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quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Ademar Macedo (O Homem atrás do Escritor, o Escritor atrás do Homem)



Entrevista concedida pelo poeta potiguar para José Feldman,  em 26 de novembro de 2010.
O poeta faleceu anteontem, 15 de janeiro de 2013 de câncer.

INFANCIA E PRIMEIROS LIVROS

JF: Conte um pouco de sua trajetória de vida, onde nasceu, onde cresceu, o que estudou.

AM: Nasci em Santana do Matos/RN, no dia 10 de setembro de 1951, aos oito anos fui morar em Zabelê, município de Touros também no Rio Grande do Norte, onde fiquei até 1963, quando mudamos para Natal, onde terminei o primário e através de uma seleção (concurso), em 1965 fui para o Ginásio Agrícola de Ceará-Mirim/RN; terminando o ginásio voltei para Natal onde fiz o Científico (naquela época) que era o 2º Grau. Em 1971 entrei Para o Corpo de Fuzileiros Navais, passei no 1º concurso para Cabo, fui cursar no Rio de Janeiro e nunca mais estudei. Voltei para Natal em 1980 e em 81 perdi uma perna num acidente.

JF: Como era a formação de um jovem naquele tempo? E a disciplina, como era?

AM: No Ginásio agrícola (que era um Internato) Sob o duro comando de Paulo Mesquita, o Diretor, um Oficial Reformado da Aeronáutica, eu tive a melhor aprendizagem da minha vida, lá era um verdadeiro quartel, mas até hoje eu agradeço pelos seus ensinamentos, principalmente no que tange a moral, dignidade, honestidade que me acompanham até Hoje!

JF: Recebeu estímulo na casa da sua infância?

AM: Perdi meu Pai muito cedo, aos 7 anos, minha infância foi um tanto difícil, mas minha Mãe e meu irmão mais velho nunca deixaram faltar nada, Inclusive o estímulo.

JF: Quais livros foram marcantes antes de começar a escrever?

AM: Confesso que nunca fui muito de ler...Lembro bem de “O Pequeno Príncipe” e alguns pouco mais.

JF: Como foi que você chegou à poesia e às trovas?

AM: Tudo começou após o meu acidente. Numa maneira de passar melhor o tempo, comecei a frequentar cantorias de viola, festivais de Violeiros, tudo o que dizia respeito a Poesia Popular, e por meu Pai ter sido Poeta, eu sentia correr nas minhas veias o sangue da Poesia e comecei a fazer algumas estrofes; e meus irmãos Francisco Macedo e Augusto Macedo (falecido) que já eram poetas, me disseram que eu levava jeito pra coisa! Eu, já poeta popular, conhecido em todo estado devido as minhas declamações nas rádios: (Rural de Natal, Rádio Poti e 98FM), fui convidado por José Lucas de Barros, que assistia as minhas declamações nas cantorias e nos festivais e por Joamir Medeiros, que me ouvia nas Rádios, para ingressar na ATRN (Academia de Trovas do R.G.do Norte), fui sabatinado e após uma comissão analisar as trovas feitas por mim, fui aprovado e lá estou desde 2004.

SEUS TEXTOS E PREMIOS:

JF: Você possui livros? Se sim, em que você se inspirou em seus livros?

AM: Lancei o meu primeiro Livro em 1993: “...E DA DOR SE FEZ POESIA.” E tenho ainda os seguintes Livros (Em Parceria): “POESIAS EM QUATRO VERSOS”, “DOIS POETAS EM SETILHAS”, “UM DEBATE EM SETILHA AGALOPADA”, “NOS ARPEJOS DAS SETILHAS” e “UM ROJÃO EM SEXTILHA AGALOPADA”. Já prontos tenho: “SEXTETO EM SEXTILHAS”, “SEXTETO POTIGUAR”, “SEXTILHAS A QUATRO VOZES”, “TRÊS À MESA DA POESIA”, E em andamento: “NO COMPASSO DAS SETILHAS”. 

Editei um Cordel que intitulei: “DIVAGAÇÕES POÉTICAS”
E tenho dois CDs declamando Poesias: “NA CADÊNCIA DA POESIA” e “O POETA E A RAPOSA”(Com minhas declamações ao vivo, na 98 FM)
E tenho um Livro pronto esperando ajuda para publicação, que se chama: “...E DA POESIA SE FEZ O ABSURSO”, é um livro inspirado em ZÉ LIMEIRA, o Poeta do Absurdo.
A inspiração para tudo isso veio, com certeza, da Natureza e do Sertão!

JF: Como definiria seu estilo literário? 

AM: Como escrevo poesia popular nordestina, o estilo predominante é o Cordel.

JF: Dentre os livros escritos por você, qual te chamou mais atenção? E por quê?

AM: É muito difícil um Pai amar os seus Filhos de maneira diferente, assim é com os Livros; no entanto, para mim, o Livro onde mais eu me inspirei, onde estão as melhores poesias É: “UM DEBATE EM SETILHA AGALOPADA”.

JF: Qual a sua opinião a respeito da Internet? A seu ver, ela tem contribuído para a difusão do seu trabalho?

AM: Basta dizer que os livros em parceria (DEZ) foram todos feitos pela Internet, Por exemplo: “TRÊS À MESA DA POESIA”, Zé Lucas me mandou a sua estrofe, eu respondi e enviei as duas para o Professor Garcia, que por sua vez, me respondeu e as enviou para Zé Lucas e assim sucessivamente até chegar 150 estrofes. VEJAM AS TRÊS PRIMEIRAS:

01 - Zé Lucas
Com Ademar e Garcia
vou pelejar desta vez,
enchendo a taça dos versos
com carinho e lucidez,
para que o vinho sagrado
das musas dê para os três.

02 - Ademar
Vou beber com honradez
uma taça todo dia,
e eu peço a Deus neste verso
talento e sabedoria,
e que este vinho sagrado
me embriague de poesia.

03 - Prof. Garcia
Eu vou beber todo dia
para afastar o meu pranto,
deste vinho que embriaga
e nunca me causa espanto,
porque o vinho do verso
tanto é puro quanto é santo.

JF: Tem prêmios literários?

AM: Eu já fui premiado em 21 Cidades de diferentes estados da nossa federação; mas estas premiações foram todas em Concursos Nacionais de Trovas. Tive também alguns Prêmios em “Poesia” apenas aqui no meu Estado.


CRIAÇÃO LITERÁRIA :

JF: Você precisa ter uma situação psicologicamente muito definida ou já chegou num ponto em que é só fazer um “clic” e a musa pinta de lá de dentro? Para se inspirar literariamente, precisa de algum ambiente especial ?

AM: Esta eu vou responder com uma Trova e uma estrofe apenas:

“Vi à luz de lamparina,
em inspirações imerso
que a musa se faz menina
para brincar no meu verso.”

“Na inspiração do poeta
sinto um pouco de magia,
porque toda estrofe minha
me fascina e me extasia;
e em cada verso que faço
vou mastigando um pedaço
do pão da minha poesia.”

JF: Você projeta os seus textos? Ou seja, você projeta a ação, você projeta o esquema narrativo antes? Como é que você concebe os textos?

AM: Não projeto nada, os versos nascem assim...de repente.

JF: Você acredita que para ser poeta ou trovador basta somente exercitar a escrita ou vocação é essencial?

AM: A poesia é um dom divino, nenhuma escola ensina você se tornar Poeta...O Poeta já nasce feito!

A PESSOA POR TRÁS DO ESCRITOR :

JF: O que o choca hoje em dia?

AM: A violência. (que é a falta de Deus no coração das pessoa...)

JF: O que lê hoje?

AM: Livros de Poesias...

JF: Você possui algum projeto que pretende ainda desenvolver?

AM: Divulgar a poesia nas escolas...

JF: De que forma você vê a cultura popular nos tempos atuais de globalização?

AM: Com a mesma visão de sempre...Falta de apoio para a edição de Livros e Etc...

CONSELHOS PARA OS ESCRITORES :

JF: Que conselho daria a uma pessoa que começasse agora a escrever ?

AM: Que tenha muito amor pelo que faz e muita Fé. Quem sabe, um dia você encontre uma porta aberta!

JF: O que é preciso para ser um bom poeta ou/e trovador?

AM: ...Apenas Inspiração.

JF: Gostaria de acrescentar mais alguma coisa? Outros trabalhos culturais, opiniões, crítica, etc.

AM: Queria apenas agradecer esta oportunidade que me foi dada, para que eu pudesse aqui, da forma mais sincera, me desnudar poeticamente perante todos vocês...

JF: Se Deus parasse na tua frente e lhe concedesse três desejos, quais seriam?

AM: Seriam apenas de agradecimentos por tudo o que Ele tem feito na minha vida... Resumindo:

Nunca quis ganhar fama nem cartaz,
sou feliz no papel que desempenho,
sou um homem de fé, temente a Deus,
não reclamo do peso do meu lenho
nem de tudo na vida que padeço...
Eu já tenho até mais do que mereço
e me sinto feliz com o que tenho!

JF: Para finalizar, um poema e trovas de sua autoria que possui um carinho especial.

POESIA

Há sorriso que fere e que magoa
e há pranto que comove e traz alento,
e os que trazem a dor e o sofrimento
deixam marcas no rosto da pessoa;
e por mais que este pranto não lhe doa
deixará para sempre uma seqüela,
que se faz cicatriz no rosto dela
maculando esta dor que não termina;
se tiver que chorar feche a cortina,
quando for pra sorrir, abra a janela.

TROVAS:
Fiz minha casa de barro
ao lado de uma favela.
Lá fora, eu sei, não tem carro,
mas tem amor dentro dela!...

Após causar desencantos
e nos fazer peregrinos,
a seca faz chover prantos
nos olhos dos nordestinos!

O grande desmatamento,
por ganância ou esperteza,
põe rugas de sofrimento
no rosto da natureza...

Quando a inspiração lhe acena,
o bom Trovador se expande.
Numa Trova tão pequena,
faz um poema tão grande!

Quem se entrega a solidão
e dela se faz refém,
anda em meio à multidão
mas não enxerga ninguém!

Numa combatividade,
cheia de brilho e de glória,
saber perder, na verdade,
é também uma Vitória!

Na Floresta, a “derrubada”
deixa em minha alma seqüela,
pois a dor da machadada
dói mais em mim do que nela.

Ademar Macedo ainda complementa mais sobre ele:

UM POUCO MAIS DE MIM:

Como eu relatei no início, Eu Sou um Fuzileiro Naval (Reformado) perdi uma perna num acidente no ano de 1981, desde então me entreguei de corpo e alma a Poesia. Em 2006 tive um câncer no intestino, me operei no dia 09/05/2006, no Rio de Janeiro; fiz 52 Quimioterapias e 25 Radioterapias, terminei o tratamento no dia 20 de Outubro do mesmo ano, e como DEUS é Maravilhoso acredito que eu já esteja Curado, pois eu Estou sendo acompanhado aqui em Natal pela Liga contra o Câncer através de exames feitos de 6 em 6 meses, e agora em Setembro último fiz uma Colonoscopia e havia um pólipo que foi retirado para fazer a biópsia e deu o seguinte resultado: “ausência de malignidade no material Examinado” E Deus, na sua misericórdia, além do dom da Poesia deu-me também a Cura. E hoje a minha vida é regida pelo AMOR, pela ALEGRIA e pela FÉ, e são baseados nesses temas que nascem a inspiração para as minhas poesias e Graças ao nosso bom DEUS e a minha FÉ, é que estou hoje aqui contando a minha história...

Em Versos:
Guardei todos momentos que passei
de ternura, de carinho e de amor,
momentos que na vida mais gozei
e os momentos que mais eu senti dor.
O momento feliz da minha vida,
quando Deus curou em mim uma ferida,
que os médicos diziam não ter jeito,
e apesar de hoje eu ser um mutilado,
guardo sempre as lembranças do passado
pra curar as feridas do meu peito!...

A minha poesia é Santa
porque é Deus quem a projeta,
pois ele mesmo é quem planta
no coração do poeta;
pois todos os versos meus
vêm lá da mansão de Deus
como se fosse uma luz;
são escritos com emoção
pela minha própria mão,
mas seu autor, é Jesus!...

Quero então quando eu morrer,
feito em letras garrafais,
aquela minha poesia
que me deu nome e cartaz;
e escrito, seja onde for:
– Eis aqui um trovador
que morreu feliz demais!

Abraços Fraternos:
Ademar Macedo.

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Antônio Martins (Memória Viva de São Luís em Xeque)


 Antônio Martins de Araújo nasceu em São Luís do Maranhão, numa meia-morada situada na rua dos Afogados, esquina com a rua do Ribeirão, tendo em frente a Fonte do Ribeirão, no dia 1º de agosto de 1932. O escritor é Doutor em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, tendo se aposentado como professor de Língua Portuguesa por essa instituição. É considerado o maior expert, no Brasil, no que se refere à obra de Arthur Azevedo. Ocupa atualmente a presidência da Academia Brasileira de Filologia - ABF e é membro da Academia Maranhense de Letras - AML, trabalhando ainda como professor do Instituto de Língua Portuguesa do Liceu Literário Português. Entre suas principais obras é possível mencionar: Arthur Azevedo – a palavra e o riso, Noel Rosa – língua e estilo (em parceria com Castelar de Carvalho), A herança de João de Barros e outros estudos, Chão do Tempo, e O peito do Pelicano - ensaios maranhenses. Numa bela manhã do início de setembro deste ano, Antônio Martins de Araújo concedeu ao Guesa Errante a entrevista que publicamos abaixo. O intelectual maranhense mora no Rio de Janeiro.

Paulo Melo Sousa - Caro mestre Antônio Martins, quais as recordações mais antigas da sua infância, vividas em São Luís? 

Antônio Martins de Araújo - Eu me lembro bem da casa na qual nasci, local em que meu pai manteve um comércio durante a segunda guerra mundial. Em 1938 ele abriu falência, eu tinha seis anos de idade, foi quando ele perdeu a Mercearia Gaúcha. Ele vendia a crédito para os garis da prefeitura de São Luís e, na época, sofreu um calote de 30 contos de réis. As compras dos garis eram descontadas dos salários deles, por intermédio de meu padrinho, um maçon chamado seu Cruz. Aí o governo mudou em 1938, e o substituto de seu Cruz, Agenor Vieira, não honrou os compromissos assumidos com a mercearia. Então, meu pai foi obrigado a vender tudo e fomos embora para Viana, terra natal do meu pai. Lá eu estudei no Colégio Municipal entre os seis e os sete anos de idade. Tenho muitas saudades do lago de Viana, das mocorocas e das enchentes. Dessa época tenho uma recordação magnífica, lembro de histórias que conto no meu livro “Menino do Ribeirão”, que ainda não publiquei, já que existem dois capítulos da obra nos quais relato as minhas primeiras experiências sexuais, e como as meninas ainda estão vivas, uma delas casada, o livro só será publicado trinta anos depois da minha morte (risos).

Em seguida, a sua família retornou a São Luís... 

Sim, e aí eu estudei aqui no Colégio Justo Jansen, que funcionava num sobradão situado na rua da Cruz, esquina com a rua dos Afogados. Ali, tive uma experiência muito boa, pois estudava pela manhã e, na parte da tarde, quatro portas além da minha casa, tinha aula particular com a professora Maria de Lourdes Garrido. A ela devo a minha orientação para fazer o exame de admissão ao Colégio Marista, no qual fui aprovado de imediato, aos 11 anos de idade. Poucos anos depois, aos 15 anos, comecei a dar aulas de Português e História do Brasil na Escola Champagnat, uma espécie de escola supletiva, que funcionava à noite. No entanto, na minha formação, eu digo que a minha primeira universidade foi o Teatro Arthur Azevedo, o mundo recontado através da arte.

Como aconteceu esse seu contato com o teatro? 

Entre os meus 5 anos e os 15 anos de idade, a minha madrinha, Edith Barbosa Pinto, mãe de criação da minha mãe, Edith Raposo Martins Araújo, era quem me levava ao teatro. Ela vendia cafezinho e mingau de milho aos atores e para alguns outros fregueses. Dessa forma, eu assisti de graça aos espetáculos de todas as companhias de teatro que passaram por São Luís de 1937 a 1947. Quando digo que a minha primeira formação superior aconteceu no Arthur Azevedo é porque ali tive o privilégio de assistir às apresentações de nomes magistrais do teatro, tais como a Companhia dos Estudantes de Coimbra, as operetas dos irmãos Vicente Celestino, peças com Pascoal Carlos Magno, Eva Tudor, Iracema de Alencar, Henriette Morineau, Lenita Bruno. Em homenagem a essa atriz, que, entre 1937 e 1947, brilhou intensamente por mais de uma vez no Teatro Arthur Azevedo, e me dedicava, eu menino ainda, um carinho muito especial, sugeri à minha mãe que pusesse o nome de Lenita à minha segunda irmã, o que foi feito. Foi na nossa principal casa de espetáculos que, sob o prisma da arte cênica, o universo à minha volta se revelou a mim.

Esse seu interesse pelo teatro continuou quando você foi morar no Rio de Janeiro... 

É verdade. O ator Delorges Caminha, marido da atriz francesa Henriette Morineau, foi o meu primeiro diretor na Escola de Teatro Martins Pena. Tive também lá como meus diretores, entre outros, o brilhante ator José Wilker e o excelente bailarino Klaus Viana. As aulas de Impostação da Voz eu só ministrei duas ou três vezes, após fazer um curso intensivo, nos anos 60, com a professora cearense Glória Beutmuller, radicada no Rio, há muitos anos. Eu também lecionava sobre História do Espetáculo, mas, não recuava até 5 mil anos antes de Cristo quando, na ilha de Bali, praticamente nasceu o teatro. Ainda hoje os atores representam nessa ilha o espetáculo do embate entre o bem e o mal, e, quem faz o papel do demônio se deixa atravessar por uma espada e não sangra, já que o golpe desferido não atinge os órgãos vitais. Trata-se de uma cultura milenar, diante da qual devemos tirar o chapéu. Lá é que nasceu realmente o teatro. Isso pode não ter tido influência alguma sobre o teatro greco-romano, mas, é uma ilusão. Quando se diz que Monteiro Lobato foi um grande contador de estórias, isso é conversa fiada, já que ele recontou estórias que La Fontaine já contava. E aí quando se diz que La Fontaine era um grande contador de estórias, fábulas, isso também é conversa fiada, já que ele bebeu nas fábulas de Esopo...

 Isso nos lembra a ideia do eterno retorno, de Nietzsche, e ainda de Jorge Luís Borges, na obra “História da Eternidade”; ali, num pequeno ensaio intitulado “A doutrina dos ciclos”, ele escreve que “num tempo infinito, o número de permutações possíveis deve ser alcançado, e o universo deverá se repetir”... Sim. E então poderíamos pensar que a cultura greco-romana é o berço da nossa cultura. Nesse particular específico do fabulário, a história nos ensina que a literatura europeia ocidental, grosso modo, possui origem nas estórias de animais encontradas nos livros sagrados hindus do Mahabharata e do Rig Veda, que são muito anteriores à cultura helênica. Assim também, quando se fala de gíria, muita gente pensa que é criação tupiniquim, quando, na verdade, foi a tribo dos bazigares oriundos, creio, que da Hungria, que a teria criado. Procurei mostrar como chegou até nós esse gosto pela gíria em meu ensaio “Arthur Azevedo: a Palavra e o Riso”, co-editado em 1988 pela prestigiosa Editora Perspectiva e pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. Então, nós temos que tirar o nosso chapéu para a lei de Lavoisier, que diz que “na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”. O Chacrinha tinha uma paráfrase do Lavoisier: “na vida nada se perde, nada se cria, tudo se copia”...(risos!).

Mestre Martins, fale-nos sobre a sua inserção no movimento cultural maranhense de então..

Muito me agrada a sua pergunta. Nós nos reuníamos no Centro Cultural Gonçalves Dias, cujas sessões eram realizadas no Grêmio Lítero Recreativo Português, ali em frente à praça João Lisboa, aonde assisti a declamações de poesia de Ferreira Gullar, que hoje tem ódio ao seu livro de estréia, “Luta Corporal”. No entanto, acho que esse livro marca a trajetória ascensional do Gullar. Nós nos reuníamos também no Café do Chico, em frente à João Lisboa, situado na esquina da rua de Nazaré, de onde se defrontava a Livraria Moderna. Ali nós líamos os nossos poemas uns para os outros e, quando um dizia que era para se rasgar o texto, que estava uma merda, nós rasgávamos o poema na mesma hora, respeitávamos a opinião dos amigos, todos bem informados. Ali se encontrava o Sarney, o Tobias Pinheiro, o Gullar. Também havia encontros na galeria do Paiva, na Movelaria Guanabara, situada na rua do Sol. Nós, um pouco mais jovens, nos reuníamos na casa de Zé Mário Santos, grande orador, que ficava no Campo de Ourique, perto da praça Deodoro. Eu era liderança da “Agremiação Liberal Acadêmica - ALA” e ele era líder do “Movimento Nacionalista Acadêmico - MNA”, e nessa casa eu me reunia com Manoel Lopes, Clóvis Sena, que faleceu recentemente.

No entanto, os encontros sempre estavam ligados a questões culturais... 

Sempre. Eu me lembro que nós tivemos a oportunidade de receber por lá a visita de Darcy Ribeiro e de um parente do famoso escritor Aldous Huxley, o antropólogo Francis Huxley, de procedência inglesa. Então, ele resolveu declamar um trecho de Shakespeare, que era muito onomatopaico. Na sua declamação, ele fazia ohhhhh, aliado a uns trejeitos meio estranhos e nós nos danamos a rir, foi um surto de riso vexaminoso (risos), que pegou muito mal. O rapaz estava querendo fazer uma homenagem a nós, declamando da melhor forma possível, mas, os trejeitos dele eram muito cômicos (risos). Um dia nós fomos almoçar num restaurante que ficava nos fundos da atual Academia Maranhense de Letras, e eu fiquei admirando o tamanho dos sapatos do Darcy. Então, ele me disse: “já sei, Antônio, você está achando o sapato exagerado, mas, é que eu e o Francis vamos pisar na tribo dos índios Urubus-Kaapor, e tenho que me proteger dos tocos do mato, né? Por isso os sapatões que usamos”. Então, essa geração nos deu muitas alegrias.

Até que idade você morou em São Luís, e qual a razão da sua partida? 

A minha partida daqui se deveu a uma experiência altamente frustrante, ao mesmo tempo em que foi altamente redentora. Eu acabara de fundar, quando tinha uns 27 anos de idade, um colégio chamado Ginásio Operário Getúlio Vargas, no âmbito da Campanha Nacional de Educandários Gratuitos, no bairro do Lira. Dr. Elói Coelho Neto era o presidente dessa instituição, no Maranhão, da qual eu era Secretário Geral. Nós fundamos vários colégios pelo interior do Maranhão, em Codó, Coroatá e outros municípios. Quando eu estava prestes a me tornar diretor da instituição, o governador Newton Belo me convidou para ser diretor do Liceu Maranhense, eu tinha apenas 28 anos de idade. Nos quatro anos em que permaneci ali, com um grande amigo, meu compadre, padrinho de um filho meu, o saudoso Merval Lebre Santiago, eu tive experiências ‘magníficas’, já que grandes ‘amigos’ que eu ajudei a colocar no Liceu me traíram posteriormente, disputando a diretoria, como é o caso de um pernambucano mau caráter chamado Gildo Cordeiro Rosa, que reprovava os alunos para depois ensinar matemática aos mesmos alunos, de forma particular, para poder aprová-los. Eu vivia recebendo pauladas do Jornal Pequeno, do meu amigo Bogéa, e do Neiva Moreira, que era diretor do Jornal do Povo. Faltava energia e no outro dia surgia a manchete: ‘diretor irresponsável do Liceu suspende as aulas’... Como é que se poderia dar aulas com velas? Era na época do João Goulart, greve atrás de greve, jogavam bombas na porta da escola, então eu mandava os alunos para casa.

Período conturbado... 

Pois é, e aquilo me cansou a beleza, eu já tinha 32 anos. Então, resolvi fazer concurso para professor no Rio de Janeiro. Na ocasião, falei com o grande comandante, grande amigo meu, Renato Archer, que tinha grande trânsito junto à Panair. O Renato me ajudou com a passagem, eu era pobre, e fui fazer concurso na Escola Técnica Federal, na Universidade Gama Filho e na Escola Naval. Então, fui aprovado e me transferi para o Rio de Janeiro. Foi o início da minha redenção, pois eu dava 72 horas de aula no Maranhão, acumulava a direção do Liceu durante a manhã e à noite. Durante a tarde, funcionava a Escola Normal, sob o comando de Oceanira Galvão, descendente do grande poeta maranhense Trajano Galvão. Então, no Rio de Janeiro passei a trabalhar oito horas a menos e a ganhar seis vezes mais. Vivi durante dois anos na rua Maranhão, perto da escola Maranhão, da farmácia e da padaria Maranhão, para não fugir à tradição...(risos). Então, não cortei de uma vez o cordão umbilical com a minha terra, fui me despedindo do Maranhão aos poucos. Depois de dois anos comprei meu apartamento na rua do Copacabana Palace, onde moro até hoje.

Depois de tanto tempo fora do Maranhão, as suas vindas a São Luís são sempre marcantes... 

São Luís é sempre um encantamento. Essa prosápia, essa fidalguia, esse orgulho que o Maranhão tem de praticar o melhor português do Brasil, sem favor nenhum, porque o Maranhão já nasce com essa vocação para respeitar o idioma pátrio, que é uma prova de bom caráter, realmente me impressiona. Havia um sujeito pichando uma das paredes da cidade e quebraram o maior pau em cima dele não por causa da pichação, mas, em razão de ele ter escrito à bessa com dois esses em vez de à beça, desrespeitando a língua portuguesa; só mesmo no Maranhão existem essas coisas.

E seus planos futuros? 

Ano que vem vou fazer pela quarta vez 20 anos de idade...(risos)...não ria não porque a coisa é séria...(risos)...já estou descendo a ladeira...(risos)...mas vou descendo e também subindo, agora mesmo estou dando aulas para um curso de mestrado em Cruzeiro do Sul, perto de Rio Branco, formando uma turma de 50 mestrandos. Em maio ministrei aulas de Linguística Aplicada ao Ensino de Letras Neolatinas, área da minha formação, e tenho textos inéditos à espera de publicação; enfim, continuo escrevendo, produzindo sempre.

Fonte:
Suplemento Cultural & Literário JP Guesa Errante. Ano X. Edição 238. 5 de outubro de 2011.

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Dyonelio Machado (Entrevista:: “Escrevi Os Ratos em 20 noites”)


(Esta entrevista foi organizada a partir do depoimento de Dyonelio Machado a Fernando Paixão e Nelson dos Reis, em 1981, e está publicada na 20º edição nas primeiras páginas do livro “Os Ratos”, da editora Ática.)

Quando o senhor começou a se dedicar à literatura?

Eu já estava na Escola de Medicina quando isso aconteceu. E aconteceu como um relâmpago: Escrevi um livro polêmico (A política contemporânea, publicado em 1923), onde eu metia o pau no governo de então. Mas com base, porque eu nunca fiz nada que não tivesse base. Alguns, inclusive, reconhecem essa qualidade em mim. Eu tiro do ar a poesia, a imaginação, mas tudo tem base real, e isso eu creio muito importante em termos de literatura.

E como nasceu “Os ratos”, seu livro mais famoso?

A história se passa em um dia. Eu o escrevi em vinte noites - num dezembro, durante um verão maravilhoso -, após terminar meu trabalho como médico. O que eu escrevia de noite ia passando para a minha mulher ler. Todo o livro estava muito claro pra mim, porque eu havia passado nove anos pensando nesse livrinho. Então eu saía para atender os doentes, no hospício onde eu era médico e nos dois hospitais onde também trabalhava, e, após tudo isso, ia pra casa e começava a escrever. Uma mocinha que era empregada da Livraria Globo, a principal de Porto Alegre, me foi indicada pelo Érico Veríssimo para datilografar o trabalho. Num dia, eu levava uma folha manuscrita e pegava uma datilografada, e assim o trabalho ia avançando. Numa dessas vezes ela perguntou: “Escute, doutor, o Naziazeno vai ser feliz?” – O Naziazeno é o personagem central . Eu lhe respondi: “Leia tudo, que você vai ver”. Foi assim que descobri que “Os Ratos” era um romance.

Em 1935, o senhor recebeu o prêmio Machado de Assis, como foi isso?

Quando eu escrevi “Os Ratos”, hesitei em mandar para o concurso da Academia, mas acabei mandando. Eu soube da premiação, quando estava preso, incomunicável, no porão de um navio estacionado no porto de Santos. Apesar disso, teve um sujeito que conseguiu me avisar do prêmio.

O senhor foi político, psiquiatra, escritor: em quais destes papéis mais se realizou?

Eu não me considero realizado em nada.

Qual dos seus livros lhe agrada mais?

Primeiramente, eu vou para qualquer um dos meus livros negaceando – vocês conhecem esse termo gaúcho? Eu vou perguntando: “Será que eu leio?”. Aí, eu vou lendo, lendo, e no final digo para a pobre da minha esposa: “Olha, esse livro é bom!”. E ela agüenta essa minha opinião sobre meu livro! Agora veja bem: Pra mim, ou tudo presta ou tudo não presta. É muito melhor que o leitor faça a escolha.

E a crítica, como o senhor a vê?

A crítica entende como quer. Não há crítica boa ou má. A crítica é um momento às vezes do próprio ledor, outras vezes do que está vigorando como escola, etc. A crítica é tremendamente subjetiva. Veja só: Camões fez aquela coisa maravilhosa que é “Os Lusíadas”, e depois vieram uns alunos de Coimbra e fizeram modificações, fizeram alterações sem sentido. De modo que a crítica pra mim só tem um valor: polemizar. Mas a crítica é boa quando aponta coisas.

Até 1970, o senhor era pouco conhecido no Brasil todo. Mas, a partir daí, todo mundo tomou conhecimento de Dyonelio Machado. Como o senhor vê isso?

Eu temo que essa coisa fique muito grande e depois caia. Isso tem que vir devagar, às colheradas. Um cidadão, que havia ido a um sebo comprar um livro antigo, certa vez me perguntou: “Mas por que os seus livros estão sendo procurados?”. Eu respondi: “Foi porque eu morri.” Então ele me disse: “Ah, deixe disso!”. Eu retornei: “Foi morte, sim,porque somente depois de morto o escritor foi reconhecido”. Há várias mortes, e me pegaram para uma delas.

E essa morte é boa?

Não há morte boa. Mas veja, eu falo de coisas simbólicas. Existem muitas coisas estranhas que têm o valor de coisas reais. Toda a vida se fez assim, não é? Eu acho que todos nós somos simbolistas: nós não somos nós, somos uma imagem de nós. Toda poesia é fundamental, mesmo na prosa mais prosaica.

Fonte:
Escritores do Sul – www.escritoresdosul.com.br
(este site está desativado)

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Érico Veríssimo (Uma entrevista, 2 anos antes de sua morte)


Pintura de Tânia Hanauer
*Esta entrevista foi publicada originalmente no jornal Opinião (SP), de 05/02/1973, com o título: Sou contra a censura, e republicada em VERÍSSIMO, Érico. A liberdade de escrever: entrevistas sobre literatura e política. São Paulo: Globo, 1999, de onde foi extraída. 

 Porto Alegre, Érico Veríssimo falando ao Opinião:

"Quero começar com um elogio (...). Agora vem a reclamação. Quase todas as perguntas que vocês me fazem na realidade exigem como resposta um longo ensaio. Ora, não sou ensaísta. Um romancista é antes de mais nada um intuitivo. Quando ele se aventura a analisar seus próprios livros, a fazer a sua exegese, mete os pés pela mãos. Se há uma coisa que não me preocupa nem me ocupa agora é a interpretação dos livros que já escrevi e publiquei. Dados esses esclarecimentos, vamos às respostas".

- A História é a matéria básica da sua ficção em pelo menos dois livros seus: O tempo e o vento e Incidente em Antares. Qual a importância da realidade histórica para a sua literatura? 

Ninguém pode fugir à História... e lá se foi o primeiro lugar-comum. Clara ou oculta, essa "senhora", está presente em todos os meus romances. Sempre considerei importante. Não só ela mas também esse cavalheiro, mais misterioso ainda, sem o qual ela não poderia existir: o Tempo. Como é possível desenvolver, fazer viver um personagem, um grupo social, fora do tempo e da História? Como se poderia contar uma fábula num vácuo temporal e espacial? Claro, com artifícios de linguagem, com refinamento de técnica, é possível dar ao leitor a impressão de que o romance não tem quando nem onde. Acho que qualquer autor tem o direito de escrever o que entende, o que sabe, esquivando-se do que lhe pode confundir o espírito. O importante é que o livro seja bom. É preciso não esquecer que a História não é sinônimo perfeito de Política ou que a política não pode ou deve ser sempre partidária. No meu caso particular, tenho sido naturalmente levado em minhas ficções para problemas políticos que vivi, em geral, como espectador. Graças aos meios de comunicação modernos, hoje em dia os acontecimentos nos chegam de todos os quadrantes do mundo com mais rapidez e força.

- No Prefácio de O reino deste mundo, Alejo Carpentier postula para o romancista latino-americano a necessidade de incorporar à sua ficção a "realidade mágica". O senhor o faz, em certa medida, em Incidente em Antares. Acha que esse também é um caminho para a nossa ficção?

Conheci Alejo Carpentier em 1954, quando ele estava exilado na Venezuela por causa da ditadura do sargento Batista. É um grande romancista (Alejo, não Batista). Concordo com ele quanto à fatalidade, digamos assim, que nos impeliu para o "realismo mágico". Note-se que o adjetivo "mágico" aqui significa também "absurdo". Nossa América Latina é um território de prodígios, de maravilhas e misérias, de sustos e êxtases. Nela tudo pode acontecer. Seu tamanho, suas selvas e cordilheiras, sua gente sofrida e estranha, sua História nos induzem a uma realidade que pouco tem a ver com o "normal" cotidiano. Principalmente a América espanhola. Todos os "impossíveis" que nos narra o incomparável Gabriel Garcia Márquez em "Cem anos de solidão" tornam-se uma realidade que o leitor aceita. Não creio que tenha feito propriamente "realismo mágico" em "Incidente em Antares". O realismo mágico verdadeiro é o desses romancistas hispano-americanos (Cortázar, Carpentier, Borges...e quantos outros mais?). É todo um clima que pervaga o romance ou o conto do princípio ao fim. Se acredito que esse "realismo mágico" pode ser um caminho para a nossa ficção? Ora, todos os caminhos nos estão aberto. É muito perigoso traçar roteiros definitivos para qualquer literatura. Pensemos, por exemplo, no Rio Grande do Sul, na nossa paisagem verde e desafogada, na nossa população de origem européia, na nossa pobreza folclórica, na nossa quase ausência de "mistério à flor da terra" e havemos de concluir que o realismo mágico aqui seria algo postiço. Mas está claro que temos muitos assuntos ainda inexplorados no nosso Estado. Josué Guimarães acaba de atirar-se corajosamente a um deles em "A ferro e fogo", primeira parte de uma trilogia sobre a colonização alemã no R.G. do Sul, e da qual nos deu recentemente o primeiro volume: "Tempo de solidão". Recorrendo aos que me leem, esse romance é feito com grande economia verbal, eu diria mesmo escrito em preto e branco, Josué Guimarães consegue nele criar uma atmosfera, o que me parece das coisas mais difíceis em ficção.

- De Clarissa a Incidente em Antares haverá, certamente, uma evolução na sua literatura. Quais as linhas-mestras dessa evolução?

Eu lhe pediria que eliminasse, de saída, a expressão linhas-mestras, que me assusta um pouco e pode me embrulhar o espírito. Usando de uma simplificação que os psicólogos não aprovam, direi que tenho dentro de mim um poeta, um romântico em turras permanentes com um realista dotado de veia satírica. Em Clarissa predominou o poeta, ou se preferirem, o pintor aquarelista. Logo depois o satirista chutou o poeta e escreveu Caminhos cruzados. A seguir, ambos se uniram e produziram Um lugar ao Sol. Pode-se passar a vida escrevendo novelinhas-poemas como Clarissa se fecharmos os olhos a certos aspectos sórdidos e negativos da vida. Gosto muito do ditado anglo-saxão segundo o qual " é preciso um pouco de tudo para fazer-se um mundo". É preciso saber que as condições econômicas de minha vida pessoal, particular, influenciaram muito os romances que escrevi entre 1933 e 1940. Observe-se como meus personagens dos livros dessa época preocupavam-se com as contas a pagar no fim do mês. Eu trabalhava longa e duramente durante mais de 12 horas por dia. Traduzia livros de várias línguas para o português (mais de 40), inventava histórias para programas de rádio para a infância, armava páginas femininas para o Correio do Povo, tudo isso enquanto trabalhava na revista e na editora da Livraria do Globo. Isso explica a pressa com que escrevi meus próprios romances naquela década de 30. Considero essa fase de minha carreira um período de exercícios em que me preparei, consciente ou inconscientemente, para a obra com que comecei a sonhar depois de 1935 e que acabou sendo publicada a partir de 1949 sob o título geral de O tempo e o vento. Depois de Olhai os lírios do campo, romance cheio de defeitos, mas com grande carga emocional, comecei a ganhar royalties que melhoraram minha situação econômica. Pude trabalhar mais devagar e tive mais tempo para ler... e para me ver e julgar.

- Na publicidade de Incidente em Antares usou-se a frase: "Num país totalitário este livro seria proibido". O senhor submeteria um livro seu à censura? Por que?

Já disse muitas vezes que jamais submeterei um livro meu à censura prévia. Acho isso degradante, além de absurdo. Se André Gide, que leu a grande obra de Marcel Proust ainda em originais, não recomendou a sua publicação à editora Gallimard, que esperança podemos ter num comité de críticos literários improvisados e composto de membros da polícia federal ou de qualquer outra polícia, ou mesmo da Academia Brasileira de Letras. Repito que sou contra a censura, mas devo qualificar essa minha posição. Só merece liberdade quem tem consciência de sua responsabilidade profissional.

- Ao escrever Incidente em Antares o senhor se apoiou, naturalmente, numa certa interpretação histórica da realidade brasileira contemporânea. A seu ver, quais os fatos decisivo que conduziram ao movimento militar de 1964?

A revolução de 1964 de certo modo começou nos tempos em que se tentou impedir que Juscelino Kubitschek, legalmente eleito, tomasse posse. Atingiu um momento de alta periculosidade quando Jânio Quadros renunciou. Desse momento em diante, os dados estavami irremediavelmente lançados: o resto era questão de oportunidade, e essa oportunidade foi fornecida pela inabiidade de políticos da situação como, por exemplo, Leonel Brizola, que dizia muitas coisas certas, mas com a entonação errada e de maneira estabanada e inoportuna. Os políticos profissionais têm - não esqueçam - sua grande dose de culpa em todo esse processo que levou à revolução de 1964 e que começou pouco antes da proclamação da Repúbica. Nos anos que se seguiram, o Exército foi tantas vezes chamado a intervir nas revoluções tramadas pelo políticos (que mandavam soldados para a caserna mal conquistavam o poder) que, como era de se esperar, um dia arraigou-se a idéia na cabeça dos militares.

- Vargas é personagem de Incidente em Antares. A seu ver, o varguismo como ideologia e estilo político está completamente morto?

O varguismo está em "artigo de morte", como diria Manuel Bernardes. (Não confundir com o Presidente Arthur Bernardes). Isso não quer dizer que a imagem de Getúlio esteja apagada de todas as mentes. Mas não creio nem desejo que o varguismo como estilo político volte a vigorar entre nós. Digo isso sem rancor, pois gostava pessoalmente do homem Getúlio, embora reconhecendo os erros que cometeu. Acho que foi dos personagens mais dramáticos da Hsitória do Brasil em todos os tempos. Sinto ainda uma ponta de tristeza quando o imagino (como fazia Dona Quita Campolargo, em Incidente em Antares) em sua última noite de solidão e abandono no Palácio do Catete.

- A última cena de Incidente em Antares é um estudante que vai escrever a palavra "liberdade" num muro e é baleado pela polícia. De que maneira o senhor encara as restrições atuais à participação política da classe estudantil?

Pensei que essa cena tivesse deixado bem claro o meu pensamento a respeito do assunto. Sou favorável à participação, não só da classe estudantil, como também de todas as outras classes do Brasil na nossa vida política, através do sufrágio universal e da possibilidade de candidatar-se a um cargo público. Nunca fui partidário do terrorismo, que não leva a nada de construtivo, mas por outro lado, sempre repudiei a tortura cmo método (ou como esporte) e sou positivamente contrário à condenação de quem quer que seja por "delitos de opinião". Ninguém é criminoso por ter idéias... a não ser que se trate de idéias que levem deliberadamente ao niilismo, ao crime, ao caos.

- O seu estilo sempre foi dos mais despojados da literatura brasileira, aproximando-se bastante do jornalístico. O senhor considera isso uma fórmula peculiar sua ou uma normativa a ser seguida por todos os escritores que buscam maior comunicação com o público?

É a minha maneira de ser. Mas acho que cada escritor deve ser o que é, escrever como entende, usar mais ou menos adjetivos, frases mais curtas ou mais longas. Acredito também que às vezes é o assunto de um livro que dita o seu estilo. Comunicar-se a gente com o público é muito importante. Há em literatura duas coisas igualmente perniciosas e nem sei qual a pior. Uma é tornar-se vulgar, chulo, chão, sensacionalista para conquistar um público mais vasto. A outra é fazer-se hermético para ser entendido somente pelas elites, pelos eleitos. Mas repito que os escritores são como são. Cada qual deve ser dono de seu nariz: errar ou acertar por conta própria.

- Um balanço da cultura brasileira em 1972 demonstra que esse não é um momento particularmente criador, seja na música popular, no cinema, no teatro e na ficção, terrenos em que nos mostrávamos férteis há dez anos. A seu ver, a que se deve essa inibição generalizada?

Não sei com certeza se em matéria de criatividade estamos atravessando um período pobre na música popular, no cinema, no teatro e na ficção. Mas o que posso dizer claramente é que a censura não ajuda em nada o criador, e que a pior censura é aquela que acaba infiltrando-se aos poucos nas nossas cabeças, como um cavalo, ou melhor, um burro de Tróia. A criação é um ato de amor e de liberdade. Houve na História, eu sei, escravos que produziram obras de arte, mas isso não quer dizer que se possa trabalhar num ambiente de "não pode", "é proibido", "dá cadeia". Olhem para os países que têm censura e me digam o que aconteceu à sua arte e à sua literatura. Vejam o que se está fazendo na Rússia com Soljenitzyn e outros escritores. É uma indignidade. E quem faz isso são os homens que cresceram, tornaram-se adultos durante os regime stalinista de terror e obscurantismo, isto é, gente que nunca conheceu a liberdade de pensar e de criar. E a extrema direita é tão má quanto a extrema esquerda. Sim, vocês têm razão, a inibição que perturba nossos artistas plásticos e nossos escritores, compositores, pensadores, jornalistas é causada pelo clima criado pela censura. Pessoalmente não fui ainda censurado, mas isso não me faz feliz, pois não quero, como meia dúzia de outros escritores, ser exceção num país de quase cem milhões de habitantes.

- Mais ou menos a partir de 1968 vivemos em clima de euforia, "em ritmo de Brasil grande", na fórmula oficial. A seu ver, se justifica esse clima de otimismo?

Acho que se justifica. Nesses últimos anos, o Brasil tem crescido e em alguns setores as melhoras são visíveis a olho nu. Está claro que só temos estatísticas oficiais e nunca sabemos ao certo do que se passa nos bastidores da política. Não posso negar a Transamazônica, a melhor qualidade dos serviços postais e muitos outros empreendimentos. O que eu acho é que tudo isso se poderia fazer num regime democrático, dentro da velha Constituição, contanto que ela fosse realmente cumprida a rigor.

- O primeiro livro da trilogia O tempo e o vento descreve a incorporação do índio à civilização luso-brasileira. A seu ver, através de que formas se deu essa integração?

Não sei. Desculpe-me. Não sei. Façam essa pergunta a um especialista.

- O gaúcho valente e altivo parece historicamente desaparecido há muito tempo, embora o rio-grandense de hoje tenha herdado alguma coisa dele. Quais os traços dominantes na psicologia e no comportamento do rio-grandense médio em 1972?

O gaúcho altivo, valente, varonil, nobre, bom amigo, generoso é um arquétipo. Hoje em dia alguns (ou muitos?) rio-grandenses procuram viver de acordo com essa imagem idealizada. Ouço de turistas que o gaúcho é hospitaleiro, simpático, serviçal. Os Centros de Tradições Gaúchas deviam procurar estimular essas qualidades, dando menos atenção ao aspecto da indumentária gauchesca. A mistura de sangue é muito grande entre o nosso povo. O contingente de sangue italiano e alemão é considerável nos habitantes deste Estado. A incidência do tipo humano de pele e cabelo claros é grande entre nós. E não preciso dizer que nossa maneira de falar é inconfundível: quadrada, escandida, meio seca. Linguagem de carnívoro.

- O Rio Grande do Sul sempre foi um dos Estados mais politizados do Brasil. A que se deve isso?

Nunca tinha pensado nisso. Talvez essa politização se deva a nossa condição de fronteira (influências do Prata) e ao fato de termos sido durante mais de um século o campo de batalha do Brasil. Ocorre-me que temos sido um viveiro de líderes políticos. (nem todos bons) A figura de Castilhos, sobre quem Sérgio da Costa Franco escreveu um magnífico ensaio biográfico, é ímpar. Borges de Medeiros foi a encarnação da política positivista. Castilhos foi pai espiritual de Borges, e Borges pai de Getúlio, de Flores da Cunha, de Oswaldo Aranha e João Neves da Fontoura. Não esqueçamos o vulto interessantíssimo de Pinheiro Machado. E o de Luiz Carlos Prestes. É, parece que vocês têm razão. O Rio Grande é (ou era) um Estado altamente politizado.

- Esta politização está aumentando ou diminuindo?

Creio que está diminuindo.

- Qual a grande epopeia do Brasil atual (o acontecimento grandioso, significativo e de projeção para o futuro)?

Faça esta pergunta ao meu filho daqui a trinta anos. Minha tendência no momento é dizer que o grande herói desta hora é o povo, o homem comum, que, se continua vivo, é de teimoso. 

Fonte:
(este site está atualmente desativado)

Stella Carr (Segredo de Cientista)


Lino vinha todo dia espiar pra ver se crescia de novo o rabo do bicho que ele tinha prendido na porta, sem querer. 

Então descobriu: lagartixa bota ovo! Encontrou no racho do muro, onde o animalzinho fora se esconder fugindo dele, os ovos moles e esbranquiçados. Pegou, curioso, um pouco enojado. 
Depois esmagou um a um contra a parede pra ver o que tinha dentro.

Daí começou a reparar nos bichos pequenos. Desenterrava minhocas. Prendia moscas no copo e ficava olhando.

– Não põe porcaria no copo onde se bebe – a mãe bronqueava.

Então descobriu as formigas. Com um pau, cutucava o formigueiro.

Um dia entrou em casa gritando, os insetinhos subindo pelas pernas. A avó botou um ungüento (remédio de gente velha, que ela guardava em potes na gaveta da mesa de cabeceira). Então Lino aprendeu a abrir o formigueiro com cuidado, sem pisar em cima. Tirava os ovos brancos de dentro, olhava, examinava.

– É curiosidade científica dele! – o pai dizia. E deu-lhe uma lente.

Contava pra todo mundo que o filho ia ser cientista.

A mãe, barriga imensa, vivia carregando o tricô pela casa. Ela e a avó estavam sempre ocupadas, entretidas com as receitas de mais uma roupinha. Agora, com a lente, Lino passava os dias observando lagartas e caracóis; aprisionava grilos e borboletas, abria casulos.

Mas foi depois que descobriu os ovos de aranha que o jeito do menino mudou.

Dos ovos da aranha tinham saído vivas dezenas de minúsculas aranhinhas, que se espalharam correndo por todo lado. Então ele quebrou todos os ovos da geladeira, pra ver se tinha bicho vivo dentro. Dessa vez levou bronca, que isso já era demais. Tinha virado mania. Ficou triste, emburrado, não falou mais com a mãe, nem com a avó. E olhava pra mãe desconfiado...

"Onde será que ela guarda?" – pensava. E toca a procurar. Mexia em tudo, abria os armários, olhava debaixo das roupas, nas gavetas.

– Não mexe aí, menino. São meus guardados. Que mania! – a avó reclamava.

Nas coisas da avó, não estavam. Olhou no cesto de lãs, na caixa de agulhas... Quem sabe estavam nos potes de remédio? Se ao menos ele soubesse como eles eram...

Começou a curiosidade pelos livros nas estantes. Olhava as figuras, tinha livros com mapas, índios, um montão de números. Pior: tinha livros sem figuras.

Subiu numa cadeira para alcançar mais em cima. Um dia Lino achou o que queria: a figura mostrava um feto pequenino, todo encolhidinho dentro da barriga de uma mulher, como as formiguinhas dos ovos brancos. Só que era avermelhado.

"Então são assim os ovos da mãe? E se eu encontrasse e quebrasse todos?" Voltou a procurar adoidado.

Foi quando a mãe disse que ia para a maternidade.

– Só por uns dias, pra buscar seu irmãozinho.

E a vovó foi junto.

"Então os ovos... Aquele barrigão... Foi por isso que não achei em casa!"

Lino estava triste, confuso. Sentia falta da mamãe e da vovó, e tinha uma coisa ruim dentro dele, que apertava.

À noite o pai chegou e quis saber por que ele tinha chorado. ("Como é que o pai sabia?")

– Menino de quatro anos não chora assim à toa. Ainda mais quando vai ser cientista! – o pai falou: – Ainda mais agora, que vem um irmãozinho pra brincar com ele.

Então Lino achou que devia contar pro pai. Só ele podia ajudar! Lembrou dos ovos de aranha, com todas aquelas aranhinhas saindo de dentro, de uma só vez. E contou pro pai. Falou tudo.

Naquela noite, Lino e o pai tiveram uma longa conversa, de "homem para homem". 

Fontes:
Revista Nova Escola
Imagem = http://www.eb1-monte-caparica-n2.rcts.pt/prog1per.htm

terça-feira, 20 de novembro de 2012

Lino Mendes (CONVERSA com a Escritora Dulce Rodrigues)


Mas quem  é DULCE RODRIGUES?

 Dulce Rodrigues é uma escritora portuguesa que vive um pouco por toda a Europa. Gosta de jardinagem, fotografia, arte, música, animais e livros – tanto os dos outros como os que ela própria escreve, especialmente os que escreve para crianças e jovens… de todas as idades. É uma apaixonada por História e por viagens e adora os seus dois filhos. Leia excertos dos seus livros, os textos das suas conferências, os seus artigos sobre plantas medicinais, lendas e tudo o mais que encontrar no seu sítio web – www.dulcerodrigues.info – e sinta-se à vontade em lhe dizer o que pensa… sobre tudo ou quase tudo

Mas as suas respostas nesta nossa “conversa “complementam”, e de que maneira, esta curta apresentação

1) A doutora dedica uma especial atenção à literatura para a infância, sem ignorar o género teatral.  Alguma razão para a preferência?

Efectivamente, há várias razões para a minha preferência pelo género teatral. Como menciono na página teatro do meu sítio www.dulcerodrigues.info, um texto de teatro (ou guião) pode ser usado como fonte de leitura na sala de aula ou em actividades depois das aulas. As crianças nem sequer têm necessidade de memorizar os textos, mas simplesmente de os ler, e este género de actividade dispensa mesmo o palco. O espaço da sala de aula chega para o efeito, pois o objectivo principal é a leitura do texto, se possível acompanhada de expressão verbal e corporar, coisas que os jovens normalmente adoram fazer. 

Por outro lado, os textos de teatro são sempre numa linguagem mais fácil, porque são diálogos, um discurso de todos os dias. A minha experiência mostrou-me, assim, que crianças e jovens pouco interessados pelos livros ou que sentem por vezes dificuldades na leitura ganham confiança e gosto em ler à medida que começam a poder gerir textos de teatro (guiões) de dificuldade média.

A finalidade da leitura é transmitir ao leitor conhecimentos sobre assuntos variados, sobre outras gentes e outras culturas e fazê-lo, tanto quanto possível, de uma maneira lúdica e num discurso acessível, e uma peça de teatro reune geralmente esses ingredientes. 

2) O que deve  caracterizar  a literatura infanto-juvenil?

O livro – seja ele infanto-juvenil ou para um público mais crescido – não é um objecto decorativo para pôr na prateleira. A sua apresentação gráfica é importante, mas é sobretudo o seu conteúdo literário que nos deve interessar. É no conteúdo literário que reside o valor intrínseco de um livro. Uma estória para crianças deve ter um discurso autêntico e espontâneo e desenvolver um laço afectivo entre o leitor, as personagens e o autor. A estória de um livro infantil tem de despertar a imaginação dos leitores a que se destina. É preciso que as crianças se identifiquem com as personagens, os seus defeitos, virtudes, desgostos e desejos. Mas, tudo isto, contando uma estória. 

É neste aspecto que, por exemplo, os contos tradicionais e os contos de fadas têm tanto interesse para as crianças e foram adaptados ao cinema, primeiramente por Walt Disney, por outros realizadores mais tarde. Continuam e continuarão a ser actuais – embora com algumas evoluções a nível de certos usos e costumes morais e sociais. Contam estórias que são universais e que agradam a todas as crianças, quer elas tenham vivido no século XVIII ou vivam agora no século XX; quer elas vivam na Europa ou em África. 

Na literatura infanto-juvenil, todavia, devemos considerar em primeiro lugar a idade dos leitores para que escrevemos. Se o livro se destina a crianças com idades entre os dois e os quatro/cincos anos, o indicado são livros de imagens onde o texto é reduzido a algumas frases que contam a estória. Para leitores entre os cinco/seis e os dez/onze, o texto deve ser mais extenso,mas também é recomendado que leve ilustrações. Aqui, faço a distinção entre um livro de imagens e um livro com ilustrações, pois não são a mesma coisa. Tratando-se de literatura juvenil, portanto para um público já adolescente, no meu ponto de vista o livro pode conter somente texto. Contudo, não esqueçamos que mesmo alguma literatura, em princípio dirigida aos adultos, também contém por vezes ilustrações.

No caso particular de peças de teatro, a ilustração pode ser inexistente ou reduzida a um mínimo. Contudo, considero que uma peça de teatro infantil pode muito bem incluir ilustrações se assim o entendermos. Afinal, trata-se igualmente de literatura jovem, por vezes até mais acessível a quem ainda não domina muito bem a leitura, visto que a escrita em diálogo que caracteriza uma obra literária de teatro é muito mais acessível do que qualquer outro texto de ficção. Aliás, tenciono ilustrar uma ou mais das minhas peças de teatro infantis, e o livro Le Théâtre des Animaux levou também algumas ilustrações.

Por outro lado, a escrita é também uma forma de arte, e a arte deleita. A literatura infantil – embora um utensílio através do qual a criança descobre novos mundos e desperta para novas sensações, isto é que tem um fundo moral,  pedagógico e didáctico –- não pode de modo algum esquecer a componente lúdica, a criatividade, a imaginação. Excluo a fantasia, pelo efeito nefasto que ela exerce no desenvolvimento intelectual do indivíduo, conduzindo-o a uma alienação da realidade. Na nossa sociedade ocidental actual, os jovens parecem viver desde há algumas décadas num mundo fantasista, alheados das realidades da vida, num mundo cada vez mais virtual, no plano tecnológico como humano. Penso que a literatura do fim do século passado e início do presente tem contribuído, de certo modo, para essa alienação.

3) O que devemos considerar  como literatura portuguesa?

Na minha modesta opinião, acho que hoje em dia na Europa – e até mesmo de um modo geral no mundo, com excepção ainda de alguns países – já  não existe propriamente uma literatura portuguesa ou luxemburquesa, francesa... Vivemos numa época em que as pessoas se movem cada vez mais de um lado para o outro e conhecem novas ideias e culturas. Quer nos agrade ou não, a globalização existe e reflecte-se em todos os domínios culturais. O que é preciso é que continuemos a ser nós próprios, impregnando-nos do ambiente que nos rodeia mas sem, todavia, nos deixarmos contaminar por ele. Assim, a obra de cada um será única e universal ao mesmo tempo. 

4)  Conhece e escreve para vários países. Há grandes diferenças nos projectos educativos?

Infelizmente, sim. Enquanto em Portugal reduzimos os orçamentos para a Educação e o Ensino (além dos da Saúde), em países com a França o orçamento da Educação nacional é o maior de todos os orçamentos do governo! Um povo ignorante é muito mais fácil de manipular do que um povo culto. Aliás, a Educação e a Cultura  têm sido desde sempre duas órfãzinhas no nosso país. 

Deixando de lado a “complicada” história do Ministério da Educação, que até 1976 geria igualmente a Cultura, não esqueçamos que esta última tem tido ainda uma vida mais atribulada e efémera do que a Educação, ora pertencendo a uma Secretaria de Estado, ora sendo elevada a uma categoria superior digna de um Ministério da Cultura. Estamos de novo com a Cultura entregue a uma Secretaria de Estado. A título informativo, por exemplo, data de 1959 o Ministério da Cultura em França, sem nunca ter sofrido nenhuma descida de estatuto. 

A própria palavra “cultura” parece ser algo de que muitos Portugueses fogem como o Diabo foge da cruz. “Cultura” em Portugal, só a do futebol, das telenovelas e dos programas débeis como o do “Gordo” e semelhantes e, como se já não chegasse, temos agora ainda um tal de “Café Central”. Sem falar nas touradas, de que alguns “aficionados” (empresas e membros da família) receberam em 2011 subsídios no valor de 9.823.004,34 (nove milhões, oitocentos e vinte e três mil e quatro euros e trinta e quatro cêntimos)!! Depois não há dinheiro para a Educação, a Cultura e a Saúde!

Claro que este estado “cultural” se reflecte em tudo o resto, incluindo o nível do ensino. Todos sabemos que os sábios desejam rodear-se sempre de outros sábios. Mas que  os medíocres  se rodeiam de outros ainda mais medíocres, pois é a única maneira da sua mediocridade não dar muito nas vistas. Assim, mesmo que queiramos fazer alguma coisa a nível pessoal, porque sabemos que não podemos contar com as instituições e entidades oficiais para isso, deparam-nos com um muro impossível ou difícil de transpor. Somos um povo muito bairrista e, se não tivermos uns “conhecimentos” que nos arranjem uma “cunha”, só por milagre poderemos concretizar alguma coisa. Só a título de curiosidade, nas poucas ocasiões em que contactei alguma entidade governamental – nomeadamente o Ministério da Educação em 2002, 2003 e, mais recentemente, de novo em 2012, com propostas de projectos pedagógicos, nem resposta recebi. 

Quando, regularmente, envio para um jornal qualquer português ou para um programa televisivo, supostamente cultural, uma carta ou mensagem, a carta fica sempre sem resposta e a mensagem é eliminada sem ter sido lida. Isto sucede sistematicamente também com as bibliotecas! Não devo, possivelmente, ser uma escritora com suficiente estatuto para que, ao menos as bibliotecas se dignem ler as minhas mensagens. 

Em contrapartida, como sabe, continuo a receber com regularidade convites de países estrangeiros. O último veio de França, nomeadamente de Oloron, onde tinha estado em 2009 para dar uma conferência na Câmara Municipal sobre o nosso grande poeta Camões (entre outras actividades), e nessa altura conheci os Franceses que me convidaram agora para o Salão do Livro Sem Fonteiras e visita a duas escolas da região. Em 2002, A Education nationale (nome do Ministério de Educação de França) realizou um projecto-piloto e um dos livros escolhidos e trabalhados em quatro escolas da região de Longwy (perto da fronteira com a Bélgica) foi o meu primeiro livro infantil L’Aventure de Barry. No seguimento desse trabalho sobre o livro, alguns alunos sentiram-se inspirados pelas estórias e escreveram maravilhosos poemas, para grande surpresa de professores, que nunca tinham visto nada semelhante acontecer antes, e para grande prazer meu, como é óbvio.   

Dos países com quem tive o prazer e honra de colaborar, considero que a Alemanha, a França e, de certo modo o Luxemburgo são os que mais se investem a nível educacional e cultural. Enquanto isto, Portugal torna-se cada vez mais pobre, porque a riqueza de um povo está no nível do seu ensino, da sua educação, da sua cultura.

5) Como situa Portugal neste campo e no contexto internacional? Aliás, como é a criança portuguesa em relação às outras?

Relativamente a Portugal, o ponto anterior responde a essa pergunta. Quanto à criança portuguesa, ela não fica de modo algum atrás das crianças dos outros países; é tão interessada e com as mesmas capacidades intelectuais que qualquer outra criança. O que a pode “castrar” é o meio em que vive. E nesse aspecto as nossas crianças estão em devantagem, o que é lamentavelmente injusto, porque a aprendizagem para aquilo que vamos ser mais tarde, quando adultos, joga-se precisamente nos primeiros anos. Neste aspecto, refiro-me também ao meio familiar, não somente à escola, pois é no seio da família que se dão os primeiros passos. Os níveis educacional e cultural da maioria das famílias portuguesas não são dos mais elevados, e o interesse pela aprendizagem, o conhecimento, numa palavra os interesses culturais, são muito baixos.  
    
6) Qual a sua posição face ao novo acordo ortográfico? Concorda que nos nossos jornais de referência se escreve por vezes muto mal, em especial na construção das frases?

De um modo geral, os Portugueses falam e escrevem muito mal o português, e os jornalistas (mesmo alguns que são igualmente escritores) não são excepção, contribuindo até para que haja uma degradação cada vez maior da língua portuguesa.

Quanto ao “aborto” do acordo ortográfico, dentro de alguns dias tenciono tornar pública a carta que vou enviar ao Parlamento sobre o assunto. Nessa altura; envio-lha para que a publique também, se quiser. Como já deve ter deduzido pelas minhas palavras, sou completamente contra. Foram pressões, especialmente de grandes editoras (algumas brasileiras, aliás) que estão por detrás deste acordo. E como os Portugueses, especialmente aqueles que nos têm governado ultimamente, têm um baixo perfil e se humilham perante qualquer estrangeiro, foi este o resultado...

De todos os países de língua portuguesa, o Brasil é exactamente aquele em que se fala pior e onde a língua portuguesa é mais estropiada. O que se fala no Brasil é já um dialecto português não A língua portuguesa, e por mais acordos que possa haver, mais tarde ou mais cedo seremos obrigados a considerar duas linguagens separadas – mas, entretanto, a língua degradou-se também em Portugal. Fala-se tão mal português no Brasil que as pessoas com mais educação e instrução, como professores universitários, por exemplo, dizem ter de falar e escrever mal, pois de outro modo a maioria dos Brasileiros não os percebe!  Basta falarmos com Brasileiros para nos apercebermos que eles têm dificuldade em nos compreender e que falam uma linguagem que já se distanciou da língua portuguesa, uma das línguas literárias mais antigas da Europa e que está em risco de se tornar um dialecto a curto ou médio prazo se não a salvarmos. 

Aliás, não penso que seja por acaso que a procura do ensino da língua portuguesa tenha descido 26% no estrangeiro. As pessoas aperceberam-se já dessa degradação e perderam interesse em aprendê-la.

Se já o anterior acordo ortográfico (que, curiosamente, os Brasileiros não assinaram...) não devia ter sido posto em prática – e nem sequer devia ter sido pensado – este ainda menos. Ainda o podemos recusar e, de qualquer modo, há uma maneira democraticamente cidadã de o boicoitar: não comprar livro nenhum que seja escrito ao abrigo do novo acordo ortográfico. Em momento de crise, esta medida terá ainda a vantagem de se poderem adquirir livros mais baratos, em segunda-mão; e não deve ser difícil encontrá-los. Pessoalmente é o que tenciono fazer. E, claro, muito menos devemos escrever ao abrigo do acordo. Excepto as “pobres criancinhas” que serão obrigadas a (des)aprender a língua na escola. 

É fácil eliminar do computador o corrector de português. Aliás, quanto mais as pessoas se habituarem a deixar que as máquinas substituam as suas faculdades mentais, mais vão perdendo capacidades. Um dia, quando precisarem de escrever alguma coisa sem recorrerem ao corrector, não saberão como se escreve. E assim, a língua portuguesa ainda se vai degradando mais. A perda de faculdades, por causa do uso de “máquinas” que substituem o esforço de pensar, é um dos grandes problemas com que vão defrontar-se as gerações mais novas e as futuras, que possivelmente já por volta dos 50 anos sofrerão da doença de Alzheimer e outras do género. Poderemos discutir deste assunto numa outra ocasião.

Quanto aos livros que escrevo, com a evolução que o mercado editorial tem sofrido, em que é possível publicar um livro em qualquer língua em qualquer país, não publicarei certamente em Portugal se me exigirem que seja escrito ao abrigo do novo acordo. O livro infantil que publiquei recentemente em Portugal – Era uma Vez uma Casa – não foi escrito ao abrigo do novo acordo. 
   
7) Projectos para o futuro?

Tenciono continuar a trilhar os mesmos ”caminhos” que até agora:  publicação de livros infanto-juvenis em várias línguas (incluindo peças de teatro, claro) e actividades lúdico-pedagógicas, por um lado; por outro, conferências e fóruns, participação em salões do livro, publicação de livros também para um público adulto. 

Fui contactada há dias por um editor em Paris que disse ter-me conhecido durante o Salão do Livro de Paris de 2011 -- em que participei a convite do editor do meu livro bilingue O Pai Natal está constipado. É possível que se verifique uma colaboração a curto ou médio prazo. Ele disse-me ter adorado o meu livro Il était une fois une Maison, uma estória que recebeu um prémio literário em França em 2004 e que é, na realidade,  a versão original de Era uma Vez uma Casa, o livro recentemente publicado em Portugal. 

Projectos não me faltam, o que me falta é o tempo para poder realizá-los todos, pois já não sou nova...

8) Uma mensagem e tudo o que mais entender

Teria imensas mensagens que gostaria de enviar a todos os Portugueses que lerem esta entrevista. Mas vou tentar condensá-las numa pequena frase que me tem acompanhado ao longo da vida : “Desejo que cada um de nós  procure ver o mundo através do olhar da criança que todos já fomos, e que continua sempre no fundo de nós mesmos. Só uma alma de criança nos fará aproveitar em harmonia e felicidade tudo o que a Vida tem para nos oferecer.”

Fonte:
Colaboração de Lino Mendes