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sexta-feira, 19 de abril de 2019

Teixeira de Pascoaes (Livro D'Ouro da Poesia Portuguesa vol. 9) VI, final


A NOSSA DOR

Enquanto chora a Mãe desventurada,
Sobre o seu coração, de noite e dia,
Eu canto a minha dor; e a dor cantada
Como que intimamente se alumia...

Se me levanto cedo e a madrugada
Já vem dourando os longes de harmonia,
Sinto que estás ainda despertada
E eu ouço, em mim, cantar nova elegia.

Abre-te a dor os olhos sem piedade,
Durante as longas noites de amargura...
Mas para mim a dor é já saudade.

A dor, em mim, é canto que murmura;
A dor, em ti, é negra tempestade:
Sou a noitinha, e tu, a noite escura!

VIDA ETERNA


Nele adora somente o que não passa;
O que é imortal, perfeito, e no teu ser
É fonte de orações, de luz e graça.

Adora a sua Imagem a viver,
Numa perpetua infância florescendo,
Perpetuamente isenta de sofrer.

Dia a dia, nós vamos falecendo;
Esta vida carnal é um arremedo
Da Vida, á luz da qual eu não entendo

Nem morte ou aparência ou dor ou medo...
Teu Filho agora é luz, revelação;
E tu, ó Mãe, crepúsculo e segredo!

Adora, sim, teu próprio coração
Se desejas amar teu Filho. Reza
E não chores, que a luz duma oração

Mostra-te bem melhor sua beleza,
Seus verdes olhos de alma, a fronte e o rosto
Que as lágrimas sombrias de tristeza.

Seja alegria eterna o teu desgosto
Corpóreo, transitório! Seja aurora
De idílio o teu dramático sol posto!
A alma ajoelha e reza, mas não chora.

MEMÓRIA

Memória, Elísios Campos, Paraíso,
Espirituais Paisagens!
Vales de luz, outeiros de sorriso,
Onde vivem as místicas Imagens.

Jardim florido de Almas que o estertor
Da Morte libertou! Jardim povoado
De luminosas Sombras que em amor
E sonho iluminado,
 
Dando-se as mãos de luz e intimidade,
Vagueiam pelas verdes avenidas,
Ao luar misterioso da Saudade,
Evocando outros mundos, outras vidas...

Vejo, em grupos, os velhos conversando...
E murmuram palavras... voz de outono
Que se vai em silêncios desfolhando
Num ermo chão dourado, ao abandono.

Mais adiante, em doce companhia,
Caminha enamorada a gente nova:
O Herói caído, morto, à luz do dia,
A Noiva que baixou à fria cova!

E mais adiante ainda, em mais ruidosos
E alvoroçados grupos, as Crianças
Falam alto, têm gestos luminosos...
São bandos de esperanças,
 
Tão cedo à luz do mundo arrebatadas
E aos braços maternais!
E brincam a sorrir, inda molhadas
Das lágrimas eternas de seus Pais...

E com um ar de riso,
As beija o Sol do Além...
Nem se lembram das mães, no Paraíso;
São Almas, sim, e as Almas não têm Mãe!

Ao Sol espiritual que as faz corar
Durante os seus brinquedos,
Somente Deus as pode contemplar
Do seu trono de trevas e segredos.

Deus contempla as Crianças que roubou
Ao fundo amor materno... E bem se vê
Nos seus olhos a nuvem que os toldou...
E a si mesmo pergunta: Para quê?

E à luz do eterno dia,
Os Fantasmas divinos das Crianças
Fazem os seus bailados de alegria,
Elas que são tristíssimas Lembranças!

E a nova formosura que elas têm!
O novo e estranho encanto!
Assim tocadas já do sol do Além,
Até aos pés vestidas do meu Canto!

Memória, Jardim de Almas todo em flor
Que as canções e os perfumes enevoam,
Se para mim és dor, és luz e amor,
Para os seres amados que o povoam!

E eis tudo quanto resta à Criatura:
Saber que o seu tormento
É perfeita alegria, alta ventura,
Em outro Firmamento!

Quando os meus olhos íntimos, em sonho,
Esse mundo ideal conseguem ver,
Fico tão deslumbrado que suponho
Haver morrido já sem o saber!

E eis que sou na Paisagem da Memória!
Lembrança de mim mesmo, eu já penetro
Na cidade fantástica e ilusória...
Já sou Aparição, Visão, Espectro!

Que é da minha Presença? Não me vejo!
Ah, não me encontro em mim! Sou a Oração
Redimida, sem Deus e sem desejo;
Amor sem coração!

Sonho liberto, ascendo no Infinito.
A própria Altura é já profundidade!
Onde estás? onde estás? ó corpo aflito!
Meu ser perdeu-se em alma: ei-lo saudade!

Fonte:
Teixeira de Pascoaes. Elegias. 1912

quarta-feira, 20 de março de 2019

Teixeira de Pascoaes (Livro D'Ouro da Poesia Portuguesa vol. 9) V

MEDITAÇÃO

A noturna lembrança consumida
Da tua horrível morte dolorosa,
Enevoa de lágrimas a vida...

E sinto a luz tornar-se duvidosa,
Tocando a minha fronte que lhe gasta
A seiva etérea, a fluída cor viçosa.

O meu olhar maldito logo afasta
O Ser que ás suas lágrimas empece,
E o perfil animado lhe desgasta!

O meu olhar as coisas anoitece...
E elas choram na sombra e na incerteza,
A minha própria dor... E eis que aparece,

Diante de mim, o Espectro da Tristeza...
E tudo transfigura... E eu fico a ver,
Como através da Morte, a Natureza...

O berço é cova. Que é nascer? Morrer.
Quem abre ao sol os olhos, escraviza
A alma, a luz espiritual do ser...

Um rio de emoção, em mim, desliza...
Para cantar se fez pequena fonte;
Seu canto é bruma pálida e indecisa.

E fito, de olhos tristes, o horizonte:
Nele me perco em névoa: sou distancia...
Intima cruz a erguer-se em tosco monte...

Vésper, sorriso de ouro, luz, fragrância
Da noite que amanhece, ao teu fulgor,
Vejo Espectros que são da minha infância...

Formas mortas que nem meu próprio Amor
Anima,--ele que dantes animava
A sombra, a pedra, as árvores em flor!

E como outrora tudo me encantava!
Como perdi no turbilhão dos dias
O sabor que nas coisas eu gostava!

Tristezas são fantasmas de alegrias...
E entre Fantasmas vivo... Ó meus amores,
Folhas mortas, outono, ventanias!...

Sombras da meia noite! Mãe das Dores
Em teu altar sozinho, na capela
Do monte sem romeiros e sem flores!

Ó Noite! Virgem triste! Erma Donzela!
Se eu fora sombra de alma adormecida,
Silencio de alma, solidão de estrela?...

Mas não; eu vivo e penso nesta Vida;
No Mal vitorioso e na Bondade
Quase sempre ultrajada e perseguida!

Vejo a Inocência ás mãos da Crueldade
Morta, desbaratada, e vejo a aurora
Alumiando esta negra, férrea idade!

Vejo um pequeno Anjinho que enamora
Meu comovido espírito encantado...
E divinos sorrisos ele chora,

E só de vê-lo, eu sinto-me sagrado!
E fica todo em flor meu coração,
Paraíso astral, Jardim de Deus, Sol nado!

E, súbito, lá vai: é sonho vão!
E sobre mim, aflita, a noite desce:
Maré cheia de treva e solidão.

E o sangue em minhas veias arrefece...
Á altura do meu rosto, vejo o Medo
Que, nos ermos crepúsculos, me empece!

E como tudo é sombra, dor, segredo!
De longe, aspectos de alma que nos falam;
De perto, brutas formas de rochedo!

Quantas intimas dores nos abalam!
Porque não há no mundo quem as ouça,
As dolorosas vozes que se calam!

Ó gente enamorada! Ó gente moça!
Que, de repente, ao túmulo baixais,
Qual o vosso pecado? a culpa vossa?

Ó Procissão das lágrimas, dos ais,
Diante de mim, passando eternamente
A caminho das sombras sepulcrais!

Dor sem fim, sem principio, dor presente,
Martirizando as almas, e sobre elas
O sorriso de Deus indiferente!

O Deus que põe na face das estrelas
Nodosa de sombra e enfeita com as flores
Da morte, as brancas Noivas e as Donzelas;

O Deus aceso em trágicos furores,
Que mata as criancinhas sem pecado
E parece viver das nossas dores,

E fez do nosso choro o mar salgado,
E fez da nossa angustia um ermo outeiro,
E sobre ele Jesus crucificado;

O Deus que me tornou prisioneiro,
E que transforma tudo quanto eu amo
Em desfeita visão de nevoeiro;

Ah, esse Deus que, quando por Deus chamo,
É profundo silencio, indiferença,
A própria sombra morta que eu derramo...

Remoto Deus--Fantasma, sem presença,
Que em matéria de dor edificou
As árvores, o Sol, a noite imensa,

E em doloroso barro levantou
Minha figura trágica e represa,
Num impotente, empedernido voo;

É o Deus do Abismo, o Pai da Natureza,
Noturno Deus da vida material,
Divindade da fúnebre Tristeza;

O Deus criador das Trevas, contra o qual
Sozinho, se ergue em mim, mas sem temor,
O meu divino Ser espiritual;

Meu Ser heroico aceso em puro amor!
Sol comovido, ardente meio dia,
Trespassando de luz a noite e a dor!

Meu Ser, onde se muda em alegria
A corpórea tristeza; onde a Matéria
Se faz alma perfeita de harmonia;

Meu Ser que afirma o Bem, ante a miséria
Das transitórias coisas; que levanta,
Contra a sombra do inferno, a Luz etérea!

Meu Ser espiritual que, alegre, canta,
Se, por ventura, eu choro desolado,
E que os Fantasmas lúgubres espanta;

Meu Ser criador do Espírito sagrado,
O Redentor das lágrimas, dos ais;
Senhor dum novo Olimpo sublimado...

Novo Orfeu nos Abismos infernais.

ESPERANÇA E TRISTEZA

Minha tristeza é pior que a tua dor.
Um dia, no teu ventre sentirás
Reencarnar para o mundo o teu amor:
A mesma alma, o mesmo olhar... verás!...

Eu sei que há de voltar; e assim terás
A alegria primeira, ainda maior...
E então, de novo, alegre ficarás;
Será primeiro o teu segundo amor!

Mas eu que, antes do tempo, já declino,
Quem sabe se verei o teu Menino,
Numa idade em que possa compreender?

E partirei talvez sem lhe deixar,
Na memória, esse interno e fundo olhar,
A comovida imagem do meu ser...

SOZINHO

Tarde. Vagueio só por um outeiro.
Sua Imagem quimérica flutua,
Diante de mim, no espaço: é nevoeiro
Vestindo de emoção a terra nua...

E como na minh'alma se insinua
Aquele etéreo Vulto... amor primeiro!
Ouço-o falar, lá fora, á luz da lua.
Vejo-o brincar na sombra do terreiro.

Apenas vêm meus olhos, neste mundo,
O seu perfil angélico, o seu fundo,
Misterioso, verde negro olhar...

Vejo uma estrela? É ele. Vejo um lírio?
É ele. Tudo é ele. E o meu delírio
É ele: é o seu espírito a cantar!

DEPOIS DA VIDA

Quando meu coração parar desfeito
Em sombra, na profunda sepultura,
E o meu ser, já fantástico e perfeito,
Vaguear entre o Infinito e a terra dura;

Quando eu sentir, enfim, todo o meu peito
A transformar-se em constelada Altura;
Eu, divino Fantasma, o claro Eleito,
O Enviado da Vida á Morte escura;

Quando eu for para mim minha esperança,
Meu próprio amor jamais anoitecido,
E a minha sombra apenas for lembrança;

Quando eu for um Espectro de Saudade,
Entre o luar e a névoa amanhecido,
Serei contigo, Amor, na Eternidade.

O ENCONTRO COM O RETRATO

Receio o teu encontro, pobre Mãe,
Com o retrato de teu Filho. Vais
Contemplar suas formas materiais,
O que pertence á morte e a mais ninguém...

Mas para que exaltar ainda mais
Aquela dor que é só do mundo? Tem
Paciência. Não o vejas. Olha bem:
De que servem as lágrimas e os ais?...

Essa dor não a ames, que é profana.
Sim: não adores nele a forma humana,
A ilusória aparência, o sonho vão...

Pois é verdade, ó Mãe, que tens presente
Seu imortal espírito inocente
Em ti mesma, em teu próprio coração!...

NA MINHA SOLEDADE

Aqui, por estes sítios onde nós
Vivemos; tu brincando no jardim;
Eu a ouvir encantado a tua voz
E vendo em ti um Anjo, um sonho, ao pé de mim;

Aqui, por estes vales de alegria
Enquanto tu viveste,
E agora escuras, armas terras de elegia
Batidas do nordeste,
Eu ando á minha sombra reduzido
E mais a tua Imagem.
E quem nos vê, de longe, diz entristecido:
Dois Espectros, além, vagueando na Paisagem...

A TUA IMAGEM

Os meus olhos abrigam como um templo,
Tua divina Imagem que os eleva
E os enche de pureza e santidade;
São os meus olhos íntimos, aqueles
Que entre as nuvens avistam, certas horas,
Asas de Anjos, relâmpagos de Deus,
E não meus pobres olhos materiais
Na cor, nos formas vãs crucificados.

E tu vives e falas nesse mundo,
Ao pé do qual meu corpo de tragédia
É sua antiga e vaga Nebulosa...

E em meu noturno espirito reboa
Aquela tua voz amanhecente
Que espalhava alegrias pelo ar.

E a tua voz divina, por encanto,
Se espelha em minhas lágrimas que ficam
Todas, por dentro, acesas num sorriso.

A lágrima vê tudo: a própria voz,
Pousando á sua turva superfície,
Nela desenha, em ondas, o seu Vulto.

Meu doloroso ser com tua Imagem
Eterna comunica. A minha vida
Na tua morte assim se continua...
Embora exista entre elas a distância
De sombras lampejantes, que separa
Nosso corpo mortal do nosso espirito.

E eu canto, e me deslumbro em minha dor!
De súbito, anoiteço, e me disperso,
E vejo-me Fantasma... e, a sós, divago
Pelos caminhos lúgubres da Morte...
E chego á porta em flor do teu sepulcro;
E uma alegria misteriosa vem
Dourar a sombra vã de que sou feito...

E esta alegria és tu... que me apareces!...
Minha segunda vida transcendente
Nasceu da tua Ausência que lhe imprime
O drama eterno, a ação divina e triste.

Tua morte refez meu ser: abriu-lhe
Novo sentido de alma; aquele olhar
Que no seio das lágrimas desperta,
E veste de infinito e de saudade
A tosca rocha bruta que se torna
Espirito vivente no crepúsculo:
Esfinge em cujos lábios a tristeza
Das coisas interroga a dor humana.

E vós, ó brutas coisas reviveis
Perante o meu olhar que vos penetra
De seu liquido lume visionário.
Tornastes a viver. As vossas almas
Que a minha dor primeira afugentou,
São presentes, de novo, em vosso corpo.
Ei-lo cismando, triste, á luz do luar,
Na projetada sombra que, a seus pés,
Desenha ignotas formas de silencio...
Ei-lo embebido em mística ternura,
Trêmulo de emoção, reverdecendo,
Esculpindo, no ar, melancolias...

E a tua Imagem paira sobre mim...
Todo eu palpito em ondas de ansiedade!
Abismo de emoção, em mim me perco!
E minh'alma exaltada e comovida,
Deste meu ser transborda e inunda tudo!
Arde no fogo virgem das estrelas,
Em cada humana lágrima cintila,
Chora nas nuvens, no ermo vento geme!

E julgo haver, meu Deus, ressuscitado
Da morte que sofri para nascer!

Sim: o meu berço é irmão do teu sepulcro;
Teu cadáver baixou aquele abismo
Donde subi outrora á luz da morte...
E lá tu me encontraste ainda em vida,
Na Aurora que precede o nascimento,
E parece dourar a nossa Infância...

Sinto que estou contigo em outro mundo.
Lá vivemos os dois em companhia,
Muito embora eu arraste sobre a terra,
Que teu cadáver, tão mimoso! esconde,
Esta minha Presença de aflição!

E beijo a tua Imagem, de joelhos...
E, em meu silencio, rezo... E a tua Imagem
Agora é grave, séria, quase triste,
Porque se fez sagrada além da Morte.

Fonte:
Teixeira de Pascoaes. Elegias. 1912.

terça-feira, 5 de março de 2019

Teixeira de Pascoaes (Livro D'Ouro da Poesia Portuguesa vol. 9) IV

IDÍLIO

Sinto que, ás vezes, choras, minha Irmã,
No teu sombrio quarto recolhida...
É que ele vem rompendo a sombra vã
Da Morte, e lhe aparece á luz da vida!

E aflita, como choras, minha Irmã...
Teu choro é tua voz emudecida,
Ante a imagem do Filho, essa Manhã
Em profunda saudade amanhecida.

Silencio! Não palpites, coração;
Nem canto de ave ou mística oração
Um tal idílio venham perturbar!

Deixai o Filho amado e a Mãe saudosa:
O Filho a rir, de face carinhosa,
E a Mãe, tão triste e pálida, a chorar...

DE NOITE

Quando me deito ao pé da minha dor,
Minha Noiva-fantasma; e em derredor
Do meu leito, a penumbra se condensa,
E já não vejo mais que a noite imensa,
Ante os meus olhos íntimos, acesos,
Estáticos, surpresos,
Aparece-me o Reino Espiritual...
E ali, despido o hábito carnal,
Tu brincas e passeias; não comigo,
Mas com a minha dor... o amor antigo.

A minha dor está contigo ali,
Como, outrora, eu estava ao pé de ti...
Se fosse a minha dor, com que alegria,
De novo, a tua face beijaria!

Mas eu não sou a dor, a dor etérea...
Sou a Carne que sofre; esta miséria
Que no silêncio clama!
A Sombra, o Corpo doloroso, o Drama...

NOITES EM CLARO

Passas em claro as noites a chorar;
Dia a dia, teu rosto empalidece...
Faze tu, pobre Mãe, por serenar,
Santa Resignação sobre ela desce!

Rochedo que a penumbra desvanece,
Tu, por acaso, não lhe podes dar
Um pouco desse frio que entorpece
O coração e o deixa descansar?...

Jamais! Não há remédio! Nem as horas
Que passam! Toda a fria noite choras;
Tua sombra, no chão, é mais escura.

Sofres! E sinto bem que a tua dor,
Como se fora um beijo, aceso amor,
Vai-lhe aquecer, ao longe, a sepultura.

DUAS SOMBRAS

Pelas tardes divinas,
Quando a cor se dissolve em lágrimas douradas,
Eu vejo duas Sombras pequeninas,
Andando de mãos dadas.

Como duas crianças que elas são,
Percorrem, a brincar,
Esta minha infinita solidão;
E estático e suspenso, eu fico a olhar, a olhar...

Bate-me o coração; caminho... Na distância,
Através do crepúsculo divino,
Vejo a Sombra infantil da minha infância
E a Sombra do Menino!

E delas me aproximo; e paro; tenho medo
De as ver fugir, assim...
Seus Vultos de quimera e de segredo
Tremem diante de mim...
E como se parecem!
O mesmo adeus no olhar, o mesmo rosto e altura...
E ao pé delas as coisas se enternecem,
E este meu coração aberto em sepultura.

Durante a tua vida, meu Amor,
Quantas vezes, ao ver-te, imaginava
Olhar de perto, a minha infância toda em flor!
E ainda mais: pensava
Que eras a minha própria Infância novamente,
Mesmo diante de mim, ressuscitada
E brincando comigo alegremente,
Nesta velha Paisagem bem amada,
Terra da meia noite, alma do outono...
Nesta casa velhinha, evocadora,
Tocada de luar, de sombra e de abandono,
Da alegria de outrora...
E por isso, no dia em que morreste,
Quando tudo era lágrima, a distância,
Coração, duas cruzes padeceste;
Duas mortes sofreu a minha infância.

LÁGRIMA

Bate-me o luar na face, e o meu olhar
Em lágrima saudosa se condensa...
Vejo-a diante de mim, como suspensa
Na sombra do ar.

E em seu líquido seio de esplendor,
Tua Imagem começa a alvorecer,
Pois toma corpo e vida no meu ser,
Quando a beija, sorrindo, a minha dor...

Ébria do teu espirito sagrado,
A radiosa lágrima estremece,
Enquanto a minha face empalidece
E o luar e a noite cismam ao meu lado...

E a comovida lágrima crepita...
Relâmpago de dor... E nada vejo;
Pois nela está presente o meu desejo
E a minha vida frágil e infinita.

E a lágrima cintila, num adeus...
E, desprendida de meus olhos, ei-la
Já distante, no espaço: é nova estrela
Subindo aos céus...

Fonte:
Teixeira de Pascoaes. Elegias. 1912.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

Teixeira de Pascoaes (Livro D'Ouro da Poesia Portuguesa vol. 9) III



MINHA ALEGRIA

Minha alegria foi no teu caixão;
Deitou-se ao pé de ti, na sepultura,
A fim de acalentar teu coração
E tornar-te mais branda a terra dura.

Por isso, é para mim consolação
Esta sombria dor que me tortura!
E ponho-me a cantar na solidão,
Meu cântico esculpido em noite escura!

Consola-me saber minha alegria
Longe de mim, perto de ti, na fria
Cova a que tu baixaste após a morte.

Foste tu que m'a deste, meu amor;
Agora, dou-t'a eu: é a minha flor;
Eu quero que ela sofra a tua sorte.

TRISTEZA

O sol do outono, as folhas a cair,
A minha voz baixinho soluçando,
Os meus olhos, em lágrimas, beijando
A terra, e o meu espirito a sorrir...

Eis como a minha vida vai passando
Em frente ao seu Fantasma... E fico a ouvir
Silêncios da minh'alma e o ressurgir
De mortos que me foram sepultando...

E fico mudo, extático, parado
E quase sem sentidos, mergulhando
Na minha viva e funda intimidade...

Só a longínqua estrela em mim atua...
Sou rocha harmoniosa á luz da lua,
Petrificada esfinge de saudade...

A MINHA DOR

Tua morte feriu-me no mais fundo,
Remoto da minh'alma que eu julgava
Já fora desta vida e deste mundo!

E vejo agora quanto me enganava,
Imaginando possuir em mim
Alma que fosse livre e não escrava!

Meu espirito é treva e dor sem fim.
Todo eu sou dor e morte. Sou franqueza.
Sou o enviado da Sombra. Ao mundo vim

Pregar a noite, a lagrima, a incerteza,
A luz que, para sempre, anoiteceu...
Esta envolvente, essencial tristeza,

Tristeza original donde nasceu
O sol caindo em lagrimas de luz,
Choro de ouro inundando terra e céu!

Sou o enviado da Sombra. Em negra cruz,
Meu ilusório ser crucificado
Lembra um morto fantasma de Jesus...

E aos pés da minha cruz, no chão magoado,
A tua Ausência é a Virgem Dolorosa,
Com tenebroso olhar no meu pregado.

Ah! quanto a minha vida religiosa,
Depois que te perdeste no sol-posto,
Se fez incerta, frágil e enganosa!

Em meu ser desenhou-se um novo rosto.
Sou outro agora; e vejo com pavor
Minha máscara interna de desgosto.

Vejo sombras á luz da minha dor...
Sombras talvez de eternas Criaturas
Que vivem na alegria do Senhor...

E quem sabe se os Mortos, nas Alturas,
Vivem na paz de Deus, em sítios ermos,
Entre flores, sorrisos e venturas?...

E quem sabe se as dores que sofremos
E nosso corpo e alma, não são mais
Que as suas vagas sombras irreais?...

Ah, nós somos ainda o que perdemos...

A MÃE E O FILHO

Teu ser tragicamente enternecido,
Em desespero de alma transformado,
Vai através do espaço escurecido
E pousa no seu tumulo sagrado.

E ele acorda, sentindo-o; e, comovido,
Chora ao ver teu espirito adorado,
Assim tão só na noite e arrefecido
E todo de ermas lágrimas molhado!

E eis que ele diz: "Ó Mãe, não chores mais!
Em vez dos teus suspiros, dos teus ais,
Quero que venha a mim tua alegria!"

E só nas horas em que a Mãe descansa,
É que ele inclina a fronte de criança
E dorme ao pé de ti, Virgem Maria!

AUSÊNCIA

Lúgubre solidão! Ó noite triste!
Como sinto que falta a tua Imagem
A tudo quanto para mim existe!

Tua bendita e efêmera passagem
No mundo, deu ao mundo em que viveste,
Á nossa boa e maternal Paisagem,

Um espirito novo mais celeste;
Nova Forma a abraçou e nova Cor
Beijou, sorrindo, o seu perfil agreste!

E ei-la agora tão triste e sem verdor!
Depois da tua morte, regressou
Ao seu velhinho estado anterior.

E esta saudosa casa, onde brilhou
Tua voz num instante sempiterno,
Em negra, intima noite se ocultou.

Quando chego à janela, vejo o inverno;
E, à luz da lua, as sombras do arvoredo
Lembram as sombras pálidas do Inferno.

Dos recantos escuros, em segredo,
Nascem Visões saudosas, diluídos
Traços da tua Imagem, arremedo

Que a Sombra faz, em gestos doloridos,
Do teu Vulto de sol a amanhecer...
A Sombra quer mostrar-se aos meus sentidos...

Mas eu que vejo? A luz escurecer;
O imperfeito, o indeciso que, em nós, deixa
A amargura de olhar e de não ver...

A voz da minha dor, da minha queixa,
Em vão, por ti, na fria noite clama!
Dir-se-á que o céu e a terra, tudo fecha

Os ouvidos de pedra! Mas quem ama,
Embora no silêncio mais profundo,
Grita por seu amor: é voz de chama!

E eu grito! E encontro apenas sobre o mundo,
Para onde quer que eu olhe, aqui, além,
A tua Ausência trágica! E no fundo

De mim próprio que vejo? Acaso alguém?
Só vejo a tua Ausência, a Desventura
Que fez da noite a imagem de tua Mãe!

A tua Ausência é tudo o que murmura,
E mostra a face triste á luz da aurora,
E se espraia na terra em sombra escura...

Quem traz o outono ao meu jardim agora?
Quem muda em cinza o fogo do meu lar?
E quem soluça em mim? Quem é que chora?

É a tua Ausência, Amor, que vem turvar
Esta alegria etérea, nuvem, asa
De Anjo que, ás vezes, passa em nosso olhar!

O Sol é a tua Ausência que se abrasa,
A Lua é tua Ausência enfraquecida...
Da tua Ausência é feita a minha vida
E os meus versos também e a minha casa.

TRÁGICA RECORDAÇÃO

Meu Deus! meu Deus! quando me lembro agora
De o ver brincar, e avisto novamente
Seu pequenino Vulto transcendente,
Mas tão perfeito e vivo como outrora!

Julgo que ele ainda vive; e que, lá fora,
Fala em voz alta e brinca alegremente,
E volve os olhos verdes para a gente,
Dois berços de embalar a luz da aurora!

Julgo que ele ainda vive, mas já perto
Da Morte: sombra escura, abismo aberto...
Pesadelo de treva e nevoeiro!

Ó visão da Criança ao pé da Morte!
E a da Mãe, tendo ao lado a negra sorte
A calcular-lhe o golpe traiçoeiro!

Fonte:
Teixeira de Pascoaes. Elegias. 1912.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

Teixeira de Pascoaes (Livro D'Ouro da Poesia Portuguesa vol. 9) II



NO SEU TÚMULO

Sobre o seu frio berço sepulcral,
Meu espirito reza ajoelhado;
E sente-se perfeito e virginal
Na sua dor divina concentrado.

Caí, gotas de orvalho matinal!
Astros, caí do céu todo estrelado!
Secas flores do zéfiro outonal,
Vinde enfeitar-lhe o túmulo sagrado!

Ó luar da meia noite, encantamento
De sombra, vem cobri-lo! Ó doido Vento,
Dorme com ele, em paz religiosa...

Sobre ele, ó terra, sê brandura apenas;
Faze-te luz, toma o calor das penas;
Sê Mãe perfeita, boa e carinhosa.

DELÍRIO

Não posso crer na morte do Menino!
E julgo ouvi-lo e vê-lo, a cada passo...
É ele? Não. Sou eu que desatino;
É a minha dor sofrida, o meu cansaço.

Delírio que me prendes num abraço,
Emendarás a obra do Destino?
Vê-lo-ei sorrir, de novo, no regaço
Da mãe? Verei seu rosto pequenino?

Mistério! Sombra imensa! Alto segredo!
Jamais! jamais! Quem sabe? Tenho medo!
Que vejo em mim? A treva? a luz futura?

Ah, que a dor infinita de o perder
Seja a alegria de o tornar a ver,
Meu Deus, embora noutra criatura!

REMORSOS

Onde contigo, um dia, me zanguei,
É hoje um sitio escuro que aborreço;
E sempre que ali passo, eu anoiteço!...
Ah, foi um crime, sim, que pratiquei!

Quantas negras torturas eu padeço
Pelo pequeno mal que te causei!
Se, ao menos, pressentisse o que hoje sei?
Mas não; fui mau; fui bruto; reconheço!

E sofro mais, por isso, a tua morte,
E dou mais choro amargo ao vento norte,
Mais trevas se acumulam no meu rosto...

Ó vós que neste mundo amais alguém,
Seja linda criança ou pai ou mãe,
Não lhe causeis nem sombra de desgosto!

NO CREPÚSCULO

Nasce a luz do luar dos derradeiros,
Ermos, soturnos píncaros sozinhos...
Andam sombras no ar e murmurinhos
E vagidos de luz... e os Pegureiros
Descem, cantando, a encosta dos outeiros...

Tangendo amenas frautas amorosas,
Seus vultos, no crepúsculo, desmaiam
E assim como os seus cânticos, se espraiam
Em ondas de emoção. As fragorosas
Quebradas que o luar beija, misteriosas
Furnas, bocas de terra, murmurantes,
Arvoredos extáticos orando,
Rochedos, na penumbra, meditando,
Desfeitos em ternura, esvoaçantes,
Pairam também no espaço comovido,
Das primeiras estrelas já ferido,
Todo em luar e sombra amortalhado...

E eu choro sobre um monte abandonado...

E o Fantasma divino da Criança,
Sombra de Anjinho em flor,
Nos longes dos meus olhos aparece,
Como se, por ventura, ele nascesse
Da minha incerta e trémula esperança,
E não da minha firme e eterna dor!

E choro; e além das lagrimas, eu vejo
Aquele doce Vulto pequenino,
Em seu leito de morte e sofrimento;
Jesus martirizado, inda Menino...
E é como cinza morte o meu desejo
E como extinta luz meu pensamento!

Depois, a sua Imagem sofredora
Regressa á Vida, veste-se de aurora;
Os seus lábios sorriem para mim...
E aqueles verdes olhos cristalinos
Abrem-se radiosos e divinos,
E vejo-o então brincar no meu jardim!

Vejo-o como ele foi, como ele existe
No coração da Mãe por toda a vida!
Anjinho tutelar da nossa casa!
A divina Esperança florescida,
Brilhando além de tudo quanto é triste...
Longínquo Alívio, protetora Asa!

Mas de que serve? Eu choro sem descanso,
No meio da tristeza indiferente
Das Cousas que têm a alma sempre ausente...

Só eu na minha dor nunca me canso.

Ó bruteza das Coisas! No infinito
E gélido silencio, eu ouço um grito!
Na funda solidão que me rodeia,
Um ser apenas, tétrico, vagueia...

Quem grita? O meu espirito. E que importa?
É ele a errar no mundo solitário,
Sem principio nem fim, sem pai nem mãe!

Ó céu indiferente! Ó terra morta!
Ó grito de Jesus sobre o Calvário,
A subir no Infinito, cada vez
Mais cercado de trágica mudez,
Mas aflito, mais alto, mais além!...

Cousas que já fizestes companhia
A este espirito meu que, em vós, se via,
Porque me abandonastes? Ermo Vento,
Insonia do ar correndo o Firmamento,
Só vejo, em ti, loucura inanimada,
Revolta inconsciência destruidora!

Alta estrela, na noite, incendiada,
Passarinhos do céu, cantos da aurora,
Já não palpita em vós meu coração...
Sois o silencio, a treva, a solidão.

Além de mim já nada avisto. As cousas,
Arvores, nuvens, serras pedregosas,
São penumbras que á luz do meu olhar
Se dissipam, de súbito, no ar.

De tal forma meu ser se concentrou
Na visão da Criança, que além dela,
Não vejo flor ou ave ou luz de estrela,
Límpido céu azul, verde paisagem!
Dir-se-á que o seu Espectro reencarnou
Em mim, - que não sou mais que a sua Imagem!

SOBRESSALTO

Quantas horas passava contemplando
Seu pequenino Vulto. Era um Anjinho
Dentro de nossa casa, abençoando...
Era uma Flor, um Astro, um Amorzinho.

Um dia, em que ele, ao pé de mim, sozinho
Brincava, estes meus olhos inundando
De graça, de Inocência e de carinho,
De tudo o que é celeste, alegre e brando,

Vi tremer sua Imagem, de repente,
No ar, como se fora Aparição.
E para mim eu disse tristemente:

"Pertences a outro mundo, a um céu mais alto;
Partirás dentro em breve." E desde então
Eu fiquei num constante sobressalto!

ENCANTAMENTO

Quantas vezes, ficava a olhar, a olhar
A tua doce e angelica Figura,
Esquecido, embebido num luar,
Num enlevo perfeito e graça pura!

E á força de sorrir, de me encantar,
Diante de ti, mimosa Criatura,
Suavemente sentia-me apagar...
E eu era sombra apenas e ternura.

Que Inocência! que aurora! que alegria!
Tua figura de Anjo radiava!
Sob os teus pés a terra florescia,

E até meu próprio espirito cantava!
Nessas horas divinas, quem diria
A sorte que já Deus te destinava!

O QUE EU SOU

Noturna e dúbia luz
Meu ser esboça e tudo quanto existe...
Sou, num alto de monte, negra cruz,
Onde bate o luar em noite triste...

Sou o espirito triste que murmura
Neste silencio lúgubre das Cousas...
Eu é que sou o Espectro, a Sombra escura
De falecidas formas mentirosas.

E tu, Sombra infantil do meu Amor,
És o Ser vivo, o Ser Espiritual,
A Presença radiosa...
                        Eu sou a Dor,
Sou a trágica Ausência glacial...

Pois tu vives, em mim, a vida nova,
E eu já não vivo em ti...
                        Mas quem morreu?
Foste tu que baixaste á fria cova?
Oh, não! Fui eu! Fui eu!

Horrível cataclismo e negra sorte!
Tu foste um mundo ideal que se desfez
E onde sonhei viver apos a morte!
Vendo teus lindos olhos, quanta vez,
Dizia para mim: eis o lugar
Da minha espiritual, futura imagem...
E viverei á luz daquele olhar,
Divino sol de mistica Paisagem.

Era minha ambição primordial
Legar-lhe a minha imagem de saudade;
Mas um vento cruel de temporal,
Vento de eternidade,
Arrebatou meu sonho! E fugitiva
Deste mundo se fez minha alegria;
Mais morta do que viva,
Partiu contigo, Amor, à luz do dia
Que dourou de tristeza o teu caixão...
Partiu contigo, ao pé de ti murmura;
É magoada voz na solidão,
Doce alvor de luar na noite escura...
E beija o teu sepulcro pequenino;
Sobre ele voa e erra,
Porque o teu Ser amado é já divino
E o teu sepulcro, abrindo-se na terra,
Penetrou-a de luz e santidade...
E para mim a terra é um grande templo
E, dentro dele, a Imagem da Saudade...
E reso de joelhos, e contemplo
Meu triste coração, saudoso altar
Alumiado de sombra, escura luz...
Nele deitado estás como a sonhar,
Meu pequenino e mistico Jesus...
Lagrimas dos meus olhos são as flores
Que a teus pés eu deponho...
Enfeitam tua Imagem minhas dores,
E alumia-te, ás noites, o meu sonho.

Todo me dou em sacrifício á tua
Imagem que eu adoro.
Sou branco incenso á triste luz da lua:
Eu sou, em nevoa, as lagrimas que choro...

Fonte:
Teixeira de Pascoaes. Elegias. 1912.