boas ações não morrem no escuro, foi o que animou o meu amigo a dispersar-se, a aparecer, a divulgar-se, a dar à coletividade humana um pouco das virtudes com que nasceu. Considerou que milhares de pessoas estariam lendo o artigo, à mesma hora em que o lia também; imaginou que o comentavam, que interrogavam, que confirmavam, ouviu mesmo, por um fenômeno de alucinação que a ciência há de explicar, e que não é raro, ouviu distintamente algumas vozes do público. Ouviu que lhe chamavam homem de bem, cavalheiro distinto, amigo dos amigos, laborioso, honesto, todos os qualificativos que ele vira empregados em outros, e que na vida de bicho do mato em que ia, nunca presumiu que lhe fossem -tipograficamente – aplicados.

– A imprensa é uma grande invenção, disse ele à mulher.

Foi ela, D. Maria Antonia, quem rasgou o capote; o artigo era do Xavier. Declarou este que só em atenção à dona da casa confessava a autoria; e acrescentou que a manifestação não saíra completa, porque a ideia dele era que o artigo fosse dado em todos os jornais, não o tendo feito por havê-lo acabado às sete horas da noite. Não houve tempo de tirar cópias. Fulano Beltrão emendou essa falta, se falta se lhe podia chamar, mandando transcrever o artigo no “Diário do Rio” e o “Correio Mercantil”.

Quando mesmo, porém, este fato não desse causa à mudança de vida do nosso amigo, fica uma coisa de pé, a saber, que daquele ano em diante, e propriamente do mês de março, é que ele começou a aparecer mais. Era até então um casmurro, que não ia ás assembleias das companhias, não votava nas eleições políticas, não frequentava teatros, nada, absolutamente nada. Já naquele mês de março, a vinte e dos ou vinte ou vinte e três, presenteou a Santa Casa da Misericórdia com um bilhete da grande loteria de Espanha, e recebeu uma honrosa carta do provedor, agradecendo em nome dos pobres. Consultou a mulher e os amigos, se devia publicar a carta ou guarda-la, parecendo-lhe que não a publicar era uma desatenção. Com efeito, a carta foi dada a vinte e seis de março, em todas as folhas, fazendo uma delas comentários desenvolvidos acerca da piedade do doador. Das pessoas que leram esta noticia, muitas naturalmente ainda se lembravam do artigo do Xavier, e ligaram as duas ocorrências: «Fulano Beltrão é aquele mesmo que, etc.» primeiro alicerce da reputação de um homem.

É tarde, temos de ir ouvir o testamento, não posso estar a contar-lhe tudo. Digo-lhe sumariamente que as injustiças da rua começaram a ter nele um vingador ativo e discursivo; que as misérias, principalmente as misérias dramáticas, filhas de um incêndio ou inundação, acharam no meu amigo a iniciativa dos socorros que, em tais casos, devem ser prontos e públicos. Ninguém como ele para um desses movimentos. Assim também com as alforrias de escravos. Antes da lei de 28 de setembro de 1871, era muito comum aparecerem na Praça do Comércio crianças escravas, para cuja liberdade se pedia o favor dos negociantes. Fulano Beltrão iniciava três quartas partes das subscrições, com tal êxito, que em poucos minutos ficava o preço coberto.

A justiça que se lhe fazia, animava-o, e até lhe trazia lembranças que, sem ela, é possível que nunca lhe tivessem acudido. Não falo do baile que ele deu para celebrar a vitória de Riachuelo, porque era um baile planeado antes de chegar a noticia da batalha, e ele não fez mais do que atribuir-lhe um motivo mais alto do que a simples recreação de família, meter o retrato do almirante Barroso no meio de um troféu de armas navais e bandeiras no salão de honra, em frente ao retrato do imperador, e fazer, à ceia, alguns brindes patrióticos, como tudo consta dos jornais de 1865.

Mas aqui vai, por exemplo, um caso bem característico da influência que a justiça dos outros pode ter no nosso procedimento. Fulano Beltrão vinha um dia do tesouro, aonde tinha ido tratar de umas décimas. Ao passar pela igreja da Lampadosa, lembrou-se que fora ali batizado; e nenhum homem tem uma recordação destas, sem remontar o curso dos anos e dos acontecimentos, deitar-se outra vez no colo materno, rir e brincar, como nunca mais se ri nem brinca. Fulano Beltrão não escapou a este efeito; atravessou o adro (vestíbulo), entrou na igreja, tão singela, tão modesta, e para ele tão rica e linda. Ao sair, tinha uma resolução feita, que pôs por obra dentro de poucos dias: mandou de presente à Lampadosa um soberbo castiçal de prata, com duas datas, além do nome do doador– a data da doação e a do batizado. Todos os jornais deram esta noticia, e até a receberam em duplicata, porque a administração da igreja entendeu (com muita razão) que também lhe cumpria divulga-la aos quatro ventos.

No fim de três anos, ou menos, entrara o meu amigo nas cogitações públicas; o nome dele era lembrado, mesmo quando nenhum sucesso recente vinha sugeri-lo, e não só lembrado como adjetivado. Já se lhe notava a ausência em alguns lugares. Já o iam buscar para outros. D. Maria Antonia via assim entrar-lhe no Éden a serpente bíblica, não para tenta-la, mas para tentar a Adão. Com efeito, o marido ia a tantas partes, cuidava de tantas coisas, mostrava-se tanto na rua do Ouvidor, à porta do Bernardo, que afrouxou a convivência antiga da casa. D. Maria Antonia disse-lhe. Ele concordou que era assim, mas demonstrou-lhe que não podia ser de outro modo, e, em todo caso, se mudara de costumes, não mudara de sentimentos. Tinha obrigações morais com a sociedade; ninguém se pertence exclusivamente; daí um pouco de dispersão dos seus cuidados. A verdade é que tinham vivido demasiadamente reclusos; não era justo nem bonito. Não era mesmo conveniente; a filha caminhava para a idade do matrimônio, e casa fechada cria morrinha (catinga) de convento; por exemplo, um carro, porque é que não teriam um carro? D. Maria Antonia sentiu um arrepio de prazer, mas curto; protestou logo, depois de um minuto de reflexão.

--Não; carro para que? Não; deixemo-nos de carro.

--Já está comprado, mentiu o marido.

Mas aqui chegamos ao juízo da provedoria. Não veio ainda ninguém; esperemos à porta. Tem pressa? São vinte minutos no máximo. Pois é verdade, comprou uma linda vitória; e, para quem, só por modéstia, andou tantos anos ás costas de mula ou apertado num ônibus, não era fácil acostumar-se logo ao novo veiculo. A isso atribuo eu as atitudes salientes e inclinadas com que ele andava, nas primeiras semanas, os olhos que estendia a um lado e outro, à maneira de pessoa que procura alguém ou uma casa. Afinal acostumou-se; passou a usar das atitudes reclinadas, embora sem um certo sentimento de indiferença ou despreocupação, que a mulher e a filha tinham muito bem, talvez por serem mulheres. Elas, aliás, não gostavam de sair de carro; mas ele teimava tanto que saíssem, que fossem a toda a parte, e até a parte nenhuma, que não tinham remédio senão obedecer-lhe; e, na rua, era sabido, mal vinha ao longe a ponta do vestido de duas senhoras, e na almofada um certo cocheiro, toda a gente dizia logo:--aí vem a família de Fulano Beltrão. E isto mesmo, sem que ele talvez o pensasse, tornava-o mais conhecido.

No ano de 1868 deu entrada na política. Sei do ano porque coincidiu com a queda dos liberais e a subida dos conservadores. Foi em março ou abril de 1868 que ele declarou aderir à situação, não à socapa, mas estrepitosamente. Este foi, talvez, o ponto mais fraco da vida do meu amigo. Não tinha ideias políticas; quando muito, dispunha de um desses temperamentos que substituem as ideias, e fazem crer que um homem pensa, quando simplesmente transpira. Cedeu, porém, a uma alucinação de momento. Viu-se na câmara vibrando um à parte, ou inclinado sobre a balaustrada, em conversa com o presidente do conselho, que sorria para ele, numa intimidade grave de governo. E aí é que a galeria, na exata acepção do termo, tinha de o contemplar. Fez tudo o que pode para entrar na câmara; a meio caminho caiu a situação. Voltando do atordoamento, lembrou-se de afirmar ao Itaboraí o contrario do que dissera ao Zacarias, ou antes a mesma coisa; mas perdeu a eleição, e deu de mão à política. Muito mais acertado andou, metendo-se na questão da maçonaria com os prelados. Deixara-se estar quedo, a princípio; por um lado, era maçon; por outro, queria respeitar os sentimentos religiosos da mulher. Mas o conflito tomou tais proporções que ele não podia ficar calado; entrou nele com o ardor, a expansão, a publicidade que metia em tudo; celebrou reuniões em que falou muito da liberdade de consciência e do direito que assistia ao maçon de enfiar uma opa (manto); assinou protestos, representações, felicitações, abriu a bolsa e o coração, escancaradamente.

Morreu-lhe a mulher em 1878. Ela pediu-lhe que a enterrasse sem aparato, e ele assim o fez, porque a amava deveras e tinha a sua última vontade como um decreto do céu. Já então perdera o filho; e a filha, casada, achava-se na Europa. O meu amigo dividiu a dor com o público; e, se enterrou a mulher sem aparato, não deixou de lhe mandar esculpir na Itália um magnífico mausoléu, que esta cidade admirou exposto, na rua do Ouvidor, durante perto de um mês. A filha ainda veio assistir à inauguração. Deixei de os ver uns quatro anos. Ultimamente surgiu a doença, que no fim de pouco mais de dois meses o levou desta para a melhor. Note que, até começar a agonia, nunca perdeu a razão nem a força da alma. Conversava com as visitas, mandava-as relacionar, não esquecia mesmo noticiar às que chegavam, as que acabavam de sair; coisa inútil, porque uma folha amiga publicava-as todas. Na manhã do dia em que morreu ainda ouviu ler os jornais, e num deles uma pequena comunicação relativamente à sua moléstia, o que de algum modo pareceu reanima-lo. Mas para a tarde enfraqueceu um pouco; à noite expirou.

– Vejo que está aborrecido. Realmente demoram-se... Espere; creio que são eles. São; entremos. Cá está o nosso magistrado, que começa a ler o testamento. Está ouvindo? Não era preciso esta minuciosa genealogia, excedente das práticas tabeliãs; mas isto mesmo de contar a família desde o quarto avô prova o espírito exato e paciente do meu amigo. Não esquecia nada. O cerimonial do saimento é longo e complicado, mas bonito. Começa agora a lista dos legados. São todos peões; alguns industriais. Vá vendo a alma do meu amigo. Trinta contos...

Trinta contos para que? Para servir de começo a uma subscrição pública destinada a erigir uma estátua a Pedro Alvares Cabral. «Cabral, diz ali o testamento, não pode ser olvidado dos brasileiros, foi o precursor do nosso império». Recomenda que a estátua seja de bronze, com quatro medalhões no pedestal, a saber, o retrato do bispo Coutinho, presidente da Constituinte, o de Gonzaga, chefe da conjuração mineira, e o de dois cidadãos da presente geração «notáveis por seu patriotismo e liberalidade» á escolha da comissão, que ele mesmo nomeou para levar a empresa a cabo.

Que ela se realize, não sei; falta-nos a perseverança do fundador da verba. Dado, porém, que a comissão se desempenhe da tarefa, e que este sol americano ainda veja erguer-se a estátua de Cabral, é da nossa honra que ele contemple num dos medalhões o retrato do meu finado amigo. Não lhe parece? Bem, o magistrado acabou, vamos embora.
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Originalmente publicado em Gazeta de Notícias, em 1884

Fonte: Machado de Assis. Histórias sem data. Publicado em 1884. Disponível em Domínio Público. (Convertido para o português atual por J. Feldman) 

Caldeirão Poético LXIX (O livro em versos)


Alberto Martins

(Santos/SP)

O EDITOR

Passa o dia entre livros
Que não existem, ainda estão por ser escritos
Ou nunca chegarão a ser impressos.
Não trabalha no campo
Mas tem as mãos escalavradas:
A pele dos dedos descama feito pergaminho.
De noite voltam para casa
Ele e sua sombra – enxertada de palavras.
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Alphonsus de Guimaraens Filho
(Mariana, 1918 – 2008, Rio de Janeiro/RJ)

DEVORAR

Devorar esses livros como quem
Come folhas de alface. Devorá-los,
De muitos condimentos salpicá-los,
Para que afinal nos saibam bem.

Não feri-los, roê-los, esmagá-los.
Devorá-los com a fome que nos vem
Da esperança talvez de iluminá-los,
De revelá-los sem tristeza, sem.

Não impulso de papirofagia,
Ou de quem come cinza. Tão-somente
Ir ao cerne da noite que os retém.

Devorá-los com certa nostalgia,
Em nós fundi-los derradeiramente,
E então deixá-los como lhes convém.
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Eugénio de Andrade
(Fundão/Portugal, 1923 – 2005, Porto/Portugal)

OS LIVROS

Os livros. A sua cálida,
terna, serena pele. Amorosa
companhia. Dispostos sempre
a partilhar o sol
das suas águas. Tão dóceis,
tão calados, tão leais,
tão luminosos na sua
branca e vegetal e cerrada
melancolia. Amados
como nenhuns outros companheiros
da alma. Tão musicais
no fluvial e transbordante
ardor de cada dia.
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Jean De La Rivière
(França, 1338 – 1365)

HOMEM...

Homem, para viver satisfeito,
Para aprender a viver, leia!
E não perca seu tempo,
Procurando defeitos nos livros.
Nenhum livro é tão perfeito
Que nele algo não possa ser criticado.
Mas também nenhum é tão mal feito
Que nele algo não possa ser aproveitado.
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João Pedro Mésseder
(Porto/Portugal)

UM LIVRO

Levou-me um livro em viagem
não sei por onde é que andei.
Corri o Alasca, o deserto
andei com o sultão no Brunei?
Pra falar verdade, não sei.

Com um livro cruzei o mar,
não sei com quem naveguei.
Com marinheiros, corsários,
tremendo de febres e medo?
Pra falar verdade não sei.

Um livro levou-me p’ra longe
não sei por onde é que andei.
Por cidades devastadas
no meio da fome e da guerra?
Pra falar verdade não sei.

Um livro levou-me com ele
até ao coração de alguém
e aí me enamorei –
de uns olhos ou de uns cabelos?
Pra falar verdade não sei.

Um livro num passe de mágica
tocou-me com o seu feitiço:
Deu-me a paz e deu-me a guerra,
mostrou-me as faces do homem
– porque um livro é tudo isso.

Levou-me um livro com ele
pelo mundo a passear.
Não me perdi nem me achei
– porque um livro é afinal…
um pouco da vida, bem sei.
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Paulo Leminski
(Curitiba/PR, 1944 – 1989)

LEITE, LEITURA

letras, literatura,
tudo o que passa,
tudo o que dura
tudo o que duramente passa
tudo o que passageiramente dura
tudo, tudo, tudo
não passa de caricatura
de você, minha amargura
de ver que viver não tem cura
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Ricardo Azevedo
(São Paulo/SP)

AULA DE LEITURA

A leitura é muito mais
do que decifrar palavras.
Quem quiser parar pra ver
pode até se surpreender:
vai ler nas folhas do chão,
se é outono ou se é verão;
nas ondas soltas do mar,
se é hora de navegar;
e no jeito da pessoa,
se trabalha ou se é à-toa;
na cara do lutador,
quando está sentindo dor;
vai ler na casa de alguém
o gosto que o dono tem;
e no pelo do cachorro,
se é melhor gritar socorro;
e na cinza da fumaça,
o tamanho da desgraça;
e no tom que sopra o vento,
se corre o barco ou vai lento;
também na cor da fruta,
e no cheiro da comida,
e no ronco do motor,
e nos dentes do cavalo,
e na pele da pessoa,
e no brilho do sorriso,
vai ler nas nuvens do céu,
vai ler na palma da mão,
vai ler até nas estrelas
e no som do coração.
Uma arte que dá medo
é a de ler um olhar,
pois os olhos têm segredos
difíceis de decifrar.
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Tony Roberson de Mello Rodrigues
(São José/SC)

SAUDADE

Aqui em casa,
Que falta nos faz Cecília:
Seus poemas eram lidos
Em família.

Nas tardes de garoa,
Choviam heterônimos:
Que falta nos faz Pessoa!

Redescobrir a pureza humana,
Domesticar os demônios,
Enlouquecer as filigranas...
Falta-nos Quintana.

Pobres dos homens que anseiam
O mundo que mais tarde
Incendeiam...

E o livro, inquieto,
Grita do alto da estante:
- Empoeirou-se o meu instante?

Fonte: Sammis Reachers (seleção e edição). Poemas sobre Sua Majestade, o LIVRO: uma microantologia. ebook.

Irmãos Grimm (A velha mãezinha)

Numa grande cidade, vivia uma pobre velhinha. Certa noite, estava ela muito só, sentada no quarto, pensando em como, primeiro, perdera o marido; depois os dois filhos, um atrás do outro e, sucessivamente, todos os parentes; nesse mesmo dia acabava de perder o seu único amigo, ficando completamente só e abandonada.

Com o coração dilacerado pela angústia, oprimia-a, sobretudo, a perda dos dois filhos e se revoltava contra o destino, chegando até a acusar Deus por lhes ter roubado.

Nisso, enquanto estava mergulhada nos tristes pensamentos, pareceu-lhe ouvir tocar os sinos para a missa matinal. Admirou-se muito de ter passado à noite toda nessa sua angústia, acendeu a lanterna e dirigiu-se à igreja.

Ao aproximar-se, notou que a igreja estava toda iluminada, mas não por círios, como de costume, mas por uma estranha luz crepuscular. E já estava repleta de gente, todos os lugares estavam ocupados; e quando a pobre velha procurou o lugar habitual no banco para sentar-se, encontrou-o também todo ocupado.

Ao fitar aqueles que o ocupavam, reconheceu os seus falecidos parentes aí reunidos, vestidos à moda antiga e de rostos lívidos. Não falavam, nem cantavam, mas pela igreja perpassavam leves sopros e sussurros. Eis que uma velha parenta se levantou, aproximou-se dela e disse-lhe:

– Olha para o lado do altar e lá verás teus filhos. A pobre mãe olhou ansiosamente e viu os dois. Um pendia de uma forca e o outro estava atado a uma roda.

Então a tia acrescentou:

– Vês o que lhes teria sucedido, se Deus os tivesse deixado no mundo e os não tivesse chamado a si quando ainda crianças inocentes? A desolada mãe voltou para casa tremendo e, ajoelhando-se no quarto, agradeceu profundamente a Deus a mercê que lhe fizera e que ela, na cegueira do seu amor, não pudera compreender.

Ao fim de três dias, caiu de cama e morreu.

Fonte: Contos de Grimm. Publicados de 1812 a 1819. Disponível em Domínio Público.

Estante de Livros (A filha dos rios, de Ilko Minev)

Com o intuito de homenagear os habitantes da região amazônica e de preservar a história local, Minev descreve com detalhes a paisagem do mundo onde moram nordestinos , portugueses, italianos, espanhóis, árabes e judeus, que desbravaram aquele território imenso desde o primeiro ciclo da borracha.

Romance ambientado na Amazônia, marcado pela história de mulheres resolutas e fortes diante de adversidades rotineiras na segunda metade do século XX. Filhas do rio, apesar do título referir-se, primordialmente, a Maria.

Aborda pontos históricos como o garimpo e seringais, despertando um encanto ou curiosidade na descrição da natureza e da vida social.

A obra inicia com a história de Maria, em uma sucessão de eventos fortemente arraigados na cultura ribeirinha, principalmente de décadas passadas, mostrando a protagonista da adolescência à maturidade de mulher calejada e pilar em sua família. Maria é uma cabocla de olhos verdes. Aos 16 anos, ela é levada de Igarapó Mirim por Adriano, a pedido de sua mãe, Eulalia. Descendo pelo Rio Purus, eles chegam a Surara, onde se instalam. É lá que Maria aprende a cozinhar e que o amor entre ela e Adriano aflora. Maria e Adriano seguem viagem até Manaus, onde conhecem Benjamim Melul e sua esposa Nina e, juntos, partem para Quatro Ases, um seringal na fronteira do Brasil com a Bolívia. Após cinco anos, quando decidem se mudar, o grupo é pego por um surto de febre amarela e apenas Maria e três crianças sobrevivem . Determinada a educar seus dois filhos e Alice, a filha do casal de amigos, Maria trabalha como cozinheira, em uma boate e na draga de prospecção de ouro de Oleg Hazan, um jovem judeu búlgaro.

O ambiente é retratado de forma rústica, isolada e decadente, principalmente em relação ao resgate seringalista.

Na segunda parte o autor apresenta Sandra, que tem uma história ligada a antepassados judaicos e com muitas revelações quanto a trajetória pessoal e de seu povo. O autor fala de eventos ocorridos na Europa que são desconhecidos do grande público, como a organização Zwi Migdal (máfia que atuou no tráfico de mulheres para a América do Sul). Nessa parte os eventos giram em torno do garimpo e sua efervescência comum ligada a bordéis e pirataria.

O livro encerra de forma nostálgica, em uma revisitação dos cenários, deixando em paralelo histórias amazônidas, reais ou fictícias, como tantas que ocorreram ou se passam por aqui.

A história de Maria, retorna apagada na segunda parte, sem o carisma cativante e admirável em sua primeira passagem.

É o segundo romance de Ilko Minev, publicado em 2015, com personagens ligados a "Onde estão as flores?", obra de 2013.

Fontes:
Amazon 

Aparecido Raimundo de Souza (Recordações de um passado que não desgruda)

 NUNCA FUI um sujeito de ir à missa aos domingos, de rezar de joelhos, os pensamentos compenetrados nas palavras do celebrante, as mãos cruzadas em atitude de respeito. Não me recordo de ter acendido velas no cruzeiro, de fazer reverências diante dos santos, e como um bom cristão, molhar o dedo no vidro de água benta e esparramar na cara o sinal da cruz. Tampouco de jogar uns trocadinhos na caixa de ofertas, pedir a bênção do padre... enfim, sempre me portei como um católico pela metade, avesso a estas futilidades que alguns pirús de igreja levam tão a sério que chegam a gozar êxtases religiosos.

Tive uma infância difícil. Desde tenra idade vivi longe dos carinhos maternos. Meu pai, separado de mamãe (que morava no Rio de Janeiro), aparecia de vez em quando, e, nessas escassas erupções, dava os ares da graça para pedir dinheiro ao meu avô. O velho tinha posses e segurava a barra dos dois únicos filhos que tivera com a primeira mulher. Não fosse ele, acho que tanto papai como a tia Nair sucumbiriam de fome e frio. Em outras palavras: colariam as suas imbecilidades em um banheiro de hoteizinhos baratos de beira de estrada.

Em decorrência de uma série de atropelos, me criei num mundo diferente. Na verdade, construí um universo só meu, onde os adultos não entravam. Nem saiam. Os brinquedos que povoavam meus sonhos de garoto, eu os improvisava com caixas de sapatos, caixinhas de fósforos, palitos de sorvete, tampinhas de garrafas e latas de leite em pó e de óleo. Vovô não se dava ao luxo de comprar as novidades que chegavam às lojas especializadas. Para ele, criança precisava de escola, roupas, remédios e calçados. O resto, bem o resto fazia parte de uma lista de eternos supérfluos, sendo, portanto dispensáveis.

Nem rádio para se ouvir uma música existia. Vovô não permitia principalmente televisão. Em hipóteses nenhuma. Vovó Marta (sua segunda mulher), coitada, adorava uma novela que passava às sete horas da noite, e, quando estava quase dando o horário, combinada com a vizinha, dona Clotilde, casa de meia parede, a boa senhora vinha até o muro e gritava. Em outras vezes, batia palmas no portão. E lá ia a pobre longeva correndo, quase aos tropeções para não perder o capítulo do dia. Um pouco antes, punha a ferver, numa panelinha de alumínio, um aparelho de dar injeção juntamente com uma agulha.  

Seu Agenor (marido de dona Clotilde) tinha problemas de saúde e se valendo da doença do infeliz, vovó conseguia acompanhar, com certa regularidade a trama da história. Porém, o que eu mais gostava, neste tempo: os domingos. Não todos, mas especificamente aqueles em que mamãe Ana vinha me visitar. A autora dos meus dias (depois de viajar a noite inteira), chegava muito cedo, aportava com um monte de presentes na bagagem. Isto realmente me fazia no garoto mais feliz na face da terra. Ela passava o dia todo comigo.

Saíamos, íamos a um restaurante, almoçávamos. Eu adorava arroz e filé com fritas. Nunca mudava o prato e a garçonete, quando chegávamos se apressava a mandar preparar o prato. Final de tarde, a caminho de regressar, parávamos numa lanchonete e eu me fartava no tal do misto quente com Coca-Cola. Por volta das oito, mamãe se recompunha para voar para a rodoviária. Ela então se despedia. Uma cena bárbara, recheada de muitas tristezas e lágrimas A sua partida me deixava fora de mim, do chão. Ficava um vazio grande corroendo dentro do meu peito seguido de uma dor muito forte e intensa que varava a noite e custava a passar.

Contudo, a magia do encanto de saber que outro domingo (ainda que não o próximo) igual o último se repetiria depois, me dava forças hercúleas para ficar esperando, trepado numa cadeira, olhando, impaciente pela janelinha que havia na porta da sala. Este postigo me colocava em sintonia com uma rua larga e bonita, cheia de árvores floridas que se perdiam, lá longe, numa curva distante. Noutras vezes, esperava por ela em meu quarto. Aguardava impaciente, nervoso, os olhos injetados de um medo insalubre e mazelento de que ela, por algum motivo, não viesse. Quando não estava dentro de casa, deitava no chão de terra do quintal (que era imenso) e ficava prostrado.

Me invadia uma angústia perturbadora, ao tempo em que arrimado num céu azul acima de mim, alimentava à espera, sempre à espera de que ele desabasse em cima de meus anseios, e, de repente, num piscar mágico do acaso, Papai do céu fizesse mamãe surgir do nada e eu me levantasse do medo mórbido que me envolvia até os cabelos da alma. No tempo do meu tempo, a alma tinha cabelos. Claro, nem sempre acontecia assim. Hoje, aos setenta, não posso dizer que sou totalmente feliz, mas no fundo, sou. Pelo menos um bocadinho. Tenho uma renca considerável de filhos e netos.  Uma, em especial, se fez igual a mim. “Cuspida e escarrada.” Mora longe e fica me esperando chegar todos os domingos, sentada na porta do condomínio, chupando o dedinho, perdida em pensamentos infantis, esquecida em seu mundinho limitado, sabe-se lá sonhando com o quê.

Este fato me faz lembrar nitidamente dos meus tempos de menino de calças curtas, em que, igualmente à minha pequena, eu me olvidava dos demais ao redor e via diante de mim somente a figura elegante e radiosa de mamãe apontando na esquina da rua. Às vezes, o tempo se mesclava refulgido numa agitação inqualificável. Meu Deus, ela se fazia real. Se tornava em carne e osso. Em outras, a minha Felicidade morria lentamente dentro do peito e eu me trancava sem vontade de nada. Me refugiava pelos cantos, os olhos chorosos, o rosto entrelaçado numa solidão coalescente (aderente) e pegadiça, difícil e feroz, que custava um bocado para me largar de vez e ir embora.  
    
Apesar destes contratempos, cheguei até aqui. Me sinto realizado. Não totalmente, mas dá para o gasto. Os filhos cresceram. A minha menina se fez mulher, me deu um neto. Continua chupando o dedinho. Os outros rebentos também se fizeram adultos. Casaram, separaram. Me deram netos. Apesar de toda a tecnologia que temos ao alcance das mãos, nunca telefonam ou mandam recados via WhatsApp. Mamãe, por seu turno, se cansou da vida. Foi embora de vez. Disse adeus num dia que se tornou melancólico e sem volta. Sua ausência me traz à lembrança um porvir agourento e aterrador. Nele não vejo o céu, tampouco o sol. Menos ainda as estrelas cintilantes. As noites do meu “hoje-agora” se fizeram compridas e inauditas.   

Fonte:
Texto enviado pelo autor

segunda-feira, 16 de outubro de 2023

Adega de Versos 114: Washington Daniel Gorosito Pérez

 

Mensagem na Garrafa – 11 -

Henfil

Ribeirão das Neves/MG, 1944 – 1988, Rio de Janeiro/RJ

POR MUITO TEMPO

Por muito tempo, eu pensei que a minha vida fosse se tornar uma vida de verdade.

Mas sempre havia um obstáculo no caminho, algo a ser ultrapassado antes de começar a viver, um trabalho não terminado, uma conta a ser paga. aí sim, a vida de verdade começaria.

Por fim, cheguei à conclusão de que esses obstáculos eram a minha vida de verdade.

Essa perspectiva tem me ajudado a ver que não existe um caminho para a felicidade.

A felicidade é o caminho! Assim, aproveite todos os momentos que você tem.

E aproveite-os mais se você tem alguém especial para compartilhar, especial o suficiente para passar seu tempo; e lembre-se que o tempo não espera ninguém.

Portanto, pare de esperar até que você termine a faculdade; até que você volte para a faculdade; até que você perca 5 kg; até que você ganhe 5 kg; até que seus filhos tenham saído de casa; até que você se case; até que você se divorcie; até sexta à noite até segunda de manhã; até que você tenha comprado um carro ou uma casa nova; até que seu carro ou sua casa tenham sido pagos; até o próximo verão, outono, inverno; até que você esteja aposentado; até que a sua música toque; até que você tenha terminado seu drink; até que você esteja sóbrio de novo; até que você morra; e decida que não há hora melhor para ser feliz do que agora mesmo...

Lembre-se: felicidade é uma viagem, não um destino.

Júlia Lopes de Almeida (Amuletos)

Foi numa das sextas-feiras da Matilde Abranches, que o seu médico, rapaz aliás simpático, afirmou que os homens são maus por culpa das mulheres...

Os dedos de Cecília desfolhavam as notas levíssimas de Ma barque légère e a meu lado Lídia sorvia o aroma de um botão de rosa. Bem comparado, fez-me lembrar um quadro ideal de Diana Cid; Lídia também estava de azul, como a formosa do "Perfume".

— Por culpa das mulheres?! – perguntou a voz empapada de uma mãe de família, que tem por hábito tomar a sério todas as conversas.

— Como desde o princípio do mundo. Agora então a influência da mulher é nefasta. A nossa sociedade cai rapidamente da sua modesta franqueza, que a fazia encantadora, para um esnobismo que a torna ridícula. A preocupação do chique estraga tudo. As portas já se não abrem como antigamente, e procuramos termos para as conversas mais simples! Não há naturalidade nem há simplicidade. A virtude das mulheres, que era para as nossas culpas, como um tronco profundamente enraizado é para as lianas frágeis — um sustentáculo que as eleva e ampara, sente-se abalada e já não nos inspira a confiança de outrora. Como para Bruto, para mim a Virtude não é mais que uma palavra. Bebemos todos do veneno. Agora só o dilúvio.

— Que mal lhe teriam feito as mulheres, sempre gostaria de saber...

— Estragam tudo com a sua imprudência, a sua coquetterie (galantaria) e o seu fanatismo. Basta olhar para uma mulherzinha moderna para a gente perceber que se preocupa com feitiços e é supersticiosa. A quantidade de figas e de amuletos que traz ao pescoço, bem o prova. Em vez de nos ensinarem a sermos simples e cordatos, tornam a vida cada vez mais complexa e difícil.

— Exemplo?

— Nas mínimas coisas ele aparece. Vá o exemplo: convidam-nos para um jantar familiar e dão-nos um banquete em que vagueiam perfumes de flores caras e cheiros de molhos complicados. Aquilo não é o trivial: logo, aquele não é o jantar familiar. Quem ordenou e determinou o menu, não foi certamente o dono, mas a dona da casa. Portanto a atmosfera de falsidade que se respira naquela casa amiga, foi criada pela mulher.

— Ora aí está! São os nossos maridos que trazem dos hotéis e das festas a que assistem a exigência desses molhos complicados, dessas floreiras odoríferas do champagne ruinoso e dos cristais variegados (diversificados) das mesas ricas. São eles que nos sugerem novidades de serviço; e vêm os senhores depois pôr a ridículo a nossa pretensão! Geralmente não somos nós que compramos a prataria e as porcelanas. Que sabemos nós, as mulheres?

— O que adivinham. Oh! E o que as mulheres adivinham! Conheço uma que, sem ter ouvido uma única confidência, sabe que uma certa pessoa evita encontrá-la, porque é vê-la e logo nessa noite perder ao jogo!

— Esse alguém é o senhor. Vê? São os homens que jogam, que ficam amáveis se ganham ou mal humorados se perdem, que tem estragado a nossa alegria. Mas sempre quero agora que me explique: o senhor, que se ri das quatro folhas de trevo e dos corcundinhas de coral que trazemos ao peito, porque foge de cumprimentar uma senhora amiga só pelo receio de que esse encontro fortuito e rápido lhe traga o azar da fortuna?

— Males de raça, minha senhora, coisas que ficam da infância. De algum modo precisamos mostrar que já fomos crianças. Creia que eu até adoro essa senhora!

— Adora-a e evita-a!

— Mas se ela tem jetatura (azar)!

— Use então de um expediente: Quando a vir, pegue em qualquer objeto de ferro. Uma chave, por exemplo. Não traz uma chave consigo?

— É bom?

— É magnífico!

— Não sabia!

A conversa embarafustava por um terreno amável. D. Matilde confessou que deixara de se vestir de azul, porque essa cor lhe trazia infelicidade.

D. Joana citou uma amiga que usava uma liga de cada cor, como portebonheur (amuleto).  Quase todos os presentes tinham a sua mania... Voltou-se então alguém para o velho e sério dr. Braga e perguntou com um pouquinho de dúvida:

— O senhor também usa dessas coisas?

Ele tirou do bolso um caquinho de vidro azulado e disse com seriedade:

— Isto. Podem examinar.

O pedacinho de vidro andou de mão em mão; olharam todos por ele para a luz e concordaram em que não seria fácil encontrar outro tão ordinário!

Dr. Braga explicou:

— Pois, minhas senhoras e senhores, isto não é um simples amuleto, mas um talismã.

— Ainda há disso?!

— Há. Este chama-se o olho da tolerância. Infelizmente, para se ver bem por ele é preciso ter-se passado dos quarenta anos, ter-se gasto o bestunto (cabeça) em muitas observações e curvado a cabeça a duras exigências da sorte... O olho da tolerância, antes de censurar ou de punir a culpa, penetra-lhe a causa, mais disposto a absolvê–la que a castigá-la... Tem a consciência da fragilidade da alma. Antigamente eu sentia como um romancista filósofo que disse: "plus j'aime l'humanité, plus je déteste l'individu."* Hoje não; o indivíduo delinquente é para mim um irmão fraco que devo amar de preferência, porque todas as suas impurezas são consequentes de males, de cuja origem não é só ele o responsável. O olho da tolerância acalma o sistema nervoso e exercita o coração na prática do bem. Quando me sinto arrastar pela indignação ou a cólera contra alguém, respiro com força, saco deste caquinho, domino-me, e, para abater o ímpeto, olho através do vidro, reflito, e uma grande piedade vem substituir o meu primeiro movimento de fúria. Ah! Minhas senhoras, é que não há nada como a tolerância para dar repouso à inquietação das almas!
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*"plus j'aime l'humanité, plus je déteste l'individu."* = “mais eu amo a humanidade, mais eu detesto o indivíduo”.

Fonte: Júlia Lopes de Almeida. Livro das donas e donzelas. Publicado originalmente em 1906. Disponível em Domínio Público.

Isabel Furini (Poemas Infantis) II

A GATINHA MALHADA E A IDOSA


A gata quebra uma bandeja
linda, de mármore rosa.
Deixando zangada a idosa.
E nessa tarde chuvosa,
a velha grita: Gata gulosa,
você quebrou essa bandeja!

Lacrimejam os olhos da idosa.
Era um presente muito querido,
que recebera do finado marido.
- Vou deixar você no pátio,
para que morra de frio.
Agora terá que morar longe.
Talvez na casa do vizinho…
A gatinha, triste, chora.
Miau, miau, miau, miau, miau.

A velhinha arrependida,
Chama a gata de bandida,
Enquanto lhe dá um abraço.
O aconchego de seus braços,
Agrada a sua gata malhada,
Que em poucos minutos dorme.
Fica tranquila, bem relaxada,
Sente aquele carinho enorme
Percebe o quanto é amada.
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A MAÇÃ DANÇARINA

A maçã caiu de uma árvore.
Sentiu-se livre a maçã
E seguindo o ritmo do vento
Ela começou a dançar.

A maçã tinha talento,
Sabia seguir o ritmo do vento
E também bailar chá-chá-chá.
Depois começou a dançar samba.

Ela não conseguia parar...
A maçã somente deitou
de manhã, quando o Sol nasceu.

Mas a maçã ouviu o canto
dos pardais e continuou dançando
perto dos milharais.
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A ORQUESTRA DA FLORESTA

Muito bonita a passarada
que mora nessa floresta
de manhã, ao nascer o Sol,
já começa a fazer festa.

Tem cardeal e choquinha
tem canário e azulão...
Todos muito alegres
cantando com o coração.

O coral é bem treinado,
afinado como orquestra,
Bigodinho é o diretor.
Se acha o rei da floresta!

É um maestro paciente
dirigindo com a batuta
os cantos da passarada
sob o sol ou chuvarada.
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A PALMEIRA

O Ipê amarelo dá lindas flores
e  é visitado pelos beija-flores.
A palmeira é magricela!

Coitadinha da palmeira.
Falou uma cobra fofoqueira
que não gostava da palmeira.

A palmeira, irritada,
disse que ela era muito amada.
E continuou se defendendo:
- Cobra, você foi mal informada.

Palmeiras damos palmito,
damos cocos e açaí,
e nosso aspecto é bonito.

Você só quer criar conflitos.
Cobra, agora chega de fofocas,
você deixa o mundo aflito.
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O CROCODILO E A NOIVA

Uma menina bonita
morava ao lado do rio
e ela se fez amiga
de um pequeno crocodilo.

A menininha cresceu
e o crocodilo também.
Ela o alimentava,
o crocodilo comia bem.

Chegou o dia esperado
da menina, já mulher,
um vestido de noiva,
para casar-se, escolher.

A noiva estava bonita
e a festa muito divertida,
quando entrou o crocodilo
e no bolo deu uma mordida.

Todo mundo ficou assustado,
pois pressentiram o perigo.
Alguns fugiram pela janela
outros, buscaram abrigo.

A noiva gritou: " -Calma, gente!
Esse crocodilo é meu amigo,
além de muito inteligente."
E a festança continuou.

A orquestra tocou lambada,
O crocodilo dançava e cantava.
A noiva, o noivo e o crocodilo
dançaram até de madrugada.
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O GATINHO É UM ARTISTA

O gatinho era pintor.
Ele queria pintar
a palavra amor.

O gatinho procurou uma flor
de pétalas vermelhas
com manchas de cor marrom.

O gatinho preparou uma tela
e copiou essa flor
(que era vermelha e marrom).

E no centro dessa flor
escreveu a palavra AMOR.
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O GATO TOUREIRO

Eu tenho um lindo gato
é um gato muito pequeno,
mas ele enfrenta um touro
e ele o enfrenta sem medo.

Meu gato é toureiro
e quer tourear o dia inteiro.
Ele faz isso sem ficar em perigo
porque o touro é de brinquedo.
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O GRILO, A JOANINHA E O SAPO

Cri-cri-cri, cri-cri-cri
O som estridente do grilo
convida outros grilos a cantar.
A Joaninha ouve o canto
e logo começa a dançar.
A formiga se aproxima
e ensaia passos de dança.
A Lua sobre o jardim
fica olhando a algazarra.
De repente, aparece um sapo
carregando uma guitarra.
O sapo abre a bocarra
e o grilo tenta escapar,
a joaninha assustada
começa a chorar.
O pobre sapo fica triste
pois ele só queria cantar.
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O GUARDA-CHUVA AZUL

Na chuva,
um guarda-chuva azul
voa pela rua
e saúda a Lua.
Uma criança,
com esperança,
corre atrás do guarda-chuva
que dança
no jardim da pequena casa,
no fim da rua.
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VIVA A PRIMAVERA!

Vamos todos desenhar
lindas flores nas janelas.
Vamos alegres cantar,
pois chegou a primavera.

A primavera chegou
com flores e borboletas.
Na praça um músico cego
está tocando trombeta.

Na televisão, o palhaço
fica fazendo piruetas.
As crianças estão contentes
e  dançam alegremente.

Viva! Viva, a primavera!

Fonte: Bondinho dos livros
https://www.bonde.com.br/blogs/bondinho-dos-livros

Contos e lendas da África (O cachorro e a língua dos homens)


(por Robert Hamill Nassau)


Personagens
Mbwa (cachorro) e sua mãe
Um homem chamado Njambo e sua filha Eyâle


PREFÁCIO
Este conto se passa em tempos pré-históricos, quando todos os animais, inclusive os de organismos inferiores, podiam se unir a homens, até mesmo em casamento. Mbwa era o animal, tanto em forma como em linguagem, hoje chamado de cachorro, mas que também tinha a capacidade de comunicar-se como um humano. Esta é a história de como esse ancestral dos cães deixou a nação dos animais. Embora cachorros vivam junto aos seres humanos hoje em dia, não têm mais a capacidade que seus ancestrais possuíam, de falar como gente. Só o que conseguem dizer é “Au-au!”.

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O cachorro Mbwa e sua mãe eram os únicos habitantes de sua aldeia.

Mbwa era capaz de falar tanto com animais como com humanos.

— Você já é adulto e forte — disse um dia sua mãe. — Está na hora de se casar. Vá e peça Eyâle, filha de Njambo, em casamento.

— Irei amanhã — respondeu o cachorro.

O dia escureceu e foram dormir. Logo a madrugada veio e um novo dia começava a despontar.

— Chegou a hora de eu partir. — disse Mbwa.

Amanhecia quando ele começou sua jornada. Percorreu cerca de treze quilômetros e chegou ao seu destino antes do meio-dia. Foi à casa de Njambo, pai de Eyâle. Lá, foi cumprimentado pelo anfitrião e sua esposa.

— Olá, Mbwa!

— Olá!

— Qual a razão de sua visita, meu amigo? — perguntou Njambo.

— Vim para me casar com sua filha Eyâle — respondeu o cão em linguagem humana.

Njambo consentiu e a mãe da garota também ficou satisfeita com a união. Chamaram a pretendida para saber o que ela pensava da proposta.

— Aceito! De todo o meu coração! — disse.

A jovem era bela tanto de rosto como de corpo. E todos estavam de acordo quanto ao casamento.

Ao cair da noite reuniram-se para jantar. Sem saber o motivo, o cachorro não conseguiu comer.

O dia escureceu e foram dormir. Mbwa costumava acordar sempre uma hora antes do amanhecer, mas naquele dia dormiu até mais tarde.

A mãe da noiva disse à sua filha:

— Prepare um pouco de água para que seu noivo lave o rosto quando acordar. Vou à plantação que fica na floresta buscar comida para ele, já que ainda não comeu nada desde que chegou.

E acrescentou:

— Peça aos criados que matem uma galinha para o almoço. E você, triture sementes de cabaça e faça um pudim de sobremesa.

Entregou o prato com as sementes para Eyâle e saiu para a floresta. Njambo a acompanhou, pois também tinha seus afazeres. A jovem sentou-se com as sementes e começou a descascá-las. Jogava os miolos limpos no chão e colocava as cascas em um prato.

Mbwa acordou pouco tempo depois de os donos da casa terem saído. Levantou-se e foi procurar sua noiva. Ficou ao lado dela, observando-a descascar as sementes. Em silêncio, notou que ela descartava o miolo, que era a parte boa, e guardava as cascas em um prato.

— Não é assim que se faz, mulher! — disse em linguagem humana. — Por que joga a parte boa no chão e guarda essas cascas inúteis?

Enquanto o cachorro falava, Eyâle subitamente caiu no chão. Estava morta. Mbwa curvou-se para tentar levantá-la, mas foi inútil. Já não havia o que fazer.

Pouco depois o pai e mãe da jovem retornaram de suas tarefas, encontraram a filha morta e gritaram:

— Mbwa! O que aconteceu?

— Não sei dizer. — respondeu em linguagem canina.

— Diga-nos o que houve! — insistiram os pais.

Mbwa então lhes falou na língua dos humanos:

— Você, mulher, foi à floresta enquanto eu dormia. E você, homem, também saiu, acompanhando sua esposa, antes que eu acordasse. Quando me levantei, encontrei minha noiva descascando sementes. Ela jogava os miolos limpos ao chão e guardava as cascas. Eu disse a ela que o que comemos são os grãos que ela estava descartando, e não as cascas. Enquanto ele deva essa explicação, os dois também caíram ao chão, mortos sem motivo aparente.

Quando as pessoas da cidade souberam do caso, disseram:

— O cachorro tem uma poção maligna para matar pessoas. Deve ser capturado e morto!

Mbwa rapidamente fugiu pela floresta e voltou para a aldeia onde vivia com sua mãe. Seu corpo estava cheio de cortes e arranhões causados pelos arbustos espinhosos que atravessara em sua fuga.

— Mbwa! O que aconteceu? Por que está assim tão esbaforido? E todo machucado! — exclamou sua mãe ao vê-lo.

— Não! Não vou contar! Não direi mais nada!

— Por favor, meu filho! Conte-me! — implorou sua mãe.

Finalmente Mbwa concordou e, usando a linguagem dos humanos, começou a explicar:

— Contarei o que houve, minha mãe. Njambo e sua esposa me aceitaram como genro, e Eyâle também gostou muito de mim. Enquanto eu dormia, o casal foi à floresta. Quando acordei, encontrei minha noiva descascando sementes de cabaça, só que ela jogava os grãos no chão e guardava as cascas. Então disse a ela que estava desperdiçando a parte boa da semente. E ela morreu de repente.

Enquanto falava com sua mãe, ela também caiu morta ao chão. As notícias de seu falecimento chegaram até a cidade do tio de Mbwa, e muitas pessoas vieram para o funeral.

— Mbwa! O que aconteceu? — perguntou seu tio.

O cachorro não respondeu. Apenas disse:

— Não!

Imploraram por uma explicação.

— Por favor, conte-nos o que houve.

— Não! Não falarei mais nada. — respondeu Mbwa.

Como insistiram muito, Mbwa concordou em falar com dois deles. Pediu que o restante ficasse onde estavam e observassem a conversa de longe. Então falou com os dois usando o mesmo idioma que usara com sua mãe. E da mesma forma, ambos caíram fulminados.

— Não! — exclamou Mbwa. — As pessoas morrem quando eu falo em linguagem humana!

— Sim, Mbwa. — concordaram os outros. — O idioma dos homens mata as pessoas. Não fale mais.

E Mbwa partiu para viver junto dos homens.

Fonte: Elphinstone Dayrell, George W. Bateman e Robert Hamill Nassau. Contos Folclóricos Africanos vol. 2. (trad. Gabriel Naldi). Edição Bilingue. SESC. Distribuição gratuita.

Artur* de Azevedo (O sócio)

(contos maranhenses)

Frequentava o Liceu o Arnaldo, e havia feito
Exame de francês, inglês e geografia,
Quando seu pai um dia,
Pilhando-o bem a jeito,
Chamou-o ao gabinete e disse-lhe: — Meu filho,
Tu vais agora entrar no verdadeiro trilho!
Tu já sabes inglês e francês; o Tibério,
Teu mestre, um homem sério,
Me disse ultimamente
Que podes dar lições de geografia à gente —
E, depois de tomar o velho uma pitada,
— Não quero, prosseguiu, que tu saibas mais nada,
Pois sabes muito mais do que teu pai, e, como
Fortuna ele não tem para te dar mesada,
Deus, que me ouvindo está, por testemunha tomo!
Não hás de ser doutor! E para que o serias?
Em breve, filho meu, tu te arrependerias.
Pois não vês por aí tantos, tantos doutores,
Que não tomam caminho,
Sofrem mil dissabores,
Sem ter o que fazer do inútil pergaminho? —
Nisto o velho assoou-se ao lenço de Alcobaça,
E a trompa fez tremer os vidros na vidraça.
— Tu vais para o comércio. Arranjei-te um emprego
Em casa de Saraiva, Almeida & Companhia.
Acredita, rapaz, que o teu e o meu sossego
Farás, se me disseres
Que não te contraria
Esta resolução. Tua mãe, que é bem boa,
Mas os defeitos tem de todas as mulheres,
Quer que sejas praí um bacharel à toa;
Pois olha que teu pai tem prática do mundo
E a máquina social conhece bem a fundo;
Para o comércio vai. Se tiveres juízo,
Em dez anos... nem tanto até será preciso...
Serás sócio da casa. A casa é muito forte,
Meu filho, e todos lá têm tido muita sorte.

O Arnaldo quis em vão protestar. O bom velho
Fez-o chegar-se ao relho,
E a ambiciosa mãe capacitou-se, em suma,
Que, na casa Saraiva, Almeida & Companhia,
Teria mais futuro o seu rapaz, que numa
Réles academia.

Pobre Arnaldo! O lugar que lhe foi reservado
Não era de caixeiro,
Mas de simples criado:
Às cinco da manhã despertava, e ligeiro
Descia aos armazéns, pegava na vassoura,
E tinha que varrer o chão. Não me desdoura
O trabalhar (o moço aos seus botões dizia).
Mas não valia a pena
Ter aprendido inglês, francês e geografia,
Se a uma eterna vassoura a sorte me condena!

O pobre rapazinho andava o dia inteiro
Recados a fazer, levípede, lampeiro,
E, à noite, fatigado,
Atirava-se à rede e um sono só dormia
Até pela manhã, quando a vassoura esguia
O esperava num canto. Ele tinha licença
De ir à casa dos pais de quinze em quinze dias!...
Sentia pela mãe uma saudade intensa!

Vida estúpida e má! Vida sem alegrias!...
Saraiva, o principal sócio daquela firma,
Tipo honrado, conforme inda hoje a praça afirma,
Andava pela Europa a viajar, e o sócio,
O Almeida, estava então à testa do negócio.
Era o Almeida casado, e tinha uma sujeita...
No intuito de evitar toda e qualquer suspeita,
Não quis o maganão que ela morasse perto
Da casa de negócio, onde estava a família:
Em S. Pantaleão, bairro sempre deserto,
Pôs-lhe casa e mobília.

O Arnaldo lamentava o seu mesquinho fado,
E andava sempre triste e sempre amargurado,
Quando o senhor Almeida, o patrão, de uma feita,
Se lembrou de o mandar à casa da sujeita,
Levar uma fazenda
De que ela lhe fizera há dias encomenda.

Lá foi o Arnaldo, e, ao dar co’a moça, boquiaberto
Ficou por não ter visto ainda tão de perto
Senhora tão formosa,
Nem tão apetitosa;
E, a julgar pelo olhar que lhe lançou a bela,
Ela dele gostou tanto como ele dela.

Era bem raro o dia em que o negociante
Não tinha que mandar o Arnaldo à sua amante
Qualquer coisa levar. Por isso, de repente,
O triste varredor mostrara-se contente,
Sagaz, ativo, esperto,
E ao pai e à mãe dizia
Que na casa Saraiva, Almeida & Companhia
Achara um céu aberto.
Pudera! O capadócio
Em dois meses passou de caixeirinho a sócio.

Fonte: Artur de Azevedo. Contos em verso (contos maranhenses). Publicado originalmente em 1909. Disponível em Domínio Público . Convertido para o português atual por J. Feldman
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* Obs. do Blog: Têm livros que Artur tem h e outros não, quando este livro me chegou às mãos eu tinha criado a imagem como escrito em outro (com h).

Clarisse da Costa [Trabalho doméstico (Vida Roubada)]

Você que é a minha mãe de verdade. Claro, a empregada que dá banho, que dá o de comer, que ensina as tarefas de casa, que brinca e ainda por cima cuida da casa inteira. Não o bastante, não podia usar o banheiro da casa, tinha o seu próprio banheiro fora de casa, muitas vezes o banheiro ficava longe.

Enquanto a empregada fazia o trabalho pesado, a patroa fazia o papel de boa esposa e patroa para toda a sociedade. À tarde ia ao chá das cinco para ficar falando da vida dos outros com as madames do bairro.

O filme "Histórias Cruzadas" retrata bem essa realidade, uma realidade cruel que persistiu por séculos. Algumas dessas mulheres, na sua maioria mulheres negras, nos dias atuais, ainda permanecem naquela casa se sentindo parte daquela família. Não percebendo que são apenas um objeto para aquela família. Ou melhor dizendo, alguém a serviço da família, sem horário para viver a sua própria vida.

Muitas viveram ao longo de suas vidas cuidando dos filhos dos outros sem poder muitas vezes cuidar de seus filhos. Mas esses absurdos não aconteciam somente com as mulheres e sim com todos os empregados da casa.

O meu pai contou que o seu patrão sabia o número exato de bananas que estavam na fruteira de prata, se faltasse uma banana ele ia cobrar de seus empregados. Os pratos dos empregados não eram os mesmos que os donos da casa usavam para comer, tal como o banheiro. O acesso à casa era restrito.

E nos dias atuais sempre vamos encontrar quem nos diga o contrário, querendo ocultar o preconceito existente. Porque não querem assumir a crueldade feita, roubando a vida de pessoas negras.

Fonte: Enviado por Samuel da Costa

domingo, 15 de outubro de 2023

Carolina Ramos (Trovando) “05”

 

Mensagem na garrafa – 10 –


Fabiane Braga Lima
Rio Claro/SP

TUDO É AMOR...

Seja uma boa ouvinte, aprenda a escutar falácias, de terceiros e lições de autoestima (entre aspas). Às vezes, se esconder na insensatez, para entender a realidade é algo que nos gera confiança, nos nossos dia-a-dia. Lógico, podemos cair em golpes e armadilhas cotidianas, diversas e diversas vezes, ao longo de perdidas horas ao longo da vida. Mas pense! A insensatez nos autointitula, como seres humanos, cada vez mais, digno de viver a verdade e a realidade.

Entrar em outros mundos, é não ter medo de tempestades, nem carregar nas costas navios em mares bravios. Entrar em outros mundos é poder nos reinventar, diante da nossa própria embriaguez, servindo-a numa taça. Todos os dias nós somos assaltados por um alguém com uma faca em punho, enquanto em intervalos, bebemos os nossos cafés com as nossas paranoias.

A arte existe para quem produz, cultivando-a, assim, o amor! A mentira, sempre é como uma miséria poética, inventada e roubada, pois somos imperfeitos. Tudo é arte, ciclos e fases, seja um bom ouvinte, ouça: Tudo é amor! Momentos bons sempre serão eternizados. Ame-se ao extremo, devemos ter esperança nos dias de hoje. Precisamos.
Fonte: enviado por Samuel da Costa

Leandro Bertoldo Silva (Vamos acordar os sonhos?)

De fato, acordei sobressaltado com aquela pergunta estranha e me sentei na cama. Ufa! Estava dormindo… Será? Ainda era madrugada e, seja como for, não mais preguei os olhos, pois aquela pergunta também não mais saía da minha cabeça. Corri para o computador e comecei a escrever… Foi assim que Oswaldo e o palhacinho de chapéu de guizos, que você está prestes a conhecer, ganharam vida e foram parar nas páginas de uma conceituada revista de educação.

O interessante é que, por algum tempo, Oswaldo, incentivado pelo brilhante amiguinho, pegou um livro que ganhara de presente, sentou no tapete de seu quarto e, pela primeira vez, abriu e começou a ler as histórias… Mas que histórias eram essas? Eu não sabia. Curioso como sou, perguntava a Oswaldo e ele falava que ainda não era hora de saber. Coisa estranha… E o tempo passou. Entrei para uma escola e fui dar aulas de Português, conheci muitas pessoas, fiz muitas outras coisas e criei o meu próprio trabalho que é hoje a Árvore das Letras, escrevi e publiquei os meus primeiros livros, entrei para a Academia de Letras de Teófilo Otoni, em Minas Gerais, e fiz amizade com muitos escritores e escritoras, criei a minha própria produção sob demanda e o selo Alforria Literária através de prensa de madeira, a “Paula Brito”, onde os meus livros são feitos.

Até que um belo dia estava cortando alguns papeis para as capas de um livro, quando Oswaldo e seu amigo entraram sala adentro dizendo:

“Quer mesmo saber quais eram as histórias que eu lia? Elas estão aqui!”

Ao me refazer do baita susto que levei, olhei ao redor e só via os meus livros, os papeis, a “Paula Brito”, a Árvore das Letras. Aí perguntei:

“Aqui onde?”

E a resposta veio:

“Assim como os escritores nascem de outros escritores, as histórias nascem de outras histórias! E mais… Nascem das nossas experiências e dos nossos sonhos. Você já devia saber… Tudo o que tem a fazer é dar forma aos seus pensamentos, emendar um no outro, colocar os ‘pingos nos is’. Faça isso e irá se surpreender!”

Bem, foi assim que o livro surgiu. Das minhas lembranças de infância, das minhas leituras, fui juntando palavras, fatos, ideias, nomes daqui e dali como numa gostosa e divertida brincadeira. Dessa brincadeira juntei peças, troquei personagens de lugar, tornei a trocar, misturei um com o outro e consegui algo extraordinário: não apenas uma, mas várias histórias!

Ao término desse trabalho, Oswaldo e o palhacinho viraram para mim e disseram:

“Agora está pronto!”

Aí foi a minha vez de falar:

“Não está! Ainda falta uma coisa…”

E assim nasceu o epílogo do livro ao contar o que aconteceu após Oswaldo ter lido as histórias que seguiam…

Agora é com você! Leia-as e abra-se para o mundo dos sonhos e da imaginação, pois, tenha certeza, todas as possibilidades vivem guardadas lá…

Cecy Barbosa Campos (Passarinhada)

Por volta das quatro horas da manhã, um pássaro amenizou a minha insônia. O seu alegre chilrear transformou a minha vigília numa espera prazerosa. Queria ouvi-lo outra vez. Passados alguns minutos, chegou um seu companheiro, depois outro, talvez dezenas de pássaros, que se juntaram em coro numa sinfonia matinal.

Lembrei-me do poema de Emily Dickinson que anuncia a chegada da manhã pelo cantar dos passarinhos, que bem cedo se unem para saudar o nascer do sol.

Achava bela, porém, exagerada a descrição poética em que os pássaros começavam tão cedo a sua celebração diária. Todavia, é fato. Ali estão eles, na pracinha, antes do alvorecer, cumprimentando efusivamente, a estrela maior. E eu, do meu quarto, sou presenteada com aquela melodia que recebo como sendo para mim.

Percebo então que, apesar de todas as desgraças divulgadas pelos jornais, de todas as falcatruas noticiadas, diariamente, pelos meios de comunicação, de toda a maldade e violência que, dificilmente, acreditamos geradas pelo ser humano, não podemos nos sentir como vítimas desamparadas em um mundo-cão.

Por certo, há esperanças e elas permanecerão enquanto conseguirmos manter os ouvidos abertos aos sons do bem e formos capazes de absorver as belezas da natureza que nos envolve.

Fonte: Cecy Barbosa Campos. Recortes de Vida. Varginha/MG: Ed. Alba, 2009. Enviado pela autora.

Luiz Damo (Trovas do Sul) XLIX


Às vezes, nos deparamos
com barreiras nos caminhos,
porque aquilo que esperamos
são flores e nunca espinhos.
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A vida, na finitude,
o seu fim é Deus quem sabe,
mas o homem, querendo mude,
antes que o tempo se acabe.
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Cessa à tarde, a luz e invade,
sobre a relva, um denso véu,
encobrindo toda a herdade,
com sombras vindas do céu.
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Deus deixou sua mensagem,
que os povos não vivam sós,
fez o homem à sua imagem
para ser seu porta-voz.
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Distinga o joio do trigo,
deixe a justiça ser feita,
jamais impute um castigo
antes que ocorra a colheita.
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Enquanto avanças e fores
plantando com persistência,
porás no lugar das flores
os frutos da experiência.
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Equivoca-se ao julgar
quem seguir as aparências,
pode a evidência enganar
e instar novas diligências.
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Escuto, em tom de respeito,
preito que à paz corrobora,
porém, se eu não for aceito,
peço vênia e vou-me embora.
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Impedir que o tempo passe
não passa de uma utopia,
mesmo havendo quem tentasse
num crasso engodo, estaria.
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Não mude a topografia
que à natureza se encrava,
nem por luxo ou covardia
explore-a tornando-a escrava.
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Não tem igual sofrimento
que estar sem a liberdade,
a prisão dura um momento
e a dor, toda a eternidade.
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Nenhuma pedra atravanque
teus passos, na caminhada
e nenhum espinho estanque
a esperança da chegada.
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Ninguém tem maior amor
do quem dá a vida aos irmãos,
seja na alegria ou dor
bem sabe estender as mãos.
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O amargo do chimarrão
faz parte de uma cultura,
que o Gaúcho, à tradição,
toma-o com garbo e doçura.
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O ano passa e pede espaço
para entrar seu sucessor
num adeus, o mesmo abraço
dado pelo antecessor.
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O embate, quando se acirra,
nos campos do antagonismo,
torna o combate uma pira
que arde no fundo do abismo.
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O falso brilho conspira
contra as luzes da verdade,
pois, na verdade, a mentira,
é sombra da falsidade.
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Passam as horas dos dias
e os dias do mês, também,
muitas, cheias de alegrias,
outras, vazias no além.
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Quem buscar na natureza
a flor que o tempo levou,
sente, na brisa, a leveza,
do aroma que ela deixou.
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Quem não decifra o lugar
que represente a chegada,
se longe, ou for devagar,
pode acabar pela estrada.
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Quem não tem pressa a chegar
no destino ou fim da estrada,
não cansa, mas devagar,
há de tardar a chegada.
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Se a fonte d'água estiver
longe do alcance da mão
e a sede, tréguas não der,
busque outra na imediação.
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Se a semente não morrer
num solo bem preparado,
não tem como florescer,
nem ter o fruto esperado,
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Se a vida não for aquela
que sonhei nunca ter fim,
para torná-la mais bela,
depende apenas de mim.
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Se o fim do poço alcançares
e entrares na estreita fenda,
menor chance tens de içares
ao topo, em árdua contenda.
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Se, por cepo entendo um toco,
de um velho tronco tombado,
quiçá, esteja tendo o troco,
de um comportamento errado.
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Fonte: Luiz Damo. As faces da trova. Caxias do Sul/RS: Ed. do Autor, 2021. Enviado pelo autor.

Lima Barreto (Com o "binóculo")

Ontem, domingo, o calor e a mania ambulatória não me permitiram ficar em casa. Saí e vim aos lugares em que um "homem das multidões" pode andar aos domingos. Julgava que essa história de piqueniques não fosse mais binocular; o meu engano, porém, ficou demonstrado.

No Largo da Carioca havia dois ou três bondes especiais e damas e cavalheiros, das mais chiques rodas, esvoaçavam pela Galeria Cruzeiro, à espera da hora. Elas, as damas, vinham todas vestidas com as mais caras confecções ali do Ferreira, do Palais, ou do nobre Ramalho Ortigão, do Pare, e ensaiavam sorrisos como se fossem para Versalhes nos bons tempos da realeza francesa.

Eu pensei que uma pasmosa riqueza tinha abatido sobre o Ameno Resedá ou sobre a "Corbeille des Fleurs" do nosso camarada Lourenço Cunha; mas estudei melhor as fisionomias e recebi a confirmação de que se tratava de damas binoculares, que iam a uma festa hípica, ou quer que seja, no Jardim Botânico.

Não é de estranhar que as pessoas binoculares vão a festas e piqueniques, mas assim, charanga à porta, a puxar o cortejo com um dobrado saltitante, julgo eu que não é da mais refinada elegância.

O Binóculo deve olhar para esse fato; deve procurar por um pouco mais de proporção, de discrição nessas manifestações festivas da nossa grande roda aos cavalos de corridas; e ele tem tanto trabalho para o refinamento da nossa sociedade que não pode esquecer esse ponto.

Imagino que em Paris ou Londres os dez mil de cima não dão aos "rotos" esse espetáculo de tão flagrante mau gosto.

Não posso compreender como a elegante Mme. Bulhões Sylvá, toda lida e saída nas revistas, jornais e livros do bom tom, que tem o “Don’t” de cor, como o Senhor Aurelino o Código Penal, saia de manhã de casa, meta-se num bonde em companhia de pessoas mais ou menos desconhecidas e vá pelas ruas do Rio de Janeiro afora, ao som de uma charanga que repinica uma polca chorosa de muito rancho carnavalesco.

Fonte: Originalmente no Correio da Noite, 11 de janeiro de 1915. Disponível em Domínio Público.

Nilto Maciel (A noite das garrafadas)

A hora talvez fosse tarde. A janta, nem lembrávamos mais dela. Baião-de-dois, ovos, com tempero de coentro e cebola. Ou cuscuz com leite. Depois rezamos o terço, ave-maria cheia de graça, padre-nosso que estais nos céus, kyrie, eleison, atos de fé, esperança, caridade e contrição. Ajoelhados, cansados, eu pensei o tempo todo nas meninas da nossa rua. Só queríamos que aquilo terminasse logo e pudéssemos jogar damas, dominó, baralho.

O rádio velho chiava no canto da parede, falava do mundo, cantava amores. Nosso pai ainda não havia voltado do trabalho, nossa mãe enchia os potes, lavava os pratos, espantava os ratos. E nós três pintávamos o sete na sala.

Súbito uma garrafa se espatifou no meio da rua, e gritavam, discutiam, sapateavam dez ou mais rapazes na calçada defronte. Da janela assistíamos a tudo, e ríamos dos que cambaleavam e levantavam-se sujos e amarrotados.

Uma voz fanhosa chorava dentro da caixa do rádio, bem mais triste do que aquelas noites. As mariposas voluteavam ao redor da lâmpada pendurada no meio da sala.

Os cacos de vidro brilhavam entre as pedras do calçamento, verdes, pontiagudos, inúmeros. E os rapazes pulavam, corriam, esmurravam-se, chutavam-se, feridos, alguns cobertos de sangue, outros a chorar. Das janelas, mulheres e homens gritavam. E já outras mulheres gordas e velhas misturavam-se aos brigões, aos gritos e lamentos.

Os soldados chegaram muito tempo depois, armados de cassetetes, e mais garrafas se quebraram, mais socos e pontapés se deram, mais gritos desesperados, uns caídos, outros fugidos. Meus dois olhos já não viam tudo, ora no braço erguido de um, ora no grito infindável de outro, aqui, ali, acolá.

Alguns pequeninos pedaços de vidro às vezes salpicavam nossos rostos, saltavam para o interior da sala, retiniam no parapeito da janela, confundiam-se com as mariposas.

Muito tempo durou a noite. Nosso pai, quando chegou, passou-nos um carão medonho. Aquilo não eram horas de menino estar acordado.

Ainda mais olhando briga de vagabundo.

Caímos nas redes e passei a noite sonhando com brigas e garrafadas.

Fonte: Nilto Maciel. Babel. Brasília/DF: Editora Códice, 1997. Enviado pelo autor.