segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

Artur de Azevedo (Os dentes do Braz)

O Braz era bonito, mas — coitado! —
Tinha maus dentes; quando a boca abria,
Todo o encanto perdia:
Por isso era calado,
E não ria: sorria.

Mas que namorador!... tinha a mania
De acompanhar senhoras; quando via
Passar alguma sem marido ao lado,
Sendo bela, ficava entusiasmado,
E os passos lhe seguia.

Mais de uma dama, tendo reparado
Que tão belo rapaz a perseguia,
Não se mostrava esquiva ao namorado;
Mas quando descobria
Naquela boca um singular teclado
Em que somente — pobre desdentado! —
Sustenidos havia,
Toda a ilusão se lhe desvanecia.

Muita gente dizia:
— É pena que um rapaz tão adamado
Na boca tenha aquela cacaria,
Quando há dentes postiços no mercado,
E um dentista afamado
Em cada rua chama a freguesia!

O Braz bem percebia
Que aquela boca era o seu negro fado,
Porém não se atrevia
A entrega-la ao dentista; a covardia
Era tanta, era tal, que o desgraçado
Só de pensar no boticão, tremia!

No entanto, o Braz, um dia
Apareceu metamorfoseado,
Mostrando, quando os lábios entreabria,
Dentes que um deus do Olimpo invejaria!

Foi um caso engraçado
Que dos contos a Musa desafia,
E em versos maus ei-lo aqui vai contado:

I

Dissimulando os dentes,
Estava o Braz silencioso à porta
De uma alfaiataria onde se corta,
Mais do que o fato, a pele dos ausentes,
Quando passou, ligeira e saltitante,

Uma dama elegante
E desacompanhada.
— Oh, que linda mulher! que anjo! que fada! —
Murmura o Braz consigo, — com que graça
O vestido arregaça
E pega no sombrinha!
Vou atrás dela, porque está sozinha! —

II

Ocioso é dizer-vos
Que a cena representa
A rua do Ouvidor (fere-me os nervos
Dar-lhe outro nome: nenhum mais lhe assenta.)
A dama vai ao largo da Carioca,
Seguida pelo Braz; num armarinho
Entra, e ele, de pé, fica-lhe à coca.

Ela sai afinal; toma um bondinho
Da praça Onze. Ele o bondinho toma,
Disposto a acompanha-la ao fim do mundo.

Embora fique sem jantar nem ceia,
Pois ou bem se conquiste, ou bem se coma!
Mas — oh, felicidade! — ela dá fundo
Na praça Tiradentes.
Do bondinho se apeia
E entra na loja de um joalheiro, enquanto
O Braz fica no canto,
Suspiros a soltar intermitentes.

Sai da loja a mulher, sempre sozinha,
E, desta vez, ligeira se encaminha
Para o largo de São Francisco. Para
Diante de uma vitrine, e então repara
Que é seguida de perto
Pelo Braz, e sorri assim de certo
Modo que o encoraja,
Pois aquele sorriso,
Vago, estranho, indeciso,
Não é de quem reaja.

III

Ele aproxima-se, e ela, resoluta,
Como heroína habituada à luta,
Deste modo lhe fala:
— Que deseja de mim o cavalheiro? —
Ele, a sorrir, pergunta-lhe, gaiteiro:
— Dá-me licença para acompanha-la? —
Ela responde muito amavelmente:
— Pois não! Como quiser! — E incontinente
A caminho se põe. O Braz, ditoso,
Não cabendo na pele de contente,
Vai-lhe seguindo o passo vagaroso.

A rua do Ouvidor atravessaram,
E uma esquina dobraram.

IV

À dama num magnifico sobrado
Entra, e após ela o Braz também, coitado!
Ela, do alto da escada, grita: — Suba!
E ele, com mais denodo
Que um espanhol em Cuba,
Sobe, mas fica todo
Atrapalhado quando vê que um homem
No patamar o espera.
Um lobo, um tigre, ou qualquer outra fera
Dessas que nos atacam e nos comem,
Tamanho susto não lhe causaria;
Mas o dono da casa lhe sorria,
Dizendo: — Queira entrar... tenha a bondade...
O cavalheiro tem necessidade,
Disse minha mulher, dos meus serviços,
Essa boca realmente
Pede uns dentes postiços...
Entre, e lhe afianço: ficará contente!

V
O Braz entrou, e, passeando a vista
Por tudo que o cercava,
Notou então que estava
Em casa de um dentista;

Mas teve que fazer o pobre diabo
Das tripas coração. Sentou-se. Ao cabo
De uma hora de tormentos
E dores excessivas,
Tinham deixado as túmidas gengivas
Os últimos fragmentos
Dos caninos de outrora.
Finda a sessão, disse o dentista: — Agora
Vou fazer-lhe uma rica dentadura. —

VI

E assim foi, realmente:
Pouco tempo depois desta aventura,
Impava o Braz, — não lhe faltava um dente.

Fonte: Artur de Azevedo. Contos em verso. Publicado originalmente em 1909. Disponível em Domínio Público. 

Chico Anysio (Cotidiano)

Quem tem notícia de Helena
Por favor queira informar.
Quem souber desta morena
Venha, correndo, avisar

Começa a nascer um samba no pinho de Leonam. Mais um a ser guardado com os demais trinta e tantos, sem que cantor algum se interesse por gravar. Esse, como os demais, é um samba inventado. Mais um pouco e pode reunir a família a quem mostrará a canção e ouvirá as opiniões de sempre:

— Tá lindo, Leonam. Dá pro Nelson Gonçalves.

— Um lixo. Só gosto de música do Roberto.

— Mentira, pai, tá bonito.

— Tem uma coisinha ou outra que dá pé.

Os filhos, jovens demais para saber da vida, não entendem muito a filosofia dos sambas, mas Lídia sabe que ele só faz coisa boa. Havia de chegar o dia em que seria reconhecido. Diz que música dá dinheiro. Não vê que tudo que é compositor tem carro?

Resolve, como das outras vezes, deixar a segunda parte para amanhã. Deita o violão no alto da cristaleira. Ajuda a mulher a recolher os pratos e as migalhas do jantar. O cachorro safado fazendo de novo no tapete.

— Rinnk... ronnk...

Irrita-se com o rangido eterno da porta da cozinha que não há óleo que dê jeito. Senta-se na poltrona de estofado gasto para ler o resto do jornal, começado no trem.

Não tem ainda 40 anos e já começa a pensar na morte. Não por ele, que não é egoísta, mas pela família que, com ele morto, do que vai viver? Como e com que se alimentariam aquelas quatro bocas? Cinco, porque o cachorro safado, porção nojento, também come. E mais do que os meninos, até.

O serviço que faz — cobrador da Telefônica — não garante nada de ostentoso para o futuro, mas, com ele vivo, sempre há o dinheiro dos bicos, vendendo refresco na porta do Maracanã ou espetinho à frente do Mourisco, nos ensaios da Portela. Morto, cadê?

— Quer um cafezinho? Passei agora — oferece a mulher, 35 anos na carteira, 48 no rosto.

Ele aceita.

— Veja se está bom de açúcar.

— Está — diz, sem provar, pela confiança que tem na mão da mulher que nunca errou na conta do doce, apesar de sempre perguntar a mesma coisa.

A mesma coisa.

Isso, é a vida dele. Cotidiano que escangalha a vida.

E a porta da cozinha rangendo rinnk. .. rooonnk; o cachorro encharcando o tapete 2 por 1, comprado na liquidação da Sears, os meninos brigando por um lugar melhor no sofá, a cabeça da vizinha, na janela, pedindo uma xícara de açúcar, a porta da cozinha rangendo... rinnk... ronnk...

— Chega pra lá, Helinho. Eu estava aqui antes.

— Quem vai ao vento, perde o assento.

— Mãe, olha o Helinho.

— Quer mais um cafezinho, Leonam?

— Para de me empurrar, Luciana.

— Rinnk.. . roonnk...

— Dona Lídia, me empresta uma xícara de açúcar?

— Pai, dá um jeito no Helinho.

— Veja se está bom de açúcar.

— Rinnk... ronnk...

Parece o barulho monótono das rodas do trem. Uniforme, fastidioso, insípido. E se é ruim com ele vivo, imagina depois de morto.

Pensa na morte como um fato que se dará amanhã. De olhos fechados, vê-se morto, imaginando o caos em que a casa mergulhará. A família, no mínimo, terá que mudar para um barraco. E o violão? Queria ser enterrado com ele.

Faz mi menor sem pestana e puxa, do fundo do peito, um verso novo.

Quero ser enterrado
Com o meu violão,
Companheiro adorado
Vai comigo no caixão.

— Que música mais besta, Leonam. Música que fala da morte... Bate na madeira.

Ele dá três pancadas nas costas do pinho, obedecendo por obedecer. E não é isso que faz todas as horas do dia? Os filhos, sim, são autônomos.

— Vá fazer os deveres de casa, Luciana.

— Depois, mãe.

— Helinho, já fez os deveres?

— Mais tarde.

— Leoninho...

– Psiu. Tô vendo a novela.

— Rinnnk... ronnk...

Novela acabada, cada um para o seu canto, boa noite, boa noite (se não é dia de amar) e até amanhã, quando tudo vai acontecer do mesmo modo: imutável e leso.

Luz apagada, os meninos na cama, Dona Lídia cobre-se com o lençol Santista Ouro, ainda do enxoval. Deixa uma perna descoberta, de propósito.

— Boa noite, Leonam.

— Boa noite.

E dorme antes dele, como sempre.

Para ajudar o sono a chegar, Leonam fecha os olhos e fica imaginando a porta da cozinha abrindo e fechando: rinnk... ronnnk... rinnk... ronnnk... até amanhã.

Até sempre.

Fonte: Chico Anysio. O Enterro do Anão. Publicado em 1973.

domingo, 17 de dezembro de 2023

A. A. de Assis (Jardim de Trovas) 37

 



Mensagem na Garrafa – 57 -


Vinicius de Moraes
(Marcus Vinicius da Cruz de Melo Moraes)
Rio de Janeiro/RJ, 1913 - 1980

A VOCÊ, COM AMOR

O amor é o murmúrio da terra
quando as estrelas se apagam
e os ventos da aurora vagam
no nascimento do dia...
O ridente abandono,
a rútila alegria
dos lábios, da fonte
e da onda que arremete
do mar...

O amor é a memória
que o tempo não mata,
a canção bem-amada
feliz e absurda...

E a música inaudível...

O silêncio que treme
e parece ocupar
o coração que freme
quando a melodia
do canto de um pássaro
parece ficar...

O amor é Deus em plenitude
a infinita medida
das dádivas que vêm
com o sol e com a chuva
seja na montanha
seja na planura
a chuva que corre
e o tesouro armazenado
no fim do arco-íris.

Eduardo Martínez (O velho, o Natal e o pinhão)

O Natal se aproximava, mais um entre tantos que aquele velho vivenciara ao longo de décadas e décadas, como se todos, ao menos até agora, fossem iguais ou, no mínimo, quase a repetição de um hábito. A mulher mandou que ele fosse comprar pinhão, pois era uma tradição que ela adorava manter na família, cada vez mais dispersa. 

Já na calçada, o velho caminhou até o Mercado Público, onde sabia que o preço era mais atrativo, especialmente naquela época do ano, onde tudo custava os olhos da cara. Observou a multidão tentando engalfinhar os diversos produtos, como se fosse a última chance de conseguir algo único, apesar das centenas de réplicas logo ali ao lado. Estacou em frente a uma das bancas, onde se assustou com o preço da iguaria das mais gaúchas.

– Dois quilos, por favor.

Enquanto esperava, notou dois moleques sorridentes carregando uma caixa contendo uma árvore de Natal, dessas de montar. Tudo de plástico, nenhum cheiro de pinheiro de verdade. Isso, aliás, o transportou para o seu longínquo tempo de criança. Tanto tempo, que imaginou que se tratava de apenas mais um devaneio, como se aquilo jamais pudesse ter existido. 

Nessa época, era apenas um menino. Talvez dez, onze anos. O importante é que se lembrava de que era apenas um garotinho, não mais que isso. Diante de sua avó, ele prestava atenção nas histórias de outros natais, bem mais antigos que todos os que ele havia vivido. Enquanto escutava a agradável voz daquela velha, o então menino grudava pedaços de algodão naquele pequeno pinheiro, como se fossem flocos de neve. Tudo isso lhe parecia ridículo hoje em dia, mas era uma diversão naquela época tão distante. Um sorriso emoldurou a face enrugada do agora velho, que, logo em seguida, foi despertado por uma voz rouca.

– Aqui está o seu pinhão!

Fonte: Blog do Menino Dudu. 24.11.2022.
https://blogdomeninodudu.blogspot.com/2022/11/o-velho-o-natal-e-o-pinhao.html 

Caldeirão Poético LXXIV


Noemise Machado França Carvalho
São Paulo/SP

CONVERSANDO COM ESTRELAS

Olhava andar no céu pequena estrela aberta,
no escuro azul remando o barco pequenino.
Foi quando, em mim descendo a rósea chama esperta,
a estrela entrelaçou ao meu o seu destino.

E vindo de tão longe, uma ilusão desperta:
Acreditei no amor, brinquedo de menino.
Quis ter a claridade em minha estrada incerta,
ter o meu andor, embora pequenino.

Viveu comigo a estrela, em noite cor-de-rosa,
em madrugada azul ou tarde mais chuvosa.
Comigo, não chorou o céu de onde descia.

Na vida fui feliz!... Chegando um certo dia,
a estrela disse adeus e em pranto me deixou...
Que posso mais fazer, se a vida se acabou?
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Orlando Cavalcanti
Campo Belo/MG, 1912 – 1982, Belo Horizonte/MG

DERROTA

Caminheiro de aspérrimas jornadas,
deixei um dia a minha triste aldeia.
Tostei-me ao sol de todas as estradas,
ajoelhei-me ante o altar da lua cheia.

Às mentiras de luz das madrugadas,
da derrota beijei o pó e a areia.
Mas, nas surpresas das encruzilhadas,
uni a minha dor à dor alheia.

E eis-me, afinal, no píncaro do monte!
E a perscrutar na fímbria do horizonte
os roteiros incertos de meus passos,

só vejo a minha sombra comovida
acompanhando os funerais da vida
com o cadáver dos sonhos em seus braços!
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Paschoal Villaboim Filho
Rio de Janeiro/RJ

TOLERÂNCIA

— Tolerância — cutelo que equilibra
as agressividades dessa gente
que traz uma tensão em cada fibra
sempre a pulsar descompassadamente.

— Quem na possui? — O homem que se libra
da serpente do orgulho, da serpente
que traz em cada anel o ego que vibra
como os prótons e os nêutrons da corrente.

A tolerância é fruto da paciência
e da meditação, da penitência,
regado pelas lágrimas da dor.

Mas para possuí-la, meu amigo,
planta-a em ti mesmo como o grão de trigo
que ao sol germina em florações de amor...
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Raimundo Brasil
???

LUZ DE CANDEEIRO

Buscando o Ocaso, em fúlgido crescente,
o luar... o doce luar, desaparece.
A noite em meio. O Céu, puro e silente,
recamado de estrelas, estremece.

Leio. O meu pensamento se embevece
nessa leitura e nesse luar poente.
Ah! se, das sombras, tua imagem viesse,
na asa de um sonho incontentado e ardente!...

E a noite avança, plácida e tranquila.
Baixo o candeeiro. A luz, de quando em quando,
numa serena vibração, cintila.

E à proporção que vem nascendo o dia,
dentro do vidro a luz vai se apagando,
num frêmito azulado de agonia.
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Salomão Jorge
Petrópolis/RJ, 1902 – 1991, São Paulo/SP

O RELÓGIO

No meu quarto sem luz, sofro sozinho,
vendo-te, sombra pálida de alguém,
de alguém que é o meu consolo o o meu carinho,
única aspiração, único bem!

Estrela da manhã do meu caminho,
ninguém, como eu, te quer, ninguém, ninguém...
Sem ti não beberia o amargo vinho
da vida, rosa ideal que nunca vem!

E de ti como escalda a minha sede!
Tudo parece ter pena de mim,
mesmo o velho relógio da parede.

Relógio! — Ela virá? — Pergunto em vão.
o ponteiro seguindo diz que sim,
e o pêndulo chorando diz que não.

Fonte: Vasco de Castro Lima. O mundo maravilhoso do soneto. 1987.

Contos e Lendas do Mundo (Japão: O Pardal Agradecido)

Em tempos que lá vão, num dia ensolarado do princípio da primavera, uma velha mulher, de sessenta e poucos anos, estava sentada em frente da sua casa e catava piolhos. No pátio, um pardal saltitava. Algumas crianças que brincavam por ali começaram a atirar pedras no pássaro e uma delas, acertando, quebrou-lhe as costas. Enquanto este se contorcia no chão, esforçando-se debalde para erguer voo, um corvo que passava flechou em sua direção.

— Oh! que horror! O corvo vai pegá-lo! — gritou a velha.

E correndo para perto do pardal, ergueu-o. Depois, bafejou-o com seu hálito quente, soprando-o, e deu-lhe de comer. Colocou a avezinha num pequeno tonel, e recolheu-o para dentro de casa, para passar a noite. 

Na manhã seguinte, deu-lhe algum arroz e preparou-lhe um remédio com pó de cobre. Os seus filhos e netos disseram, caçoando:

— Ora, vejam que mulher tão amável! Agora resolveu cuidar dum pardal!

Sem fazer caso, a velha continuou a cuidar ternamente do pardal, por muitos meses, até que, afinal, logrou pô-lo novo, ágil e lampeiro. Conquanto fosse um mero pardal, ele sentia-se muito venturoso e grato àquela que lhe tinha restaurado a saúde. Toda vez que a boa mulher saía de casa, por mais breve que fosse a incumbência, deixava ordens expressas à família:

— Olhem o pardal e não o deixem sem alimento.

Os filhos e netos riam-se dela e mimoseavam-na com gracejos.

— Que engraçado! Por que tanto incômodo por causa dum pardal?

— Podem dizer o que quiserem, mas é uma pobre criaturinha indefesa — argumentava ela.

E graça à sua solicitude, o pardal pôde afinal voar novamente.

— Agora nenhum corvo o pegará — disse a mulher e levou-o ao ar livre para ver se já voava bem. Quando o pôs na palma da mão e estendeu o braço, lá se foi ele, com um ruflar das leves asinhas. 

Depois desse dia, na monotonia e solidão de sua vida, a mulher sentia saudades do pássaro. Dizia, às vezes:

— Que pena ele ter ido embora, ao cabo de tantos meses e dias em que eu o recolhia à noitinha e lhe dava de comer pela manhã!

Como de costume, todos riam dela.

Decorridos cerca de vinte dias, a mulher escutou o chilrear vibrante de um pardal lá fora.

— Ora, é um pardal! Talvez seja o mesmo, que voltou — pensou ela, e saiu para ver.

De fato, era o mesmíssimo pardal.

— Oh! que coisa comovente! Que comovente é que não se tenha esquecido de mim e haja voltado! — disse ela.

O pardal, depois de ter relanceado o olhar para a mulher, deixou cair do bico algo minúsculo com o evidente intuito de deixá-lo, fosse o que fosse, para ela e foi-se embora.

— Que terá deixado cair? — admirou-se a mulher.

Aproximou-se e constatou que o pássaro deixara cair apenas uma semente de abóbora.

— Alguma razão deve ter tido para trazer isto — conjeturou ela, apanhando a semente. 

Seus filhos chasquearam:

— Que beleza! Agora recebe presentes de um pardal e dá-se ares de quem ganhou um grande tesouro!

— Podem dizer o que quiserem, vou plantá-la e ver o que acontece — respondeu a mulher, e fez o que dissera.

Quando chegou o outono, a planta deu farta messe de abóboras. Não eram do tipo usual, e sim muito maiores e em maior cópia. A mulher não cabia em si de contente. Por mais que as colhesse ou delas fizesse presente aos seus vizinhos, sobravam ainda, mais do que poderia utilizar.

Seus filhos e netos, que tinham zombado dela, comiam abóbora todos os dias.

Por fim, depois de ter distribuído abóboras a toda a gente do lugar, tomou a decisão de deixar curando sete ou oito das maiores e mais vistosas para fazer purungas. Escolheu-as e pendurou-as dentro de casa para secar. Depois que se passaram vários meses, inspecionou-os, julgando que por esse tempo, estivessem quase no ponto. Efetivamente, as abóboras tinham bela aparência, mas quando dependurou uma delas, surpreendeu-se ao constatar quão pesada estava.

Cortou-a assim mesmo, mas somente para descobrir que estava recheada com alguma coisa. Quando a despejou para ver o que seria, constatou que a abóbora eslava cheia de arroz branquinho! Admirada de tal prodígio, esvaziou o conteúdo da abóbora numa jarra grande, mas, mal tinha acabado de fazê-lo, eis que a abóbora estava de novo cheia, como quando principiara. Atônita e radiante de alegria, disse: – Isto é muito fora do comum. O pardal deve andar por trás disto.

Passou o arroz para as jarras e guardou-o na despensa. Quando examinou as outras abóboras, verificou que estavam também cheias de arroz. Podia despejar ou usar no arroz que quisesse, sobejava sempre muito mais do que podia aproveitar; assim, tornou-se uma mulher muito rica. Os outros aldeães pasmavam e lhe invejam a boa fortuna.

Então, os filhos da velha da casa vizinha disseram à mãe:

— Outras pessoas, embora não tenham nada diferente da senhora, conseguem ficar ricas, mas a senhora não sabe mexer uma palha.

Em consequência de tais queixas, a velha resolveu visitar a sua vizinha afortunada.

— Então, o que há, afinal de contas? Ouvi conversas sobre um pardal, mas, de fato, nada sei. Por favor, conte-me a história inteira, como aconteceu, desde o princípio.

— Tudo veio de eu plantar a semente de abóbora que um pardal deixou cair — respondeu a primeira mulher, e não quis fornecer mais detalhes.

Mas a segunda continuou a fazer pressão:

— Insisto em saber. Conte-me tudo, por favor.

A interpelada, julgando que não devia ser niquenta (que se ocupa de ninharias), nem guardar segredo  do caso, contou:

— Tomei conta dum pardal que tinha quebrado as costas e tratei-o até ele sarar. Deve ter ficado tão agradecido que me trouxe uma semente de abóbora, que plantei. Foi isso o que aconteceu.

— Por favor, dê-me uma só dessas sementes — pediu a segunda mulher. 

Mas a outra recusou:

— Eu lhe darei um pouco do arroz que estava dentro das abóboras, mas não lhe posso dar as sementes. Essas, digo-lhe francamente, não as posso dar a ninguém.

Tendo falhado em sua tentativa de obter uma semente, a velha começou a procurar com o máximo empenho, na esperança de descobrir também algum pardal de costas quebradas, de que pudesse cuidar, mas não conseguiu achar nenhum nessas condições.

Todas as manhãs, quando ia esquadrinhar o quintal, via por lá alguns pardais saltitando perto da porta dos fundos, debicando quanto grão de arroz houvesse espirrado por ali. Então, pegava em pedras e atirava-as nos pardais com a esperança de acertar algum. Como atirasse muitas pedras sobre numerosas aves, naturalmente acabou por atingir um, ferindo-o de modo que ele não pôde mais voar. Muito satisfeita da vida, acercou-se do passarinho e, depois de certificar-se de que suas costas estavam devidamente quebradas, apanhou-o, deu-lhe de comer e administrou-lhe remédios com imenso cuidado. Depois refletiu:

— Se a mulher da casa do lado obteve tanto em paga de haver tomado conta de um único pardal, quão mais rica eu não poderia ser se tivesse vários! Seria superior a ela e meus filhos haveriam de elogiar-me.

Espalhou um pouco de arroz numa peneira e ficou à espreita. Quando alguns pardais se ajuntaram ali para comer o arroz ela se pôs a jogar pedra atrás de pedra contra eles, até lograr abater três. Estimando que bastava por ora, colocou os três pardais feridos num tonel, pulverizou um pouco de cobre e deu a eles. Depois de vários meses de tratamento, todos se restabeleceram, Muito alegre, levou-os ao pátio e eles se foram, tatalando as asas.

— Como sou esperta! — refletiu a mulher.

Os pardais, no entanto, lhe votavam o ódio mais amargo, pois ainda que tivesse tratado deles, fora ela quem lhes partira as costas.

Uns dez dias mais tarde, os pardais regressaram. Muito contente, a velha tratou logo de ver se traziam algo nos bicos; com efeito, cada um deixou deles cair uma semente de abóbora, e partiu voando.

— Bem o esperava! — disse ela, e apanhando jubilosamente as sementes, plantou-as em três lugares diversos. Os rebentos brotaram com rapidez desusada e logo estavam bem grandes. Mas não deram tantas abóboras: apenas sete ou oito por pé. A mulher, entretanto, contemplava-as com um sorriso de ventura e dizia aos filhos:

— Vocês diziam que nunca prestei para nada, mas vou mostrar-lhes que valho mais que a mulher da casa vizinha.

Eles agora estavam persuadidos de que as coisas seriam como ela afirmava. Por serem as abóboras poucas, a velha, que tencionava extrair delas o máximo possível de arroz, não quis dai nenhuma a ninguém, nem comeu nenhuma ela própria.

Mas os filhos disseram-lhe:

— A mulher que mora ao lado deu algumas abóboras aos vizinhos e ela própria comeu algumas. Mais razão para fazer o mesmo tinha a senhora, que já começou por três sementes. Devia dar algumas de presente, e nós nos incumbiríamos de comer outras tantas.

Atendendo ao conselho, ela escolheu uma boa parte das abóboras e repartiu-as entre os vizinhos e a família. Mas a s abóboras provaram ser horrivelmente amargas, provocando náuseas e tonturas em todo o mundo. Todos que as comeram caíram gravemente doentes, e os indignados vizinhos, congregados e em compacta ordem unida. dirigiram-se à casa da presenteadora a fim de passar lhe solene sarabanda (descompostura).

Que droga nos terá impingido? — perguntavam uns aos outros. — Que grande vergonha! Até aqueles de nós que mal cheiravam uma, vomitaram! E ficamos todos tão adoentados que quase morremos.

Quando, porém, chegaram a casa, encontraram a mulher e os filhos jazendo pelo solo, a vomitarem espasmodicamente. Parecendo-lhes, assim, que já não havia grande proveito em fazer a queixa, os vizinhos se retiraram, cada um para sua casa.

Foi só ao cabo de dois ou três dias que todos se restabeleceram.

Então, a velha conjeturou: "Eu pensava em guardar as abóboras até que todas produzissem arroz, mas fomos muito precipitados em comê-las. Certamente foi por isso que aconteceu o acidente." 

Ajuntou as abóboras que restavam e escondê-las. Passados vários meses, quando calculou que as abóboras estivessem no ponto desejado, dirigiu-se à despensa levando uns vasilhames para recolher o arroz que fosse despejando. Impava de contente e a sua boca de velha desdentada expandia-se em um riso que ia de uma orelha a outra, enquanto vertia numa tigela o conteúdo de uma das abóboras. Mas o que desta saiu, em vez de arroz, foram vespões, abelhas, centopeias, escorpiões, serpentes, e mais criaturas desse jaez que, caindo sobre ela, ferretoaram-na nos olhos, no nariz, e no corpo todo.

Contudo, no momento, a mulher velha não sentiu dor nenhuma. Pensou que fossem apenas grãos de arroz que esborrifavam da tigela e lhe batiam no rosto.

— Esperem um pouco, meus pardaizinhos! Vou dar um bocadinho para todos — disse.

Os inúmeros insetos venenosos que surgiam das sete ou oito abóboras picaram e morderam os seus filhos também, e a própria velha foi picada até morrer. Parecia que os pardais, que a odiavam por ela lhes ter quebrado as costas, haviam persuadido todos os insetos a se ocultarem dentro das abóboras e a os auxiliarem em sua vingança. O pardal da casa ao lado ficara reconhecido à velha que cuidara dele e o restituíra à saúde, quando suas costas estavam quebradas e ele se via em perigo iminente de ser arrebatado por um corvo. 

Não devemos ter inveja dos outros.

Fonte: Contos Japoneses (Uji Shui Monogatari)século XIII

Eduardo Affonso (Implicância)

Cuidado com as suas implicâncias. Lenta e inexoravelmente, elas irão tomar conta de você e se tornar obsessões.

Minha mãe sempre implicou com edifícios sobre pilotis. Criada em casa de chão de terra batida, não sentia firmeza nas construções empoleiradas naquelas perninhas finas.  Resmungava cada vez que via um prédio desses – ou seja, resmungava sempre que ia à rua. 

Com a idade – e o Alzheimer – as vigas e pilares das construções nas encostas (trem mais comum em Minas que que chamar as coisas de trem) se tornaram uma ideia fixa. Um incômodo palpável. Era preciso distraí-la (“Olha que cor horrorosa aquela casa!”) sempre que seu olho se sentia atraído pelos monstrengos em pernas de pau encarapitados em cada aclive, declive, murundu ou pirambeira. Porque minha mãe também implicava com as cores das casas, mas os roxos, laranjas, vermelhões e verdes bandeira não eram páreo para as construções levantadas do chão.

Desde então venho pensando: qual será o meu piloti quando eu ficar velho (mais velho) e chato (mais chato)?

Tenho vários candidatos.

Os vícios de linguagem são os mais óbvios. São eles que me impedem de assistir à programação da CNN, porque minha cota diária de tolerância a barbarismos se esgota em cerca de 60 segundos.

Também tem a franja. Eu entendo a sombra verde, os óculos com correntinha, a sobrancelha imitando a logo da Nike, o pírcim no lábio – mas franja está além da minha compreensão.

Implico com gente falando alto ao celular em local público. Implico com gente falando alto. Ultimamente, dei para implicar com gente, mesmo calada, em local público – mas isso vai passar com a pandemia.

Implico com tatuagem. Com sotaque carioca em filme dublado. Com cachorro usando roupa. Com barba desenhada. Com locutor de supermercado.

Mas, correndo por fora e com grandes chances de chegar ao pódio, está a ombreira.

O que leva um ser humano do gênero macho a inflar artificialmente os ombros e ficar parecendo um jogador de futebol americano que botou um terno por cima do shoulder pad?

O Merval Pereira conta que, num voo, sentou-se ao seu lado um sujeito espaçoso, cheio de correntes de ouro e que não largava o celular, ignorando os pedidos da aeromoça para que desligasse o aparelho. Era o Wassef. Suponho que estivesse com o cabelo emplastado. E, possivelmente, com suas inseparáveis ombreiras – que o Merval não menciona, mas que não me escapariam.

A ombreira é o viagra do paletó.
A ombreira define o homem.
Diz-me se usas ombreira e eu te direi quem és.

Eu não reparo no cabelo do Guga Chacra. No olho de gatinha da Renata Vasconcelos. Na franja da Nina Lemos. Nunca reparei na peruca do Chico Xavier, nos anéis do Walter Mercado, no nariz do Juca Chaves, na boca da Cleo Pires, no busto (digamos assim) da Inês Brasil, no pescoço rabiscado do Fogaça.

A suposta participação do Wassef numa seita satânica pode dizer alguma coisa do seu caráter. Mas as ombreiras dizem tudo.

Fonte:
https://tianeysa.wordpress.com/2020/06/25/implicancia/. 25 jun 2020.

Estante de Livros (“O vencedor está só”, de Paulo Coelho)

Antes de começar a falar do livro, acho que o mais justo seria dar uma introdução a obra falando sobre o autor. Paulo Coelho é o escritor brasileiro que teve mais exemplares vendidos em todo o mundo, de acordo com pesquisa feita em 2014 ele já havia ultrapassado os 150 milhões de exemplares. O que poucos sabem é que antes de se dedicar apenas a literatura, Paulo Coelho foi diretor, autor de teatro, jornalista e compositor.

Sempre ouvi de amigos leitores que Paulo Coelho é o tipo de autor que você ama ou odeia, não existe um meio termo. Não que eu concorde inteiramente com isso, mas o autor é polêmico, aborda temas diferentes e o desconhecido sempre causa medo, ou nesse caso algum tipo de repulsa. Mesmo existindo um grande preconceito com suas obras por parte dos brasileiros, internacionalmente ele é muito reconhecido. Notamos isso com o número de exemplares vendidos que citei mais acima. Meu primeiro contato com o escritor foi com a obra Brida e logo de cara me apaixonei pela sua escrita e profundidade, quando li O diário de um mago tive certeza que iria para o lado de quem aprecia suas obras e sua maneira maravilhosa de tocar a alma de cada leitor.

O Vencedor Está Só é um livro de tamanho considerável, hoje em dia poucas pessoas conseguem ler 400 páginas sem uma obrigação estipulada, aqui já encontramos algo bem interessante, o livro se passa em um período muito curto, apenas 24h! Você ficara impressionado com quantas coisas podem acontecer em um espaço de tempo tão curto. O cenário é o festival de Cannes e temos uma mistura muito interessante de personagens.

A história tem seu início muito antes do festival de Cannes com o então casal Igor e Ewa, ele um ex-militar que após a guerra conseguiu vencer na vida com muito esforço e dedicação ao seu trabalho, investindo na criação de uma empresa de telefonia em uma Rússia abalada, onde ninguém mais acreditava em seu potencial de vencer. Ewa no começo é apenas a esposa dele, uma figura secundária que vai ganhando cada vez mais destaque quando conhecemos melhor Igor, vamos notando que toda a sua base e sua estrutura advém do amor incondicional que ele sente por sua mulher. O sonho dos dois é construir uma casa bem afastada dos centros urbanos e viverem apenas dos lucros e do amor, mas esse sonho fica cada vez mais distante a medida que Igor fica mais viciado em seu trabalho. Esse é um dos motivos para que Ewa fique deprimida, enquanto seu marido está em reuniões de negócio, em viagens pela empresa, ela permanece só em casa, sem um propósito de vida, sem um motivo para prosseguir. Sentindo a aflição de sua esposa Igor tenta de todas as maneiras melhorar seu animo, em uma conversa ela revela que seu sonho era trabalhar com moda e seu marido para alegrar seus dias abre uma gigantesca loja para ela. Talvez se Igor soubesse que esse seria seu maior erro não teria feito isso. Sua esposa então torna-se uma viciada no trabalho igual ele e em uma das viagens para desfiles de moda acaba conhecendo Hammid H., costureiro da elite que acaba se apaixonando por ela. Por motivos sombrios que serão esclarecidos com a leitura do livro, Ewa decide deixar Igor e ir morar com Hammid, a pior decisão de sua vida. Temos formada a história que antecede o fatídico reencontro dos três no festival de Cannes.

Com a traição de sua esposa Igor se vê perdido, sem chão, não te mais motivo para prosseguir a sua vida então se vicia ainda mais no trabalho, é a única coisa que restou de sólido no meio do turbilhão. Quando Ewa vai embora leva consigo uma promessa de Igor, ele diz que vai destruir universos para ter ela novamente. Sabendo do que seu ex-marido é capaz de fazer ela permanece sempre alerta, mas o tempo vai passando e nada de ruim acontece, fazendo com que ela acredite que Igor a esqueceu, infelizmente para si estava enganada e após 2 anos de sua traição Igor começa a executar seu plano friamente calculado.

Com a passagem de ida e volta já garantida e apenas um objetivo em mente Igor vai atrás de Ewa decidido a destruir universos para ter sua amada novamente. Algo que achei muito lindo e é marca do Paulo Coelho é a definição de universo que Igor utiliza no livro, foi um dos poucos pontos que me reconfortaram com a leitura.

Sua primeira vítima é uma garota que vende artesanatos e esse personagem vai ganhar extrema importância na trama, o que achei super válido. A menina conta sua história quando percebe que vai morrer, tenta de alguma maneira tocar o coração de Igor que não será abalado. Utilizando uma técnica marcial ele a mata de maneira limpa e deixa seu corpo em um banco próximo esperando que alguém a encontre. Após cometer o crime manda uma mensagem para sua ex dizendo que destruiu o primeiro universo por ela. Ela será o primeiro de vários outros delitos que Igor irá cometer até chegar no seu objetivo.

Pode parecer que nosso personagem principal é um maníaco, que não tem nenhum sentimento de humanidade, mas fica claro que ele age por amor. De uma forma doentia mas é por amor. Ewa quando percebe o que esta acontecendo fica apavorada, sabe que seu ex é capaz de tudo e tenta alertar Hammid, que não lhe dá ouvidos nenhum, não sabe do que Igor é capaz.

Com o decorrer das páginas vemos um Igor beirando a insanidade até que um fato o demonstra que Ewa não merece todo o sacrifício que ele esta fazendo, sua missão deve ser concluída mas não da maneira como foi planejada anteriormente. Os planos mudam, os alvos não. O desfecho da história acabou me surpreendendo, valeu a pena deixar de lado a vontade de abandonar o livro.

Tem pontos positivos, tem citações e pensamentos maravilhosos como é de se esperar do autor, mas não chega a ser tão profundo como Veronika Decide Morrer ou até mesmo O Diário de um Mago.

Fonte: Texto de Igor Matheus. Disponível no Cinemundo. 3 ago 2015.
https://cinemundo.com.br/resenha-o-vencedor-esta-so-paulo-coelho/

sábado, 16 de dezembro de 2023

Therezinha D. Brisolla (Trov" Humor) 20

 

Mensagem na Garrafa – 56 -

Aparecido Raimundo de Souza
Vila Velha/ES

COMO UM PASSAGEIRO EM TRÂNSITO...

Pense no dia que ainda não nasceu:
e a Manhã chegará linda e sorridente.

Pense na esperança:
e ela lhe sorrirá com ternura.

Pense no amor:
e ele transformará a sua vida.

Pense na paz:
e ela estará sempre ao seu lado.

Pense no seu trabalho:
e ele será recompensador.

Pense no seu semelhante:
e ele lhe abraçará em retribuição.

Pense no silêncio:
e ele acalmará as suas horas mais difíceis.

Pense em coisas boas:
e elas brotarão de  dentro do seu “eu” gradativamente.

Pense em fazer alguém feliz:
e verá que esse sonho nunca saiu do seu lado.

Pense na noite encantadora que se avizinha:
e ela lhe trará o descanso merecido e necessário.

Pense no futuro:
e ele simplesmente acontecerá.

Pense nos seus filhos e netos:
e descobrirá a magia imensa em ter alguém lhe chamando de Papai ou Vovô.

Pense nos amigos:
e compreenderá que somente os verdadeiros nunca nos deixarão sem socorro.

Pense na alegria de estar vivo e com saúde:
e agradeça pelo sopro benfazejo da plenitude.

Pense na morte:
e faça tudo aquilo que deixou para realizar no dia seguinte.

Pense nos que se foram e nos deixaram num vazio imenso:
e dobre os joelhos em oração para que descansem em paz.

Pense na escuridão:
E se congratule pela visão perfeita que lhe permite enxergar além dos horizontes.

Pense, por derradeiro, em se prostrar, ou melhor, se detenha, de fato, diante de um espelho e vasculhe longamente buscando o interior de si mesmo:
e certamente concluirá que, tendo Deus na sua vida, na sua alma, e, principalmente, em seu coração, NADA LHE SERÁ NEGADO E COISA ALGUMA SE FARÁ IMPOSSÍVEL.

Monsenhor Orivaldo Robles (A travessia)

A historieta é antiga e já foi narrada de várias maneiras. Alternam-se os personagens, muda o contexto, mas com quaisquer pormenores a lição é idêntica. E um corolário de profunda sabedoria. A mais recente versão a que tive acesso transmitiu-a, segundo consta, o educador Paulo Freire. Diz assim:

À margem de largo rio, de travessia penosa e arriscada, trabalhava um barqueiro. Sua profissão era atravessar as pessoas de um para outro lado cruzando as águas nem sempre mansas. Numa dessas viagens, ele conduzia na canoa um advogado e uma professora. Muito falante e, quem sabe, para afastar o medo, o advogado perguntou: "Barqueiro, você tem algum conhecimento sobre leis"? "Não, senhor", respondeu ele educadamente. O advogado, compadecido e com ar de superioridade: "É pena, amigo. Você perdeu metade de sua vida".

Interveio então a professora. Simpática, preocupada em socorrer o pobre homem, quis saber: "Mas você sabe ler e escrever, não é"? "Também não, dona. Fui criado na beira deste rio, longe de escola. O que sei aprendi aqui mesmo". "Que pena", tornou ela. "Você perdeu metade da vida".

Nisso, uma onda forte virou o barco lançando os três na água. Apreensivo, enquanto dava a primeira braçada, o barqueiro perguntou: "Vocês sabem nadar"? À resposta negativa dos outros, concluiu com tristeza: "É uma pena, porque já, já, vocês vão perder a vida inteira".

Conclui brilhantemente o educador: Não há saber maior ou menor. O que existe são saberes diferentes.

Numa sociedade escrava do aprendizado formal livresco, é importante afirmar que o conhecimento humano não se restringe a um formato único. Existem muitas formas de saber. Mesmo distintas, são igualmente válidas, indispensáveis até. Já ouvimos que ninguém é tão pobre que nada possa dar, nem tão rico que nada precise receber. Igualmente, ninguém é tão ignorante que nada possa ensinar, nem tão sábio que nada tenha que aprender.

Por endeusar o (certamente) válido conhecimento técnico-científico, o homem moderno tende a fechar os olhos a tudo que não procede das ciências exatas ou humanas. Diz o brocardo que o saber não ocupa lugar. Acrescente-se: também não procede de fonte única. Há saberes distintos, porém consistentes e respeitáveis, portanto dignos de reconhecimento. Ninguém espera que um caboclo do Amazonas interprete os dados de uma lâmina em análise num microscópio. Da mesma forma, não pode exigir de um bioquímico a habilidade de pescar tambaqui com uma azagaia, no Rio Negro, dentro da escuridão da noite. Se pretendem, porém, prestar serviço eficiente, tanto um como outro devem dominar o saber próprio exigido por sua área de atuação. Precisam, além disso, conjugar as distintas competências para o fim comum, que é o bem de toda a sociedade. Um não tem o direito de desprezar o outro. Ofícios diferentes não significam superioridade nem inferioridade. Não revelam dignidade maior ou menor deste ou daquele.

Não é, infelizmente, o que vemos com frequência. Nem o que muitos formadores de opinião transmitem ao público. Convencionou-se que só é importante aquilo que rende dinheiro ou ostenta posição social. Por ignorância ou orgulho se desprezam valores que fariam bem mais feliz a vida de todos. Fazer o quê? Valores do espírito não causam frisson numa sociedade que vive de aparências.

Fonte: Recanto das Letras do autor.
https://www.recantodasletras.com.br/cronicas/3483105

Nilto Maciel (O Suplício de Geruza)

Cautelosamente mostramos os dentes emprestados para os sorrisos programados, enquanto caminhávamos em perfeita ordem, sob o olhar do público. Cabeças erguidas e olhos enxutos, deveríamos guardar todas as emoções para o final.

Por um instante vi Emanuela nervosa e pálida na plateia. Talvez chorasse ou risse. Não sei se acenava ou dizia adeus. Nosso amor já fazia parte do passado, nossos dias, nossas noites. Desviei os olhos dela e olhei para a água. De que me servia sentir saudades, rememorar nossa vidinha cheia de mistérios e segredos, se com toda a certeza eu não voltaria vivo daquele salto? As águas seriam minhas novas companheiras dali até a morte. Eu terminaria inchado como uma fruta podre lançada ao poço, esquecido tão logo se consumasse meu fim e tão apavorada como nos meus mil sonhos intermináveis.

Nada eu conseguia entender. Por que teríamos de nadar? Que crime eu havia cometido? Por que aquele tipo de punição? Por que o público se deixava enganar, crente de estarmos competindo?

Do alto-falante uma voz não parava de gritar: esporte é cultura, natação é saúde. Os exercícios físicos desenvolvem os músculos, ajudam a circulação sanguínea, dão mais agilidade ao corpo.

A plateia olhava para nós, a mascar chicletes, fumar e beber cerveja em latinhas. Não tive mais ânimo de procurar o choro ou o riso de Emanuela e só ouvi o grito do locutor: atenção, atletas, muita atenção. Vai começar a contagem regressiva: dez, nove, oito...

Saltamos, e o gosto de sal me inundou a boca. Talvez o público batesse palmas, estivesse agitado, de pé nas arquibancadas. As águas frias, viscosas, abundantes pareciam me engolir. E eu me sentia peixe, lépido como serpente.

Pelo regulamento da competição, o último colocado não poderia sair mais da água. Não o deixariam alcançar as margens e, cansado, exausto, morreria afogado. Assim, só nos restava nadar, nadar, nadar.

À minha frente ia um rapaz; ao lado outro, homens e mulheres gementes a revolver as águas em desesperada correria. E não havia mais plateia, só as águas e os muros do canal, infindável, escuro, lodoso. No alto, os fiscais, armados, carrancudos, impassíveis, corriam de lanterna em punho. O primeiro a chegar sorria, o segundo, o terceiro. A uma braçada do ponto final olhei para trás e só avistei Geruza, minha velha amiga. Toquei o muro, e as mãos do fiscal se agarraram às minhas.

Não vi mais nada: o pavor me entregava à salvação.

E acordei sozinho nos braços de Emanuela, a perguntar por Geruza.

No outro dia brigamos sem razão: Geruza não existia. Assim mesmo teimamos.

Fonte: Nilto Maciel. Babel. Brasília/DF: Editora Códice, 1997. Enviado pelo autor.