terça-feira, 14 de novembro de 2023

Eduardo Martínez (Talarico, o pé de pano)

Talarico corria despido pela rua, enquanto uma multidão furiosa o perseguia. Aliás, tirando o marido traído, os outros eram apenas curiosos a fim de ver o desenlace daquela pendenga. E lá ia Talarico todo esbaforido, mais ligeiro que preá com medo de virar espetinho. Tamanho o seu desespero, nem sentia dor, apesar do balançar do sino de Belém entre as suas pernas.

– Pega!!! Pega!!! Pega!!!

Que nada!!! O peladão entrou por aqui, mas, antes que o seu perseguidor percebesse, lá estava o nosso Don Juan pulando o muro, entrando pelos fundos da casa vizinha, assustando duas velhas sentadas à mesa na hora do chá, tomando novamente a rua em seguida. 

Correu tanto, que nem os cachorros que latiam em seu encalço conseguiram alcançá-lo. Escafedeu-se, apesar da expectativa de todos e, em especial, da do esposo da doce Jurema. Afrânio, ainda com uma peixeira na mão, suando em bicas, soltou um grito, que poderia até ser confundido com o de um bugio.

– Que raiva!!! Mais cedo ou mais tarde eu te pego, seu salafrário!!! 

Já bem distante dali, Talarico, com as duas maçãs do traseiro perdendo o ritmo daquela desesperada corrida, finalmente olhou para trás. Nada!!! Ninguém mais ao alcance dos seus olhos tão lascivos. E, a despeito da sensação de ter escapado de mais uma boa, não titubeou e manteve o passo firme até a casa da Rosinha, com quem, há tempos, fazia promessas de uma vida juntos. 

Em pé diante da porta, Talarico foi recebido pelos olhos surpresos da amada.

– O que houve? Por que está assim sem roupa?

– Minha flor, você não vai acreditar! Fui assaltado por uma gangue logo ali! Como esse mundo está violento! Não se pode nem mais andar por aí em paz!

Rosinha, olhando todo aquele teatro, tocou de leve o rosto do seu homem, fez uma cara de compaixão e, finalmente, lhe deu as costas.

– Talarico, você falando e um risco n'água, pra mim, é a mesma coisa!
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Eduardo Martínez nasceu na cidade do Rio de Janeiro, possui formação em Comunicação Social – Habilitação em Jornalismo, Medicina Veterinária e Engenharia Agronômica. Começou a se enveredar pela literatura através do romance “Despido de ilusões”, publicado em 2004 e que figurou, durante dois anos, entre os mais lidos de todo o acervo da biblioteca do Centro Cultural do Banco do Brasil. Também é autor do romance policial “Rachel” e do livro sobre educação canina “Meu melhor amigo e eu”, além de participações em várias coletâneas de contos e crônicas. Suas histórias, geralmente, se passam no Rio, em Brasília ou em Porto Alegre, cidade onde reside desde 2021. Atualmente, é cronista/contista do Notibras (https://www.notibras.com/site/) e do Blog do menino Dudu (https://blogdomeninodudu.blogspot.com/).

Dados biográficos: enviado pelo autor.

Maria Thereza Cavalheiro (Trovas para refletir) – 6 –


 A guerra não é com o mundo.
A guerra é dentro de nós.
O grande embate, no fundo,
é quando estamos a sós!
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Às vezes, dentro da gente,
grande conflito se encerra.
A paz é frequentemente
motivo da própria guerra.
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A vida inteira é disputa;
enfrenta o temor e vence-o.
Mas lembra: só ganha a luta
quem sabe guardar silêncio.
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Com tanta agressão e guerra,
neste milênio, é preciso
que Jesus retorne à terra
e nos traga a paz e o riso!
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Existe gente no mundo
que ama a todos, ama a esmo...
E há quem sinta amor profundo,
no fundo, só por si mesmo!
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Há gente que muito corre,
sempre em constante vaivém,
mas não percebe que morre,
porque não vive também!
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Não é porque alguém nos trai
que a sorte é madrasta e feia.
O mar também se retrai
e volta a dançar na areia!
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Não há no mundo distância
que faça um dia esquecer
a terra de nossa infância,
o sol que nos viu nascer!
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Não tomes uma atitude
na hora do nervosismo!
Paciência é a maior virtude
se estás à beira do abismo...
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No jogo de todo dia,
há muitas vezes entrave,
pois muita bola erradia
apenas bate na trave.
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O remorso que arruina
- passado sempre presente -
é aquela voz, em surdina,
a acusar dentro da gente.
= = = = = = = = = 

Quando é aflitivo o momento,
o sorriso impõe a calma;
transforma em bom pensamento
a angústia que se tem n'alma.
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Quando é um bem que muito custa,
ao chegar, traz ansiedade:
na vida, a gente se assusta
até com a felicidade!
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Quem no meio da jornada
encosta o carro e vacila,
se quer voltar para a estrada
só tem vez no fim da fila...
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Quem espião quer ao lado,
não existe outra maneira:
é só não tomar cuidado
com quem lhe pisa a soleira...
= = = = = = = = = 

Quem tem à vista um fanal
não se perde no caminho;
quem persegue o seu ideal
é vento a girar moinho!
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Quem persegue a trajetória
que traçou para os seus passos,
um dia conquista a glória,
pois não se rende aos fracassos.
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Quem traz guerra e desventura,
à paz opõe empecilhos,
abre assim a sepultura
para enterrar os seus filhos!
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Se alguém te ofende demais,
não gastes língua ou papel;
o silêncio fere mais
que a palavra mais cruel.
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Se guardas boa lembrança,
não retornes a um lugar:
quando o passado descansa,
melhor deixá-lo sonhar!
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Sem nada para ofertar
no presente ou no porvir,
o quanto pode ajudar
quem sabe apenas ouvir!
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Ter fibra é sorrir na mágoa,
opor, ao mal, sempre o Bem:
no fogo do ódio por água
quando o incêndio nos convém...
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Todos temos, no horizonte,
uma ideia mais sombria,
porque sempre existe ponte
entre a tristeza e a alegria.
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Vê como o sol no horizonte
desce aos poucos, devagar...
Não vás tão depressa à fonte,
que o jarro podes quebrar…
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Fonte: CAVALHEIRO, Maria Thereza. Trovas para refletir. SP: Edição do Autor, 2009. Enviado pela Trovadora.

Contos das Mil e Uma Noites (Um califa estranho)

Conta-se que, certa noite, o califa Harun Al-Rachid, sofrendo de insônia, mandou chamar seu vizir Jafar Al-Barmaki e seu guarda-costas Masrur e disse-lhes: “Tenho o coração oprimido. Para me distrair, gostaria de errar pelas ruas de Bagdá e chegar ao Tigre.” 

Imediatamente, vestiram-se todos de mercadores e andaram até o rio. Lá encontraram um barqueiro velho e disseram-lhe: “Ó velho, eis um dinar. Poderias levar-nos no teu barco pelo rio para gozarmos o frescor da brisa?” 

- Qual é o objetivo de vosso pedido, senhores? E qual é a graça? Não conheceis as ordens? “É proibido a grandes e pequenos, jovens e velhos, nobres e plebeus, navegar no Tigre. Quem desobedecer terá a cabeça cortada.” Não vedes o barco do califa dirigindo-se para cá? 

Surpresos, perguntaram-lhe: “Estás certo de que o próprio califa está no barco?” 

- Existe alguém em Bagdá que não conhece o califa Harun Al-Rachid? Sim, é ele que está no barco com seu vizir Jafar e o portador de sua espada, Masrur. 

Harun Al-Rachid, que nunca dera as ordens mencionadas e ficara afastado do rio o ano todo, interrogou Jafar com os olhos. O vizir, que estava igualmente intrigado, disse ao barqueiro: “Eis dois outros dinares. Leva-nos até aquela sombra para que possamos ver o califa sem sermos vistos.” 

Após alguma hesitação, o barqueiro levou-os e escondeu-os por baixo de um arco. De lá viram o barco real passar com luzes, movimentos e escravos dançando e cantando. Num trono de ouro sentava-se um jovem, suntuosamente vestido, e tendo à sua direita um homem estranhamente parecido com Jafar e, à sua esquerda, o suposto Masrur, segurando uma espada nua. 

– Velho, perguntou o califa ao barqueiro, tens certeza de que o califa passeia no rio nesse barco iluminado todas as noites? 

- Ele tem feito isso todas as noites nos últimos doze meses. 

– Somos estrangeiros nesta cidade, disse o califa, e gostamos de ver coisas curiosas. Se eu te der dez dinares, esperarás por nós amanhã aqui nesta hora? 

O barqueiro agradeceu e prometeu ser fiel ao compromisso. Na noite seguinte, os três dignitários voltaram e, levados pelo barqueiro, esconderam-se debaixo do arco e observaram o barco iluminado passar. 

- Ó vizir, disse Harun Al-Rachid, nunca teria acreditado no que estou vendo se me tivessem contado. E virando-se para o barqueiro, disse-Ihe: “Eis outros dez dinares. Segue aquele barco e não tenhas medo de ser visto, pois estamos na escuridão e eles, em plena luz. Gostaríamos de ver aquela iluminação de mais perto e por mais tempo.”

Logo depois, viram o falso barco real atracar e seus ocupantes desembarcarem e entrarem num grande parque onde se puseram a cantar, dançar e divertir-se. O califa e seus dois companheiros também desembarcaram, entraram no parque e se misturaram com os outros. Mas alguém reconheceu-os como estranhos ao grupo e levou-os até o pseudocalifa. 

Perguntou-lhes o califa: “Como e por que viestes aqui?” 

Responderam: “Somos mercadores estrangeiros que visitamos esta cidade pela primeira vez. Estávamos passeando e entramos neste parque sem saber que era proibido entrar nele.” 

- Já que sois estrangeiros, sede nossos hóspedes, disse o estranho califa. Senão, teria que mandar cortar-vos a cabeça. 

O convite foi aceito  e entraram todos num palácio tão suntuoso quanto o palácio do califa. A festa prosseguiu com danças, canções, bebidas e guloseimas. No lado direito do salão, uma porta abriu-se e dois negros entraram carregando sobre as espáduas um trono de marfim no qual sentava-se uma jovem escrava tão brilhante quanto o sol. Estava tocando o alaúde e cantando: 

Como pudeste encontrar a paz quando eu estava longe e infeliz? 
Como pudeste encontrar bálsamo quando eu estava perto e partindo? 
Ai de mim! Vazio está o quarto perfumado onde espera em vão nossa cama colorida. 
E vazia está a sala de mármore onde morrem os ecos das canções de amor. 

Assim que o falso califa ouviu esta canção, rasgou a roupa e desmaiou. Harun Al-Rachid e seus companheiros repararam que seu corpo estava coberto de marcas de flagelo.

 - Pena que um jovem tão bonito carregue esses estigmas que o denunciam como um criminoso fugitivo, disse o califa.

Mamelucos apressaram-se em acordar o jovem e cobri-lo com vestidos tão suntuosos quanto os que rasgara. 

- Pergunta-lhe a causa dessas marcas, pediu o califa a Jafar. Mas Jafar opinou que seria melhor não se precipitar para não despertar suspeitas. 

- Pergunta, insistiu o califa. Senão teu corpo estará buscando uma cabeça quando voltarmos ao palácio. 

Jafar obedeceu. O jovem sorriu e disse: “Já que sois estrangeiros, contar-vos-ei minha história. Ela é tão estranha que se fosse escrita com uma agulha no canto interno dos olhos, serviria de aula a quem gosta de instruir-se.” E começou: “Meus senhores, eu não sou o Comandante dos Fiéis, mas apenas Mohamed-Ali, filho do síndico dos joalheiros de Damasco. Quando meu pai morreu, legou-me muito ouro e prata, inúmeras pérolas, rubis e esmeraldas. Legou-me também edifícios, terras, jardins, lojas e este palácio com seus escravos e escravas. 

“Um dia, estava na minha loja quando vi apear de um cavalo arreado uma jovem de beleza lunar. Entrou acompanhada de seus servidores, e perguntou-me: Não és Mohamed-Ali o joalheiro?” Respondi: “Não sou apenas Mohamed-Ali. Sou também teu escravo.”

“- Terias algum adorno bonito que possa agradar-me? 

“Mostrei-lhe os mais belos colares que tinha. Nenhum lhe agradou. Lembrei-me então que meu pai comprara certa vez um colar de inigualável beleza que guardara num cofre especial. Trouxe-o. Assim que a jovem o viu, exclamou: “É este o colar que sempre procurei, quanto custa? 

“- Meu pai pagou 100 mil dinares por ele. Se te agrada, terei prazer em oferecer-te de graça. 

“- Aceito-o pelo preço original e mais 5 mil dinares a título de juros, replicou a jovem com um sorriso. Por favor, traze-o até minha residência e lá receberás o preço. 

“Mandei meus escravos fecharem a loja e segui-a. 

“Quando cheguei, esperava-me no seu aposento sem véu, sentada num trono de ouro, com meu colar em volta de seu pescoço. Vendo-a assim, senti meus miolos fundirem e a fortaleza de meu coração desmantelar-se. 

“A senhora acenou à suas escravas para que saíssem, veio até mim e disse: “Mohamed-Ali, luz de meus olhos, amo-te; e tudo que fiz hoje era apenas uma manobra para trazer-te até aqui.”

“Deixou-se cair nos meus braços, banhando-me no langor de seus olhos. Beijei-a, enquanto ela empurrava seus seios contra mim. Compreendi que não devia recuar e quis fazer o que tinha que ser feito. Mas no momento em que o menino, já completamente acordado, clamava lascivamente pela mãe, a jovem disse-me: “Que pretendes fazer com ele, meu senhor? Guarda-o, porque minha casa não está aberta. Alguém terá que quebrar a porta. Se pensas que estás lidando com alguma mulher comum, desengana-te. Sou a filha de Yahia Ibn Khalid Al-Barmaki, irmã do vizir Jafar. E sou virgem.” 

“Ao ouvir essas palavras, meus senhores, mandei o menino voltar para seu sono e desculpei-me por ter desejado que ele participasse da hospitalidade estendida a seu pai. 

“- Nada tens que lamentar, disse a moça. Chegarás ao que queres, mas pelo caminho legal. Gostarias de casar-te comigo? 

“Respondi que nada me agradaria mais. Imediatamente, mandou chamar o cádi e as testemunhas e declarou-lhes: “Eis Mohamed-Ali, filho do síndico. Pediu-me em casamento e ofereceu-me este colar por dote. Aceitei e consinto.” Nosso contrato de casamento foi redigido e assinado na hora e fomos deixados a sós. 

“Quando a despi, vi que era realmente uma pérola não-furada, um cavalo que nenhum cavaleiro montara. Passei com ela uma noite que resumiu todas as alegrias de minha vida. “Vivemos assim um mês inteiro. No começo do mês seguinte, disse-me certa vez: “Devo ir ao hammam (banho turco) por poucas horas. Jura que não te levantarás desta cama até que volte.” Jurei, e ela saiu. 

“Ora, quis o destino que, minutos depois, chegasse uma anciã e me dissesse: “Ó Mohamed-Ali, a senhora Zubaida, a esposa do Comandante dos Fiéis, enviou-me para pedir-te que fosses imediatamente ao palácio, pois deseja falar-te.” Respondi: “Senhora Zubaida honra-me com esse pedido, mas não posso sair de casa até o regresso de minha mulher.” 

“- Meu menino, disse a velha, aconselho-te a atender sem demora a dona Zubaida em teu benefício, a menos que queiras fazer dela tua inimiga. Sua inimizade é perigosa. 

“Atendi, esperando que minha mulher compreendesse e me desculpasse. A senhora Zubaida recebeu-me com um sorriso e perguntou: “Luz de meus olhos, não és o amante da irmã do vizir?” 

“- Sou teu escravo, respondi. 

“- Em verdade, não exageraram em descrever o charme de tuas maneiras e de tua voz. Estou satisfeita. Mas quero que cantes alguma coisa para mim. 

“Quando fui libertado e voltei para casa, encontrei minha mulher dormindo. Deitei a seu lado e comecei a acariciar-lhe as pernas. Mas ela me deu um pontapé tão violento na virilha que caí da cama. 

“Traidor perjuro!”, gritou. “Quebraste teu juramento e foste visitar a senhora Zubaida! Não posso ir ensinar-lhe a não debochar dos maridos de outra mulheres. Por isso, pagarás por ambos.” E chamou o chefe de seus eunucos, o terrível Sauab, e disse-lhe: “Corta a cabeça deste traidor.” “

Nesse momento, todos os escravos da casa, que eu costumava tratar com bondade, acorreram e solicitaram sua compreensão: “Como iria ele adivinhar que uma simples visita a dona Zubaida iria desagradar-te tanto? Ele desconhecia a rivalidade e inimizade que existe entre vós duas. Por favor, trata-o com clemência. 

“Pouparei a sua vida, concedeu ela finalmente. “Mas deixarei no seu corpo uma lembrança indelével de sua traição.” E mandou infligir-me as torturas de que vedes os vestígios.

“Quando me restabeleci, vendi tudo que tinha, comprei esse grande barco e quatrocentos escravos e escravas, disfarcei-me de califa e entreguei-me à alegria de viver, ao canto e à dança. Passei assim um ano inteiro, tentando esquecer as consequências que sofri por ter-me intrometido sem querer numa briga de mulheres”.

Após ouvir esta história, o califa voltou para seu palácio, preocupado em encontrar um meio de reparar a injustiça feita àquele homem bom. No dia seguinte, revestido de sua autoridade, mandou vir Mohamed-Ali e disse-lhe:

“Gostaria de ouvir de tua própria boca a história que contaste ontem à noite a três mercadores estrangeiros.” 

Surpreso, Mohamed-Ali repetiu a história. Perguntou-lhe o califa: “Ainda amas a tua mulher e a queres de volta?” 

- Tudo que recebo das mãos do califa é bem-vindo. 

Então disse o califa a Jafar: “Traze-me tua irmã.” 

Quando a mulher chegou, disse-lhe o califa: “Ó filha de Yahia, nosso fiel emir, eis Mohamed-Ali. O que passou, passou. Neste momento, quero dar-te a ele como esposa.” 

- Os presentes de nosso senhor são sempre generosos. O califa mandou vir o cádi e as testemunhas. Os dois jovens foram casados de novo, e o califa fez de Mohamed-Ali um de seus amigos mais íntimos.

Fonte: As Mil e uma noites. (tradução de Mansour Chalita). Publicadas originalmente desde o século IX. Disponível em Domínio Público.

Contos e Lendas do Mundo (Honduras: Mina de água suja)

Este conto hondurenho vem do município de La Llama, no departamento de Santa Bárbara. Antigamente, o morro em que se passava tinha um nome cuja tradução de Nahuatl significava velha. Um dos pontos de referência mais verdadeiros é nos localizarmos nas proximidades do Rio Cececapa, onde há muitos anos um pai e uma filha viviam entre os moradores do bairro, em torno dos quais gira esta história.

Na cidade corria o boato de que no morro se encontrava uma mina de água suja onde se ofereciam sacrifícios por algum bem, mas ninguém sabia o que era esse bem retribuído nem como chegar a esse lugar. O pai da história, porém, com o maior dos mistérios e muito furtivamente desaparecia todas as sextas-feiras com uma galinha e algumas velas brancas feitas em Castela.

Chegou um momento em que a filha ficou tão curiosa sobre o que estava acontecendo e fazendo com que o pai desaparecesse por horas todas as sextas-feiras, que ela começou a segui-lo com muito cuidado para não ser descoberta e como uma farpa. A discrição da jovem foi tanta que ela conseguiu chegar à entrada de uma caverna no fundo da montanha sem ser notada, onde seu pai se sentou e começou a desempacotar os gadgets que trouxera consigo durante a viagem.

O homem começou a realizar um ritual e quase imediatamente um redemoinho de fogo apareceu do chão e começou a ir até onde a menina estava escondida nos arbustos, isso a fez fugir do local e foi aí que ela pôde ver o que causou muita raiva nele e fez com que ele a levasse de volta para casa entre severas broncas e punições, já que o caminho para chegar lá era um segredo que só seu pai deveria saber.

Assim que voltou ao local, o homem terminou de realizar um ritual que também não é conhecido, mas que se conecta com um ser que é uma espécie de lagarto de ouro gigante que vive dentro da mina de água suja e que depois de fazer o sacrifício da galinha branca e acenda algumas velas, isso permite que uma parte da cauda seja cortada.

Como essa porção da cauda se regenera nele para a próxima sexta-feira, esse recurso está sempre disponível, para quem o fizer quando seu sacrifício for devido, no entanto, muito poucos devem saber como chegar lá e como invocá-lo. Depois de aprovisionado, quem oferece a galinha pode vender o ouro, que são galões sólidos dele, e se sustentar com essa venda.

É o caso do que fez o pai desta história de Honduras, que uma vez teve sua porção semanal de ouro, foi a Salvador e vendeu o que havia cortado no mercado, evitando assim perguntas, pois longe de sua cidade não conhecia o boato da mina de água suja.

Inevitavelmente vemos nesta história como os desejos de abundância econômica e sua busca estão ligados à realidade, esta é uma ideia antiga segundo a qual na América Latina existe algo chamado El Dorado que em certos pontos esquecidos e conhecidos por poucos, as fontes de ouro podem ser encontrado.

Essa ideia que os espanhóis trouxeram foi muito bem recebida na cultura hondurenha e em muitas das regiões, por isso não é difícil encontrar histórias como as de Honduras em que um tesouro pode ser descoberto com rituais ou escavações.

Fonte: https://www.postposmo.com/pt/contos-de-honduras/

segunda-feira, 13 de novembro de 2023

Paulo Leminski em versos inversos – 004

 

Mensagem na Garrafa – 33 -


Marcos Assumpção
Niterói/RJ

CASA VAZIA

Falar de amor não é mistério
Nem tão difícil de explicar
A gente nunca faz por mal

Meu coração praia deserta
Morre de medo do inverno
E da solidão que me devora

Agora, a casa vazia,
Eu grito seu nome,
Só o silêncio me responde

Pensar que o amor é sempre eterno
Que é impossível ele se acabar,
Você bem que podia tentar, mas não,
não, não…..

Então quero falar por um momento 
(só por um momento)
Da tua ausência no meu corpo
E dessa lágrima no meu rosto

Agora, a casa vazia,
Eu grito seu nome,
Só o silêncio me responde

O fogo arde sob o nosso chão
Nada é tão fácil assim
Eu ando sozinho, no olho do furacão
Você nem lembra mais de mim

Agora, a casa vazia,
Eu grito seu nome,
Só o silêncio me responde.

Carolina Ramos (E os meus cavalos?)

A pergunta se justifica, não foram apenas os gatos, os cachorros e a bicharada miúda que preencheram a parte lúdica de minha vida. Os cavalos também têm grande relevância nesse setor.

Um deles até já foi citado, ou seja, o que veio buscar socorro, chegando-se, sem cerimônias, ao portão, para que cuidasse dele. E a lembrança desse cavalo ferido puxa outras que, por momentos, tiveram relevância e enfeitaram boa parte de minha existência.

Relato alguns momentos de devaneio, expressos numa outra crônica intitulada: - "Férias na Roça", também já chegada à imprensa.

FÉRIAS NA ROÇA

Quanta saudade! Saudade das minhas férias na roça! Das cavalgadas matinais na fazenda do Pinhal, cedinho, quando

O orvalho ainda brilhava nas folhas adormecidas, à espera de que o sol as viesse despertar!

Saudade da algazarra dos pássaros madrugadores... Saudade do estalar da lenha sob a chapa do fogão que amparava o bule do café, enquanto o aroma familiar se espalhava pelos cômodos do velho casarão da Fazenda do Pinhal, lá para as bandas de Itapetininga, a esgueirar-se pelas janelas, a competir com o aroma adocicado das flores do jardim.

Que saudade, também, do velho Lucrécio - passos lentos, carapinha branca, voz pausada e mansa... Nas noites embuçadas em mistério, eletrizava a criançada sentada à sua volta, olhos arregalados, a ouvir suas histórias, suspensa nos "causos" por ele contados, que envolviam sacis, lobisomens, assombrações e tanta coisa mais que acabava por perturbar a mansuetude do sono dos anjos.

Lucrécio era dessas pessoas que não podem faltar ao cenário de uma fazenda que se preze.

Alto, magro, pele curtida de sol e alma de algodão... Se Lobato o tivesse conhecido, certamente haveria um Lucrécio no "Sítio do Pica-Pau Amarelo".

Ainda garotinha, mas já com veleidades de boa amazona, pedia-lhe que encilhasse o meu cavalo, nunca o mais manso, e, Lucrécio recomendava, sério, de dedo em riste: – "Cuidado minina. Num pode galopeá... num pode, viu? I num si meta no mato, qui tem munta cobra pur lá... daquelas perigosa... cheia de veneno!" - Lucrécio arregalava os olhos para dar mais ênfase ao que dizia.

E eu apenas assentia com a cabeça, sabendo que nem tudo iria ser perfeitamente cumprido.

Ah! O velho Lucrécio, que nos ensinava a valorizar a poesia dos aboios... o canto desafinado e dolente de um carro-de-boi... O ranger festivo das porteiras, quando se abriam... E a pancada seca de um adeus, quando se fechavam por detrás de nós.

Lucrécio juntava a criançada da vizinhança e nos levava, em bando, a catar ninhos de pinhão e de ovos... A colher laranjas... E, também, aquelas jabuticabas brilhosas, que, parecendo envernizadas, enverrugavam os troncos e os galhos das jabuticabeiras.

Ensinava-nos a ouvir, bem de perto, o pipilar dos passarinhos nos ninhos, mas... sem tocá-los, já que sem esses cuidados aqueles ninhos poderiam ser abandonados e os filhotes expostos ao repúdio dos pais.

Quanta e quanta saudade da Fazenda do Pinhal, lá para os lados de Itapetininga, moldura preciosa da paisagem da minha infância! Seus proprietários - Sr. Leonardo e esposa, dona Nenê. Ela, espanhola, prima de minha mãe. Ele, de família italiana.

Lembro-me da roça viçosa, de onde vinham os verdes que enfeitavam nossa mesa... E daquela fonte gorgolejante, escondida entre a ramagem, sempre a oferecer linfa pura e fresca... Lembro-me bem do balido das cabras e dos carneiros de pernas finas, acolchoados de lã... Das vaquinhas leiteiras, que nos brindavam com bigodes de leite morno... E, também, do extenso algodoal... Semelhante a imenso campo nevado que nem o sol a pino conseguia derreter!

E me assalta, então, aquela saudade doída do meu cavalinho Expresso. Ele seria o cobiçado presente dos meus quinze anos... Negro "como a asa da graúna", lépido como um pé de vento... a correr pelos campos, onde o veneno de uma urutu-cruzeiro cruelmente o roubaria de mim!

Enfim... Quanta saudade daquelas noites forradas de estrelas, (hoje engolidas pela poluição) quando ainda era possível ouvir a brisa sussurrar suavemente entre os pinheiros a lembrar-nos que a vida passa depressa... Tão depressa quanto a água do rio, que a murmurejar segue sempre em frente... Para com certeza nunca mais voltar!

E aí está, retratado, en pasant, nesta crônica, mais um nome caro e saudoso, dono de quatro patas indóceis, o meu - Expresso!

Nome daquele querido cavalo, imaginado e amado à distância, e que, afinal, embora fruto de uma promessa cujo cumprimento fora aguardado com tanto carinho, acabou conhecido apenas através de um sonho frustrado e de uma foto que, inconscientemente, mais acirra a dor de o saber quase viável. Tudo por conta de um doloroso instante que o tornou definitivamente irrealizável.

Expresso tinha até baia garantida, já alugada por meu pai, na Hípica de São Vicente. Inteiramente negro, o pelo do "meu querido" Expresso tinha um brilho muito especial. Na testa, entre as orelhas, uma única e derradeira pincelada branca, como se o artista que o criou, feliz com a perfeição da obra, quisesse imitar aquela martelada cheia de orgulho, dada por Miguel Ângelo no joelho de uma de suas obras primas, ao dizer-lhe: - Parla! - Tal como se a perfeição daquele seu Moisés, para completar-se, exigisse apenas que falasse!

Assim era o "meu" Expresso! Pelo menos, para mim!

Fonte: Carolina Ramos. Meus Bichos, Bichinhos e… Bichanos. Santos/SP: Ed. da Autora, 2023. Enviado pela autora.

Daniel Maurício (Origamis de Palavras) – 3 –

Abro-me inteira
Para que de mim,
Entres e saias
Quando queiras.
= = = = = = = = = 

Calmaria…
Nas dobraduras do dia
As águas conversam com os remos,
Enquanto sem nenhuma pressa
Os gansos cochicham
Meneando a cabeça.
= = = = = = = = = 

Corri
Não por ter medo da chuva
Mas porque queria
O mais rápido possível
Inundar-me junto a ti.
= = = = = = = = =  = 

De repente
Um quê de fada,
De anjo de estrela,
Brilhou diferente entre os cachos de flores.
Borboletas...
Pequenas e ligeiras
Almas com asas,
Tingidas com pó de arco-íris
Rasgam o vento tão leve
Tal como o sono inocente.
Sonha em mim,
Coração em pétalas
No suave pousar das borboletas.
Em silêncio falam aos meus olhos
De um mundo de paz,
Amor e poesia.
= = = = = = = = =

Discretamente
Com a janela aberta
Entre a cortina de voal,
A aranha escuta o vento .
= = = = = = = = = 

Na aridez
Desértica do concreto
Você é o meu sol
Que faz refletir
Minha outra metade
Num coração
Inteiro de amor.
= = = = = = = = = 

Não é apenas
Um cachecol de pena
Pois na conjugação
De um abraço
Infinito é o enlaço
Entre duas almas.
= = = = = = = = = 

Não era mancha
de beterraba,
da salada
que pra família fazia.
Era um mapa
da violência,
que na alma ardia.
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Nas folhas pintadinhas
Da folhagem antiga,
Pingam saudades
De casa de mãe.
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No meio do caminho
Era só um pedaço de pedra
Mas ao olhar atento
O amor revelou a tempo
Um coração aberto
Que receptivo esperava.
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Saudoso
sobre o lago de lágrimas
O olho encara de frente
O presente, o passado e o futuro.
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Uma borboleta
Inquieta-se em mim.
Suas asas doem nas pétalas do meu peito
Que queria de todo jeito
Florescer em teu jardim.
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Voei por muitas Eras
Nos degraus do tempo descansei
Seguindo o fio da vida
Por muitos portais atravessei
O chamamento da tua alma
Pelas frestas da gaiola escutei
Almas gêmeas
Finalmente plenas
Completando o ciclo do viver
Eu te beijei.
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Fonte: Daniel Maurício. Origamis de Palavras. São Carlos/SP: Pedro e João Editores, 2021. 
Enviado pelo poeta.

Maria Amália Vaz de Carvalho (A Tia Izabel)

Conhecia-a em casa de uma família amiga da minha.

Afirmavam os que a tinham conhecido em menina, que fora bonita; a mim parecia-me simplesmente simpática.

Era alta, magra, loura e muito branca, uma fisionomia serena e melancólica, sem muito relevo, mas com muita doçura.

Andava sempre vestida de escuro, com uma simplicidade em que transpareciam, porventura, vislumbres de antigas elegâncias.

Ao olhar para ela conhecia-se que havia de ter gostado de certas puerilidades mundanas, de se vestir e pentear bem, por exemplo, de ser citada pelo esmero do seu gosto, e pela distinção finíssima de suas maneiras.

Hoje todas as vaidades se tinham apagado; fizera quarenta anos, e acolhera-os com resignação, com dignidade, com uma certa graça melancólica que lhe ficava muito bem.

Nenhum dos rapazes que frequentavam aquela casa se atrevia a chamar-lhe solteirona.

A solteirona é a mulher solteira que não sabe aceitar resignada as amarguras de seu isolamento, e as converte em ridículos quando as não converte em péssimas qualidades.

A solteirona é pretensiosa, presumida, ávida de atrair a atenção, revolve os olhos sentimentalmente, lê romances, come gulodices, tem um king charles (espécie de cachorro) e inveja tudo o que é moço, radiante, feliz, tudo que tem esperanças e para quem o futuro desabrocha em promessas.

A solteirona é egoísta, incomodam-na como uma injúria que lhe é particularmente dirigida todas as alegrias que não tem, persegue-a atrozmente a aspiração irrequieta a um pobre marido que pudesse atormentar à vontade; sente-se na vida como numa casa que não é sua; daqui o seu mau humor continuado que torna dela quase sempre o flagelo da família onde se sente pária!

A tia Izabel, porém, não era nada disto, pelo contrário.

Tinha para os sobrinhos um coração que, sem ser de mãe, encerrava muito de maternal, sobretudo no que as mães têm de indulgente!

Nunca a vi colérica, nunca a vi também excessivamente animada.

Não se ria, mas tinha habitualmente um sorriso plácido, quase , o sorriso de quem se sente um pouco estranha a todas as alegrias que a rodeiam, mas que nem por isso deseja projetar as suas sombras na luz que os outros espalham em torno dela.

Era muito estimada pelo irmão, pela cunhada e pelos sobrinhos, uns traquinas que andavam sempre a recorrer á sua inesgotável paciência, e que nunca foram expulsos com um gesto de irritação ou de desamor.

Sabia a difícil ciência de se tornar útil a todos, quase indispensável; estreitando deste modo os laços que a prendiam aos seus, tornando-os por assim dizer inquebrantáveis:

Sentia-se assim menos só!

Nos jantares de família os melhores pratos eram sempre executados debaixo da sua direção; era ela quem fazia o menu, quem distribuía os lugares, quem presidia a todos os arranjos de casa.

Encarregava-se das tarefas mais enfadonhas, daquela parte aborrecida que tem uma festa e que as donas da casa aceitam com tédio, mas que lhes é mais tarde compensada no aplauso, na satisfação, às vezes mesmo na inveja disfarçada em risos dos seus convivas.

Nessas ocasiões solenes em que ninguém dava por ela, creio que se permitia um instante de inocente amor próprio, vendo a mesa bonita, bem disposta, com a elegante e simétrica poesia das grandes jarras do Japão cheias de flores, dos cristais facetados onde o vinho tomava as olímpicas aparências do néctar, da bela louça da China de lavores extravagantes e fantasiosos, da roupa fresca, pesada, macia, de linho da Rússia adamascado, tendo bordadas iniciais... que não eram as dela.

Depois voltava para o seu lugar secundário, obscuro, e voltava de boa vontade com simplicidade despreocupada.

Estava sempre bem com todos, sem se curvar obsequiosamente diante de alguém.

Tinha mesmo um modo seu de dizer as verdades com firmeza e com brandura, sem transigências covardes, sem severidade excessiva.

Quando havia em casa um doente, sentava-se-lhe tranquilamente à cabeceira, fazia-lhe sentir com discreta suavidade a sua influência boa, perdia as noites com um aspecto de intrepidez e de meiguices; era inapreciável enfim.

Tinha uma infinidade de pequenas ideias que punha em prática e de cada uma das quais resultava um alívio para o doente: arranjava as almofadas, aconchegava as roupas do leito, dir-se-ia que a sua mão esguia, branca, um pouco seca, tinha o segredo de verter bálsamo em todas as feridas de um corpo enfermo.

Na convalescença lia alto.

Escolhia muito bem os livros, tinha a maravilhosa intuição de todas as necessidades de um espírito adormecido, naquela dúbia luz crepuscular da doença física.

A sua voz velada, sem grande sonoridade, tinha umas notas macias que entravam até ao fundo do coração e que o amoleciam docemente.

Ainda nos desgostos de família, na hora das crises e das catástrofes era para ela que instintivamente todos os braços se estendiam.

É que ela, com o seu passo miudinho, o seu ar sereno, os seus hábitos metódicos, nem diante das máximas catástrofes perdia a placidez necessária.

Uma das suas particularidades mais acentuadas era a repugnância pelo barulho, pelo espalhafato, por todas as exterioridades aparatosas.

Andava, falava, trabalhava, movia-se sempre devagarinho.

Lembro-me perfeitamente do quarto dela, como de uma espécie de pequeno santuário onde poucas vezes penetravam as travessas crianças de quem ela era como que segunda mãe.

Quando eu acertava de lá entrar com elas, enquanto a pequenada corria de um lado para outro, vendo, tocando tudo, perguntando informações de todas as coisas, eu observava calada com o meu olhar de mais velha, mais penetrante e mais curioso.

Tudo ali era limpo, asseado mas tudo antigo, datando sem dúvida da sua adolescência, do tempo em que ela fora feliz, porventura requestada e formosa.

A alcova branca, discreta, com o seu oratório de pau santo, cheio de belas imagens, a Virgem risonha e loura com o menino nos braços, o Cristo macerado e sangrento com a expressão de sobre-humana agonia no amortecido olhar.

No gabinete contíguo as cortinas, os reposteiros de chita, as poltronas, as pequeninas mesas cobertas com os seus panos de crochê, as estantes de livros, tudo enfim era bem conservado, sem ser novo; via-se que tinha sido o objeto de atentos cuidados, que todas aquelas coisas mudas haviam sido as companheiras únicas de uma existência concentrada e solitária.

Nas paredes, sobre as pequenas prateleiras, muitos retratos, todo um cortejo moço e triunfante que passava ao longe.

Exalava-se daqueles objetos tão esmeradamente cuidados, um vago, um indistinto perfume de saudade, como de um herbário de flores secas, colhidas entre risos de cristal, nos dias radiantes da primavera...

Os pequenos então, com a sua inconsciente crueldade infantil, faziam mil perguntas, impacientes, curiosas...

— Quem era esta menina, tia Izabel? Tem um vestido de seda decotado e na mão um malmequer que está desfolhando. Como ela cisma tão embevecida! Em que cismaria ela, minha tia?

— No futuro!... respondia ela sorrindo com o seu belo sorriso intraduzível em que havia talvez muitas saudades.

— Que é feito dela? Era sua amiga, não era? Porque é que a não vem cá ver nunca?

— No princípio veio, depois casou-se; o marido levou-a a viajar, foram muito longe, divertiram-se, provavelmente ela esqueceu-se. Quando voltou trazia um filho, um bebê louro e cor de rosa como o teu irmãozinho Arthur. Só o vi uma vez. As crianças absorvem muito as mães, por causa delas esquecem-se de tudo, até das amigas da infância. Hoje só sei que é muito feliz, e quando tenho saudades olho para o retrato dela!... Fomos tão amigas!

E calava-se baixando os olhos, receosa de que a vissem contemplar com demasiado enlevo os dias que já não podiam voltar.

Todos aqueles retratos tinham uma história.

Aquele cortejo de juvenis visões louras, morenas, travessas ou melancólicas faziam parte do passado, por isso lhes queria tanto.

Umas tinham casado, eram felizes, viviam absorvidas pelo divino egoísmo da família, todas entregues ao bem estar dos seus, aos interesses, às alegrias, às dores do seu pequeno círculo de afetos.

Outras tinham morrido; eram as que ali nos apareciam mais pálidas, com um vago reflexo de luz febril nos olhos pasmados e pensativos.

Tinham morrido na plena florescência do seu imaginar juvenil, levando para a cova, como levariam uma flor ainda constelada pelos orvalhos matinais, a doce quimera que nenhum sopro brutal lhes havia desfeito.

Fecharam os olhos cercados por todas as aparições fúlgidas, que envolvem a mocidade como num círculo de estrelas, e foram despertar — quem sabe! Noutras regiões de que ninguém ainda voltou, do sonho feliz que haviam começado na terra.

Não eram essas as menos bem-fadadas.

Ela, porém, ficara só.

Porquê?

Condenação de que não conhecia o implacável segredo!

Também fora moça, também tivera crenças, esperanças, pequenos sobressaltos de amor próprio, efêmeras vaidades de quem se julgara querida!

Estremecera muita vez, ao sentir abrir uma porta, ecoar um passo ligeiro e firme nos vastos corredores, vibrar uma voz viril, grave e terna!

Tivera rubores súbitos, sentindo pousar na sua fronte branca, a luz de um olhar quente e caricioso; colhera uma rosa, prendera nos cabelos um cacho de madressilva, vestira um dia um certo vestido branco, cheia de alegria, agradecendo a Deus ter feito a vida tão boa, o céu tão azul, o cheiro das árvores tão penetrante e tão sadio!

Olhava neste tempo para as crianças, beijava-as como a ensaiar as graças da maternidade, fazia-lhes festas, pensando que também havia de ter um dia uns pequeninos como aqueles, que lhes havia de querer muito, e leva-los a passear, seguida pelo olhar invejoso das outras mães... cujos filhos seriam forçosamente feios.

Então consultava consigo mesma o sistema de educação que adotaria, e o modo porque os havia de vestir, e concluía vendo-os entrar para a Universidade, num dia de muitas lágrimas e de muitos dilaceramentos, altos, esbeltos, um pouco altivos, com um buçozinho louro, apetitoso como a penugem de um pêssego mal maduro.

Foram-se-lhe dias e dias neste sonhar que a entretinha, como a leitura de um romance cujo interesse nunca afrouxa.

Um dia, porém, por acaso viu-se ao espelho, e despediu-lhe o seio um grito de angústia.

Despontava-lhe entre os fartos cabelos louros, o primeiro cabelo branco, um fio de prata, tênue, quase imperceptível, uma coisa em que ninguém reparava.

Reparou ela.

Reparou também nesse momento que todas ou quase todas as companheiras tinham casado, que muitas das suas ilusões se tinham desfeito às ásperas nortadas da realidade, que se ia sentindo na vida muito só.

Teve umas horas de luta, de revolta, quase de desespero.

Alguém, ou alguém invisível em que ela sempre acreditara, mandou-lhe a força, porque lhe mandou a resignação!

Quando o pai lhe morreu veio para casa dos irmãos, e pouco a pouco achou em si a fonte de todas as riquezas misteriosas, que espalhava pelos afetos que o seu coração adotou!

Eis pouco mais ou menos a história da tia Izabel.

Fonte: Maria Amália Vaz de Carvalho. Contos e Phantasias. Publicado originalmente em Porto, 1880. Convertido para o português atual por J. Feldman. Disponível em Domínio Público.