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quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

J. G. de Araújo Jorge (Caminhos Para a Solidão)


A verdade é que à proporção que vivemos, vamo-nos sentindo mais sós, como uma ilha cercada de gente por todos os lados. Não a solidão dos cosmonautas, povoada de silêncios e de estrelas. Mas a solidão de um carnavalesco, cantando para não chorar, para se esquecer que está sozinho.

"Por certo a pior solidão
é aquela que a gente sente
sem ninguém no coração,
no meio de muita gente."


Gente tão perto de nós, com quem se esbarra na rua, que se atropela na corrida para apanhar a condução, que se acotovela nos ônibus, nos trens; gente tão próxima, mas na realidade, cada vez mais distante.

Gente que não existe. Ou por outra, que existe como multidão, anônima, fora de nossas realidades, apenas vago e fantástico cenário.

Sociólogos, psicólogos, têm procurado estudar o grau de desumanização do homem e da vida nas grandes cidades. Urbanistas e arquitetos projetam concepções salvadoras para esse pobre homem criado num caos. Que restará do homem que havia dentro de nós? Veja-se a indiferença com que encontramos pedintes miseráveis, crianças abandonadas, criaturas doentes, e seguimos tranquilos para a nossa sessão de cinema. Sua dor não nos toca; seus problemas não nos preocupam; fazem parte de todo um complexo mundo, em que vamos vivendo, despercebidos de nossa desumanidade. E a nos dizermos cristãos.

O remorso ficou no poema:

"Às vezes me envergonho
de alguma ajuda recebida,
quando sei que há tantos homens mais necessitados
sem um gesto de apoio ou de acolhida.

Me envergonho de gozar meu reduzido conforto,
quando sei que há tantos homens inteiramente
desabrigados, sem destino nem porto.

Me envergonho de meu egoísmo a se chamar de
altruísmo, quando dou uma esmola
e contínuo para a minha seção de cinema."


Bem diz a amarga letra da canção: "Ninguém é de ninguém"

Não temos tempo para os contatos cordiais, para cultivar a amizade, para trocar idéias em torno da mesa de um bar, ou de um café. Inventaram uma profissão "relações públicas", mas para se ganhar mais dinheiro. É diferente.

Os cafés que tinham mesas, os antigos cafés que eram como salas-de-espera de populares academias literárias, há muito desapareceram. Os próprios bares já se transformaram. E não só o cafezinho, ou a laranjada, tudo é tomado às carreiras, de pé, sem oportunidade para uma pausa amistosa, sem esse calor humano que faz do homem um ser integrado em sua coletividade.

Vivemos nas grandes cidades a pior de todas as províncias, cada um com a sua pequena "linha-circular". Passamos, diariamente, a carbono, a nossa vidinha.

Acordamos à mesma hora, apanhamos a mesma condução, encontramos as mesmas pessoas, trabalhamos com os mesmos colegas e companheiros.

Conhecemos as caras dos cabineiros, motoristas garçons, jornaleiros. São os habitantes da nossa "província cotidiana", mas, no fundo, nada ou pouco representam. São apenas acidentes do nosso itinerário, e a eles não nos prendem laços mais profundos que cumprimentos convencionais ou comentários supérfluos.

O "cafezinho" - essa expressão que encerra, no fundo, uma indisfarçável ternura do brasileiro por alguns efêmeros minutos de convívio humano, - é o último refúgio de sua inevitável desumanização. Saturado de trabalho, de tédio, ou da vida, da repartição ou do escritório ele tenta a escapada:

"Vamos tomar um cafezinho?"

Mesmo em pé, comprando ficha, sem poder sentar-se, ele se refaz um pouco. Tenta lembrar-se de si mesmo, dos outros. É o seu segundo de higiene mental, seu resto de sociabilidade. A oportunidade para um "papo" com o amigo eventual, ou com o conhecido. Para olhar as belezas que passam tão perto dos olhos, e tão longe... Para rir-se um pouco. Ouvir, ou contar a última anedota. Para sentir-se, durante uns poucos momentos, uma pessoa humana.

As grandes cidades vão asfixiando o homem, como um imenso polvo em seus tentáculos de concreto e de asfalto. Homem de infância no interior, o Rio (de Janeiro) às vezes me angustia, me oprime. Quase diria: me amedronta. Sinto necessidade de fuga. Mas, para onde? Fuga, não só ao ar cinzento, aos ruídos, letreiros luminosos, mas, principalmente à multidão indiferente que escachoa ao redor, atordoante e estranha. Que não sabe que existimos, não se interessa por nosso destino, não participa de nossas emoções; tão ao nosso lado, mas da qual nos mantemos capilarmente isolados.

Li, não me lembro quando, que um arquiteto suíço, Honeger, tendo construido um bairro, numa cidade africana, para tribos pouco civilizadas, projetou-o com todas as comodidades modernas inclusive água encanada. Para sua surpresa, quando expôs seu plano, as mulheres não gostaram. Preferiam suas antigas choças, mesmo sem tanto conforto, e sem água encanada. Preferiam continuar indo à fonte de águas limpídas, onde enchiam seus vasilhames de barro, ou suas latas. Era justamente nesses momentos que elas esqueciam um pouco o trabalho de casa, perdiam tempo conversando, tagarelando, e se sentiam humanas, deixando de lado problemas e preocupações. Era, digamos assim, para aquelas humildes criaturas, a sua vida social.

A civilização atual vai tirando ao homem todas as oportunidades de poder perder tempo. O homem vai se esquecendo de que, o que ele perde em tempo, ganha em vida.

Esses que não têm tempo a perder, são justamente aqueles que perderão a vida num passo adiante. Os homens se esqueceram de que não são máquinas, de que o coração não é um dínamo, de que os nervos e o espírito não possuem a estrutura ou a resistência do aço.

Já que somos uma ilha cercada de gente por todos os lados, vamos lançar, ao menos, vez por outra, uma ponte para o grande continente da convivência e da solidariedade humanas. A solidão dos homens normais é aquela que não prescinde das alegrias da amizade, da companhia do amor.

Oh, a inveja que sinto, hoje, dos moradores das pequenas cidades. Os que ainda têm tempo para se sentar nos bancos das praças, nas mesas dos cafés, olhar as belezas que passam, discutir política, "salvar" o mundo dos outros, porque o seu está seguro. Os que se visitam e são visitados. Os que ainda podem ter uma província verdadeira, mesmo violentada pela televisão, mas sem a subversão do tempo.

Os que ainda tem tempo para ler livros, ouvir música, olhar o céu, admirar a paisagem. Os que ainda têm tempo para amar a paisagem e os seres e - Oh!, suprema ironia! -até para se lastimarem da vida monótona de sua cidadezinha, o seu Paraíso impercebido.

Fonte:
JG de Araujo Jorge. "No Mundo da Poesia " Edição do Autor -1969

domingo, 5 de fevereiro de 2012

J. G. de Araújo Jorge (As Três Camas)


Esta estória se deu no canto de uma loja de moveis novos e usados na Rua do Catete. Num canto escuro, ao fundo da loja, bem distante do escritório, onde o gringo e o amigo conversam sobre as contas a cobrar, os juros das letras entregues ao banco e os clientes novos em perspectiva.

Acabavam de armar uma cama ao lado de outra que já estava no local. Por estranho que pareça, uma em imbuia, estilo "chipandale", pobre, a outra, em pau-marfim, rica, estilo moderno.

Os empregados armaram a cama e foram embora. Foi quando no silêncio daquele canto da loja, ouviu-se uma voz fina de imbuia:

- Até que enfim me arranjaram uma companhia! Puxa! Já estava entediada!

E outra voz, clara e forte, de pau-marfim, respondeu:

- Também fico satisfeita de me colocarem aqui. Pelo menos terei com quem conversar um pouco. Estava com medo danado que me botassem junto a uma mesa de sala ou a uma poltrona.

- Ah! Lá isto é verdade. Antes só, que andar misturada com essa gente estranha!

- Você já esta aqui há muito tempo?

- Pois você não viu logo? Repare que já estou toda empoeirada, e estes gringos nem sequer me mandam passar um pano vez em quando. Eles não fazem muita questão de me vender. Pertenço a uma mobília barata, ai uns 200 cruzeiros novos.

- 200 cruzeiros novos só! Olhe que é pouco!

- Olhe que é muito, minha amiga. Fizeram um trabalho porco com a minha madeira, e se você me levantar as tábuas é que verá como tenho as pernas desconjuntadas. E a estrado que me deram! Pinho vagabundo, cheio de furos.

- Pois você merecia outra sorte! Estou estranhando, por que ouvi lá na carpintaria dizerem que a minha mobília seria de 1.500 cruzeiros novos!

- Tem sorte! Olhe, repare aqui, na cabeceira. Esta vendo esta mancha? Pois eles nem pensaram em lixar a envernizar direito! Parece até que sou doente!

- Mas há quanto tempo você esta aqui?

- A falar a verdade não sei, não. Esta vida é tão monótona, os dias tão iguais, que acho que me enganei na canta. Mas pelo menos há seis meses, estou aqui, de pé... com poeira e tudo.

- É..., é muito tempo... E não tem vindo gente ver?

- Ter, tem... Mas o diabo do gringo só leva o pessoal para o outro lado onde há mobílias caras... Olhe que com a sua vinda eu talvez arranje um pretendente... Pelo menos melhorou muito a situação...

- Pois faço votos que realmente eu possa ajudar um pouco...

- Alias, minha amiga, eu nem sei se vou ficar satisfeita de sair daqui... Você sabe, mas destino de pobre é este mesmo. Nascemos para sofrer...

- Ora, não diga isto.

- É verdade. Veja você que destino há de me esperar. Algum operário ou pequeno funcionário me compra aqui a prestação, e eu vou parar numa casinha de subúrbio... vou viver em casa de pobre, servir de cadeira pra costura, de brincadeira pros garotos pularem... E na certa que vou comer pó como o diabo... Ah! porque não nasci eu uma cama em pau marfim!

- Gostaria tanto?

- Natural.

- Pois minha amiga, não vejo muita diferença, não.

- Não vê?

- Afinal que diferença faz eu estar numa casa de rico, não vou servir ao mesmo destino?

- Lá isso é verdade, mas pelo menos você vai pisar em cima de tapete, vai ser espanada todo dia... Talvez vá para um apartamento alto, sinta um pouco de ar, de sol... Ah! que saudades do tempo em que andei no tronco da imbuia no meio da mata, e apanhava sol e chuva . . .

- No fim, minha amiga, tudo vai dar no mesmo. . . E sorte teremos nós é se aqueles que nos comprarem não forem muito pesados... Sabe o que ouvi conversarem na carpintaria?

- Que foi?

- Estavam consertando uma cama usada.

- Sim, e que tem?

- Pois estavam dizendo que a cama quebrara com o peso dos que dormiam nela. E só vendo como o pessoal punha pimenta na história!

- Olhe, você quer saber de uma coisa? Quando penso nisto, eu tenho até vontade de ser uma poltrona.

- Ah! isto também não, seria rebaixar-nos demais! Você já pensou na maneira como os homens se utilizam da poltrona? Em nós pelo menus, eles ficam deitados...

- Sim, mas fazem cada coisa...

- E como é que você Sabe disto?

- Ora, minha amiga... . Eu estou aqui há seis meses... De passagem já ouvi muita conversa também... Pois você não esta contando coisas que ouviu lá na oficina?

- A minha esperança é servir a um casal de recém-casados, assistir a uma lua-de-mel...

- Pois não lhe gabo o gosto. O meu desejo era ser cama de mulher solteira...

- Sonsa! Alias você deve perder as esperanças, porque afinal você foi feita pare casal. . .

- Eu sei. Ninguém pode lutar contra o destino ... Mas era o que eu queria...

- Pois olhe, que deve haver muita cama solteira por ai, capaz de fazer corar uma cama... de pedra!

- Pelo visto você também ouviu mais coisas lá na oficina!

- Ora, se ouvi.

Nisto a converse é interrompida por alguns empregados que trazem duas mesinhas de cabeceira, colocando-as perto das duas camas. Depois se afastam.

A cama de imbuia:

- Ih! Pelo visto vamos ter mais companhia.

A cama de pau marfim:

- É... e esta parece cama usada. Não vê pela aparência das mesinhas. . .

- Silêncio. Lá vem os homens carregando outra cama.

Os empregados chegam trazendo outra cama, uma cama velha, usada. Armam as peças, aparafusando-as nos lugares, e saem.

A cama de imbuia:

- Boa tarde companheira!

A cama de pau marfim:

- Pelo vista ela não gosta de conversa.

A outra cama:

- E não gosto mesmo. Será que nem bem cheguei não posso ficar descansada um minuto...

A mesa de imbuia:

- Coitada ! Esta sofre dos nervos...

A cama de pau marfim:

- É... e esta bem estragada . . . De só uma olhadela pro estrado. . .

A cama que chegou:

- E vocês não viram nada. se olhassem pro colchão é que iam ficar admiradas... Ora vejam só, que duas caminhas virgens tão metidas...

A cama de imbuia:

- Afinal não sabe precisa ficar toda abespinhada . . . Ninguém a ofendeu . . .

A cama que chegou:

- E será que eu ofendi a pudicícia das donzelas, chamando-as de virgens... Ou não são?

- Eu sou, respondeu a cama de imbuia.

- Eu também, não esta vendo logo... Ainda estou cheirando a madeira. . . Nem o homem do verniz me botou a mão...

- Pois, olhe minhas filhas, vocês não sabem a vida que as espera.

A cama de imbuia:

- Pois nós, falávamos há pouco justamente sobre isto. Fazíamos conjecturas. E tão ruim a vida de uma cama!

A cama que chegou:

- Tão ruim?! Vocês vão ver!

A cama de pau marfim:

- Por que você foi vendida novamente pra loja?

- Porque a mulher que me tinha resolveu acabar com o negócio.

- Negócio? perguntou a cama de imbuia.

- Sim, negocio. E quem pagava o pato era eu. Pra dizer a verdade eu era a base de todo o negocio, até que a policia bateu lá!

A cama de pau marfim:

- E que negocio era esse?

A cama que chegou:

- Ora, essa! Será possível que eu precise dizer que negocio era?

A cama de pau-marfim:

- Puxa! que vida interessante você levou.

A cama que chegou:

- Interessante! Eis ai uma caminha com vocação suspeita... Não há de ter bom destino...

A cama de pau marfim:

- Você sem ofender não passa.

A cama que chegou:

- Não seja tola. Você pode morrer de curiosidade por assistir porcarias, mas eu já estou cheia... Felizmente já me livrei daquele colchão imundo que aguentei durante três anos...

A cama de imbuia:

- Mas você só tem três anos de uso? Esta muito bem conservada.

- Três anos?! Três anos estive eu com a tal mulher. Tenho doze anos de uso, minha filha. Já estou derreada, precisando que me troquem as pernas...

- Doze anos! exclamou a cama de Pau marfim.

- Sim, mocinha. Sim, meu anjo, doze anos! Não vá corar essas brancas faces de pau-marfim se lhe contar o que passei. . .

As duas camas:

- Ah' conte! conte!

- Pois minhas filhas, eu fui comprada para uma lua-de-mel... No fim de seis meses voltei pra oficina, para que me apertassem as juntas, os calços. Sabem, estas traves de madeira que aguentam o estrado?

- Pois dois deles se partiram... Tiveram que ser trocados.

- Pesavam tanto assim os recém-casados?

- Não era tanto o peso . . .

A cama de Pau marfim:

- Que coisas você não viu, hein?

- Ver, não vi. Vocês sabem que nos não temos olhos. Mas o que não adivinhei . . . Bem! Pouco tempo depois, fui vendida. Botaram um anuncio num jornal, a eu troquei de dono. . .

- Logo, tão cedo?

- Ele era viajante, teve que mudar de cidade, e preferiu vender os moveis. Iniciava-se assim minha vida airada . . . Fui comprada pelo dono de um hotel... Vocês podem lá imaginar o que é ser cama em quarto de hotel?

A cama de pau marfim:

- Que vida dura!

A cama de imbuia:

- Cala a boca, sua tonta!

A cama que chegou:

- Pois bem que foi uma vida dura a partir dai. Em cima de mim, foi morta uma mulher, e sai até no jornal... Publicaram meu retrato com a mulher em decúbito dorsal, na primeira página...

- Mataram a mulher?

- O sujeito matou. E sabe que corri o risco de ser queimada?

- Como foi isto, perguntaram, a uma voz, as outras duas camas.

- Pois o sujeito pensou em queimar a cama, e deixar o quarto pegando fogo pare apagar a prove do crime.

A cama de pau marfim:

- E por que ele não fez isto?

- Porque com o ruído da lute e os gritos da mulher... mas já era tarde quando chegaram.

A cama de imbuia:

- Puxa! que susto você passou! Ser incendiada como qualquer acha de lenha sem nome nem estilo...

- Sei lá, meu bem. Eu até acho que preferia esse fim.

- E depois...

- E depois continuei na mesma vida... Foram oito anos e pouco, bem contados. Mudaram-me de quarto uma porção de vezes . . . Um dia, um casal dormiu com um filhinho pequeno de um ano e pouco... E o garoto durante a noite... molhou-me até os ossos

A cama de pau marfim:

- Eu queria ver era a cara do colchão numa horas destas!

A cama de imbuia:

- Ora, não zombe da desgraça alheia.

A cama que chegou:

- O que eu sei é que ele pelo menos apanhou um pouco de sol. O gerente mandou botar ele numa janela dos fundos pra secar ...Mas eu tive que secar ali mesmo... Uma outra vez trouxeram para o quarto duas camas pequenas, pares dois garotos... Mas os pais saíram, deixaram os garotos sozinhos, e eles me escolheram para palco de suas travessuras . . . Pularam tanto... tanto... que me arrebentaram as costelas... quero dizer, o estrado...

A cama de imbuia:

- Coitada, e você foi levada pra oficina?

- Vocês não vem estas ripas aqui por baixo? Pois estão aqui desde essa ocasião ...

A cama de pau marfim:

- E quando é que você foi pra casa da tal mulher... a tal que tinha o tal negocio...

A cama velha:

- Pois eu não digo que esta caminha tem umas inclinações suspeitas... Que curiosidade! Vou contar a vocês o melhor da coisa. E que vocês aproveitem minha experiência... Ah! nos três anos que passei lá, perdi-me completamente...

A cama de Pau marfim:

- Ficou mesmo uma cama perdida?

- Perdida, sim, meu anjo, Por que? Faz alguma objeção?

- Não, nada.

- Não pense que você, porque é de pau marfim, com esta madeira toda acetinada, esta livre disto... Pois vou contar-lhes então...

Nesse instante ouvem-se os ruídos de passos. São os empregados que trazem uma caminha pequena de criança, esmaltada, com desenhos infantis na cabeceira; e a colocam junto da cama velha. Chegam, armam a caminha e se retiram.

A cama de imbuia:

- E então?

A cama de Pau marfim:

- E depois... que a que houve com você?

A cama velha:

- Vocês não tem vergonha, não? Então não vêem logo que eu não vou continuar com estas estórias na frente desta criança?!

Fonte:
JG de Araujo Jorge. "No Mundo da Poesia " Edição do Autor -1969

sábado, 4 de fevereiro de 2012

J. G. de Araújo Jorge (As Seis Faces da Mulher)


Uma vez, numa entrevista, quiseram saber qual era, para mim,a mulher ideal. Fisicamente? Não, o jornalista queria saber mais, referia-se ao espírito, a alma, a personalidade. Se a pergunta se cingisse ao físico, eu não resistiria a tentação de roubar alguns versos de Vinícius, da sua "Receita de Mulher". Só alguns, esta claro. Mas acrescentaria outros. Vinícius não se refere, por exemplo, aos cabelos. E para mim, mais que os, olhos, que os lábios, os cabelos são um elemento de importância definitiva. Não emolduram apenas o rosto, os olhos, os lábios, mas toda a mulher. Dão-lhe um toque de graça especial.

Naturalmente tem que ser leves, finos, soltos, para que o vento brinque de poesia com eles. Já perguntei num poema:

"A visão do teu pescoço branco, velado como um templo,
pelo véu de teus cabelos louros, que eu descubro
nos delírios de minha fantasia:
Ah! não será isto poesia?"

E num outro:

"Gosto de encher as mãos com os teus cabelos
como um lavrador a recolher, feliz
as louras messes de uma farta colheita."

Não importa, entretanto, a cor, o tom que apresentem: podem fazer noite, tarde ou manhã, virem carregados de sombra ou de sol.

" Quando em teus cabelos louros
ou negros
mergulho o rosto,
parece
que faz sempre sol-posto
que a noite mansamente nos meus olhos desce!"

Importa é que sejam bastos, esvoaçantes como gazes, como painas, como sonhos. Em matéria de mulher sou contra qualquer racionamento. Subscreveria, em que pese a minha vocação socialista, aquele verso de Vinícius:

". . . E que existe um grande latifúndio dorsal."

Também já confessara:

"Gosto de tuas costas (como um arco, flexível)
que se alargam em duas luas imensas, geminadas."

Mas estas respostas não serviriam a pergunta do entrevistador.
Qual a mulher ideal, para mim?

Lembro-me de que respondi que ideal é sempre a mulher que a gente gosta,
e que nos compreende. Mas pensei depois no assunto, e nasceu o poema. A mulher ideal, única, tem seis faces. Seis faces que a tornam múltipla, e infinita, para a nossa vida, a nossa ternura, o nosso amor. Na realidade, há todas as mulheres, na mulher que a gente ama. Disse isto no poema:

" As Seis Faces... "

Quando te encontro e observo que ficaste mais linda
e soltaste os cabelos para me agradar,
e me entregas os lábios num beijo leve e morno como a aragem,
e tranças os teus dedos em meus dedos, e me olhas
como no dia em que te tirei para dançar pela primeira vez,
é que percebo que continuas
a namorada.

Quando te preocupas com o tempo porque vou sair,
e recomendas detalhes como se me visse criança,
e repreendes a minha falta depois que as visitas se foram,
e endireitas a minha gravata, e escolhes a minha camisa,
e me fazes trocar os sapatos que não combinam;

quando surpreende o meu cansaço, e me enlaças,
e recosta a minha cabeça em teu colo,
e me dás conselhos como se eu pudesse segui-los,
é que descubro que há em ti, para mim, até mesmo
um pouco de mãe.

Quando te consomes muito mais com as minhas preocupações
e advinhas meus pensamentos, me prevines contra falsos amigos,
e te empenhas em partilhar também minha luta;

e economizas, como se com isso poupasses minhas forças,
e, sem querer, com uma palavra, desvendas uma solução
tão próxima e tão evidente, mas que meus olhos não percebiam;
quando à noite , na sombra, sem tocarmos os corpos,
conversamos, esquecidos, como dois amigos numa encruzilhada,
é que compreendo que tu és
a companheira.

Quando chego, e ao abrir a porta, estás à espera
com tua felicidade que me envolve e me aconchega,
e tirar da minha mão a pesada pasta de couro,
e me entregas os lábios (úmidos e trêmulos);

quando te encontro depois, em todos os detalhes cotidianos
e prosaicos, que fazem o melhor da vida:
minha toalha de banho no lugar; meus chinelos no seu canto;
minha roupa limpa sobre a cama; aquela jarra com flores arrumada;
aquela mesa posta, com seus talheres brilhando;
aquele odor de refeição que é o perfume do lar;
quando te vejo, leve e diligente, a circular pela casa
que consideras teu Reino, teu Mundo, teu Universo;
sei que tu és então
a esposa.

Quando à noite, de tarde, ou de manhã, (é um momento imprevisto
e nunca marcado) sinto que precisas de mim, que te faço falta,
como do ar, ou da água, de alimento, ou de vida,
e te encontro ao meu lado sempre irrevelada, e te dispo,
e se desencontraram as mãos e nossos corpos
e subitamente nos jogamos, como banhistas
contra o mar, contra as ondas, o mar desconhecido
as ondas que afogam e arrastam,
e de súbito estamos salvos na areia, como náufragos, és
a amante.

Quando te encontro ao meu lado, deitada numa nuvem
a acompanhar outras nuvens preguiçosas e itinenrantes
no céu do coração;

quando te pões a falar como crianças nas brincadeiras
em diminutivos, em “faz-de-contas” de pura imaginação,
e de ti restou apenas o contato dos nossos corpos, que
permaneceu em nós
entretanto distante, imaterial, a planar
como aquela gaivota na vaga luz da tarde que se esvai;
quando estirados na areia, cansados, mas felizes,
já podemos conversar, eu diria nesta hora que tu és
simplesmente
a irmã.

Quando penso em ti, e te sei tantas, no milagre da multiplicação
do amor,
recolho-me a ti, como pássaro às ramagens, onde encontra
a sombra, o ninho, o balanço, o fruto, - o impulso
para o vôo.

E amo, e trabalho, e sonho, e canto.

Fonte:
JG de Araujo Jorge. "No Mundo da Poesia " Edição do Autor -1969

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

J. G. de Araújo Jorge (A Noite e o Poeta)


Esta noite é igual a todas as noites, entretanto, subitamente, é aquela noite que ficará marcada para a minha alegria. Subitamente, estou dentro dela, consciente, e a sinto como se a tivesse aderente a minha pele, como uma tatuagem, como se pudesse envolve-la ou toma-la nos braços

Por que? Não sei. Parece apenas que tudo o que faz a noite, sua calma expectante, seus pequenos ruídos singulares, suas luzes, suas sombras, suas formas estáticas; todos os que são a noite estão presentes, posso senti-los como se fossemos uma mesma coisa, ou um mesmo ser. Como se subitamente, me transmudasse na noite que esta ao meu redor, como se ela estivesse em mim.

Todos os que estão acordados, uns poucos que, como eu, a estão velando ou saboreando, em estado de angústia ou de suprema paz; ou os que embarcaram nos pesados veleiros do sono, e estão adormecidos, onde ? em qualquer lugar, mas sinto que estão adormecidos, fazem parte da minha vida, e dão dimensões inimagináveis a minha solidão.

Sinto sua presença " física ", soma de tantas ausências, nesse extenso e enorme silêncio a volta, silencio de coisa em gestação, tecido de vagos movimentos apenas adivinhados, de sons que não chegam aos nossos ouvidos. Sem a sensação dessa falta, esse silêncio não seria possível, nem essa pausa, essa tranqüilidade, feita de tantos que estão submersos, que nasce da vida momentaneamente em sincope.

Essa hora tarde se impregna de humanidade, porque é justamente a hora em que a vida apenas lateja, distante, sob os meus dedos, como um pulso a apalpação do médico. Em que posso vir a mim, ou ir-me, a encontrar-me como a um velho conhecido, de raras visitas - para conversar sobre coisas de que só nós nos lembramos, tantas e infinitas coisas insignificantes, da maior importância para que continuemos vivos: para falar sobre todos a sobre tudo, a tentar descobertas como quem abre uma janela e se debruça para o acaso. Colho minha alegria em momentos assim. Em de repentes, em subitamentes, como se esbarrasse em transeuntes apressados e desconhecidos. Colho minha alegria de momentos assim, em que nada parece se ter alterado, em que as coisas permanecem como são, em sua rotina, mas em que surpreendentemente me reconheço e me revelo.

Então, ela cintila por segundos, me aposso dela com uma aguda e intensa percepção, penetro-lhe o mistério e o sentido. Mas perco-a também, logo após, tal como a encontrei. E ela se vai e se esvai como surgiu, e mergulho novamente como um ser comum na torrente igual da vida.

Quantos dias, quantos meses, tempo sem tempo, vou seguindo sem me aperceber disto? Mas, de repente, posso reconhecer que vivo.

Sim, a uma descoberta maravilhosa, e tudo me sabe então novo e inédito, como se acabasse de nascer. Grito-me para mim mesmo que estou vivo, e essa sensação é deslumbrante é misteriosa!

- Então eu vivo! E há calor em tudo que me cerca, diante de meus olhos, ao alcance de minhas mãos. Tantos semeando e colhendo. Há estrelas, distantes estrelas, tão próximas para os nossos olhos, nos momentos de desânimo. Há pássaros em perdulários cantos e algazarras, efervescendo nas ramagens ao cair da tarde; automóveis pulsando nas ruas, num vaivém taquicárdico de civilização cardiopática; banhista nas praias, displicentes, colhendo o sol e o mar; crianças, que são sempre crianças, que dão sempre a impressão de que não vão crescer, embaraçando de correrias os jardins, os recreios; e mães gritando há milênios, dos andares altos, das janelas abertas, anunciantes do futuro.

Não é extraordinário que eu descubra que há vida ao meu redor, vida com "V" grande, apenas vida, e que andava cego a surdo ? E que afinal devo a tantos que não me percebem, nem tomam conhecimento de minhas descobertas, e minha alegria de viver?

E só por isso, uma luminosa euforia lava meu coração, e o embebeda, e o abre como uma espátula de luz. Inexplicavelmente compreendo tudo, justifico tudo, e me sinto tocado de amor, de um ímpeto de braços dados, de mãos que se apertam, de peitos que se abraçam!

E só por isso, só ? Meu Deus ? - me sinto melhor, endividado com a vida, a agradecer a todos, e a perdoar até, a todos, a sua presença; paradoxalmente esquecido de mim, integrado a humanidade, a bendize-la.

Meu Deus, acho que nestes momentos fico poeta. Acho que ser poeta é só isto: encontrar-se subitamente dentro da vida, o coração nu, com esse estranho poder de despojar as coisas de si mesmas, a vê-las por dentro, e ama-las em sua palpitante beleza. Sentir-se ao mesmo tempo único a múltiplo, consciente de suas forças pelas infinitas placentas que o prendem ao mundo.

Acho que ser poeta é de repente poder se sentir feliz, apenas porque se vive, sem quaisquer indagações, em contato com Deus, seus mistérios e suas verdades. E a vida ser algo assim que se justifica pela simples e indescritível revelação de um momento perfeito, sem macula, sem preocupações, sem ódios, sem egoísmos, sem despeitos, e até sem desejos; tecido apenas de amor, um amor total, cósmico, transbordante; que não cabe a penas na mulher que nos espera; no filho que se quer; no amigo que nos companha; mas que os integra também na emoção imensa, ampla, profunda - como um remoinho em que nos abandonamos completamente - como uma nebulosa em que nos dissolvemos, inteiros.

Acho que ser poeta é poder colher esse instante, e tentar fixa-lo em palavras e cantos, servi-lo a mancheias, para matar a fome e a sede de paz e beleza, de comunicação e amor, e um mundo feito de ânsias e frustrações, de surdos corações e espíritos cegos.

Acho que ser poeta é poder colher esse instante de alegria como a uma flor imortal, para oferta-lo a todos, para que todos participem dele.

Talvez por isso, escrevi um dia aqueles versos. -

O poeta é um prestidigitador
faz mágicas com a vida
transforma água em vinho,
para a embriaguez da beleza

ou, quem sabe? estes outros:

Meus Deus
por que ser difícil ?

É tão fácil cantar: basta abrir a boca.
É tão fácil amar: basta abrir o coração.

Fonte:
JG de Araujo Jorge. "No Mundo da Poesia " Edição do Autor -1969

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

J. G. de Araújo Jorge (No Mundo da Poesia) " A Lua dos Poetas aos Astronautas "


" Explicação sobre este Livro”

Este livro reúne um punhado de crônicas poéticas, colhidas de mim mesmo, e da vida, ao redor.

A crônica é um velhíssimo gênero literário, entretanto, sempre atual. De Fernão Lopes a Stanislaw Ponte Preta, passou por todos os estilos, respingou todos os assuntos.

Séria. Mundana, romântica, humorista, é uma impressão leve, instantânea, sobre algo que nos emocionou, de que participamos, ou ainda, uma visão breve o que fomos, num momento de colóquio íntimo. Pela infinita variedade de temas e fatos, pela diversidade de espírito e temperamentos há uma inumerável classificação de cronistas. Mas, para mim, o verdadeiro cronista, é aquele que não precisa de assunto, não escreve sobre a sociedade, os livros, os filmes, as artes, os acontecimentos políticos. O assunto é pura e simplesmente ele mesmo, sua vida, seu mundo.

Como o meu velho e querido amigo Antônio Maria que, de copo em riste, desafiava a noite, o amor, e a solidão. Um poeta a fingir de cronista, a tentar escapar pela janela da prosa - tão rico de si mesmo, e tão perdulário, a esbanjar-se até o último momento. Por isso, quis lhe dedicar este livro, ele que escreveu, certo dia, me amparando:

"Não ligue para os que lhe torcem o nariz, ou acham bonito não gostar de seus versos. Elas gostam, e não é possível que não haja alguma razão. O sorriso desdenhoso da crítica? Ah, meu caro, que mal faz? Será esta atitude definitiva? Existem Glauces, Eunices, Teresas e Isabeis que sabem de cor os seus versos e os dizem com a mesma impertigação com que repetem o Hino Nacional. Agora mesmo, conheci um mundo de menina, olhos azuis e tudo, que após elogiá-lo dos pés à cabeça ( da alma ), disse-me, com o coração na tipóia: - Antônio Maria, você é o J.G. da prosa. E eu fiquei contente, meu caro José Guilherme."

Bem que eu poderia ter respondido: eu sim, é que gostaria de ser, não apenas o Antônio Maria da crônica, mas até da poesia. Ah, quantas vezes nos revelou o grande poeta que era, na sua "Mesa de Pista" e no "Jornal de A.M..."

Estas crônicas, em sua maioria, foram publicadas durante três anos na revista " JOIA " e outras publicadas em " O Globo " e " O Jornal ", do RJ, de Janeiro de 1967 à Agosto de 1969 . Leitores se interessaram por muitas delas, a ponto de me telefonarem, ou escreverem, sugerindo a idéia de enfeixá-las em um livro, como se merecessem escapar à vida efêmera da imprensa.

Acreditei neles, como vêem. Aqui estão, falando sobre poesia, poetas, a Vida, e alguns assuntos menos sérios. De início, pensei em publicá-los em companhia de poemas, iam fazer parte de "O Poder da Flor". Mas o livro ficaria muito volumoso com mais de quinhentas páginas, pouco prático, e caro. Resolvi então separá-las, tirei o título de uma delas, e assim nasceu este "No Mundo da Poesia".

Que consigam fazer novos amigos, novos leitores, e justifiquem a esperança de que realmente merecem uma vida mais longa, sabe lá Deus até quando.
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" A Lua dos Poetas aos Astronautas "

A lua foi sempre território dos poetas e dos namorados.

Há um aparente paradoxo em nosso tempo: enquanto cientistas, físicos e astronautas devassam os espaços com seus projéteis e se apropriam da lua, os poetas se voltam para a terra, lançam raízes e procuram o homem. Ainda ontem, pensando nisto, escrevi este poeminha:

TEMPOS

Qualquer dia destes
os homens vão encontrar Deus...

Mas não serão os filósofos,
serão os astronautas...


Os astronautas, esses seres fantásticos, caminhando pelo espaço sideral, fora das cápsulas, como escafandros do céu, em levitação, serão os primeiros habitantes do romântico satélite. E entre eles, se houver mesmo algum poeta, leremos algum dia o primeiro poema lunático, que a terra há de inspirar... Mas a verdade é que, enquanto isto ainda não acontece, a lua continua a musa em atividade. Os poetas sempre foram tidos como homens que vivem " no mundo da lua ". E quando alguém tem um ar de abstração e de sonho, é um poeta.

A lua já foi símbolo de boa, da melhor poesia brasileira de todos os tempos. Desde a poesia de rua, dos trovadores, dos violeiros, dos seresteiros, até a poesia dos livros, dos grandes literatos.

Quem não se lembra, por exemplo, daqueles versos que acordaram tantas namoradas, enquanto o violão lá fora , pela madrugada, era dedilhado ao luar?

"Lua, manda a tua luz prateada
despertar a minha amada
quero matar meus desejos
sufocá-la com meus beijos. . . "


E os grandes poetas brasileiros, como os de todo o mundo, não ficaram insensíveis à beleza da rainha da noite, ao seu mistério e aos seus encantos. Mesmo com os pés no chão, olham para o alto. E se a lua vai-lhes sendo roubada, restam-lhes as estrelas, aquelas mesmas que Bilac ouvia, recomendando:

"Amai, para entendê-las
pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas."


Eu já a vi simbolizando a própria poesia:

"Tudo é trova, a flor, a onda,
a nuvem que passa ao léu
e a lua, trova redonda,
que a noite canta no céu..."


As mais curiosas e lindas imagens ocorreram aos românticos, parnasianos, simbolistas, modernos, líricos de todas as escolas. Para Alberto de Oliveira, o hierático parnasiano, o "luar era um cortinado todo lírios na barra, e em cima estrelas".

Catulo, o nosso Catulo, que enriqueceu a poesia com imagens simples, num típico linguajar sertanejo, diz que:

"o céu parecia uma tigela
cumo o fundo azu imborcado
todo ismartado de novo
adonde a lua tão bela
ia boiando, amarela
cumo uma gema de ovo"


Até o nosso singularíssimo Augusto dos Anjos contribuiria com uma imagem, bem a seu jeito:

"Do observatório em que estou situado
a lua magra, quando a noite cresce
vista, através do vidro azul, parece
um paralelepípedo quebrado."


Está claro que esta não seria a visão dos românticos ou dos simbolistas. Para Cruz e Souza, ela se transfiguraria:

"Ó monja branca dos espaços
parece que abre para mim os braços
fria, de joelhos, trêmula, rezando."


E Alphonsus de Guimarães, das altas montanhas mineiras, como que completaria a estrofe:

"... Parece que se ouve o leve passo
da lua pobre morta que passeia
nos castelos hieráticos do espaço."


Castro Alves havia de associá-la a lembranças de amor.. E ei-lo declamando:

"Entre rendas sutis, surge medrosa
a lua plena, qual moreno seio."


Olegário Mariano, outro amoroso, teria impressões semelhantes:

"Entre as árvores surge a lua
como uma náiade nua
mostrando em suaves coleios
o torso, os braços
os seios."


Seriam infinitas as citações. Antigos ou modernos, os poetas de todas as épocas se enfeitiçaram pela beleza sua beleza. Não poucas vezes foi invocada como testemunha de amor.

Desde o idílio de Romeu e Julieta, no drama shakespeariano:

"Linda! Por esta lua que tem zelos
por ti, por este límpido luar,
que é menos puro do que teus cabelos
que brilha menos do que teu olhar..."


E a réplica, bem feminina de Julieta: "Não jures pela lua que é inconstante!"

Certa vez coloquei como epígrafe de meu livro "A Outra Face", este pensamento: "O poeta em mim, é como aquela face da lua que ninguém vê, voltada sempre para o infinito."

Não faz sentido mais. Hoje os astronautas e os foguetes teleguiados já fotografaram até a " outra face " da lua. Nosso lindo satélite não posa mais de "odalisca", com veuzinho no rosto.

Sinal dos tempos. Aviso de despejo. A lua pertence agora aos seus novos donos. Contentem-se os namorados com o luar, e os poetas, com a saudade.

"Se o cotidiano te parece pobre, não o acuse: acusa-te a ti próprio de não seres bastante poeta para conseguires te apropriar de suas riquezas."

Como quem diz: não desesperes. Colhe o mundo ao teu redor.

Aí estão o homem e suas fronteiras. Aí está, portanto, a poesia.

Rejubila-te, enquanto os foguetes sobem. A poesia sobreviverá ao ano 2000 e a todos os tempos. E por isto justamente: porque está dentro de ti e em tudo que te cerca, é que ela é imortal.

A lua dos verdadeiros poetas é a sua poesia, e esta é um satélite onde só eles podem chegar. Mas cujo luar pertence a todos nós...

Fonte:
JG de Araujo Jorge. "No Mundo da Poesia " Edição do Autor -1969

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Walquiria Raizer (Acre Poético)


DOS IPÊS

De um amarelo
Impositivo
Flutuante

(cambio, desligo)

As garrafas de fanta
Parecem tão laranja
(ali)

A escada
Tem muitos
(degraus)

Prego
Cada uma
(a seu tempo)

LARANJAS E FANTAS

Eu te avisei!
...disse Mário com cara de Maria...
(como se houvesse menos multa
quando se buzina antes de passar o sinal)

Avisou sim é verdade,
mas queria não ser entendido.
Avisou só por desencargo.
E isso não conta.

Disse que o ipê floria,
que era amarelo e só.
Disse que era desse jeito todos os anos,
e que não pensava em mudar.

Mas o ipê muda Mário,
e sou eu
é que estou te avisando.

Há de nascer laranjas nele...

Se não nascer eu mesma subo
e prego umas garrafas de fanta.

RETICÊNCIAS

vou escrever qualquer coisa
que não pareça
nada
( ! )

esse tudo
é mesmo
o que
(devasta)

CORAÇÃO ESTRANHO

Um coração estranho
E uma alma
Torta

Um coração
Estranho
E uma alma
Torta

Olha pra mim
Vê o que vês
Olha (!)
É só uma
Alma torta

Do que tens medo
Medo de quê
Sou só mais uma alma
Torta

ACELERAÇÃO

...é como se tudo tivesse
girando
Um giro calmo
(e calculado)

Um giro bom
(pro mundo)

Mas o mundo
(é grande)
E não precisa de mim
( e de ti)

Mas eu, querida
Eu preciso do mundo
E ele está aí
(flertando)

KATAUÊ

O miolo dentro da casca
(pão)

O miolo dentro
( da casca)

A casca virando


O miolo
O miolo
Miolo

Poderia
Correr
Sem
Léguas
(cem)


Um colar de castanha elétrica
Uma flor amarela
Muru

(estou tão acremente despida hoje que o açai perdeu a cor)

BILHETE PRA IDALINA

o sentimento de estrangeiro já é meu
carrego desde sempre
(não é nada que não possa viver)

e os pássaros, com suas árvores suspensas
abraçam
(ando tão menininha)

vi uma animação pra criança e me alegrei
era rosa
(nunca gostei de rosa)

escuto umas musiquinhas
e quero dançar
o mundo é tão bom

penso nas crianças do yaco
como sabem se divertir
aquelas crianças!

banhos de rio
banhos de rio
de súbido me contenho
(gente feliz, pro leitor, não tem graça)

BULA 3

não dá pra ser poeta no mar
(é desnível de concorrência)

BULA 2

contra raios de olhos solares
óculos furta-cor

LARANJEIRAS

me sinto em casa agora
como se minha alma
(se aquietasse)

o moço do mate gelado na praia
as senhoras que ainda vão à igreja
(crianças)
como se parece com um coração este jambo, meu Deus
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Walquiria Raizer



Graduou-se em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Acre e especializou-se em Jornalismo Político pelo Centro Educacional Uninorte. Devido ao engajamento pessoal com as manifestações culturais, tem o histórico profissional voltado para a política cultural. Amazônida, escritora e poetisa, publica seus textos em diversos sites amazônicos. Defende a poesia como matéria prima de todas as artes. "A poesia antecede a escrita: é sentimento." Escreve no desterro21 (http://desterro21.blogspot.com/) e no Um caso Poético (http://umcasopoetico.blogspot.com/).

A poesia de Walquíria Raizer, tal qual seus os olhos, incisivos mas doces, transmutam a maneira de sentir. É uma revelação, um encantamento, um desvendar.

O caminho da escrita é sempre esquivo, como se lidar com as miudezas das impressões do mundo fosse grandioso demais para os dez dedos e a pulsão humana, mas a Walquíria transforma isso num ato de fé. É tudo tão claro e tão inteiro!

A impressão é que ela apenas permite que as coisas todas do universo, até aquelas que não se vê e contabiliza, a tomem e façam do seu momento um ato litúrgico. Estamos curiosamente em extremos. À beira do mar, meus pés, o êxtase do Rio de Janeiro. Aos pés dela, a floresta e uma legião de encantados (e eu entre eles).

Somos filhas de um tempo que afasta, essa onipotência da mordenidade, mas permite conexões aleatórias na aldeia global. Depois do encontro, espasmódico e preciso, fizemos esse acordo tácito: ela escreve, eu leio e me desnudo. E é um ritual abrir seu blog e morrer e nascer devagarinho. Mas é preciso coragem para ler Walquíria Raizer, é preciso despudor, porque até as histórias de amor têm os seus vieses. E o dia carrega as pequenas lascas da inconstância. E ela olha esse mundo retalhado com a grandeza dos que sabem tocar. O cotidiano, tantas vezes banal e restrito, vira imenso som e ventania nesta poesia qu não se encerra.

Fontes:
www.antoniomiranda.com.br
http://umcasopoetico.blogspot.com/
– Editora da Universidade Federal do Acre

Jorge Tufic (1930)



Jorge Tufic nasceu em Sena Madureira, Acre, a 13 de agosto de 1930. Jornalista. Publicou os livros: Poesia reunida, Editora Puxirum, Manaus 1988; Retrato de mãe, Scortecci, São Paulo, 1994; Boléka - a onça invisível do universo, Scortecci, São Paulo, 1995; Agendário das sombras, O Pão, Fortaleza, 1997 e 50 poemas sem muita escolha, Livrornal, Fortaleza, 1997.

“Aí começou aos sete anos de idade, a ouvir o ponteio das violas sertanejas, acompanhando as trovas, os repentes e as saudades dos soldados da borracha, filhos do nordeste brasileiro.”

A poesia de Jorge Tufic, por isto mesmo, aspira a um registro do transcendente e do eterno, abrindo uma proposta nova no seio da arte literária de hoje, que se quer assim tão racional e cerebrina. Não lhe importa o poema elaborado. O que lhe diz respeito, preponderantemente, é o poema sentido, é o poema achado e medido a partir da sua ótica de apreensão do mundo e da sua verdade.

Sendo uma poética da solidão e da maturidade, a sua arte comporta também o interlúdio do indizível e do inefável, onde campeiam soltos os versos amazônicos e os escritos lavrados nos corredores da memória e da experiência, tudo isto ao lado de poemas celebrando mitos, lugares e pessoas, tais a poética urbana e as saudades de São Luiz e o modo de sonhar do poeta Nauro Machado. É no contorno dessas relembranças que Tufic vai organizando odes a alguns poetas modernos e recriando o rio da infância e o seu curso, às vezes com um jeito meio Severino ou Cabral, fustigando Lorca e o seu alazão andaluz, Manoel de Barros e a sua solidão pantanal.

Amazônico como Tufic. A insônia dos grilos é a fusão de diversos instantes, de inúmeras ancestralidades e a explosão de muitos parentescos. Visões, revisões, viagens. Recordações de becos, agendas e botecos. É como se o carrossel do sonho estivesse a embalar uma grande dor e a poeira dos seus fragmentos. É como se o livro todo fosse um atestado mesmo da lírica literária mais alta e da melhor poesia brasileira deste final de século. (Dimas Macedo)

Fontes:
Antonio Miranda
Jornal de Poesia