quinta-feira, 29 de maio de 2008

Sergio Antonio Meneghetti

Químico, Poeta e Escritor. Natural de Pindorama – SP. Residente em Pindamonhangaba – SP. Casado com 3 filhos.

Autor do livro “Intuição, Ferramenta de Trabalho”

Consagrações em concursos poéticos:
- Antologia de Poetas Brasileiros volume 5.
- II Olimpíada Cultural – “500 Anos da Língua Portuguesa” 2005
- III Olimpíada Cultural – “500 Anos da Língua Portuguesa” 2006
- Livro de Ouro da Poesia Brasileira
- “IV Seletiva de Poesia, Contos e Crônicas de Barra Bonita”.
- “Panorama Literário 2005/2006” (6500 inscritos)
- “Novos Poetas Novos Talentos”
- “Poetas do Brasil”
- “Concurso Internacional do site Voz Di Studanti” (Cabo Verde).
- “4º Concurso Literário de Contos e Poesias”
- Poetas Del Mundo em Poesias – volume I (lançamento no Congresso Poetas Del Mundo em 08/2008)

Participações:
- Revista do Sindicato dos Químicos do ABC
- Rádio Mundial – poemas declamados.
- STOP a Destruição do Mundo (ONG Internacional fundada em Paris - França) www.stop.org.br
- SITA – Sociedade Internacional de Trilogia Analítica
- Café Cultural – SESI – Santo André
- Site www.pidavale.com.br/literatura Pindamonhangaba - SP
- Jornal da Cidade - Pindamonhangaba
- Jornal eletrônico “Estadão”
- Folder Basell Polyolefins – Evitando Desperdício.
- Jornal do Brasil – Rio de Janeiro.
- JB Online – Rio de Janeiro.
- Raza Consulting (Consultoria Empresarial e Gestão de Negócios) - São Paulo.
- Editora Gente – São Paulo.

Fonte:
E-mail enviado pelo autor

Sérgio Meneghetti (Lançamento do Livro Intuição)

A utilização da intuição em nossas vidas também é uma meta, pois ela está à frente da nossa psicologia mediana, somente uma minoria a utiliza em um maior potencial, pois ainda é uma ferramenta inexplorada. Partindo desta idéia, Sérgio Meneghetti desenvolveu este livro, que explica a utilização da intuição como ferramenta de trabalho

Adquira o livro em:
sergio.livro@hotmail.com
Livraria Papiro em Pindamonhangaba
Banca Quadros (Praça São Benedito) e
Super Banca em Santo André
http://www.livrariacultura.com.br/ , http://www.saraiva.com.br/ e http://www.allprinteditora.com.br/

Fonte:
E-mail enviado pelo autor.

Sergio Antonio Meneghetti (Poesias Avulsas)

Ressurreição

Ressurgir da escuridão
Abrir a grande luz
Que invade o coração.

Ter o amor como passos
E abrir os braços
Em perfeita comunhão.

Somos mensageiros da paz
Mesmo aonde exista a dor,
A verdade também se faz.

Somos herdeiros do sofrimento
Mesmo nos gritos e lamentos
Jesus nos cura os ferimentos.

Neste dia da alforria
Quando a dois mil anos
O mestre morria.

O mundo mal sabia
Que naquela cruz
Criava-se nova aurora de luz.

Quem sabe num domingo matinal
O mundo acorde novo
Numa alegria jovial.

Crianças entendendo a verdade
Que acima das mazelas e orgulho
Se pratique a caridade.

Somos a obra mais perfeita da criação
Sua imagem e semelhança
Porque todos somos irmãos.

(escrito na sexta-feira santa)

Gota Azul do Universo

Você que vem de todos os cantos
Com humildade beija meus pés
Você não escolhe o anônimo ou o santo
Quando admiramos sua imensidão, sabemos quem és.

Tuas águas percorrem toda a terra
Banha areias, matas, pedras e montes
É o caminho para as naus na paz e na guerra
Mas ao entardecer, mostra os mais belos horizontes.

A vasta vida que dentro de ti contem
Está muito além do que os olhos vêem
Vos que separa os continentes
Mas pela vida, uni a todos como uma corrente.

Chega manso no meu ser agitado
As vezes vem com terror para meu coração assustado
Mas é sempre belo, quente ou gelado.
É um tapete vivo, debaixo deste céu azulado.

Somos irmãos pela água que nos faz parte
Somos caminho e arte
Por este motivo gravo neste verso
Mar; gota azul deste universo.
18/01/2004


O Amigo

O amigo não cobra
Antes se desdobra
Não cria ilusão
Antes a verdade pura de coração.
Está sempre pronto
Não se afasta nem na tristeza
Ele promove o reencontro
Ele é a pura certeza.
Nunca deixa de amparar
Mesmo que não esteja
Nele podemos confiar
Ele acima de tudo é puro amar.
Que possamos merecer
Ou até surpreender
O amigo leal
Pois é a nossa meta e ideal.
O verdadeiro amigo nos conduz
Na alegria ou na tristeza
Na doçura ou na aspereza
Pois pela amizade, Ele foi à cruz.
Fontes:
E-mail enviado pelo autor.
http://www.pindavale.com.br

Dino Buzzati (1906 - 1972)

Dino Buzzati-Traverso (San Pellegrino, 16 de Outubro, 1906 - Milão, 28 de Janeiro, 1972) foi um escritor italiano, bem como jornalista do Corriere della Sera. Sua fama mundial é principalmente devido ao seu romance Il deserto dei Tartari, traduzido para português como O Deserto dos Tártaros.

Dino Buzzati nasceu no dia 16 de outubro de 1906 em San Pellegrino, Itália, próximo a Belluno, na secular vila de propriedade da família, em uma chácara de sua família. Sua mãe, veterinária, era Veneza e seu pai, professor universitário, era de uma arntiga família de Belluno. Buzzati foi o segundo dos quatros filhos do casal. Desde a mocidade os temas e as paixões do futuro escritor se manifestaram e a elas ele permaneceu fiel por toda a vida: a poesia, a música (estuda violino e piano), o desenho e a montanha, verdadeira companheira da infância. "Eu penso", diz Buzzati numa entrevista concedida em 1959, "que em todo escritor as primeiras memórias da infância são uma base fundamental. As impressões mais fortes que eu tive de criança pertencem à terra onde eu nasci, o vale do Belluno, às montanhas selvagens que o cercam e à vizinha Dolomit. Um mundo completamente nórdico, ao qual se juntou o patrimônio das recordações juvenis e a cidade de Milão, onde minha família sempre viveu no inverno." Sua temática: a fantasia, a solidão, a magia, a montanha, a música, a poesia, a espera, a morte e a eternidade.

Buzzati estudou Direito, mas começou desde cedo a trabalhar em jornal, onde fez de tudo: ilustração, reportagens, crônicas, edição. Além disso, foi correspondente do Corriere della Sera na Segunda Guerra Mundial, aos 22 anos onde permaneceria até sua morte. Entre narrativas em prosa (contos, romances, crônicas, cartas, comentários) e poesia, escreveu cerca de 40 livros. Também escreveu 16 peças de teatro e 5 libretos de ópera.

Viveu em Milão grande parte de sua vida, mas sempre que podia ia com amigos caminhar nas montanhas e todo ano voltava a Belluno e aos vales silenciosos do Monte Schiara. É esse clima de montanhas misteriosas, precipícios inacreditáveis, abismos e solidão que transparece em seus textos desde seu romance de estréia O Barnabé das montanhas de 1933. As montanhas não são só uma insistente recordação, mas também o fundo de suas histórias. Em seu livro mais famoso O deserto dos tártaros, as rochas grandiosas, os silêncios profundos e a solidão constroem a narrativa do Soldado Giovanni Drogo.

Publicado em 1940, O deserto dos tártaros (243 páginas) foi reeditado esse ano pela editora Nova Fronteira, juntamente com o romance Um amor (de 1963) e os volumes de contos Naquele Exato momento (1963) e Noites difíceis. Este último foi publicado em 1971 e traz um tom mais sarcástico, que de certa forma antecipava o seu fim, pois Buzzati já sabia do seu câncer de pâncreas (doença que o matou em 28 de janeiro de 1972).

Durante a Segunda Guerra Mundial, Buzzati serviu na África, como jornalista da Marinha italiana. Buzzati saiu como Sargento. Essa experiência serviu para que escrevesse O deserto dos tártaros antes da Segunda Guerra. Segundo o autor, o romance veio num jorro numa madrugada quando voltava do jornal.
...Caracterizado por um clima de profunda indagação filosófica, comparado desde o seu aparecimento a Kafka, trata-se de uma aguda reflexão sobre a inutilidade do poder. Mas enquanto o mundo do genial tcheco é fechado e maldito, a atmosfera idealizada por Buzzati não abstrai a possilibilidade da esperança - ainda que inútil. Ele sabe, como ninguém, fazer de sua alegoria uma verdade poética desconcertante.

O livro conta a desventura do oficial Giovanni Drogo, o qual, aos vinte anos, é nomeado, em seu primeiro posto, para o forte Bastiani, que se ergue imponente e solitário às margens abandonadas do 'deserto tártaro'. Drogo, que espera ficar ali poucos meses, aguardando uma transferência, vê a vida transcorrer sem que sua razão de ser se realize: transformar-se num soldado verdadeiro, conhecer a glória de participar de uma guerra que, tudo indica, não vai acontecer....

Mas não é só sobre o poder que Buzzati indaga. Seria simplificar muito sua obra. Há uma reflexão sobre o tempo (o que fazemos da nossa vida? Assistimos apenas o passar dos anos como se fôssemos imortais?), sobre a atitude do ser humano frente à vida, sua relação com a natureza e a sociedade. Pode-se perceber também a complexa relação homem x cidade: Drogo acaba se isolando do mundo social/urbano na rotina do forte Bastiani. Interagir e viver o ritmo da cidade torna-se impossível para quem se afasta por um tempo e vive a solidão das montanhas.
"Numa belíssima manhã de setembro Drogo, o capitão Giovanni Drogo, mais uma vez sobe a cavalo a íngreme estrada que conduz ao forte Bastiani. Teve um mês de licença, mas após vinte dias já está de volta; a cidade agora se lhe tornou completamente estranha, os velhos amigos tomaram seu caminho, ocupam posições importantes e o cumprimentam apressadamente como a um oficial qualquer" (pág. 207).

O final do livro emociona os que acompanham toda a vida de Drogo dedicada ao forte. De uma certa forma nos remete aos dias atuais em que muitos se dedicam obstinadamente a objetivos ilusórios, passam sua juventude lutando por um sonho e deixam de viver a vida verdadeiramente. Depois da leitura podemos nos questionar: o que ando fazendo da minha? Pelo quê ando lutando? Em pleno século XXI, se ainda não temos respostas, pelo menos conseguir formular mais claramente nossas perguntas...

Em 1964, casou-se com Almeria Antoniazzi, o que também marcou a realização de seu último romance, Un Amore, traduzido para o português como Um Amor, em 1963. Em 1972 morre em decorrência do câncer, após uma prolongada luta contra a doença.

Obra

Buzzati começou a escrever ficções em 1933. Em sua obra há romances, peças de teatro, peças para rádio, libretos, poesia e contos.

Escreve um livro infantil intitulado La famosa invasione degli orsi in Sicilia. Escreve um livro de comédia baseado no mito de Orfeu, Poema a fumetti.

Sua obra ocasionalmente é classificada como Realismo Mágico e alienação social. Também escreveu diversos contos com animais fantásticos tais como o bogeyman e, de sua própria criação, il colombre.

O Deserto dos Tártaros

Il deserto dei Tartari, obra máxima de Dino Buzzati, foi publicada em 1940. A experiência de quando servira no exército, antes da Segunda Guerra Mundial, serviu como base para o romance. Segundo o próprio o autor, a história veio numa madrugada quando voltava ao jornal onde trabalhava, o Corriere della Sera, de uma só vez:

"Caracterizado por um clima de profunda indagação filosófica, comparado desde o seu aparecimento a Kafka, trata-se de uma aguda reflexão sobre a inutilidade do poder. Mas enquanto o mundo do genial tcheco é fechado e maldito, a atmosfera idealizada por Buzzati não abstrai a possilibilidade da esperança - ainda que inútil. Ele sabe, como ninguém, fazer de sua alegoria uma verdade poética desconcertante. O livro conta a desventura do oficial Giovanni Drogo, o qual, aos vinte anos, é nomeado, em seu primeiro posto, para o forte Bastiani, que se ergue imponente e solitário às margens abandonadas do 'deserto tártaro'. Drogo, que espera ficar ali poucos meses, aguardando uma transferência, vê a vida transcorrer sem que sua razão de ser se realize: transformar-se num soldado verdadeiro, conhecer a glória de participar de uma guerra que, tudo indica, não vai acontecer...."

O romance se passa em torno da figura do recém oficial Giovanni Drogo que passa quase toda sua vida no Forte Bastini à espera do exército de tártaros que podem chegar a qualquer momento. O Deserto dos Tártaros, talvez um dos maiores romances italianos do século passado, constitui assim, uma meditação sobre a solidão e sobre a inexorável passagem do tempo.

Comentário de Ugo Giorgetti acerca do livro: Um homem encerrado numa fortaleza espera por uma batalha decisiva, quando os tártaros chegarem. Em meio à monotonia da vida de quartel, a pequenos incidentes inócuos, a um lento escorrer do tempo, a vida vai passando. E os tártaros nunca chegam. Os olhos agora velhos ainda espreitam através do binóculo o lugar ao longe onde um dia os tártaros deveriam surgir. A vida finalmente passa e o homem morre. Esse romance que é, na síntese de um ensaísta italiano, “o tema da vida como espera, renúncia e derrota” é uma das obras mais inquietantes do século XX.

Influências

Pode-se observar na obra de Dino Buzzati uma forte influência de toda a literatura fantástica do Século XIX. Já no século XX, a influência de Jean-Paul Sartre, Albert Camus e, princiapalmente, Franz Kafka.

Bibliografia

Prosa e Poesia
Bàrnabo delle montagne, 1933
Il segreto del bosco vecchio (O Segredo do Bosque Velho), 1935;
Il deserto dei Tartari (O Deserto dos Tártaros), 1940.
I sette messaggeri (Os Sete Mensageiros), 1942.
La famosa invasione degli orsi in Sicilia (A Famosa Invasão dos Ursos Na Sicília), 1945.
Il libro delle pipe, 1945.
Paura alla Scala, 1949.
In quel preciso momento (Naquele Exato Momento), 1950.
Il crollo della Baliverna (A Queda da Baliverna), 1957.
Sessanta racconti, 1958.
Le storie dipinte, 1958.
Esperimento di magia, 1958.
Il grande ritratto, 1960.
Egregio signore, siamo spiacenti di..., 1975.
Un amore (Um Amor), 1963.
Il capitano Pic e altre poesie, 1965.
Scusi da che parte per Piazza Duomo?, 1965.
Tre colpi alla porta, 1965.
Il colombre, 1966.
Presentazione a L'opera di Bosch, 1966.
Due poemetti, 1967.
Prefazione a R.James, 1967.
Prefazione a W:Disney, Vita e dollari di Paperon de' Paperoni, 1968.
La boutique del mistero, 1968.
Poema a fumetti, 1969.
Le notti difficili (As Noites Difíceis), 1971.
I miracoli di Val Morel, 1971.
Prefazione a Tarzan delle scimmie, 1971.
Cronache terrestri, servizi giornalistici, a cura di Domenico Porzio, 1972.
Congedo a ciglio asciutto di Buzzati, 1974.
Romanzi e racconti, 1975.
I misteri d'Italia, 1978.
Teatro, 1980.
Dino Buzzati al Giro d'Italia, 1981.
Le poesie, 1982.
180 racconti, 1984.
Il reggimento parte all'alba, 1985.
Lettere a Brambilla, 1985.
Il meglio dei racconti, 1990.
Le montagne di vetro, 1990.
Lo strano Natale di Mr. Scrooge e altre storie, 1990.
Bestiario, 1991.
Il buttafuoco, 1992.
La mia Belluno, 1992
Il borghese stregato ed altri racconti, 1994.

Teatro
Piccola passeggiata, 1942.
La rivolta contro i poveri, 1946.
Un caso clinico, 1953.
Drammatica fine di un musicista, 1955.
Sola in casa, 1958.
Una ragazza arrivò, 1958.
Le finestre, 1959.
L'orologio, 1959.
Un verme al ministero, 1960
I suggeritori, 1960.
Il mantello, 1960.
L'uomo che andrà in America, 1962
L'aumento (O aumento), 1962
La colonna infame, 1962.
Spogliarello, 1962.
La telefonista, 1964
La famosa invasione degli orsi in Sicilia (representado em Milão em 1965).
La fine del borghese, 1968.

Libreto para Música
Procedura penale, Ricordi, 1959.
Ferrovia sopraelevata, 1960.
Il mantello, Ricordi, 1960.
Battono alla porta, 1963.
Era proibito, 1963.

Fontes:
http://pt.wikipedia.org/
ALVES, Valéria de Oliveira. Dino Buzzati e o Deserto dos Tártaros. In http://www.sitedeliteratura.cjb.net/
http://www.releituras.com/
http://www.girovagandointrentino.it/ (foto)

Dino Buzzati (A barata)

Tendo voltado tarde para casa, esmaguei uma barata que, no corredor, me escapava entre os pés (ficou lá, preta, no ladrilho) depois entrei no quarto. Ela dormia. Deitei-me ao seu lado, apaguei a luz, da janela aberta via um pedaço de parede e o céu. Fazia calor, não conseguia dormir, velhas histórias renasciam dentro de mim, dúvidas também, uma genérica desconfiança no amanhã. Ela soltou um pequeno lamento. "Que houve?", perguntei. Ela abriu um olho, grande, sem me ver e murmurou: "Tenho medo." "Medo de quê?", perguntei. "Tenho medo de morrer." "Medo de morrer? Por quê?" Respondeu: "Tive um sonho..." Aproximou-se um pouco. "Mas que é que você sonhou?" "Sonhei que estava no campo, estava sentada na margem de um rio e ouvi gritos ao longe... E eu devia morrer." "Na beira de um rio?" "Sim.", respondeu "Ouvia as rãs... faziam crá, crá." "E que horas eram?" "Era noite e ouvi gritar." "Bem, durma, agora são quase duas horas." "Duas horas?", mas não conseguia compreender, já tornara a pegar no sono.

Apaguei a luz e ouvi alguém remexendo no pátio. Depois, subiu a voz de um cão, aguda e longa; parecia lamentar-se. Subiu, passando diante da janela, perdeu-se na noite quente. Depois abriu-se uma persiana (ou se fechou?). Longe, muito longe, mas talvez eu me enganasse, uma criança se pôs a chorar. Depois, novamente o ulular do cão, longo como antes. Eu não conseguia dormir.

Vozes de homens vieram de alguma outra janela. Eram baixas, como murmuradas entre o sono. De uma sacada abaixo, ouvi um cip, cip, zitevitt, e algumas batidas de asas. "Flório!", ouviu-se chamar de repente, devia ser duas ou três casas mais adiante. "Flório!", parecia uma mulher, mulher angustiada, que tivesse perdido o filho.

Mas por que o canarinho do andar de baixo acordara? Que havia? Com um rangido lamentoso, como se fosse empurrada devagarinho por alguém que não queria fazer-se ouvir, uma porta se abriu em algum lugar da casa. Quanta gente acordada a essa hora, pensei. Estranho, a essa hora.

"Tenho medo, tenho medo", queixou-se ela procurando-me com o braço. "Oh, Maria", perguntei, "Que tem você?" Respondeu com voz tênue: "Tenho medo de morrer." "Você sonhou de novo?" Fez que sim, devagarinho, com a cabeça. "De novo aqueles gritos?" Fez sinal que sim. "E você ia morrer?" Sim, sim, indicava, procurando olhar-me, com as pálpebras grudadas pelo sono.

Há alguma coisa, pensei: ela sonha, o cão uiva, o canarinho acordou, as pessoas se levantam e falam, ela sonha com a morte, como se todos tivessem sentido uma coisa, uma presença. Oh, o sono não vinha e as estrelas passavam. Ouvi distintamente no pátio o ruído de um fósforo aceso. Por que alguém se punha a fumar às três horas da manhã? Então senti sede, levantei-me e saí do quarto para beber água. A triste lâmpada do corredor estava acesa, percebi vagamente a mancha preta no ladrilho e parei, assustado. Olhei: a mancha preta se movia.Ou melhor, movia-se um pedacinho (ela sonha que vai morrer, o cão uiva, o canarinho acorda, pessoas se levantaram, uma mãe chama o filho, as portas rangem, alguém fuma, e há talvez um choro de criança).

Vi, no chão, o bichinho preto que movia uma patinha. Era a do meio, à direita. O resto estava imóvel, uma mancha de tinta que caíra da morte. Mas a perninha remava fracamente como se quisesse subir de novo alguma coisa, o rio das trevas, talvez. Teria ainda esperança?

Durante duas horas e meia, dentro da noite — senti um calafrio —, o imundo inseto grudado no ladrilho pelas suas próprias mucilagens viscerais, durante duas horas e meia continuara a morrer e ainda não acabara. Maravilhosamente continuava a morrer, transmitindo, com a última patinha, a sua mensagem. Mas quem a podia colher às três da manhã, na escuridão do corredor de uma pensão desconhecida? Duas horas e meia, pensei, continuamente para cima e para baixo, a última porção de vida na perninha sobrevivente, para invocar justiça. O pranto de uma criança — lera um dia — basta para envenenar o mundo. Em seu coração, Deus onipotente quisera que certas coisas não acontecessem, mas não pôde impedi-lo porque por ele mesmo foi decidido. Mas uma sombra jaz ainda sobre nós. Esmaguei o inseto com o chinelo e, esfregando no chão, esmigalhei-o num longo rasto cinza.

Então, finalmente, o cão calou-se, ela, no sono, se acalmou e parecia quase sorrir, as vozes se apagaram, calou a mãe, não se percebeu mais nenhum sintoma de inquietude do canarinho, a noite recomeçava a passar sobre a casa cansada, a morte fora inchar sua inquietude em outras partes do mundo.

Fonte:
BUZZATTI, Dino. Naquele Exato Momento. RJ: Editora Nova Fronteira, 1986. In
http://www.releituras.com

Dino Buzzati (O aumento)

Quando ficou sabendo que seu jovem colega Bossi, a mais recente admissão da firma, ganhava mais de vinte mil liras por mês do que ele, Giovanni Battistela viu-se tomado de uma raiva espantosa. E teve uma coragem do que em condições normais lhe pareceria uma loucura: de fazer-se receber pelo diretor e dizer-lhe poucas e boas. E ei-lo que se apresenta no solene escritório em cujo fundo estava sentado o chefe.

— Por favor, por favor. Pode se aproximar...

— Queria me desculpar, senhor comendador, mas...

— Desculpar por quê? Não me fale em se desculpar. Não faltava mais nada, meu caro Battistela. Eu é que devo lhe agradecer por ter vindo.

— O senhor!?

— Eu, sim. E estou contente, contentíssimo em revê-lo. Mas por favor, sente-se, sim, porque as pessoas que nos são caras, em quem temos mais confiança, são precisamente aquelas que mais negligenciamos. Esta é a cruel lei da vida, não é mesmo? Diga, diga, meu caro Battistela, há quanto tempo não trocamos duas palavras em santa paz? Semanas, não é mesmo? Semanas o quê! Meses, talvez. Muitos meses. Eu mesmo não me surpreenderia se, em vez de meses, fossem anos...

— Faz exatamente dois anos e meio...

— Dois anos e meio! Mas acredite, meu caro Battistela, que durante esses dois anos e meio, todas as noites — sabe disso? —, na hora em que fazemos nosso exame de consciência eu pensava sempre no senhor. Todas as noites antes de dormir, comigo mesmo: "E Battistela? E o excelente Battistela? Não estás te esquecendo dele?” Era o que eu mesmo me dizia: “Quando irás te decidir a lhe dar o cargo que ele merece? Um trabalhador como ele, uma coluna mestra da administração, um homem hoje cada vez mais raros..." Assim falava eu, e todas as noites sentia remorso, pode acreditar.

— Pois então, senhor comendador...

— Estou disposto a ajudá-lo, não era isso que ia me perguntar? Ah, n não me diga nada. Acha que eu não o compreendo? Que eu não tenho o condão de captar o seu pensamento? Palavra por palavra, poderei lhe repetir tudo quanto intenção de me dizer... Que existe quem, com muito menos títulos, está ganhando mais do que o senhor, que isso é uma injustiça, que o senhor perdeu a paciência e Não é isso mesmo?

— É, realmente...

— E o senhor, meu caro Battistela, teve um ímpeto de exasperação, não é de? Quem não teria tido, não é mesmo? A injustiça consegue transformar cri mansas e humildes em verdadeiros tigres, não é mesmo?

— Bem, em suma...

— Está vendo? E o senhor pensava que eu não compreenderia, que sabia, que eu não me interessava. Homem de pouquíssima fé!... Bem, este deve belo dia para nós. Esta noite ambos estaremos satisfeitos um com o outro. Que de 150?

— Como?

— Creio que agora o senhor ganha entre 95 e 98, se não me engano, não

— 97.

— Bem. Podemos dar um passo adiante. Um pequeno passo. Cento e cinqüenta. Não chega?

— Bem, confesso que não esperava...

— Está vendo? Não sou mais aquele dragão, aquele carniceiro, aquele devorador de cristãos, aquele lobo esfomeado — não é isso que dizem de mim?

— Eu... eu lhe agradeço.

— Não tem nada que me agradecer. Eu é que lhe agradeço pelo seu trabalho... Um cigarro?

— Obrigado, não fumo...

— Bravo, é mais uma virtude... Quanto a mim, fumo como um desesperado... Bem, bem, quer me parecer que ficou tudo resolvido...

— Bem, quer dizer, não quero mais tirar o seu tempo...

— Não sou eu que vou retê-lo, meu caro Battistela. E faço os melhores votos para que... — suspirou. — É pena!

— "É pena", por quê?

— Nada, nada... Eu... para você... eu tinha outros projetos. Mas agora é inútil. O que está feito, está feito.

— Outros projetos?

— Sim, projetos, que eu fazia... Mas, agora...

— Comendador, não quer fazer a gentileza de me dizer...?

— Não, eu te conheço. Aquilo que se faz para o seu bem, o senhor leva a mal...

— Isso não é verdade...

— Seria como lhe dar uma prova de confiança, uma demonstração de amizade. Seria. Mas compreendo que poderia lhe dar uma impressão esquisita...

— Esquisita como?

— Além do mais é um assunto... é um assunto extremamente reservado...

— Não confia em mim?

O diretor levantou-se devagar, atravessou o escritório com ar circunspecto, fechou a porta com a chave, parou como se escutasse a passagem de alguém lá fora, avizinhou o indicador dos lábios num gesto de silêncio, voltou à escrivaninha e começou a falar em voz baixa:

— Battistela... me escuta... Eu estou ficando velho...

— Não é verdade.

— Velho, sim. 0 coração às vezes anda falhando. De um dia para o outro...

— Não diga isso nem brincando...

— E onde? Aqui mesmo, nesta escrivaninha? No meu posto, quem sabe? Mas escuta, Battistela...

— Estou ouvindo.

— Recomendo que guarde isso só para você. Porque em você eu confio... De algum tempo para cá fala-se em grandes mudanças...

— Mudanças?

— Com certeza já deve ter ouvido falar, pelo menos por alto: mudança de proprietários, segundo se diz, passando a firma para as mãos de outro grupo financeiro. E sabe o que isso significa?

— Que os chefes atuais vão-se embora e outros virão.

— E isso não lhe diz mais nada? Não compreende o que pode acontecer em tais circunstâncias?

— Não faço a menor idéia...

— Podem vir medidas de contenção de despesas. Porque se esta mudança ocorrer, o motivo é um só: é que as coisas não vão bem, que a crise está sendo sentida também por nós. Razão, portanto, para que a preocupação dos novos donos seja, sem dúvida, a de poupar ao máximo. E de que maneira? É simplicíssimo. Sabe o que se faz, nestes casos?

— Não. O quê?

— Redimensionamento. Bela palavra, não é? Redimensionamento. Sabe o que ela significa? Significa desembaraçar-se do peso excessivo, eis a solução genial. Elimina-se a escória. Aperta-se o cinto. Passa-se uma vista d'olhos na folha de pagamento. E quem tem alta remuneração, zapt! Estes são os primeiros a se fritarem. Como em todos os casos, são só os peixes miúdos que se salvam.

— E então, quer que eu fique contente com a idéia de ver liquidado um como o senhor? 0 meu dever, neste caso, uma vez que tenho um peso na consciência é o de alertá-lo, meu caro Battistela. Não só o de alertá-lo, como o de ajudá-lo essa possível ameaça.

— Evitar?

— Claro. Quero subtraí-lo à dizimação, mimetizá-lo, colocá-lo num posição segura. Mas é inútil. Os senhores, os jovens, não se dão conta de que...

— Ao contrário. Pode dizer, comendador, pode dizer...

— Quer que eu lhe fale com o coração nas mãos? Como se o senhor fosse o meu próprio filho? Bem... se eu fosse o senhor, frente a uma conjectura desta, sabe que coisa...

— Que coisa o senhor faria?

— É fácil compreender. A moral da história é a seguinte: melhorando a sua situação financeira, no fundo eu lhe prestei um péssimo serviço. Foi a mesma coisa que se eu o atirasse na rua, para falar tipo pão-pão, queijo-queijo...

— De maneira que eu...

— Caro Battistela, não quero que amanhã venha a ter motivos para me recriminar. Se amanhã o senhor vier a me perguntar: mas, comendador, por que não me avisou antes? Por que não me abriu os olhos? Meu querido, as coisas estão a um ponto tal que, mude-se ou não de patrões, um dia eu me verei constrangido a adotar medidas severas. E por que haverá de ser com o seu sacrifício?

— Mas, eu... Bem, não estou compreendendo... Está me falando de aumento? Acha que é melhor eu esperar?

— Não, nada de esperar! Se prevenir, sim. 0 que fazem os soldados, quando os inimigos abrem fogo? Abaixam a cabeça, agacham-se no chão para não serem feridos. Agache-se também, Battistela.

— Agachar-me?

— Em sentido figurado, bem entendido. No momento, convém uma manobra, uma dissimulação, um subterfúgio estratégico. No momento, convém exagerar no seu zelo. Compreendeu, Battistela?

— Realmente...

— E depois, que importância teria para o senhor, que é solteiro, uma redução no salário? Se em vez de 97 fossem apenas 80, isso não causaria a morte de ninguém. Digo-lhe isso porque agora até os ordenados de 90 estão dando na vista. Mas em compensação... considere a segurança, a tranqüilidade, a certeza de não ir de encontro com nenhum desprazer.

— Redução de salário?

— Está vendo como eu não estava enganado? Como era melhor me calado? 0 senhor já está dando às minhas palavras uma interpretação negativa.

— 0 senhor disse oitenta mil?

— Setenta talvez fosse melhor, mas creio que oitenta será o suficiente...

— Mas comendador...

— Eu sabia. 0 senhor é um rapaz inteligente, pega as coisas no ar, toma decisões com rapidez... Pense agora se eu, em vez de lhe falar sobre isso, me calasse... O senhor teria lá o seu aumento. De cinqüenta mil por mês. Mas, e depois? Ia se meter em poucas e boas! Seria carregado pela primeira onda. Menos mal, menos mal que existe alguém que lhe quer bem...

— Quer dizer que acha mesmo que o aumento...?

— Não resta a menor dúvida, meu filho: seria o mesmo que estar com uma corda no pescoço.

— Bem, comendador, eu lhe agradeço. O senhor me poupou de um grande aborrecimento.

— Não precisa agradecer... Vá, volte contente, volte tranqüilo para o seu trabalho. E, meu caro Battistela, saiba que o meu desgosto é apenas um: o de não poder fazer pelo senhor — eu lhe juro — um pouco mais do que fiz.

Fonte:
COSTA, Flávio Moreira (org.). Os cem melhores contos de humor da literatura universal. RJ: Ediouro, 2001. In: http://www.releituras.com

terça-feira, 27 de maio de 2008

Lima Barreto (1881 - 1922)

Afonso Henriques de Lima Barreto (Rio de Janeiro, 13 de Maio de 1881 - Rio de Janeiro, 1º de Novembro de 1922) foi um jornalista e um dos mais importantes escritores brasileiros.

Era filho de João Henrique de Lima Barreto (mulato nascido escravo) e de Amália Augusta (filha de escrava agregada da família Pereira Carvalho). Seu pai foi tipógrafo. Aprendeu a profissão no Imperial Instituto Artístico, que imprimia o famoso periódico A Semana Ilustrada. Sua mãe foi educada com esmero, sendo professora da 1º á 4º séries. Ela morreu cedo e Manoel Joaquim trabalhou muito para sustentar os quatro filhos do casal, como tipógrafo. Manoel Joaquim era monarquista, ligado ao Visconde de Ouro Preto, padrinho do futuro escritor. Talvez as lembranças saudosistas do fim do período imperial no Brasil, bem como suas remotas lembranças da Abolição da Escravatura na infância viriam a exercer influência sobre a visão crítica de Lima Barreto sobre o regime republicano.

Lima Barreto, mulato e portanto vítima do racismo num Brasil que mal acabara de abolir oficialmente a escravatura, teve oportunidade de boa instrução escolar. Com sua mãe Amália aprendera o á-bê-cê. Após a sua morte, passou a frequentar a escola pública de D. Teresa Pimentel do Amaral. Em seguida, passou a cursar o Liceu Popular Niteroiense, após o seu padrinho, o Viscode do Ouro Preto, concordar em custear sua eduação. Lá ficará até 1894, completando o curso secundário e parte do suplento. Em 1895, transferiu-se para a única instituição pública de ensino secundário da época, o conceituado Colégio Pedro II, cujos estudantes eram oriundos basicamente da elite econômica. No ano de 1895 foi admitido no curso da Escola Politécnica, no Rio de Janeiro porém foi obrigado a abandoná-lo em 1904 para assumir o sustento dos irmãos, porquanto seu pai enlouquecera. Tendo sido repetidamente reprovado por não se interessar muito pelas matérias - passava as tardes na Biblioteca Nacional -, deixou de graduar-se em Mecânica. Data dessa época sua entrada no Ministério da Guerra como amanuense, por concurso. O cargo, somado às muitas colaborações em diversos órgãos da imprensa escrita, garantia-lhe algum sustento financeiro. Não obstante, o escritor, que só veio a ser reconhecido fundamental para a Literatura Brasileira após seu precoce falecimento, cada vez mais deixava-se consumir pelo alcoolismo e por estados emocionais caracterizados por crises de profunda depressão e morbidez.

Lima Barreto começou a sua colaboração na imprensa desde estudante, em 1902, colaborando no A Quinzena Alegre, depois no Tagarela, O Diabo, e na Revista da Época. Em jornais de maior circulação, começou em 1905, escrevendo no Correio da Manhã uma série de reportagens sobre a demolição do Morro do Castelo. Daí em diante, colabora em vários jornais e revistas, Fon-Fon, Floreal, Gazeta da Tarde, Jornal do Comercio, Correio da Noite, A Noite, (onde publica em folhetins, Numa e a Ninfa), Careta, A.B.C., um novo A Lanterna (vespertino), Brás Cubas (semanário), Hoje, Revista Souza Cruz e O Mundo Literário.

Em 1911 editou com amigos a revista Floreal, que conseguiu sobreviver apenas até a segunda edição, mas despertou a atenção de alguns poucos críticos. 1909 foi o ano de sua estréia como escritor de ficção, publicando, em Portugal, o romance Recordações do Escrivão Isaías Caminha. A narrativa de Lima Barrreto nesse primeiro livro, pincelada com indisfarçáveis traços autobiográficos, mostra uma contundente crítica à sociedade brasileira, por ele considerada preconceituosa e profundamente hipócrita, até mesmo os bastidores da imprensa opinativa são alvo de sua narrativa mordaz, inspirados na redação do Cartas da Tarde. Em 1914 começou a publicação, em formato de folhetins no Jornal do Dia, de sua mais importante obra, Triste Fim de Policarpo Quaresma, que um ano mais tarde foi editado em brochura e considerado pela crítica especializada como basilar no períodoPré-Modernista.

Entre os leitores, as duas obras anteriormente citadas alcançaram algum êxito, o que não impediu que o autor sofresse severas críticas de outros escritores da época. Baseavam-se elas no fato de Lima fugir, conscientemente, do padrão empolado de escrever que à época vigorava. Chamavam-no "relaxado" por não usar o português castiço e utilizar uma linguagem mais coloquial, muito própria de quem militava na imprensa. Incomodava também o fato de seus personagens não seguirem o "molde" vigente, que impunha limites à criação e exaltava determinadas características psicológicas. Não à toa viu frustradas suas tentativas de ingressar na Academia Brasileira de Letras. A respeito de seus impiedosos e inimigos críticos, Lima acusava-os de fazerem da literatura não uma arte e sim algo mecânico, uma espécie de "continuação do exame de português jurídico".

Simpático ao Anarquismo, passou a militar na imprensa socialista.

Sua vida foi atribulada pelo alcoolismo e por internações psiquiátricas, ocorridas durante suas crises severas de depressão - à época era um dos sintomas pertencentes ao diagnóstico de "neurastenia", constante de sua ficha médica - vindo a falecer aos 41 anos de idade.

As obras

Lima Barreto foi o crítico mais agudo da época da República Velha no Brasil, rompendo com o nacionalismo ufanista e pondo a nu a roupagem da República, que manteve os privilégios de famílias aristocráticas e dos militares.

Em sua obra, de temática social, privilegiou os pobres, os boêmios e os arruinados.

Foi severamente criticado pelos seus contemporâneos parnasianos por seu estilo despojado, fluente e coloquial, que acabou influenciando os escritores modernistas.

Lima Barreto queria que a sua literatura fosse militante. Escrever tinha finalidade de criticar o mundo circundante para despertar alternativas renovadoras dos costumes e de práticas que, na sociedade, privilegiavam pessoas e grupos. Para ele, o escritor tinha uma função social.

Obras
- O Subterrâneo do Morro do Castelo
- Recordações do Escrivão Isaías Caminha
- Triste Fim de Policarpo Quaresma
- Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá
- Cemitério dos Vivos
- Histórias e Sonhos
- Os Bruzundangas
- Clara dos Anjos (póstumo)
- Outras Histórias e Contos Argelinos
- Coisas do Reino de Jambom
- O Homem que Sabia Javanês e outros contos
- A Cartomante

Curiosidade
Foi homenageado, no Carnaval carioca de 1982, pela Escola de Samba GRES Unidos da Tijuca, com o samba-enredo "Lima Barreto, mulato pobre mas livre".

Fonte:
http://pt.wikipedia.org

Lima Barreto (Triste Fim de Policarpo Quaresma)

Triste Fim de Policarpo Quaresma é um romance do pré-modernismo brasileiro e considerado por alguns o principal representante desse movimento.

Escrito por Afonso Henriques de Lima Barreto, foi levado a público pela primeira vez em folhetins, publicados, entre Agosto e Outubro de 1911, na edição da tarde do Jornal do Commercio do Rio de Janeiro. Em 1915, também no Rio de Janeiro, a obra foi pela primeira vez impressa em livro, em edição do autor.

O romance discute principalmente a questão do nacionalismo, mas também fala do abismo existente entre as pessoas idealistas e aquelas que se preocupam apenas com seus interesses e com sua vida comum. Com uma narrativa leve que em alguns pontos chega a ser cômica, mas sempre salpicada de pequenas críticas a vários aspectos da sociedade, a história se torna mais tensa apenas quando o autor analisa a loucura e no seu final, quando são feitas duras críticas ao positivismo e ao presidente Floriano Peixoto (1891-1894).

O autor optou por escrever a narrativa numa linguagem próxima à informal falada entre os cariocas. Ela se desenvolve em torno de Policarpo Quaresma, brasileiro extremamente nacionalista, e é dividida em três partes, cada uma contendo cinco capítulos.

A Epígrafe
"Le grand inconvénient de la vie réelle et qui la rend insupportable à l'homme supérieur, c'est que, si l'on y transporte les principes de l'idéal, les qualités deviennent des défauts, si bien que fort souvent l'homme accompli y réussit moins bien que celui qui a pour mobiles l'égoïsme ou la routine vulgaire."
(O grande inconveniente da vida real e que a torna insuportável para o homem superior é que, se para ela são transportados os princípios do ideal, as qualidades se tornam defeitos, tanto que muito freqüentemente aquele homem superior realiza e consegue bem menos do que aqueles movidos pelo egoísmo e pela rotina vulgar.)

A epígrafe do romance é retirada do vigésimo sexto capítulo de "Marco Aurélio ou o fim do mundo antigo" ("Marc-Aurèle ou la fin du monde antique"), último volume da obra As origens do cristianismo ("Les origines du christianisme") do escritor e pensador francês Ernest Renan. Renan parece argumentar que os altos ideais, muito nobres, de pouco valem no mundo real, governado por interesses e proveitos pessoais, o que nos prepara para o fracasso final de Policarpo Quaresma.

Enredo

Primeira parte

A primeira parte da obra se desenrola na cidade do Rio de Janeiro, logo após a proclamação da República no Brasil, e introduz as principais personagens.

O major Policarpo Quaresma é um reservado funcionário do Arsenal de Guerra que vive com a irmã, Adelaide, e é marcado por um forte sentimento nacionalista.

Buscando saídas políticas, econômicas e culturais para o Brasil, Policarpo passa grande parte de seu tempo enfiado nos livros, pelo que é criticado por parte da vizinhança - que o critica ainda mais quando ele decide aprender a tocar um instrumento mal visto pela burguesa sociedade carioca da época, o violão, por considerá-lo um representante do espírito popular do país.

E é no aprendizado do instrumento que conhece aquele que será seu grande amigo no correr do romance, o seresteiro Ricardo Coração dos Outros, contratado para lhe ensinar. Porém, cedo Policarpo se desencanta pelo violão - e pelo folclore - e parte em busca das tradições genuinamente nacionais, i.e. indígenas.

Tal aprendizado leva a alguns momentos cômicos - como quando Policarpo recebe a afilhada e o compadre aos prantos - e à tragédia da loucura: após ter sugerido à Assembléia Legislativa republicana a adoção do Tupi como língua oficial - e ser motivo de chacota de toda a imprensa e dos colegas de repartição -, Policarpo redige, distraído, um documento oficial naquela língua e termina, após uma elipse temporal, internado num manicômio.

Lima Barreto aproveita também para ridicularizar a pequena burguesia suburbana em vários momentos, como na festa de noivado de Ismênia, filha do inútil general Albernaz, freqüentada por pedantes funcionários públicos e militares preocupados unicamente com a aposentadoria.

Segunda parte

Na segunda parte, são analisados os problemas enfrentados pela porção rural do país.

São e aposentado, Policarpo vende sua casa e compra, por sugestão da afilhada Olga, um sítio na fictícia cidade de Curuzu, ao qual ele chama de Sossego e onde ele passa a tentar provar a decantada fertilidade do solo brasileiro.

Com a ajuda do empregado Anastácio, Policarpo luta contra saúvas, ervas daninhas e outras pragas na tentativa de incentivar a iniciativa agrícola em outras pessoas e ajudar no crescimento econômico do Brasil.

A fertilidade do solo, no entanto, não se comprova na prática, e sua plantação gerou pouquíssimos lucros. Para piorar, Policarpo viu-se envolvido, involuntariamente, na luta política da cidade, sendo atacado com multas e difamações por gregos e troianos, tudo por causa de sua suspeita (para os locais) neutralidade.

Ao saber sobre a Revolta da Armada, nosso protagonista "pede energia" em telegrama ao Presidente Floriano Peixoto e segue para o Rio de Janeiro para dar apoio ao regime e sugerir reformas que mudassem a situação agrária.

Terceira parte

Última e mais tensa parte do livro, narra as andanças de Policarpo pela Capital Federal durante a Revolta da Armada e mostra sua desilusão final. Há aqui uma crítica feroz aos positivistas que apoiavam a Primeira República.

Chegado ao Rio, Policarpo é bem recebido por Floriano Peixoto, que, no entanto, dá pouca atenção às suas propostas de reforma.

Decidido a lutar pela República, Policarpo é então incorporado a um batalhão, o "Cruzeiro do Sul", com o posto de major, o que, apesar do apelido, ele nunca fôra.

Encarregado de um pelotão de artilharia improvisado com voluntariados à força - como seu amigo Ricardo Coração dos Outros -, Policarpo deveria rechaçar investidas dos marinheiros às praias cariocas.

A revolta criava ao mesmo tempo tensão - devido a prisões e violências arbitrárias - e oportunidades de ascensão social e empregatícia a cupinchas e puxa-sacos. Policarpo, enquanto isto, percebe que suas propostas não eram levadas a sério - é chamado, de forma um tanto irônica, de visionário pelo indolente Marechal de Ferro Floriano Peixoto - e desilude ainda mais quando, tendo entrado em combate, acaba por matar um dos revoltosos.

Finda a Revolta e encarregado de cuidar de um grupo de prisioneiros, Policarpo chega à conclusão de que a pátria, à qual ele sacrificara sua vida de estudos, era uma ilusão.

Seu destino é selado quando, após presenciar a escolha arbitrária de prisioneiros a serem executados, ele escreve uma carta a Floriano Peixoto denunciando a situação: o maior patriota de todo o livro é injustamente preso, acusado de traição.

Ricardo Coração dos Outros, inteirado da situação, procura todos os antigos amigos e conhecidos de Policarpo para ajudá-lo, mas todos se recusam por medo ou ganância, com exceção da afilhada, Olga, que, no entanto, parece incapaz de fazer qualquer coisa pelo padrinho a quem admira tanto.

O romance, no entanto, acaba em aberto, e ficamos sem saber se Policarpo será ou não, de fato, fuzilado.

Filme

Intitulado Policarpo Quaresma, Herói do Brasil, o filme de 1998 tem roteiro de Alcione Araújo e foi dirigido por Paulo Thiago. Embora respeitando em linhas gerais o enredo de Lima Barreto, esta adaptação toma algumas liberdades (como criar uma relação amorosa entre Policarpo e Ismênia e mostrar o fuzilamento final do protagonista, que não é descrito no livro) e satiriza aspectos da política brasileira atual, como quando um grupo de sem-terras invade o sítio do Major Quaresma, "Sossego".

Fontes:
http://pt.wikipedia.org
http://www.adorocinemabrasileiro.com.br (imagem)

Lima Barreto (Carta de um defunto rico)

“Meus caros amigos e parentes. Cá estou no carneiro n° 7..., da 3a quadra, à direita, como vocês devem saber, porque me puseram nele. Este Cemitério de São João Batista da Lagoa não é dos piores. Para os vivos, é grave e solene, com o seu severo fundo de escuro e padrasto granítico. A escassa verdura verde-negra das montanhas de roda não diminuiu em nada a imponência da antiguidade da rocha dominante nelas. Há certa grandeza melancólica nisto tudo; mora neste pequeno vale uma tristeza teimosa que nem o sol glorioso espanta... Tenho, apesar do que se possa supor em contrário, uma grande satisfação; não estou mais preso ao meu corpo. Ele está no aludido buraco, unicamente a fim de que vocês tenham um marco, um sinal palpável para as suas recordações; mas anda em toda a parte.

Consegui afinal, como desejava o poeta, elevar-me bem longe dos miasmas mórbidos, purificar-me no ar superior — e bebo, como um puro e divino licor, o fogo claro que enche os límpidos espaços.

Não tenho as dificultosas tarefas que, por aí, pela superfície da terra, atazanam a inteligência de tanta gente.

Não me preocupa, por exemplo, saber se devo ir receber o poderoso imperador do Beluchistã com ou sem colarinho; não consulto autoridades constitucionais para autorizar minha mulher a oferecer ou não lugares do seu automóvel a príncipes herdeiros — coisa, aliás, que é sempre agradável às senhoras de uma democracia; não sou obrigado, para obter um título nobiliárquico, de uma problemática monarquia, a andar pelos adelos, catando suspeitas bugigangas, e pedir a literatos das ante-salas palacianas que as proclamem raridades de beleza, a fim de encherem salões de casas de bailes e emocionarem os ingênuos com recordações de um passado que não devia ser avivado.

Afirmando isto, tenho que dizer as razões. Em primeiro lugar, tais bugigangas não têm, por si, em geral, beleza alguma; e, se a tiveram era emprestada pelas almas dos que se serviram delas. Semelhante beleza só pode ser sentida pelos descendentes dos seus primitivos donos.

Demais, elas perdem todo o interesse, todo o seu valor, tudo o que nelas possa haver de emocional, desde que percam a sua utilidade e desde que sejam retiradas dos seus lugares próprios. Há senhoras belas, no seu interior, com os seus móveis e as costuras; mas que não o são na rua, nas salas de baile e de teatro. O homem e as suas criações precisam, para refulgir, do seu ambiente próprio, penetrado, saturado das dores, dos anseios, das alegrias de sua alma; é com as emanações de sua vitalidade, é com as vibrações misteriosas de sua existência que as coisas se enchem de beleza.

É o sumo de sua vida que empresta beleza às coisas mortais; é a alma do personagem que faz a grandeza do drama, não são os versos, as metáforas, a linguagem em si, etc., etc. Estando ela ausente, por incapacidade do ator, o drama não vale nada.

Por isso, sinto-me bem contente de não ser obrigado a caçar, nos belchiores e cafundós domésticos, bugigangas, para agradar futuros e problemáticos imperantes, porque teria que dar a elas alma, tentativa em projeto que, além de inatingível, é supremamente sacrílego.

De resto, para ser completa essa reconstrução do passado ou essa visão dele, não se podia prescindir de certos utensílios de uso secreto e discreto, nem tampouco esquecer determinados instrumentos de tortura e suplício, empregados pelas autoridades e grão-senhores no castigo dos seus escravos.

Há, no passado, muitas coisas que devem ser desprezadas e inteiramente eliminadas, com o correr do tempo, para a felicidade da espécie, a exemplo do que a digestão faz, para a do indivíduo, com certas substâncias dos alimentos que ingerimos.

Mas... estou na cova e não devo relembrar aos viventes coisas dolorosas.

Os mortos não perseguem ninguém e só podem gozar da beatitude da superexistência aqueles que se purificam pelo arrependimento e destroem na sua alma todo o ódio, todo o despeito, todo o rancor.

Os que não conseguem isso — ai deles!

Alonguei-me nessas considerações intempestivas, quando a minha tenção era outra.

O meu propósito era dizer a vocês que o enterro esteve lindo. Eu posso dizer isto sem vaidade, porque o prazer dele, da sua magnificência, do seu luxo, não é propriamente meu, mas de vocês, e não há mal algum que um vivente tenha um naco de vaidade, mesmo quando é presidente de alguma coisa ou imortal da Academia de Letras.

Enterro e demais cerimônias fúnebres não interessam ao defunto; elas são feitas por vivos para vivos.

É uma tolice de certos senhores disporem nos seus testamentos como devem ser enterrados. Cada um enterra seu pai como pode — é uma sentença popular, cujo ensinamento deve ser tomado no sentido mais amplo possível, dando aos sobreviventes a responsabilidade total do enterro dos seus parentes e amigos, tanto na forma como no fundo.

O meu, feito por vocês, foi de truz. O carro estava soberbamente agaloado; os cavalos bem paramentados e empenachados; as riquíssimas coroas, além de ricas, eram lindas. Da Haddock Lobo, daquele casarão que ganhei com auxílio das ordens terceiras, das leis, do câmbio e outras fatalidades econômicas e sociais que fazem pobres a maior parte dos sujeitos e a mim me fizeram rico; da porta dele até o portão de São João Batista, o meu enterro foi um deslumbramento. Não havia, na rua, quem não perguntasse quem ia ali.

Triste destino o meu, esse de, nos instantes do meu enterramento, toda uma população de uma vasta cidade querer saber o meu nome e dali a minutos, com a última pá de terra deitada na minha sepultura, vir a ser esquecido, até pelos meus próprios parentes.

Faço esta reflexão somente por fazer, porque, desde muito, havia encontrado, no fundo das coisas humanas, um vazio absoluto.

Essa convicção me veio com as meditações seguidas que me foram provocadas pelo fato de meu filho Carlos, com quem gastei uma fortuna em mestres, a quem formei, a quem coloquei altamente, não saber nada desta vida, até menos do que eu.

Adivinhei isto e fiquei a matutar como que é que ele gozava de tanta consideração fácil e eu apenas merecia uma contrariedade? Eu, que...

Carlos, meu filho, se leres isto, dá o teu ordenado àquele pobre rapaz que te fez as sabatinas por "tuta-e-meia"; e contenta-te com o que herdaste do teu pai e com o que tem tua mulher! Se não fizeres... ai de ti!

Nem o Carlos nem vocês outros, espero, encontrarão nesta última observação matéria para ter queixa de mim. Eu não tenho mais amizade, nem inimizade.

Os vivos me merecem unicamente piedade; e o que me deu esta situação deliciosa em que estou, foi ter sido, às vezes, profundamente bom. Atualmente, sou sempre...

Não seria, portanto, agora que, perto da terra, estou, entretanto, longe dela, que havia de fazer recriminações a meu filho ou tentar desmoralizá-lo. Minha missão, quando me consentem, é fazer bem e aconselhar o arrependimento.

Agradeço a vocês o cuidado que tiveram com o meu enterro; mas, seja-me permitido, caros parentes e amigos, dizer a vocês uma coisa. Tudo estava lindo e rico; mas um cuidado vocês não tiveram. Por que vocês não forneceram librés novas aos cocheiros das caleças, sobretudo, ao do coche, que estava vestido de tal maneira andrajosa que causava dó?

Se vocês tiverem que fazer outro enterro, não se esqueçam de vestir bem os pobres cocheiros, com o que o defunto, caso seja como eu, ficará muito satisfeito. O brilho do cortejo será maior e vocês terão prestado uma obra de caridade.

Era o que eu tinha a dizer a vocês. Não me despeço, pelo simples motivo de que estou sempre junto de vocês. É tudo isto do

José Boaventura da Silva.

N.B. - Residência, segundo a Santa Casa: Cemitério de São João Batista da Lagoa; e segundo a sabedoria universal, em toda a parte. - J.B.S."

Posso garantir que transladei esta carta para aqui, sem omissão de uma vírgula.

Fontes:
COSTA, Flávio Moreira da (org.). Os 100 melhores contos de humor da literatura universal. RJ: Ediouro, 2001. In http://www.releituras.com
http://encantandotempo.blogspot.com (imagem)

Lygia Fagundes Telles (O menino e o velho)

Quando entrei no pequeno restaurante da praia os dois já estavam sentados, o velho e o menino. Manhã de um azul flamante. Fiquei olhando o mar que não via há algum tempo e era o mesmo mar de antes, um mar que se repetia e era irrepetível. Misterioso e sem mistério nas ondas estourando naquelas espumas flutuantes (bom-dia, Castro Alves!) tão efêmeras e eternas, nascendo e morrendo ali na areia. O garçom, um simpático alemão corado, me reconheceu logo. Franz?, eu perguntei e ele fez uma continência, baixou a bandeja e deixou na minha frente o copo de chope. Pedi um sanduíche. Pão preto?, ele lembrou e foi em seguida até a mesa do velho que pediu outra garrafa de água de Vichy.

Fixei o olhar na mesa ocupada pelos dois, agora o velho dizia alguma coisa que fez o menino rir, um avô com o neto. E não era um avô com o neto, tão nítidas as tais diferenças de classe no contraste entre o homem vestido com simplicidade mas num estilo rebuscado e o menino encardido, um moleque de alguma escola pobre, a mochila de livros toda esbagaçada no espaldar da cadeira. Deixei baixar a espuma do chope mas não olhava o copo, com o olhar suplente (sem direção e direcionado) olhava o menino que mostrava ao velho as pontas dos dedos sujas de tinta, treze, catorze anos? O velho espigado alisou a cabeleira branca em desordem (o vento) e mergulhou a ponta do guardanapo de papel no copo d'água. Passou o guardanapo para o menino que limpou impaciente as pontas dos dedos e logo desistiu da limpeza porque o suntuoso sorvete coroado de creme e pedaços de frutas cristalizadas já estava derretendo na taça. Mergulhou a colher no sorvete. A boca pequena tinha o lábio superior curto deixando aparecer os dois dentes da frente mais salientes do que os outros e com isso a expressão adquiria uma graça meio zombeteira. Os olhos oblíquos sorriam acompanhando a boca mas o anguloso rostinho guardava a palidez da fome. O velho apertava os olhos para ver melhor e seu olhar era demorado enquanto ia acendendo o cachimbo com gestos vagarosos, compondo todo um ritual de elegância. Deixou o cachimbo no canto da boca e consertou o colarinho da camisa branca que aparecia sob o decote do suéter verde-claro, devia estar sentindo calor mas não tirou o suéter, apenas desabotoou o colarinho. Na aparência, tudo normal: ainda com os resíduos da antiga beleza o avô foi buscar o neto na saída da escola e agora faziam um lanche, gazeteavam? Mas o avô não era o avô. Achei-o parecido com o artista inglês que vi num filme, um velho assim esguio e bem cuidado, fumando o seu cachimbo. Não era um filme de terror mas o cenário noturno tinha qualquer coisa de sinistro com seu castelo descabelado. A lareira acesa. As tapeçarias. E a longa escada com os retratos dos antepassados subindo (ou descendo) aqueles degraus que rangiam sob o gasto tapete vermelho.

Cortei pelo meio o sanduíche grande demais e polvilhei o pão com sal. Não estava olhando mas percebia que os dois agora conversavam em voz baixa, a taça de sorvete esvaziada, o cachimbo apagado e a voz apagada do velho no mesmo tom caviloso dos carunchos cavando (roque-roque) as suas galerias. Acabei de esvaziar o copo e chamei o Franz. Quando passei pela mesa os dois ainda conversavam em voz baixa - foi impressão minha ou o velho evitou o meu olhar? O menino do labiozinho curto (as pontas dos dedos ainda sujas de tinta) olhou-me com essa vaga curiosidade que têm as crianças diante dos adultos, esboçou um sorriso e concentrou-se de novo no velho. O garçom alemão acompanhou-me afável até a porta, o restaurante ainda estava vazio. Quase me lembrei agora, eu disse. Do nome do artista, esse senhor é muito parecido com o artista de um filme que vi na televisão. Franz sacudiu a cabeça com ar grave: Homem muito bom! Cheguei a dizer que não gostava dele ou só pensei em dizer? Atravessei a avenida e fui ao calçadão para ficar junto do mar.

Voltei ao restaurante com um amigo (duas ou três semanas depois) e na mesma mesa, o velho e o menino. Entardecia. Ao cruzar com ambos, bastou um rápido olhar para ver a transformação do menino com sua nova roupa e novo corte de cabelo. Comia com voracidade (as mãos limpas) um prato de batatas fritas. E o velho com sua cara atenta e terna, o cachimbo, a garrafa de água e um prato de massa ainda intocado. Vestia um blazer preto e malha de seda branca, gola alta.

Puxei a cadeira para assim ficar de costas para os dois, entretida com a conversa sobre cinema, o meu amigo era cineasta. Quando saímos a mesa já estava desocupada. Vi a nova mochila (lona verde-garrafa, alças de couro) dependurada na cadeira. Ele esqueceu, eu disse e apontei a mochila para o Franz que passou por mim afobado, o restaurante encheu de repente. Na porta, enquanto me despedia do meu amigo, vi o menino chegar correndo para pegar a mochila. Reconheceu-me e justificou-se (os olhos oblíquos riam mais do que a boca), Droga! Acho que não esqueço a cabeça porque está grudada.

Pressenti o velho esperando um pouco adiante no meio da calçada e tomei a direção oposta. O mar e o céu formavam agora uma única mancha azul-escura na luz turva que ia dissolvendo os contornos. Quase noite. Fui andando e pensando no filme inglês com os grandes candelabros e um certo palor vindo das telas dos retratos ao longo da escadaria. Na cabeceira da mesa, o velho de chambre de cetim escuro com o perfil esfumaçado. Nítido, o menino e sua metamorfose mas persistindo a palidez. E a graça do olhar que ria com o labiozinho curto.

No fim do ano, ao passar pelo pequeno restaurante resolvi entrar mas antes olhei através da janela, não queria encontrar o velho e o menino, não me apetecia vê-los, era isso, questão de apetite. A mesa estava com um casal de jovens. Entrei e Franz veio todo contente, estranhou a minha ausência (sempre estranhava) e indicou-me a única mesa desocupada. Hora do almoço. Colocou na minha frente um copo de chope, o cardápio aberto e de repente fechou-se sua cara num sobressalto. Inclinou-se, a voz quase sussurrante, os olhos arregalados. Ficou passando e repassando o guardanapo no mármore limpo da mesa, A senhora se lembra? Aquele senhor com o menino que ficava ali adiante, disse e indicou com a cabeça a mesa agora ocupada pelos jovens. Ich! foi uma coisa horrível! Tão horrível, aquele menininho, lembra? Pois ele enforcou o pobre do velho com uma cordinha de náilon, roubou o que pôde e deu no pé! Um homem tão bom! Foi encontrado pelo motorista na segunda-feira e o crime foi no sábado. Estava nu, o corpo todo judiado e a cordinha no pescoço, a senhora não viu no jornal?! Ele morava num apartamento aqui perto, a policia veio perguntar mas o que a gente sabe? A gente não sabe de nada! O pior é que não vão pegar o garoto, ich! Ele é igual a esses bichinhos que a gente vê na areia e que logo afundam e ninguém encontra mais. Nem com escavadeira a gente não encontra não. Já vou, já vou!, ele avisou em voz alta, acenando com o guardanapo para a mesa perto da porta e que chamava fazendo tilintar os talheres. Ninguém mais tem paciência, já vou!...

Olhei para fora. Enquadrado pela janela, o mar pesado, cor de chumbo, rugia rancoroso. Fui examinando o cardápio, não, nem peixe nem carne. Uma salada. Fiquei olhando a espuma branca do chope ir baixando no copo.

Fontes:
TELLES, Lygia Fagundes. Invenção e Memória. RJ: Editora Rocco, 2000. In
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http://www.brechofuzenga.com (imagem)

Prosper Mérimée (1803 - 1870)

Prosper Merimée, (Paris, 28 de setembro de 1803 - Cannes, 23 de setembro de 1870) historiador, arqueólogo e escritor romântico francês, célebre pelo conto Carmen.

Biografia

Era filho único de Leonor Merimée e Anne-Louise Merimée na Paris de Napoleão. Seu pai era pintor e professor de desenho, o que influenciou o filho a primeiro estudar no Liceu Imperial. Deixou o Liceu para fazer Direito, formando-se em 1823.

Também aprendeu grego, espanhol, inglês, e russo. Foi o primeiro a traduzir obras literárias russas para o francês.

Ocupou diversos cargos públicos, em todos eles destacando-se pelo bom desempenho de seus deveres. Foi nomeado (1830) Inspetor dos Monumentos Históricos, revelando-se um arqueólogo nato, combinando suas habilidades lingüísticas, uma notável avaliação histórica e sincero devotamento às artes, desenho e arquitetura. Neste mister, seus relatórios vieram muitas vezes a merecer publicação, e destaque em sua produção, ao largo da literária. A ele se deve, em boa parte, a conservação do rico legado cultural, do qual tanto se orgulha o povo francês.

Neste mesmo ano conheceu e auxiliou a Condessa de Montijo, espanhola. Quando a filha dela tornou-se a Imperatriz Eugénie, da França, em 1853, Mérimée foi honrado com o cargo de senador.

Prosper Mérimée morreu em Cannes, França e ali foi sepultado no Cimetière du Grand Jas.

Romantismo e História

Mérimée gostava do misticismo, da história e das coisas incomuns. Influenciado diretamente pela ficção histórica de Walter Scott e pelo drama psicológico e cruel de Pushkin, seu estilo porém era conciso, bastante objetivo - apesar de marcadamente dramático. Muitas de suas obras fictícias retratam lugares de forma bastante exótica - dedicando-se particularmente à Espanha e à Rússia.

Estreou como literato em 1825, com "O Teatro de Clara Gazul" - atribuindo satiricamente a autoria do texto a esta célebre "comediante espanhola". Antes, porém, havia escrito a peça "Cromwell" (1822) que nunca foi publicado e nenhuma cópia existe. Mérimée sentiu suas semelhanças óbvias com a política francesa contemporâneas e destruiu o manuscrito.

Obras

Além dos dois escritos citados, temos:

La Guzla (1827) - outra sátira, com vários textos de temas místicos, que teriam sido traduzidos do Ilírico original por um certo Hyacinthe Maglanowich (a Ilíria é um antigo país onde hoje é a região ocidental da Turquia).
La Jacquerie (1828) - drama sobre uma insurreição camponesa nos tempos feudais.
massacre de S. Bartolomeu, em 1572.
Mateo Falcone (1829) - conto sobre a ilha da Córsega, tendo o personagem título matado o próprio filho em nome da justiça, e publicado em seguida, numa coletânea. Este conto gerou uma ópera homônima, do compositor russo César Cui (vide excerto abaixo).
Mosaïque (1833) - Reunião de contos, dentre os quais Mateo Falcone, Tamango, Federigo, Baladas, O Vaso Etrusco, etc.. Além destes, três cartas espanholas. A maioria dos contos já havia sido publicada na "Revista de Paris", entre 1829 e 1830.
La d'Ille de Vénus (1837) - conto de horror fantástico onde uma estátua de bronze ganha vida.
Notas de Viagens (1835-40) - em que descreve suas viagens pela Grécia, Espanha, Turquia, e na própria França.
Colomba (1840) - esta foi sua primeira novela de sucesso. Conta a história de uma jovem moça corsa que obriga seu irmão a cometer um assassinato para se vingar.
Carmen (1845) - A mais famosa de suas novelas, narra a história de uma bela cigana infiel que é morta pelo amante, um oficial espanhol. Em 1875, foi transformada em ópera, por Georges Bizet (cartaz da época, ao lado), além de vários filmes.
Lokis (1869) - ambientado no Leste Europeu, é uma história de terror onde um homem, metade urso e metade gente, gostava de se alimentar de carne humana.
A Câmara Azul (1872) - uma farsa com todos os caracteres de conto sobrenatural, mas onde ao final tudo volta a ser como era antes...
Lettres à une inconnue (1874) - reunião de cartas de Mérimée para Jenny Dacquin, publicadas depois de sua morte.

Mateo Falcone - Excertos e resumo

Para ilustrar o estilo deste escritor, as passagens da novela Mateo Falcone:

Na Córsega, diz o autor, um lugar em especial serve de refúgio para os criminosos:

Se matastes um homem, ide para o mato de Porto-Vecchio, e ali vivereis em segurança, com um bom fuzil, pólvora e balas; não esqueças duma capa escura com capuz, que fará as vezes de coberta e colchão. Os pastores vos darão leite, queijo e castanhas, e nada temereis da justiça ou dos parentes do morto, senão quando tiverdes de descer à cidade para renovar as munições.

(...)Mateo Falcone vivia sem precisar trabalhar, e este era seu perfil:

Imaginai um homem baixo, mas robusto, de cabelos crespos, negros como ébano, nariz aquilino, lábios delgados, olhos grandes e vivos, uma pele da cor de couro cru. Mesmo na sua terra, onde há tão bons atiradores, passava por extraordinariamente hábil no manejo da espingarda.

(...)granjeara Mateo Falcone enorme reputação. Diziam-no tão bom amigo quão perigoso inimigo; era aliás solícito, dado a fazer esmolas, e vivia em paz com todos no distrito de Porto-Vecchio.

(...)Mateo casara-se com Josefa que, após dar-lhe três filhas, finalmente tiver um herdeiro homem, a quem esperançoso em dar continuidade ao nome, batizara o pai de "Fortunato". Contava o menino com 10 anos de idade quando os pais se ausentam de casa, e pede-lhe abrigo um criminoso, Gianetto Sanpiero, ferido numa perseguição. O menino, a princípio, recusa-se, mas depois de receber um pagamento, aceita dar abrigo ao fugitivo. Quando os perseguidores chegam, dissimula.

Fortunato continuava com um riso zombeteiro.

_Meu pai é Mateo Falcone! - disse ele enfaticamente.

_Bem sabes, malandrinho, que posso levar-se pra a Corte ou para a Bastilha. Farei dormires num calabouço, em cima da palha, com ferros nos pés e mandarei guilhotinar-te se não disseres onde está Gianetto Sanpiero.

A essa ridícula ameaça o menino soltou uma gargalhada, e repetiu:

_Meu pai é Mateo Falcone!

(...)O chefe dos soldados perseguidores, Teodoro Gamba, então resolve subornar o menino com um relógio de prata, o que este acaba aceitando, delatando o esconderijo do albergado. Após a captura, quando vão saindo, o casal está de volta para casa. Amedrontado com a vista de Mateo, Gamba logo se aproxima, contando-lhe o ocorrido, e o importante papel que tivera seu filho. Em casa, vendo o garoto com o suborno, leva-o para o mato...

O menino fez um desesperado esforço para se erguer e abraçar-se aos joelhos do pai; mas não teve tempo. Mateo fez fogo, e Fortunato caiu morto.

Sem olhar para o cadáver, Mateo retomou o caminho de casa, em busca de uma enxada para enterrar o filho. Mal dera alguns passos, encontrou Josefa, que corria alarmada com o tiro.

_Que fizeste?

_Justiça.

_Onde ele está?

_Lá embaixo, no barranco. Vou enterrá-lo. Morreu como cristão, mandarei rezar uma missa para ele. Dize ao meu genro Teodoro Bianchi que venha morar conosco.

Fonte:
http://pt.wikipedia.org/

Prosper Mérimée (Carmen - ópera de Georges Bizet))

Carmen é uma ópera em quatro atos de Georges Bizet com libreto de Henri Meilhac e Ludovic Halévy, baseada na novela homônima de Prosper Mérimée. Estreou em 1875, no Ópera-Comique de Paris.

Personagens

- Carmen (Uma cigana que usa seus talentos para a dança e o canto para enfeitiçar e seduzir vários homens)
- Don José (é um cabo do exército, é um homem honesto e descente, mas ao se envolver com Carmen, vira um fora-da-lei)
- Micaëla (Ela ama Don José, porisso tenta resgatar Don José da vida destrutiva que ele levará com Carmen)
- Escamillo (é um famoso toreador de Granada, mas foi "enfeitiçado" por Carmen)
- Frasquita (amiga de Carmen, a acompanha em todas as aventuras)
- Mercédès (também é amiga de Carmen, a acompanha em todas as aventuras)
- Remendado (namorado de Frasquita, ele é um contrabandista)
- Dancaïre (namorado de Mercédès, ele é servo de Remendado e também contrabandista)
- Moralès (um sargento)
- Zúñiga (Oficial comandante de Don José. Embora prenda Carmen por ter cometido um crime, ele, também, é enfeitiçado por ela)
- Lillas Pastia (dono duma taberna, onde todos os contradistas se encontram lá)
- O Guia (acompanhou Micaëla até onde estava Don José)

Sinopse

Ato I

O primeiro ato começa numa praça de Sevilha, onde se situa uma fábrica de tabaco e um quartel. O cabo Morales comenta com os soldados do corpo da guarda, os Dragões do Regimento de Alcalá, a passagem dos transeuntes pela praça. Então, entra em cena uma simples aldeã chamada Micaela, aproxima-se de Morales e pergunta timidamente pelo cabo Don José. Morales responde-lhe que este chegará com a rendição da guarda e convida-a a esperá-lo na companhia dos seus homens, mas Micaela decide retirar-se para regressar mais tarde. Ouvem-se nos bastidores os clarins que anunciam o render da guarda e aparecem em cena os soldados sob comando de Don José, seguidos por um grupo de crianças que os imita com admiração. À sua chegada ao quartel, Morales comenta em tom jocoso a visita da aldeã. Zúniga, um tenente recém-chegado à cidade, interroga, em seguida, Don José sobre a beleza e a duvidosa reputação das cigarreiras da fábrica da praça, mas o cabo manifesta o seu único interesse por Micaela, por quem está apaixonado. O sino da fábrica soa e anuncia o intervalo das cigarreiras, que entram em cena a fumar e a conversar animadamente com um grupo de homens que as espera. A última a aparecer é Carmen, uma bela cigana que seduz todos os homens que encontra à sua passagem. Seguidamente, Carmen canta uma habanera aos presentes, que manifestam a sua admiração por ela, à excepção do indiferente Don José, que é, precisamente, o objeto do seu desejo. Antes de regressar à fábrica, Carmen, em sinal de desafio, atira-lhe uma das suas flores. Depois deste episódio a parece Micaela, que regressa ao posto da guarda e entrega a Don José uma carta da sua mãe, em que lhe pede que se case com a aldeã. Depois de se relembrarem juntos das paisagens da sua infância, Micaela abandona a cena e Don José começa a ler a carta. Ocorre então um tumulto no interior da fábrica; um grupo de trabalhadoras comenta entre gritos que está a haver uma rixa entre as mulheres em que Carmen interveio, tendo ferido outra cigarreira no rosto, com uma navalha. Zuniga ordena a Don José e aos seus homens que prendam a agressora. O cabo sai da fábrica com Carmen e recebe a ordem do tenente de a levar para a prisão. Carmen e Don José ficam sozinhos na praça. A sedutora cigana convence o cabo de que a liberte, promete-lhe o seu amor a assegura-lhe que o esperará na taberna de Lillas Pastia. Don José, alvoroçado, decide libertá-la. Nesse momento volta Zuniga com a ordem de prisão. Don José e Carmen iniciam a caminhada, mas perante os presentes a cigana finge empurá-lo e foge.Don José é preso imediatamente por permitir a sua fuga.

Ato II

O 2º ato começa na taberna de Lillas Pastia, suposto ponto de encontro de contrabandistas.Já se passou um 1 mês.Carmen e as suas amigas,Frasquita e Mercedes,jantam com Zúñiga e outros oficias,que rapidamente se juntam às cantigas e danças dos ciganos.Apesar dos convites dos soldados ,Carmen recusa os seus pretendentes.Está à espera de Don José que depois de ter sido preso e mandado encarce rar por sua causa,recuperou a liberdade.A seguir,entre manifestações de júbilo,aparece em cena um famoso toureiro chamado Escamillo que,seduzido pela beleza da cigana,lhe declara o seu amor,abandonando depois a taberna com os oficiais. Em cena ficam Carmen,Mercedes e Frasquita sozinhas.Aparecem então os contrabandistas Dancaïre e Remendado,que propõem um negócio às três mulheres.Carmen recusa no início a proposta,mas por fim muda de opinião perante a possibilidade de que seu apaixonado deserte e participe na operação de contrabando. Finalmente,depois da saída dos contrabandistas,Don José chega a taberna e declara o seu amor a Carmen,que tenta convencê-lo de que se junte a ela e aceite o negócio.Don José,ofendido,nega-se,mas o aparecimento repentino de Zúñiga precipita os acontecimentos. O soldado e o tenente enfrentam-se pelo amor de Carmen.Don José,apoiado pelos contrabandistas,subleva-se ao seu superior,que fica sob custódia de alguns ciganos.Obrigado pelas circunstâncias,o soldado vê-se finalmente forçado a desertar e parte com a cigana.

Ato III

Num desfiladeiro,os contrabandistas fazem os preparativos para a entrega dos produtos do contrabando,sob a supervisão de Dancaire.É de noite.Carmen cansada do ciumento amor de Don José e,além disso,descontente com a sua nova vida,tenta adivinhar nas cartas o seu futuro na companhia de Frasquita e Mercedes.As cartas revelam um mal presságio para Carmen:A morte. Á saída dos contrabandistas e das mulheres,Don José permanece num penhasco, a vigiar o esconderijo dos seus novos amigos.Da escuridão surge então Micaëla,que com a ajuda de um guia chega ao esconderijo de seu amado Don José com a esperança de o convencer a voltar a casa de sua mãe.Porém um disparo interrompe os seus propósitos.Don José disparou contra um intruso,que sai ileso.É o famoso toreiro Escamillo,que,desconhecendo a identidade do seu interlocutor,lhe conta que está à procura de Carmen ,que está cansada do seu amante,um soldado que desertou por ela. Don José,cego de ciúme,desafia o toureiro para uma luta até à morte com navalhas,que é interrompida graças à volta dos contrabandistas.Depois de insultar o desertor e convidar os presentes para as corridas de touros de Servilha,Escamillo abandona a cena.A seguir,Dancaire descobre a presença de Micaëla ,que abandona o seu esconderijo e pede a Don José que a acompanhe porque sua mãe está a morrer.Ele aceita e sai com a aldeã,não sem prevenir Carmen,em tom ameaçador ,de que voltará para vir buscar.A cigana não dá aos seus avisos pensando no seu novo objeto de desejo.

Ato IV

Em Sevilha, frente à praça de touros, uma multidão espera a chegada dos toureiros. Os vendedores aproveitam a ocasião para oferecer os seus produtos ao público. Aparece então a quadrilha e atrás dela,Escamillo e Carmen. À entrada do toreiro na praça de touros,Mercedes e Frasquita avisam a cigana da presença de Don José, mas ela mostra não ter medo de se encontrar com o seu antigo amante. A seguir, Don José retém Carmen quando tenta entrar na praça,suplicando-lhe que volte com ele.Ela responde-lhe que o seu amor por ele acabou. Do interior da praça soam as vivas a Escamillo.O desertor tenta deter com violência a cigana,mas ela atira-lhe despeitadamente o anel que ele lhe tinha oferecido. Em fúria, Don José enfia uma faca na barriga de Carmen. A multidão que vai saindo da praça assiste à terrível cena. Don José, cheio de tristeza, cai de joelhos junto ao corpo de sua amada Carmen.

Fontes:
http://pt.wikipedia.org
http://www.antiqbook.com (imagem)

Prosper Mérimée (A partida de gamão)

As velas pendiam, imóveis, coladas aos mastros; o mar estava liso como gelo; o calor era sufocante, desesperadora a calmaria.

Numa viagem por mar, os recursos em matéria de divertimento, que os anfitriões do navio possam oferecer, bem depressa se esgotam. Conhecemo-nos bem demais, ai de nós! depois de passarmos juntos quatro meses numa casa de madeira com o comprimento de cento e vinte pés. Quando o primeiro-tenente se aproxima já sabemos que, em primeiro lugar, ele falará do Rio de Janeiro, de onde procede; depois da famosa ponte de Essling, construída pelos marinheiros da guarda, de que fazia parte. Ao cabo de quinze dias conhecemos até suas expressões prediletas, até a maneira como pontua as frases e as diferentes entonações de voz. Nunca, desde que pela primeira vez contou suas narrativas esta palavra o imperador... ele deixou de interromper-se com tristeza e invariavelmente acrescentar: “Se o senhor o tivesse visto naquela ocasião!!! (três pontos de exclamação). E o episódio do cavalo do clarim e da bala de artilharia que ricocheteara, levando-lhe uma cartucheira onde tinha sete mil e quinhentos francos em ouro e jóias, etc., etc.! O segundo tenente gosta muito de política; comenta todos os dias o último numero do Constitutionnel, que trouxe de Brest; ou, se deixa as alturas da política para descer a literatura, é para regalar-nos com a análise da última comédia musicada que assistiu.

Os oficiais a bordo do navio em que eu embarcara eram as melhores pessoas do mundo, ótimos sujeitos, que se estimavam uns aos outros como irmãos, mas podia-se apostar qual seria o mais enfadonho. O capitão era o mais pacato dos homens, nada intrigante (o que constitui uma raridade). Era sempre a contragosto que impunha a sua autoridade ditatorial. Com tudo isso, como a viagem me pareceu longa! Sobretudo aquela calmaria que nos surpreendeu apenas alguns dias antes de avistarmos a terra!...

Um dia depois do jantar, que a inação nos fizera prolongar o máximo possível, estávamos reunidos no convés, aguardando o espetáculo monótono, mas sempre majestoso, do pôr-do-sol nas águas. Alguns fumavam, outros reliam pela vigésima vez um dos trinta volumes de nossa minguada biblioteca: todos bocejavam a ponto de chorar. Um oficial sentado a meu lado divertia-se com a gravidade digna de uma ocupação mais séria, como deixar cair nas tábuas da coberta, a ponta voltada para baixo, o punhal que os oficiais de marinha costumam usar com o uniforme. Era um divertimento como outro qualquer, e exige habilidade para conseguir que a ponta se enterre perpendicularmente na madeira. Como desejasse imitar o oficial e não dispusesse de punhal, experimentei pedir emprestado o do capitão, que me recusou. Explicou-me que se apegara singularmente à sua arma, e não gostaria de vê-la utilizada em tão fútil entretenimento. Aquele punhal pertencera a um bravo oficial infortunadamente morto na ultima guerra. Adivinhei a aproximação de uma história e não me enganava. O capitão iniciou-a, sem se fazer de rogado; quanto aos oficiais que nos rodeavam, já conheciam de cor e salteado os infortúnios do tenente Roger, e imediatamente operaram uma retirada discreta. A narrativa do capitão é a seguinte, mais ou menos:

“Quando conheci Roger, mais velho do que eu três anos, ele era tenente; eu, guarda-marinha. Asseguro-lhe que era um dos melhores oficias do nosso corpo; aliás, um excelente coração, inteligência, cultura, dotes artísticos, tudo possuía ele: em sua, um homem encantador. Um pouco orgulhoso e suscetível, infelizmente, o que derivava, suponho, do fato de ser filho natural; temia que seu nascimento lhe fizesse perder a consideração social. Porém, para dizer a verdade, o maior de seus defeitos era o desejo intenso e persistente de ser o primeiro em tudo. Seu pai, a quem nunca vira, dava-lhe uma pensão que teria sido mais do que suficiente para as suas necessidades se Roger não encarnasse a própria generosidade. Tudo que possuía pertencia aos amigos. Mal acabava de receber o seu trimestre, era bastante que alguém o procurasse com o rosto sério e preocupado, para indagar:

- Que é isso, colega, que tens? Pelo teu aspecto, teus bolsos não farão barulho se os sacudirmos; vamos, aqui está a minha carteira, tira o que precisares e vem jantar comigo.

“Chegou a Brest uma jovem atriz muito bonita, chamada Gabriela, e não tardou a conquistar marinheiros e oficiais da guarnição. Não se poderia dizer que fosse uma beleza clássica, mas tinha estatura, belos olhos, pés pequenos, expressão passavelmente descarada; tudo isso nos agrada muito quando estamos na altura dos 25 anos. Ainda por cima, diziam-na a mais caprichosa das criaturas do seu sexo, e a sua maneira de representar não desmentia tal reputação. Ora desempenhava maravilhosamente bem o seu papel, dir-se-ia uma atriz de primeira ordem; no dia seguinte, na mesma peça, mostrava-se fria, insensível; recitava a sua parte como uma criança recita o catecismo. Um caso, que lhe atribuíam, sobretudo, interessou os jovens oficias. Ao que parece fora, em Paris, mantida com muito luxo por um senador que fazia, como dizem, loucuras por causa dela. Um dia, estando ele em casa de Gabriela, pôs o chapéu na cabeça; ela lhe pediu que o tirasse, e chegou a queixar-se de que aquilo era falta de respeito. O senador pôs-se a rir, ergueu os ombros e disse, afundando-se numa poltrona: “Então não posso ficar à vontade na casa de uma rapariga paga por mim!” Uma bofetada de carregador, aplicada pela mão branca de Gabriela, foi o que sua resposta mereceu na hora, fazendo com que o chapéu do cavalheiro fosse parar no outro canto do quarto.

“Depois de vê-la e de inteirar-se dessa história, Roger achou que ela lhe convinha, e com a franqueza um pouco rude que censuram em nós, marinheiros, procedeu da seguinte forma para demonstrar a Gabriela que seus encantos o tinham impressionado. Comprou as mais belas e raras flores que conseguiu encontrar em Brest, fez um ramo que amarrou com uma bonita fita cor-de-rosa, e no laço prendeu de maneira artística um rolo de 25 napoleões; era tudo que possuía no momento. Lembro-me de que o acompanhei aos bastidores durante um intervalo. Dirigiu a Gabriela um cumprimento muito curto sobre a graça como usava suas roupas, ofereceu-lhe o ramo de flores e pediu licença para visitá-la. Tudo isso expresso em três palavras.
Enquanto Gabriela só viu as flores e o belo rapaz que as oferecia, sorriu-lhe, acompanhando o sorriso com uma reverência das mais graciosas; porém, quando o buquê passou as suas mãos ela sentiu o peso do ouro e sua fisionomia mudou mais rapidamente do que a superfície do mar tumultuado por um furacão dos trópicos; e, de certo modo, não se mostrou menos violenta, pois lançou com todas as suas forças o ramo de flores e os napoleões à cabeça do meu amigo, cujo rosto ficou marcado por oito dias. A campainha do regente soou, Gabriela voltou a cena e representou pessimamente.

Tendo apanhado o buquê e o rolo de dinheiro com um jeito muito vexado, Roger foi para o café e ofereceu o ramalhete (sem o dinheiro) à moça do balcão, e experimentou, bebendo ponche, esquecer a cruel dama. Não conseguiu; apesar do despeito nascido do fato de não poder mostrar-se com o olho contundido, apaixonou-se loucamente pela irascível Gabriela. Escrevia-lhe vinte cartas por dia, e que cartas! submissas, ternas, respeitosas, tais como se fossem endereçadas a uma princesa. As primeiras foram devolvidas sem terem sido abertas; as outras não obtiveram resposta. E Roger alimentava alguma esperança, quando descobrimos que a vendedoras de laranjas do teatro enrolava suas laranjas nas cartas de amor de Roger que, por um requinte de crueldade, Gabriela lhe entregava. Foi um golpe terrível para a altivez do nosso amigo. Contudo, nem por isso a sua paixão definhou. Falava em pedir a atriz em casamento e, como lhe diziam que o Ministro da Marinha nunca daria o necessário consentimento, protestava, afirmando que nesse caso estouraria os miolos.

Entrementes, aconteceu que os oficiais de um regimento de linha, aquartelado em Brest, quiseram obrigar Gabriela a repetir uma copla de vaudeville e, por capricho, ela se recusou. Ambos teimaram, os oficiais e a atriz, a ponto de os primeiros fazerem baixar o pano com seus assobios e a segunda desmaiar. O senhor sabe o que é a platéia de uma cidade de aquartelamento. Ficou combinado entre os oficiais que no dia seguinte e nos subseqüentes, a culpada seria vaiada sem remissão, não lhe sendo permitido representar um único papel, sem que antes de desculpasse. Roger não assistira ao espetáculo; porém na mesma noite inteirara-se do escândalo que pusera o teatro em rebordosa, e também dos projetos de vingança tramados para o dia seguinte. Não perdeu tempo em tomar uma decisão.

No dia imediato, quando Gabriela apareceu no palco, vaias e assobios de romper os tímpanos partiram do bando de oficiais. Roger, que se colocara propositadamente entre os desordeiros, levantou-se e interpelou os mais turbulentos em termos tão ofensivos que a fúria desses imediatamente se voltou para a sua pessoa. Então, com grande sangue-frio, puxou um caderninho do bolso e nele escreveu os nomes que lhe eram atirados de todos os lados; teria marcado duelo com o regimento inteiro se, por espírito de solidariedade, não surgisse uma boa quantidade de oficiais da marinha, que provocaram a maioria dos adversários de Roger. Foi realmente um pandemônio.

A guarnição inteira foi detida por vários dias; porém, ao serem os oficiais postos em liberdade, houve um tremendo ajuste de contas. Cerca de sessenta deles se encontraram no campo de honra. Roger, sozinho, bateu-se contra três; matou um e feriu gravemente outros dois, sem receber nenhum arranhão. Fui menos feliz: um maldito tenente, que fora mestre de esgrima, deu-me uma profunda estocada no peito, e esta quase me matou. Asseguro-lhe que foi um belo espetáculo aquele duelo, ou melhor, aquela batalha. A marinha obteve todas as vantagens e o regimento foi obrigado a deixar Brest.

Bem imagina que nossos oficiais superiores não esqueceram o responsável pelo tumulto. Durante 15 dias esteve de sentinela à porta.

Quando saí do hospital a sua penalidade já tinha sido suspensa, e resolvi visitá-lo. Qual não foi minha surpresa, ao entrar, defrontando com ambos, ele e Gabriela, que almoçavam juntos!
Davam a impressão de estar há muito tempo em ótimas relações. Já se tuteavam e bebiam no mesmo copo. Roger apresentou-me à amante como sendo seu melhor amigo e contou-lhe que eu fora ferido na escaramuça de que ela constituíra a única causa. Isso me valeu um beijo da bela criatura. Tinha inclinações bastante marciais.

Viveram juntos três meses inteiramente felizes, não se largando um só momento. Gabriela parecia amá-lo com paixão e Roger confessava que antes de conhecê-la não sabia o que era o amor.

Uma fragata holandesa fundeou no porto. Os oficiais ofereceram-nos um jantar. Bebemos copiosamente toda espécie de vinhos; e, retirada a toalha, não sabendo mais o que fazer, pois aqueles senhores falavam muito mal o francês, começamos a jogar. Os holandeses pareciam muito endinheirados; sobretudo o primeiro-tenente fazia questão de jogar tão caro que nenhum de nos o aceitava para parceiro. Roger, que não costumava jogar, achou que naquelas circunstancias seria necessário defender a honra da sua pátria. Jogou, pois, e acompanhou as paradas do tenente holandês. Primeiro ganhou, em seguida perdeu. Depois de algumas alternativas entre lucros e perdas, separaram-se sem prejuízo. Retribuímos o jantar dos holandeses. Tornamos a jogar. Roger e o tenente reiniciaram a luta. Em suma, durante dias, ambos se encontraram, fosse no café, fosse a bordo, e experimentaram jogos de todo o tipo, voltando ao gamão, e sempre aumentando as apostas, a ponto de jogarem partidas de 25 napoleões. Representava uma enorme quantia para oficiais como nós; mais de dois meses de soldo. Ao cabo de 1 semana Roger perdera todo o dinheiro que possuía, e mais três ou quatro mil francos que pedira emprestado aqui e ali.

Já terão desconfiado, sem dúvida, que Roger e Gabriela haviam acabado por fazer vida comum e bolsa comum: isto é, Roger, que não havia muito recebera uma quantia avultada, contribuía para as despesas do casal numa proporção 10 ou 20 vezes maior que a atriz. Porém, considerava o acervo como pertencendo principalmente à amante e só reservara cinqüenta napoleões para as suas despesas particulares. mas fora obrigado a recorrer àquela reserva para continuar a jogar. Gabriela não fizera a menor observação.

O dinheiro das despesas do casal tomou o caminho já seguido pelo dinheiro dos gastos particulares. Chegou o momento em que Roger se viu obrigado a arriscar seus últimos 25 napoleões. Aplicou-se tremendamente no jogo; e, assim sendo, a partida foi longa e disputada. Em dado momento, só restou a Roger, que empunhava o copo de dados, uma última oportunidade para ganhar: creio que lhe seriam precisos 6 e 4. A noite avançara. O holandês parecia fadigado e entorpecido; além disso, bebera muito ponche. Roger era o único que se conservava alerta e presa do mais violento desespero. Tremia ao lançar os dados. Atirou-os com tanta força que com a sacudidela uma vela caiu no chão. O holandês primeiro voltou a cabeça na direção da vela, que acabara de salpicar de cera a sua calça nova, e depois olhou para os dados: marcavam 6 e 4. Roger, pálido como a morte, recebeu os 25 napoleões. Continuaram a jogar. A sorte voltou-se para meu amigo que, contudo, cometia descuidos sobre descuidos, como se quisesse perder. O tenente holandês obstinou-se, dobrou, decuplou as paradas; continuava a perder. Creio vê-lo ainda: era louro, alto, fleumático, e seu rosto parecia de cera. Finalmente se levantou, depois de ter perdido 40 mil francos; pagou-os sem que sua fisionomia deixasse transparecer a mínima emoção.

Roger disse-lhe

- O nosso jogo desta noite fica sem efeito; o senhor estava dormindo, não quero seu dinheiro.
Respondeu-lhe o fleumático holandês:

- O senhor está gracejando: joguei muito bem, mas as cartas estavam contra mim. Tenho a certeza de que ainda ganharei, obrigando-o a restituir tudo quanto obteve hoje. Boa noite!

E retirou-se.

No dia seguinte soubemos que, desesperado com o prejuízo sofrido, depois de ter bebido uma tigela de ponche, ele estourara os miolos, no quarto.

Os 40 mil francos ganhos por Roger estavam espalhados sobre a mesa e Gabriela contemplava-os com um sorriso satisfeito:

- Estamos muito ricos. Que faremos com todo este dinheiro?

Roger nada respondeu; ficara como que estonteado depois da morte do holandês.

- Precisamos fazer uma porção de loucuras; - continuou Gabriela – dinheiro ganho tão facilmente, também deve ser gasto facilmente. Compremos uma caleça e façamos pouco do Prefeito Marítimo e sua mulher. Quero diamantes, casimira. Pede licença e vamos a Paris; aqui nunca conseguiremos gastar tanto dinheiro!

Deteve-se para observar Roger que, olhos cravados no soalho, cabeça apoiada à mão, não a ouvira, e parecia revolver na mente sinistros pensamentos.

- Que tens Roger? – indagou ela, apoiando a mão no ombro do rapaz. – Acho que estás amuado comigo; não consigo arrancar-te uma única palavra.

- Sinto-me muito infeliz – disse ele afinal, soltando um suspiro abafado.

- Infeliz! Deus me perdoe, estarias com remorsos por teres depenado aquele mynheer?

Ele ergueu a cabeça e fitou-a com olhos esgazeados.

- Que importa!... – prosseguiu ela – que importa que ele tenha levado a coisa ao trágico e estourasse os miolos? Não lamento os jogadores que perdem: e com toda certeza o dinheiro está bem melhor entre nossas mãos do que nas suas; ele o teria gasto bebendo e fumando enquanto que nós vamos fazer um milhão de extravagâncias, cada uma mais alinhada que a outra.
Roger passeava pelo quarto, a cabeça inclinada sobre o peito, os olhos rasos de lágrimas. Se o sr o visse, ter-se-ia apiedado dele.

Gabriela observou:

- Sabes que se não fosse conhecida tua sensibilidade, muita gente poderia acreditar que trapaceaste?

- E se fosse verdade? – indagou ele com voz surda.

- Ora! – respondeu ela, sorrindo – não és bastante inteligente para trapaceares no jogo.

- Sim, trapaceei; trapaceei como um canalha que sou.

Ela compreendeu que Roger falava a verdade, por causa da emoção com que se expressava. Sentou-se num canapé e permaneceu algum tempo em silêncio.

- Preferiria – disse finalmente – que a trapacear no jogo tivesses matado dez homens.

Houve um silêncio mortal, que durou meia hora. Estavam ambos sentados no sofá e não se olharam uma única vez. Roger foi o primeiro a levantar-se e deu boa noite à amante com voz bastante calma.

- Boa noite! – respondeu ela em tom seco e frio.

Roger disse-me mais tarde que se teria matado no mesmo dia, caso não receasse que seus companheiros adivinhassem a causa daquele suicídio. Não queria desonrar a própria memória.
No dia seguinte, Gabriela mostrou-se alegre como de costume; dir-se-ia que tivesse esquecido a confidência da véspera. Quanto a Roger, tornara-se sombrio, ríspido, mal saía do quarto, evitava os amigos e muitas vezes passava dias inteiros sem dirigir a palavra à amante. Eu atribuía sua tristeza a uma sensibilidade louvável, mas excessiva, e tentei por várias vezes consolá-lo; mas ele me desconcertava, afetando uma grande indiferença pelo seu infeliz parceiro. Certo dia, chegou mesmo a atacar violentamente a nação holandesa e sustentou que não havia na Holanda um único homem honesto. Entretanto, secretamente, se informava sobre a família do tenente holandês; mas ninguém conseguia dar-lhe qualquer notícia a respeito.

Seis semanas depois da infortunada partida de gamão, Roger encontrou em casa de Gabriela um bilhete escrito por um guarda-marinha no qual este parecia agradecer-lhe gentilezas recebidas. Gabriela era a própria desordem, e o bilhete em questão fora deixado sobre a lareira. Não sei se fora infiel, mas Roger acreditou-o, e teve um terrível acesso de cólera. Cobriu de injúrias a orgulhosa atriz; e, violento como era, não sei como não lhe bateu. Disse-lhe:

- Sem dúvida esse peralvilho te deu muito dinheiro? É a única coisa que amas e concederias teus favores ao mais sujo dos nossos marinheiros caso ele tivesse com que os pagar.

- Por que não? – respondeu a atriz. – Sim, eu permitiria que um marinho me pagasse, mas... não o roubaria.

Roger soltou um grito de raiva. Puxou o punhal, trêmulo e por um momento fitou Gabriela com olhos desvairados; depois, reunindo as suas forças, atirou a arma aos pés da moça e fugiu do apartamento para não ceder à tentação que o assaltara.

Era bem tarde, quando nessa mesma noite, passei pelo seu alojamento e, vendo a luz acesa, entrei para pedir-lhe um livro emprestado. Encontrei-o muito entretido em escrever. Não se moveu e mal pareceu perceber minha presença. Sentei-me junto à secretária e fitei-o: seus traços estavam de tal forma alterados que qualquer outra pessoa, a não ser eu, dificilmente o reconheceria. De repente, avistei sobre a escrivaninha uma carta já lacrada, e que me era dirigida. Apressei-me em abri-la. Roger comunicava-me que ia pôr fim aos seus dias, e delegava-me diversos encargos. Enquanto eu lia, ele continuava a escrever sem se preocupar comigo: era a Gabriela que dava adeus... Bem imagina qual foi a minha surpresa e tudo quanto devo ter-lhe dito, perturbado como me deixara a sua decisão.

- Será possível? Queres matar-te, tu que és tão feliz?

- Meu amigo – disse-me ele, lacrando a carta – de nada sabes. Não me conheces, sou um velhaco; sou tão desprezível que uma mulher da vida me insulta; e tão bem sinto minha baixeza que não me atrevo a bater-lhe.

Então me contou a história da partida de gamão, e o resto o senhor já sabe. Ouvindo-o, senti-me pelo menos tão emocionado quanto ele; não sabia o que lhe dizer; tinha lágrimas nos olhos, mas não conseguia falar. Enfim, ocorreu-me a idéia de fazer-lhe ver que não devia censurar-se por haver voluntariamente causado a ruína do holandês, a quem, afinal, com a sua... trapaça... só fizera perder 25 napoleões.

- Ora! – exclamou ele com amarga ironia – sou um pequeno ladrão, e não um grande. Eu que era tão ambicioso! Não passar de um pequeno velhaco!

E soltou uma gargalhada.

Desmanchei-me em lágrimas.

De repente, abriu-se a porta. Uma mulher entrou e precipitou-se nos seus braços: era Gabriela.

- Perdoa-me – disse-lhe, cingindo-o estreitamente – perdoa-me. Amo unicamente a ti, bem o sinto. Amo-te mais agora. Se quiseres, roubarei, já roubei... Sim, já roubei, roubei um relógio de ouro... Que poderia fazer de pior?

Roger meneou a cabeça com incredulidade; mas seu rosto como que se aclarou.

- Não, minha pobre menina – respondeu – é absolutamente necessário que me mate. Sofro demais, não posso suportar a dor que me punge.

- Bem, se queres morrer, morrerei contigo! Sem ti, que me importa a vida! Sou corajosa, já atirei com espingardas; matar-me-ei tão bem quanto outra qualquer. Além disso, já representei tragédias, estou acostumada.

Tinha lagrimas dos olhos ao falar, mas aquela última idéia fê-la sorrir, e o próprio Roger deixou escapar um sorriso.

- Estás rindo, meu oficial! – exclamou ela, batendo as mãos e beijando-o – não te matarás!

Continuava a beijá-lo, ora chorando, ora rindo-se, ora praguejando. Entretanto, apossara-se das pistolas e do punhal de Roger. Disse-lhe:

- Meu querido, tens uma amante que um amigo que te querem. Acredita-me, podes ainda desfrutar alguma felicidade neste mundo.

Saí, depois de abraçá-lo, e deixei-o com Gabriela.

Creio que só teríamos conseguido protelar seu funesto projeto, caso não tivesse recebido do Ministro ordens para partir, como primeiro-tenente, a bordo de uma fragata destinada a cruzar o oceano Índico, depois de ter passado através da esquadra inglesa que bloqueava o porto. Era uma expedição arriscada. Fiz compreender ao meu amigo que seria preferível morrer gloriosamente, vitimado por uma bala inglesa, a pôr fim aos seus dias com suas próprias mãos, sem nobreza e sem proveito para a pátria. Ele prometeu viver. Distribuiu a metade dos 40 mil francos pelos marinheiros estropiados ou pelas viúvas e filhos de marinheiros. Entregou o restante a Gabriela, que jurou que só os gastaria em boas obras. Pretendia cumprir a palavra,pobre moça! Mas seus impulsos eram de curta duração. Soube mais tarde que deu aos pobres alguns milhares de francos. Comprou trapos com o resto.

Vagamos lentamente rumo aos mares da Índia, embaraçados por ventos contrários e por manobras infelizes do nosso capitão, cuja imperícia multiplicava os perigos da empresa. Ora tocados por forças superiores, ora perseguindo navios mercantes, não passávamos um único dia sem uma nova aventura. Mas nem a vida arriscada que levávamos, nem as fadigas do serviço conseguiram distrair Roger dos tristes pensamentos que o perseguiam. Ele, que já fora considerado o oficial mais ativo e mais brilhante do nosso porto, agora de limitava apenas a cumprir sua obrigação. Logo após terminar o serviço, fechava-se no quarto, sem livros, sem papel; o infeliz passava horas inteiras deitado no catre, sem nem mesmo conseguir dormir.

Certo dia, observando-lhe o abatimento, achei acertado adverti-lo.

- Com os diabos! Meu caro, afliges-te por pouco. Escamoteaste 25 napoleões a um holandês obeso, bem! – sentes remorsos por um milhão. Ora, quando eras amante da esposa do prefeito de... não sentias remorsos? Entretanto, ela valia mais do que 25 napoleões.

Voltou-se ao colchão, sem me responder. Prossegui:

- Afinal, teu crime, já que insistes em dizer que é um crime, tinha um motivo honroso, e vinha de uma alma elevada.

Ele virou a cabeça e fitou-me com irritação.

- É verdade – continuei – pois se tivesses perdido, que aconteceria a Gabriela? Pobre moça, teria vendido a última camisa para ajudar-te. Se perdesses, ficarias na miséria... Foi por ela, foi por amor a ela que trapaceaste. Há pessoas que matam por amor... ou se matam... Tu, meu querido Roger, fizeste mais. Para um homem da nossa fibra, há mais coragem em... roubar, para falar claro, do que matar-se.

- Talvez – disse o capitão, interrompendo a narrativa – agora eu lhe pareça ridículo. Asseguro-lhe, porém, que a minha amizade por Roger conferia-me naquele momento uma eloqüência de que não disponho; e que, o diabo me leve, ao assim lhe falar, fazia-o de boa-fé e acreditava em tudo o que dizia. Ah! naquele tempo eu era jovem!

Roger permaneceu algum tempo calado; depois me estendeu a mão, e parecendo fazer um grande esforço para dominar a emoção, disse-me:

- Meu amigo, julgas-me melhor do que sou. Sou um ladrão, covarde. Quando trapaceei com aquele holandês, só pensava em ganhar 25 napoleões, mais nada. Não pensava em Gabriela e aí está por que me desprezo... Eu, avaliar minha honra em menos de 25 napoleões!... Que baixeza! Sim, seria feliz se pudesse dizer a mim mesmo: “Roubei para tirar Gabriela da miséria... Não!... Não pensava nela... naquele momento não me sentia apaixonado... Era um jogador... era um ladrão... Roubei dinheiro para ficar com ele... e de tal maneira essa ação me embruteceu, me aviltou, que agora não sinto mais coragem nem amor... vivo e não penso mais em Gabriela... sou um homem acabado.

Parecia-me tão infeliz que se me tivesse pedido minhas pistolas para matar-se, creio que as teria entregue.

Uma determinada sexta-feira, dia de mau augúrio, divisamos uma grande fragata inglesa, Alceste, que começou a perseguir-nos. Possuía 58 canhões e nós só 38. Demos todo o pano para fugir; mas tinha maior velocidade e aproximava-se de momento a momento. Era evidente que antes da noite seríamos obrigados a entrar numa luta desigual. Nosso capitão chamou Roger ao seu camarote, onde ficaram deliberando um bom quarto de hora. Roger tornou a subir à coberta, tomou-me pelo braço e levou-me à parte. Então me disse:

- Daqui a 2 horas, o caso estará resolvido. Esse pobre homem que se agita no castelo de popa, perdeu a cabeça. Só tinha dois partidos a tomar: o primeiro, mais honroso, seria deixar o inimigo aproximar-se, depois abordá-lo energicamente, lançando a bordo uma centena de rapazes resolutos; o outro partido, que não seria mau, apenas um tanto covarde, seria aliviar-nos, atirando ao mar uma parte dos nossos canhões. Então poderíamos contornar de muito perto as costas da África, que divisamos ao longe, a bombordo. O inglês, receoso de encalhar, seria obrigado a permitir que fugíssemos. Nosso... capitão, porém, não é nem covarde, nem herói; vai deixar que sejamos destruídos de longe, a tiros de canhão e, depois de algumas horas de combate, sem dúvida baixará honrosamente o pavilhão. Tanto pior para ti; esperam-te os pontões de Portsmouth. Quanto a mim, não pretendo vê-los.

- Talvez nossos primeiros tiros de canhão, acertando no alvo, causem ao inimigo avarias sérias para obrigá-lo a interromper a caça.

- Escuta, não quero ser feito prisioneiro, prefiro que me matem, estou em tempo de acabar comigo. Se por desgraça apenas ficar ferido, dá-me tua palavra de honra que me atirarás ao mar.
É o leito onde deve morrer um bom marinheiro como sou.

- Que loucura! – exclamei. – E que incumbência me dás!

- Cumprirás um dever de bom amigo. Bem sabes que é preciso que eu morra. Só na esperança de ser morto é que consenti em não me matar. Promete-me, vamos; se recusares, vou pedir ao contramestre que me preste esse serviço, e garanto que não se negará a fazê-lo.

Disse-lhe, depois de ter refletido:

- Dou minha palavra que farei o que desejas, conquanto sejas mortalmente ferido, sem esperanças de cura. Nesse caso, consinto em poupar-te sofrimentos.

- Serei mortalmente ferido, ou então morto.

Estendeu-me a mão que apertei calorosamente. Daí por diante mostrou-se mais calmo, e uma certa alegria marcial chegou mesmo a iluminar-lhe o rosto.

Eram cerca de 3 horas da tarde quando os canhões de caça do inimigo começaram a atingir nossos massames. Então ferramos uma parte de nossas velas; apresentávamos o costado ao Alceste, e sustentamos um prolongado tiroteio contra os ingleses, que responderam vigorosamente. Depois de uma hora de luta, nosso capitão que não tomava uma decisão acertada, quis tentar a abordagem. Já tínhamos muitos mortos e feridos, e o restante da tripulação perdera o entusiasmo. No momento em que abríamos as velas para aproximar-nos do inglês, o mastro principal que mal se agüentava, caiu com um tremendo estrépito. O Alceste aproveitou a confusão do acidente. Passou junto a nossa popa, ponto um lado inteiro da nossa fragata ao alcance dos canos da sua artilharia, que a varou de proa a popa; só podíamos opor-lhe dois pequenos canhões. Encontrava-me junto a Roger, ocupado em mandar cortar as cordas que retinham o mastro derrubado. De súbito, sinto que me aperta o braço com força; volto-me e vejo-o caído no convés, todo coberto de sangue. Acabava de receber um tiro de metralha no ventre.

O capitão correu para ele:

- Que devo fazer, tenente? – indagou.

- Deve fixar o pavilhão neste toco de mastro e deixar-nos afundar.

Imediatamente o capitão se afastou, pouco satisfeito com o conselho.

Então Roger falou:

- Não te esqueças da tua promessa.

- Não é nada, podes sarar.

- Atira-me por cima da amurada! – exclamou, praguejando horrivelmente, e puxando a aba do meu casaco – bem vês que não escaparei; atira-me ao mar, não quero vê-los levar a nossa bandeira.

Dois marinheiros aproximaram-se a fim de carregá-lo para o fundo do porão.

- Voltem para os canhões, patifes! – ordenou – Disparem a metralhadora, apontem para a coberta, e tu, se faltares à tua palavra, eu te amaldiçoarei e te considerarei o mais covarde e vil dos homens!

O ferimento que recebera era evidentemente mortal. Vi o capitão chamar um aspirante e dar-lhe ordens para trazer a nossa bandeira.

- Dá-me um aperto de mão – disse Roger.

No próprio momento em que trouxeram a nossa bandeira...

- Capitão, uma baleia a bombordo! – interrompeu um guarda-marinha, correndo ao nosso encontro.
- Uma baleia! – exclamou o capitão, cheio de alegria e cortando a narrativa. – Depressa, chalupas ao mar! O iole ao mar! Todas as chalupas ao mar! Arpões,cordas! Etc., etc.

Não consegui saber como morreu o pobre tenente Roger.

Fonte:
http://victorian.fortunecity.com/postmodern/135/