sexta-feira, 27 de junho de 2008

Zé da Luz (Brasi Caboco)

O qui é Brasí Caboco?
É um Brasi diferente
do Brasí das capitá.
É um Brasi brasilêro,
sem mistura de instrangero,
um Brasi nacioná!

É o Brasi qui não veste
liforme de gazimira,
camisa de peito duro,
com butuadura de ouro...
Brasi caboco só veste,
camisa grossa de lista,
carça de brim da “polista”
gibão e chapéu de coro!

Brasi caboco num come
assentado nos banquete,
misturado cum os home
de casaca e anelão...
Brasi caboco só come
o bode seco, o feijão,
e as veiz uma panelada,
um pirão de carne verde,
nos dias da inleição
quando vai servi de iscada
prus home de posição.

Brasi caboco num sabe
falá ingrês nem francês,
munto meno o português
qui os outros fala imprestado...
Brasi caboco num inscreve;
munto má assina o nome
pra votar pru mode os home
Sê gunverno e diputado
Mas porém. Brasi caboco,
é um Brasi brasileiro,
sem mistura de instrangero
Um Brasi nacioná!

É o Brasi sertanejo
dos coco, das imbolada,
dos samba, dos vialejo,
zabumba e caracaxá!
É o Brasi das vaquejada,
do aboio dos vaquero,
do arranco das boiada
nos fechado ou tabulero!
É o Brasi das caboca
qui tem os óio feiticero,
qui tem a boca incarnada,
como fruta de cardoro
quando ela nasce alejada!

É o Brasi das promessa
nas noite de São João!
dos carro de boi cantano
pela boca dos cocão.

É o Brasi das caboca
qui cum sabença gunverna,
vinte e cinco pá-de-birro
cum a munfada entre as perna!
Brasi das briga de galo!
do jogo de “sôco-tôco”!
É o Brasi dos caboco
amansadô de cavalo!

É o Brasi dos cantadô,
desses caboco afamado,
qui nos verso improvisado,
sirrindo, cantáro o amô;
cantando choraro as mágua:
Brasi de Pelino Guedes,
de Inácio da Catingueira,
de Umbelino do Texera
e Romano de Mãe-d’água!

É o Brasi das caboca,
qui de noite se dibruça,
machucando o peito virge
no batente das jinela...
Vendo, os caboco pachola
qui geme, chora e soluça
nas cordas de uma viola,
ruendo paxão pru ela!

É esse o Brasi caboco.
Um Brasi bem brasilero,
sem mistura de instrangêro
Um Brasi nacioná!
Brasi, qui foi, eu tô certo
argum dia discuberto,
pru Pêdo Arves Cabrá.
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Zé da Luz
Severino de Andrade Silva, nasceu em Itabaiana, PB, em 29/03/1904 e faleceu no Rio de Janeiro-RJ, em 12/02/1965. O trabalho de Zé da Luz é conhecido pela linguagem matuta presente em seus cordéis.

Fonte:
http://www.ablc.com.br/historia/hist_cordelistas.htm

quinta-feira, 26 de junho de 2008

Machado de Assis (Como se inventaram os almanaques)

Some-te, bibliógrafo! Não tenho nada contigo. Nem contigo, curioso de histórias poentas.

Sumam-se todos; o que vou contar interessa a outras pessoas menos especiais e muito menos aborrecidas. Vou dizer como se inventaram os almanaques.

Sabem que o Tempo é, desde que nasceu, um velho de barbas brancas. Os poetas não lhe dão outro nome: o velho Tempo. Ninguém o pintou de outra maneira. E como há quem tome liberdades com os velhos, uns batem-lhe na barriga (são os patuscos), outros chegam a desafiá-lo; outros lutam com ele, mas o diabo vence-os a todos; é de regra.

Entretanto, uma coisa é barba, outra é coração. As barbas podem ser velhas e os corações novos; e vice-versa: há corações velhos com barbas recentes. Não é regra, mas dá-se. Deu-se com o Tempo. Um dia o Tempo viu uma menina de quinze anos, bela como a tarde, risonha como a manhã, sossegada como a noite, um composto de graças raras e finas, e sentiu que alguma coisa lhe batia do lado esquerdo. Olhou para ela e as pancadas cresceram. Os olhos da menina, verdadeiros fogos, faziam arder os dele só com fitá-los.

— Que é isto? murmurou o velho.

E os beiços do Tempo entraram a tremer e o sangue andava mais depressa, como cavalo chicoteado, e todo ele era outro. Sentiu que era amor; mas olhou para o oceano, vasto espelho, e achou-se velho. Amaria aquela menina a um varão tão idoso? Deixou o mar, deixou a bela, e foi pensar na batalha de Salamina.

As batalhas velhas eram para ele como para nos os velhos sapatos. Que lhe importava Salamina? Repetiu-a de memória, e por desgraça dele, viu a mesma donzela entre os combatentes, ao lado de Temístocles. Dias depois trepou a um píncaro, o Chimborazo; desceu ao deserto de Sinai; morou no sol, morou na lua; em toda parte lhe aparecia a figura de bela menina de quinze anos. Afinal ousou ir ter com ela.

— Como te chamas, linda criatura? — Esperança é o meu nome. — Queres amar-me? — Tu estás carregado de anos, respondeu ela; eu estou na flor deles. O casamento é impossível. Como te chamas? — Não te importe o meu nome; basta saber que te posso dar todas as pérolas de Golconda...

— Adeus! — Os diamantes de Ofir...

— Adeus! — As rosas de Saarão...

— Adeus! Adeus! — As vinhas de Engaddi...

— Adeus! adeus! adeus! Tudo isso há de ser meu um dia; um dia breve ou longe, um dia...

Esperança fugiu. O Tempo ficou a olhar, calado, até que a perdeu de todo. Abriu a boca para amaldiçoá-la, mas as palavras que lhe saíam eram todas de bênção; quis cuspir no lugar em que a donzela pousara os pés, mas não pôde impedir-se de beijá-lo.

Foi por essa ocasião que lhe acudiu a idéia do almanaque. Não se usavam almanaques.

Vivia-se sem eles; negociava-se, adoecia-se, morria-se, sem se consultar tais livros.

Conhecia-se a marcha do sol e da lua; contavam-se os meses e os anos; era, ao cabo, a mesma coisa; mas não ficava escrito, não se numeravam anos e semanas, não se nomeavam dias nem meses, nada; tudo ia correndo, como passarada que não deixa vestígios no ar.

— Se eu achar um modo de trazer presente aos olhos os dias e os meses, e o reproduzir todos os anos, para que ela veja palpavelmente ir-se-lhe a mocidade...

Raciocínio de velho, mas tudo se perdoa ao amor, ainda quando ele brota de ruínas. O Tempo inventou o almanaque; compôs um simples livro, seco, sem margens, sem nada; tão-somente os dias, as semanas, os meses e os anos. Um dia, ao amanhecer, toda a terra viu cair do céu uma chuva de folhetos; creram a princípio que era geada de nova espécie, depois, vendo que não, correram todos assustados; afinal, um mais animoso pegou de um dos folhetos, outros fizeram a mesma coisa, leram e entenderam. O almanaque trazia a língua das cidades e dos campos em que caía. Assim toda a terra possuiu, na mesmo instante, os primeiros almanaques. Se muitos povos os não têm ainda hoje, se outros morreram sem os ler, é porque vieram depois dos acontecimentos que estou narrando. Naquela ocasião o dilúvio foi universal.

— Agora, sim, disse Esperança pegando no folheto que achou na horta; agora já me não engano nos dias das amigas. Irei jantar ou passar a noite com elas, marcando aqui nas folhas, com sinais de cor os dias escolhidos.

Todas tinham almanaques. Nem só elas, mas também as matronas, e os velhos e os rapazes, juízes, sacerdotes, comerciantes, governadores, fâmulos; era moda trazer o almanaque na algibeira. Um poeta compôs um poema atribuindo a invenção da obra às Estações, por ordem de seus pais, o Sol e a Lua; um astrônomo, ao contrário, provou que os almanaques eram destroços de um astro onde desde a origem dos séculos estavam escritas as línguas faladas na terra e provavelmente nos outros planetas. A explicação dos teólogos foi outra. Um grande físico entendeu que os almanaques eram obra da própria terra, cujas palavras, acumuladas no ar, formaram-se em ordem, imprimiram-se no próprio ar, convertido em folhas de papel, graças... Não continuou; tantas e tais eram as sentenças, que a de Esperança foi a mais aceita do povo.

- Eu creio que o almanaque é o almanaque, dizia ela rindo.

Quando chegou o fim do ano, toda a gente, que trazia o almanaque com mil cuidados, para consultá-lo no ano seguinte, ficou espantada de ver cair à noite outra chuva de almanaques. Toda a terra amanheceu alastrada deles; eram os do ano novo. Guardaram naturalmente os velhos. Ano findo, outro almanaque; assim foram eles vindo, até que Esperança contou vinte e cinco anos, ou, como então se dizia, vinte e cinco almanaques.

Nunca os dias pareceram correr tão depressa. Voavam as semanas, com elas os meses, e, mal o ano começava, estava logo findo. Esse efeito entristeceu a terra. A própria Esperança, vendo que os dias passavam tão velozes, e não achando marido, pareceu desanimada; mas foi só um instante. Nesse mesmo instante apareceu-lhe o Tempo.

— Aqui estou, não deixes que te chegue a velhice... Ama-me...

Esperança respondeu-lhe com duas gaifonas, e deixou-se estar solteira. Há de vir o noivo, pensou ela.

Olhando-se ao espelho, viu que mui pouco mudara. Os vinte e cinco almanaques quase lhe não apagaram a frescura dos quinze. Era a mesma linda e jovem Esperança. O velho Tempo, cada vez mais afogueado em paixão, ia deixando cair os almanaques, ano por ano, até que ela chegou aos trinta e daí aos trinta e cinco.

Eram já vinte almanaques; toda a gente começava a odiá-los, menos Esperança, que era a mesma menina das quinze primaveras. Trinta almanaques, quarenta, cinqüenta, sessenta, cem almanaques; velhices rápidas, mortes sobre mortes, recordações amargas e duras. A própria Esperança, indo ao espelho, descobriu um fio de cabelo branco e uma ruga.

— Uma ruga! Uma só! Outras vieram, à medida dos almanaques. Afinal a cabeça de Esperança ficou sendo um pico de neve, a cara um mapa de linhas. Só o coração era verde como acontecia ao Tempo; verdes ambos, eternamente verdes. Os almanaques iam sempre caindo. Um dia, o Tempo desceu a ver a bela Esperança; achou-a anciã, mas forte, com um perpétuo riso nos lábios.

— Ainda assim te amo, e te peço... disse ele.

Esperança abanou a cabeça; mas, logo depois, estendeu-lhe a mão.

— Vá lá, disse ela; ambos velhos, não será longo o consórcio.

— Pode ser indefinido.

— Como assim? O velho Tempo pegou da noiva e foi com ela para um espaço azul e sem termos, onde a alma de um deu à alma de outro o beijo da eternidade. Toda a criação estremeceu deliciosamente. A verdura dos corações ficou ainda mais verde.

Esperança, daí em diante, colaborou nos almanaques. Cada ano, em cada almanaque, atava Esperança uma fita verde. Então a tristeza dos almanaques era assim alegrada por ela; e nunca o Tempo dobrou uma semana que a esposa não pusesse um mistério na semana seguinte. Deste modo todas elas foram passando, vazias ou cheias, mas sempre acenando com alguma coisa que enchia a alma dos homens de paciência e de vida.

Assim as semanas, assim os meses, assim os anos. E choviam almanaques, muitos deles entremeados e adornados de figuras, de versos, de contos, de anedotas, de mil coisas recreativas. E choviam. E chovem. E hão de chover almanaques. O Tempo os imprime, Esperança os brocha; é toda a oficina da vida.

Fonte:
http://www.dominiopublico.gov.br

Fernando Sabino (A mulher do vizinho)

Contaram-me que na rua onde mora (ou morava) um conhecido e antipático general de nosso Exército morava (ou mora) também um sueco cujos filhos passavam o dia jogando futebol com bola de meia. Ora, às vezes acontecia cair a bola no carro do general e um dia o general acabou perdendo a paciência, pediu ao delegado do bairro para dar um jeito nos filhos do sueco.

O delegado resolveu passar uma chamada no homem, e intimou-o a comparecer à delegacia.

O sueco era tímido, meio descuidado no vestir e pelo aspecto não parecia ser um importante industrial, dono de grande fabrica de papel (ou coisa parecida), que realmente ele era. Obedecendo a ordem recebida, compareceu em companhia da mulher à delegacia e ouviu calado tudo o que o delegado tinha a dizer-lhe. O delegado tinha a dizer-lhe o seguinte:

— O senhor pensa que só porque o deixaram morar neste país pode logo ir fazendo o que quer? Nunca ouviu falar numa coisa chamada AUTORIDADES CONSTITUÍDAS? Não sabe que tem de conhecer as leis do país? Não sabe que existe uma coisa chamada EXÉRCITO BRASILEIRO que o senhor tem de respeitar? Que negócio é este? Então é ir chegando assim sem mais nem menos e fazendo o que bem entende, como se isso aqui fosse casa da sogra? Eu ensino o senhor a cumprir a lei, ali no duro: dura lex! Seus filhos são uns moleques e outra vez que eu souber que andaram incomodando o general, vai tudo em cana. Morou? Sei como tratar gringos feito o senhor.

Tudo isso com voz pausada, reclinado para trás, sob o olhar de aprovação do escrivão a um canto. O sueco pediu (com delicadeza) licença para se retirar. Foi então que a mulher do sueco interveio:

— Era tudo que o senhor tinha a dizer a meu marido?

O delegado apenas olhou-a espantado com o atrevimento.

— Pois então fique sabendo que eu também sei tratar tipos como o senhor. Meu marido não e gringo nem meus filhos são moleques. Se por acaso incomodaram o general ele que viesse falar comigo, pois o senhor também está nos incomodando. E fique sabendo que sou brasileira, sou prima de um major do Exército, sobrinha de um coronel, E FILHA DE UM GENERAL! Morou?

Estarrecido, o delegado só teve forças para engolir em seco e balbuciar humildemente:

— Da ativa, minha senhora?

E ante a confirmação, voltou-se para o escrivão, erguendo os braços desalentado:

— Da ativa, Motinha! Sai dessa...

Fonte:
"Fernando Sabino - Obra Reunida - Vol.01", Editora Nova Aguiar - Rio de Janeiro, 1996. in http://www.releituras.com/



Machado de Assis (Anetoda do Cabriolet)

- CABRIOLET está aí, sim senhor, dizia o preto que viera à matriz de S. José chamar o vigário para sacramentar dous moribundos.

A geração de hoje não viu a entrada e a saída do cabriolet no Rio de Janeiro. Também não saberá do tempo em que o cab e o tilbury vieram para o rol dos nossos veículos de praça ou particulares. O cab durou pouco. O tilbury, anterior aos dous, promete ir à destruição da cidade. Quando esta acabar e entrarem os cavadores de ruínas, achar-se-á um parado, com o cavalo e o cocheiro em ossos esperando o freguês do costume. A paciência será a mesma de hoje, por mais que chova, a melancolia maior, como quer que brilhe o sol, porque juntará a própria atual à do espectro dos tempos. O arqueólogo dirá cousas raras sobre os três esqueletos. O cabriolet não teve história; deixou apenas a anedota que vou dizer.

- Dous! exclamou o sacristão.

- Sim, senhor, dous, nhã Anunciada e nhô Pedrinho. Coitado de nhô Pedrinho! E nhã Anunciada, coitada! continuou o preto a gemer, andando de um lado para outro, aflito, fora de si.

Alguém que leia isto com a alma turva de dúvidas, é natural que pergunte se o preto sentia deveras, ou se queria picar a curiosidade do coadjutor e do sacristão. Eu estou que tudo se pode combinar neste mundo, como no outro. Creio que ele sentia deveras; não descreio que ansiasse por dizer alguma história terrível. Em todo caso, nem o coadjutor nem o sacristão lhe perguntavam nada.

Não é que o sacristão não fosse curioso. Em verdade, pouco mais era que isso. Trazia a paróquia de cor; sabia os nomes às devotas, a vida delas, a dos maridos e a dos pais, as prendas e os recursos de cada uma, e o que comiam, e o que bebiam, e o que diziam, os vestidos e as virtudes, os dotes das solteiras, o comportamento das casadas, as saudades das viúvas. Pesquisava tudo: nos intervalos ajudava a missa e o resto. Chamava-se João das Mercês, homem quarentão, pouca barba e grisalho, magro e meão.

"Que Pedrinho e que Anunciada serão esses?" dizia consigo, acompanhando o coadjutor.

Embora ardesse por sabê-los, a presença do coadjutor impediria qualquer pergunta. Este ia tão calado e pio, caminhando para a porta da igreja, que era força mostrar o mesmo silêncio e piedade que ele. Assim foram andando. O cabriolet esperava-os; o cocheiro desbarretou-se, os vizinhos e alguns passantes ajoelharam-se, enquanto o padre e o sacristão entravam e o veículo enfiava pela Rua da Misericórdia. O preto desandou o caminho a passo largo.

Que andem burros e pessoas na rua, e as nuvens no céu, se as há, e os pensamentos nas cabeças, se os têm. A do sacristão tinha-os vários e confusos. Não era acerca do Nosso- Pai, embora soubesse adorá-lo, nem da água benta e do hissope que levava; também não era acerca da hora, -- oito e quarto da noite, -- aliás, o céu estava claro e a lua ia aparecendo. O próprio cabriolet, que era novo na terra, e substituía neste caso a sege, esse mesmo veículo não ocupava o cérebro todo de João das Mercês, a não ser na parte que pegava com nhô Pedrinho e nhã Anunciada.

"Há de ser gente nova, ia pensando o sacristão, mas hóspede em alguma casa, decerto, porque não há casa vazia na praia, e o número é da do Comendador Brito. Parentes, serão? Que parentes, se nunca ouvi... ? Amigos, não sei; conhecidos, talvez, simples conhecidos. Mas então mandariam cabriolet? Este mesmo preto é novo na casa; há de ser escravo de um dos moribundos, ou de ambos." Era assim que João das Mercês ia cogitando, e não foi por muito tempo. O cabriolet parou à porta de um sobrado, justamente a casa do Comendador Brito, José Martins de Brito. Já havia algumas pessoas embaixo com velas, o padre e o sacristão apearam-se e subiram a escada, acompanhados do comendador. A esposa deste, no patamar, beijou o anel ao padre. Gente grande, crianças, escravos, um burburinho surdo, meia claridade, e os dous moribundos à espera, cada um no seu quarto, ao fundo.

Tudo se passou, como é de uso e regra, em tais ocasiões. Nhô Pedrinho foi absolvido e ungido, nhã Anunciada também, e o coadjutor despediu-se da casa para tornar à matriz com o sacristão. Este não se despediu do comendador sem lhe perguntar ao ouvido se os dous eram parentes seus. Não, não eram parentes, respondeu Brito; eram amigos de um sobrinho que vivia em Campinas; uma história terrível... Os olhos de João das Mercês escutaram arregaladamente estas duas palavras, e disseram, sem falar, que viriam ouvir o resto -- talvez naquela mesma noite. Tudo foi rápido, porque o padre descia a escada, era força ir com ele.

Foi tão curta a moda do cabriolet que este provavelmente não levou outro padre a moribundos. Ficou-lhe a anedota, que vou acabar já, tão escassa foi ela, uma anedota de nada. Não importa. Qualquer que fosse o tamanho ou a importância, era sempre uma fatia de vida para o sacristão, que ajudou o padre a guardar o pão sagrado, a despir a sobrepeliz, e a fazer tudo mais, antes de se despedir e sair. Saiu, enfim, a pé, rua acima, praia fora, até parar à porta do comendador.

Em caminho foi evocando toda a vida daquele homem, antes e depois da comenda.

Compôs o negócio, que era fornecimento de navios, creio eu, a família, as festas dadas, os cargos paroquiais, comerciais e eleitorais, e daqui aos boatos e anedotas não houve mais que um passo ou dois. A grande memória de João das Mercês guardava todas as cousas, máximas e mínimas, com tal nitidez que pareciam da véspera, e tão completas que nem o próprio objeto delas era capaz de as repetir iguais. Sabia-as como o padrenosso, isto é sem pensar nas palavras; ele rezava tal qual comia, mastigando a oração, que lhe saía dos queixos sem sentir. Se a regra mandasse rezar três dúzias de padrenossos seguidamente, João das Mercês os diria sem contar. Tal era com as vidas alheias; amava sabê-las, pesquisava-as, decorava-as, e nunca mais lhe saíam da memória.

Na paróquia todos lhe queriam bem, porque ele não enredava nem maldizia. Tinha o amor da arte pela arte. Muita vez nem era preciso perguntar nada. José dizia-lhe a vida de Antônio e Antônio a de José. O que ele fazia era ratificar ou retificar um com outro, e os dous com Sancho, Sancho com Martinho, e vice-versa, todos com todos. Assim é que enchia as horas vagas, que eram muitas. Alguma vez, à própria missa, recordava uma anedota da véspera, e, a princípio, pedia perdão a Deus; deixou de lho pedir quando refletiu que não falhava uma só palavra ou gesto do santo sacrifício, tão consubstanciados os trazia em si. A anedota que então revivia por instantes era como a andorinha que atravessa uma paisagem. A paisagem fica sendo a mesma, e a água, se há água, murmura o mesmo som. Esta comparação, que era dele, valia mais do que ele pensava, porque a andorinha, ainda voando, faz parte da paisagem, e a anedota fazia nele parte da pessoa, era um dos seus atos de viver.

Quando chegou à casa do comendador, tinha desfiado o rosário da vida deste, e entrou com o pé direito para não sair mal. Não pensou em sair cedo, por mais aflita que fosse a ocasião, e nisto a fortuna o ajudou. Brito estava na sala da frente, em conversa com a mulher, quando lhe vieram dizer que João das Mercês perguntava pelo estado dos moribundos. A esposa retirou-se da sala, o sacristão entrou pedindo desculpas e dizendo que era por pouco tempo; ia passando e lembrara-se de saber se os enfermos tinham ido para o céu, -- ou se ainda eram deste mundo. Tudo o que dissesse respeito ao comendador seria ouvido por ele com interesse.

- Não morreram, nem sei se escaparão, quando menos, ela creio que morrerá, concluiu Brito.

- Parecem bem mal.

- Ela, principalmente; também é a que mais padece da febre. A febre os pegou aqui em nossa casa, logo que chegaram de Campinas, há dias.

- Já estavam aqui? perguntou o sacristão, pasmado de o não saber.

- Já; chegaram há quinze dias, -- ou quatorze. Vieram com o meu sobrinho Carlos e aqui apanharam a doença...

Brito interrompeu o que ia dizendo; assim pareceu ao sacristão, que pôs no semblante toda a expressão de pessoa que espera o resto. Entretanto, como o outro estivesse a morder os beiços e a olhar para as paredes, não viu o gesto de espera, e ambos se detiveram calados. Brito acabou andando ao longo da sala, enquanto João das Mercês dizia consigo que havia alguma cousa mais que febre. A primeira idéia que lhe acudiu foi se os médicos teriam errado na doença ou no remédio, também pensou que podia ser outro mal escondido, a que deram o nome de febre para encobrir a verdade. Ia acompanhando com os olhos o comendador, enquanto este andava e desandava a sala toda, apagando os passos para não aborrecer mais os que estavam dentro. De lá vinha algum murmúrio de conversação, chamado, recado, porta que se abria ou fechava. Tudo isso era cousa nenhuma para quem tivesse outro cuidado, mas o nosso sacristão já agora não tinha mais que saber o que não sabia. Quando menos, a família dos enfermos, a posição, o atual estado, alguma página da vida deles, tudo era conhecer algo, por mais arredado que fosse da paróquia.

- Ah! exclamou Brito estacando o passo.

Parecia haver nele o desejo impaciente de referir um caso, -- a "história terrível", que anunciara ao sacristão, pouco antes; mas nem este ousava pedi-la nem aquele dizê-la, e o comendador pegou a andar outra vez.

João das Mercês sentou-se. Viu bem que em tal situação cumpria despedir-se com boas palavras de esperança ou de conforto, e voltar no dia seguinte; preferiu sentar-se e aguardar. Não viu na cara do outro nenhum sinal de reprovação do seu gesto; ao contrário, ele parou defronte e suspirou com grande cansaço.

- Triste, sim, triste, concordou João das Mercês. Boas pessoas, não? -- Iam casar.

- Casar? Noivos um do outro? Brito confirmou de cabeça. A nota era melancólica, mas não havia sinal da história terrível anunciada, e o sacristão esperou por ela. Observou consigo que era a primeira vez que ouvia alguma cousa de gente que absolutamente não conhecia. As caras, vistas há pouco eram o único sinal dessas pessoas. Nem por isso se sentia menos curioso. Iam casar... Podia ser que a história terrível fosse isso mesmo. Em verdade, atacados de um mal na véspera de um bem, o mal devia ser terrível. Noivos e moribundos...

Vieram trazer recado ao dono da casa; este pediu licença ao sacristão, tão depressa que nem deu tempo a que ele se despedisse e saísse. Correu para dentro, e lá ficou cinqüenta minutos. Ao cabo, chegou à sala um pranto sufocado; logo após, tornou o comendador.

- Que lhe dizia eu, há pouco? Quando menos, ela ia morrer; morreu.

Brito disse isto sem lágrimas e quase sem tristeza. Conhecia a defunta de pouco tempo.

As lágrimas, segundo referiu, eram do sobrinho de Campinas e de uma parenta da defunta, que morava em Mata-porcos. Daí a supor que o sobrinho do comendador gostasse da noiva do moribundo foi um instante para o sacristão, mas não se lhe pegou a idéia por muito tempo; não era forçoso, e depois se ele próprio os acompanhara...

Talvez fosse padrinho de casamento. Quis saber, e era natural, -- o nome da defunta. O dono da casa, -- ou por não querer dar-lho, -- ou porque outra idéia lhe tomasse agora a cabeça, -- não declarou o nome da noiva, nem do noivo. Ambas as causas seriam.

- Iam casar...

- Deus a receberá em sua santa guarda, e a ele também, se vier a expirar, disse o sacristão cheio de melancolia.

E esta palavra bastou a arrancar metade do segredo que parece ansiava por sair da boca do fornecedor de navios. Quando João das Mercês lhe viu a expressão dos olhos, o gesto com que o levou janela, e o pedido que lhe fez de jurar,-- jurou por todas as almas dos seus que ouviria e calaria tudo. Nem era homem de assoalhar as confidências alheias, mormente as de pessoas gradas e honradas como era o comendador. Ao que este se deu por satisfeito e animado, e então lhe confiou a primeira metade do segredo, a qual era que os dous noivos, criados juntos, vinham casar aqui quando souberam, pela parenta de Mata-porcos, uma notícia abominável...

- E foi...? precipitou-se em dizer João das Mercês, sentindo alguma hesitação no comendador.

- Que eram irmãos.

- Irmãos como? Irmãos de verdade? -- De verdade; irmãos por parte de mãe. O pai é que não era o mesmo. A parenta não lhes disse tudo nem claro, mas jurou que era assim, e eles ficaram fulminados durante um dia ou mais...

João das Mercês não ficou menos espantado que eles; dispôs-se a não sair dali sem saber o resto. Ouviu dez horas, ouviria todas as demais da noite, velaria o cadáver de um ou de ambos, uma vez que pudesse juntar mais esta página às outras da paróquia, embora não fosse da paróquia.

- E vamos, vamos, foi então que a febre os tomou...? Brito cerrou os dentes para não dizer mais nada. Como, porém, o viessem chamar de dentro, acudiu depressa, e meia hora depois estava de volta, com a nova do segundo passamento. O choro, agora mais fraco, posto que mais esperado, não havendo já de quem o esconder, trouxera a notícia ao sacristão.

- Lá se foi o outro, o irmão, o noivo. . . Que Deus lhes perdoe! Saiba agora tudo, meu amigo. Saiba que eles se queriam tanto que alguns dias depois de conhecido o impedimento natural e canônico do consórcio, pegaram de si e, fiados em serem apenas meios irmãos e não irmãos inteiros, meteram-se em um cabriolet e fugiram de casa.

Dado logo o alarma, alcançamos pegar o cabriolet em caminho da Cidade Nova, e eles ficaram tão pungidos e vexados da captura que adoeceram de febre e acabam de morrer.

Não se pode escrever o que sentiu o sacristão, ouvindo-lhe este caso. Guardou-o por algum tempo, com dificuldade. Soube os nomes das pessoas pelo obituário dos jornais, e combinou as circunstâncias ouvidas ao comendador com outras. Enfim, sem se ter por indiscreto, espalhou a história, só com esconder os nomes e contá-la a um amigo, que a passou a outro, este a outros, e todos a todos. Fez mais; meteu-se-lhe em cabeça que o cabriolet da fuga podia ser o mesmo dos últimos sacramentos; foi à cocheira, conversou familiarmente com um empregado, e descobriu que sim. Donde veio chamar-se a esta página a "anedota do cabriolet."

Fonte:
http://www.dominiopublico.gov.br

Chico Anysio (1931)

Francisco Anysio de Oliveira Paula Filho nasceu em 12 de abril de 1931, na cidade de Maranguape (CE).

Com 8 anos, mudou-se com a família para o Rio de Janeiro (RJ).

Aos 16 anos de idade foi classificado em sétimo lugar num concurso para rádio-atores na Rádio Guanabara, daquela cidade. Nesta difusora foi locutor da madrugada, galã de rádio-novela, narrador e repórter de campo.

Em 1950 passou a trabalhar na Rádio Mayrinck Veiga, escrevendo programas. Trabalhou na Rádio Clube de Pernambuco, do Recife, em seguida, na Rádio Clube do Brasil e na Rádio Mayrinck Veiga, escrevendo programas humorísticos.

Escreveu roteiros para filmes da Atlântida.

Estreou na TV, em 1957, no programa Noite de Gala, ao lado de Sérgio Porto e Henrique Pongetti, na TV-Rio. Trabalhou, depois na Rádio Tupi e fixou-se, até hoje, na Rede Globo de Televisão.

Sua galeria conta com mais de duzentos tipos consagrados na televisão, como o Professor Raimundo; Alberto Roberto; Coronel Limoeiro; Qüem-Qüem; Bozó; Painho; Paulo Brasilis; Pantaleão; Bento Carneiro; Pedro Bó; Nazareno; Coalhada e tantos outros mais.

Tem diversos livros publicados, entre eles:
O batizado da vaca (1972),
O enterro do anão (1973),
É mentira, Terta? (1973),
A curva do calombo (1974),
Teje preso (1975),
Carapau (1979),
A borboleta cinzenta (1985),
Feijoada no Copa (1987),
O tocador de tuba (1990),
Sou Francisco (1992,
Jesuíno, o profeta (1993),
O canalha (2001),
Chico Anysio em Salão de Sinuca (2004), e
Armazém do Chico – Histórias que vi, ouvi e vivi (2005).

Gravou um CD com poesias de Ascenso Ferreira pela Luz da Cidade. (http://www.luzdacidade.com.br/pf011.htm

Fez, também, letras para inúmeras músicas, dentre as quais destacamos:
A fia de Chico Brito
A turma
Ciranda
De quem é essa morena
O poste da rua Jorge Lima
Rancho da Praça Onze
Tristeza mora comigo
Zéfa Cangaceira.

Interpretou o pai da atriz Sônia Braga em “Tieta do Agreste”, de Cacá Diegues, filmado no ano de 1996.

Chico Anysio, que há alguns anos dedica-se à pintura, tem exposto seus quadros em diversas galerias no país.

Fonte
http://www.releituras.com/

Chico Anysio (Silêncio, hospital)

Nos primeiros tempos de casamento ele aparentava uma saúde de ferro mas, de uns anos pra cá, mostrava-se tão frágil, tão suscetível às doenças, que Dona Belinha, sua esposa, intranqüilizava-se cada vez mais.

— Qualquer coisinha o Pirilo hospitaliza-se — choramingava às amigas. — Tão frágil, tão doentinho...

E assim era. Por um simples sintoma de gripe ou resfriado, o Pirilo pegava um pijama, escova de dentes, pente e chinelos, metia-os numa maleta branca e hospitalizava-se.

— O que é que você tem, Pirilo? — perguntava a esposa preocupada, vendo o marido fazer a mala para mais uma ida à casa de saúde.

— Nada, minha velha.

— E se não tem nada, por que você vai para o hospital, Pirilo? — insistia Dona Belinha, mais preocupada do que nunca.

— Com saúde não se facilita. Não tenho nada agora, mas estou esperando uma gripe de uma hora para outra.

E se internava por quatro, cinco dias. Proibia as visitas e não aceitava flores ou maçãs. "Se eu morrer, não quero ninguém no velório. Na doença e na morte, longe os parentes", era a teoria que defendia e a que a família obedecia.

— Chama-se isso de hipocondria — explicou um médico a quem Dona Belinha secretamente visitou:

— Hipocondria?

— É uma ansiedade habitual relativa à própria saúde — decifrava o médico. — É muito comum, um caso assim. Há pessoas que não vivem sem tomar remédio. Seu marido é um caso desses. Só que em estado mais grave, porque ele chega a ir para o hospital. Mas não se preocupe. Os hipocondríacos são os que vivem mais.

— Isso pega, doutor? — inquiriu Dona Belinha, quase desejando que sim, para poder acompanhar o marido, de quem sentia muita falta, durante os dias de nosocômio.

— Pegar, não digo, mas quem convive com um hipocondríaco, sendo de espírito fraco, pode-se contagiar por esta mania.

E ela muito rezava e pedia que lhe fosse dado este contágio.

— Belinha, traz a mala.

— Pra onde você vai, Pirilo?

— Vou-me hospitalizar.

— O que é que você está sentindo?

— Hoje, fazendo as unhas, tirei sangue da cutícula. Isso pode infeccionar, dar tétano, gangrenar, sei lá. Com saúde não se brinca.

E, de mala branca na mão e infalível chapéu preto à cabeça, lá ia o Pirilo para o Hospital dos Estrangeiros, onde tinha conta corrente (pagava por semestre) e apartamento quase fixo.

— O apartamento de sempre, Sr. Pirilo? perguntava a enfermeira, como se aquilo fosse um hotel.

— Não. Desta vez quero um no terceiro andar, com vista para a encosta.

E por uma semana, muitas vezes, curtia o seu hospitalzinho, de camisola e tudo, com exames de pressão arterial, termômetros sob a axila, colheita de urina, sangue, fezes, escarro, etc. Uma semana depois, sentindo-se recuperado, voltava ao seio da família, dizendo-se outro homem.

Ao mesmo tempo em que os filhos cresciam, desenvolvia-se a hipocondria do Pirilo, que se internou pelos motivos mais burlescos, de tão banais: furúnculo, cisco no olho, mau jeito no braço, aerofagia, topada.

A conselho médico a mulher nem tocava mais no assunto, tentando meter na cabeça do marido que ele não sofria de coisa alguma ("Isso pode piorar, porque ele fica irritado e..."). Ao ver Pirilo chegar e entrar em casa sem tirar o chapéu preto, a mulher já sabia que era caso de hospital. E, por conta própria (disso o médico não teve culpa), já até colaborava com a hipocondria do marido.

— Não está passando bem, Pirilo?

— Ainda bem que você notou. Hoje arrotei duas vezes, depois de tomar uma Coca-Cola. Faz a mala.

E o pijama, com pente, chinelo e escova de dentes, era enfiado na mala branca que Pirilo conduzia ao Hospital dos Estrangeiros, onde era mais conhecido do que muitos dos médicos que lá operavam ou davam plantão.

— Terceiro andar, para a encosta?

— Segundo andar, de frente.

— 214 — informava a enfermeira, dando-lhe a chave.

Tantas foram as vezes que Pirilo se internou que, ultimamente, já ia sozinho da portaria para o quarto. Ir uma enfermeira com ele para quê, se ele conhecia os corredores e apartamentos mais do que a maioria delas? De hospital, ele dava aula. E era um custo para aceitar a alta do médico.

— Pode ir embora hoje, Sr. Pirilo.

— De jeito nenhum. Antes de quinta-feira ninguém me tira daqui.

— Mas o senhor já está bom. Os gases...

— Os gases acabaram, mas... e essa unhazinha?

— Que tem a unha? — perguntava o médico, segurando-lhe a falange do pé que Pirilo lhe exibia.

— Repare na unha, veja bem.

— Está bem.

— Ora, doutor, enganar ao Pirilinho? A unha está encrava, não encrava. Antes de quinta-feira eu não saio, a não ser que a unha se resolva.

De tanto Pirilo se ausentar para os hospitais, apareceu um arquiteto desquitado com ótimos planos e projetos para Dona Belinha com os quais ela concordou, de tanta distância que já sentia do marido hipocondríaco.

Saiu ganhando, pois amava agora um homem formado, enquanto Pirilo continuava amante de uma ajudante de enfermeira do Hospital dos Estrangeiros, que um dia dava plantão no terceiro andar, de frente para a encosta, no outro dia no segundo andar, de frente para a frente...

Os hipocondríacos merecem cuidados!

Fonte
O batizado da vaca”, Editora Círculo do Livro – Rio de Janeiro, 1972. in http://www.releituras.com/

Fernando Sabino (O Golpe do Comendador)

Ele sabia que aquilo ainda ia acabar mal. Ele era noivo, à antiga: pedido oficial, aliança no dedo, casamento marcado, Mas, no ardor da juventude, não se contentava em ter uma noiva em Copacabana: tinha também uma namorada na cidade.

Encontravam-se na hora do almoço, ou em algum barzinho do centro, ao cair da tarde, encerrado o expediente. Ele trabalhava num banco, ela num escritório. A noiva não trabalhava: vivia em casa no bem-bom.

E tudo ia muito bem, até que a namorada, que morava na Tijuca, resolve se mudar também para Copacabana.

A princípio ele achou prudente não voltarem juntos, já que uma não sabia da existência da outra. Com o correr do tempo, porém, foi relaxando o que lhe parecia um excesso de precauções. Mais de uma vez eu adverti ao meu amigo:

— Cuidado. Um dia a casa cai.

— Seria o auge da coincidência — protestava ele.

Pois acabou acontecendo. Foi numa tarde em que os dois voltavam de ônibus para Copacabana, muito enleados, mãozinhas dadas. Ali pela altura do Flamengo, ao olhar casualmente pela janela, ele viu e reconheceu de longe a moça que fazia sinal no ponto de parada.

Em pânico, o seu primeiro impulso foi o de gritar para o motorista que não parasse, para evitar o encontro fatal. Era o cúmulo do azar: havia um lugar vago justamente a seu lado, naquele último banco, que comportava cinco passageiros.

O ônibus parou e ela subiu. Ele se encolheu, separando-se da outra, mãos enfiadas entre os joelhos e olhando para o lado — como se adiantasse: já tinha sido visto. A noiva sorriu, agradavelmente surpreendida:

— Mas que coincidência!

E sentou-se a seu lado. Você ainda não viu nada — pensou ele, sentindo-se perdido, ali entre as duas. Queria sumir, evaporar-se no ar. Num gesto meio vago, que se dirigia tanto a uma como a outra, fez a apresentação com voz sumida:

— Esta é a minha noiva...

— Muito prazer — disseram ambas.

E começaram uma conversa meio disparatada por cima do seu cadáver:

— Você o conhece há muito tempo? — perguntou a noiva titular.

— Algum - respondeu a outra, tomando-o pelo braço: — Só que ainda não estamos propriamente noivos, como ele disse...

— Ah, não? Que interessante! Pois nós estamos, não é, meu bem? E a noiva o tomou pelo outro braço:

— Você não havia me falado a respeito da sua amiguinha...

Atordoado, nem tendo 0 ônibus chegado ainda ao Mourisco, ele perdeu completamente a cabeça. Desvencilhou-se das duas e se precipitou para a porta, ordenando ao motorista:

— Pare! Pare que eu preciso descer!

Saltou pela traseira mesmo, sem pagar, os demais passageiros o olhavam, espantados, o trocador não teve tempo de protestar. Atirou-se num táxi que se deteve ante seus gestos frenéticos, foi direto à minha casa:

— Você tem que me ajudar a sair dessa.

Amigo é para essas coisas, mas não me dou por bom conselheiro em tais questões. Mal consigo eu próprio sair das minhas: a emenda em geral é pior do que o soneto. Ainda assim, tão logo ele me contou o que havia acontecido, ocorreu-me dizer que, se saída houvesse, ele teria que abrir mão de uma — com as duas é que não poderia ficar. Qual delas preferia?

— A minha noiva, é lógico - afirmou ele, sem muita convicção: É com ela que vou me casar.
E torcia as mãos, nervoso:

— Pretendia, né? Imagino o que a esta hora já não devem ter dito uma para a outra. O pior é que minha noiva é meio esquentada, para acabar no tapa não custa.

Respirou fundo, mudando o tom:

— Também, que diabo tinha ela de tomar exatamente aquele ônibus? E o que é que estava fazendo àquela hora no Flamengo? De onde é que ela vinha?

— Eu que sei? — e comecei a rir: — Me desculpe, meu velho, mas essa não pega.

Ele se deixou cair na poltrona.

— É isso mesmo. Não pega. Nenhuma pega. Estou liquidado. Não tem saída.

— Só vejo uma — e fiz uma pausa, para dar mais ênfase: — O golpe do comendador.

Marido exemplar, pai extremoso, avô dedicado, como se usava antigamente, o ilustre comendador era de uma respeitabilidade sem jaça. Vai um dia sua digníssima consorte, chegando inesperadamente em casa, dá com o ilustre na cama da empregada. Com a empregada.

Enquanto a esposa ultrajada se entregava a uma crise de nervos lá na sala, o comendador se recompunha no local do crime, vestindo meticulosamente a roupa, inclusive colete, paletó e gravata. Em seguida se dirigiu a ela nos seguintes termos:

— Reconheço que procedi como um crápula, um canalha, um miserável. Cedi aos sentidos, conspurcando o próprio lar.

Você tem o direito de renegar-me para sempre, e mesmo de me expor à execração pública. E provocar em conseqüência a desgraça de nosso casamento, a desonra de meu nome e o opróbrio de nossos filhos e netos. A menos que resolva me perdoar, e neste caso não se fala mais nisto. Perdoa ou não?

Aturdida com tão eloqüente falatório, a mulher parou de chorar e ficou a olhá-lo, apalermada.

— Vamos, responda! — insistiu ele com firmeza: — Sim ou não?

— Sim — balbuciou ela, timidamente.

Ele cofiou os bigodes e, do alto de sua reassumida dignidade, declarou categórico:

— Pois então não se fala mais nisto.

Tão logo ouviu o caso do comendador, o noivo desastrado resolveu imitá-lo. De minha casa mesmo telefonou para a noiva, dizendo-lhe atropeladamente que ele era um crápula, um canalha — em resumo: o ser mais ordinário que jamais existiu na face da terra. Depois, sem lhe dar tempo de retrucar, despejou-lhe uma cachoeira de declarações amorosas, invocando o casamento marcado, a felicidade de ambos para sempre perdida, os filhos que não mais teriam... Não faltaram nem reminiscências dos primeiros dias de namoro - tanto tempo já que se amavam, ela não tinha treze anos quando se conheceram, as trancinhas que usava, lembra-se? Tudo isso ia por água abaixo — a menos que o perdoasse.

Desligou o telefone, vitorioso.

— Concordou em se encontrar comigo.

— Não se esqueça. O comendador.

— Já sei. Não se fala mais nisto.

E se foi, alvoroçado. Nem comigo se falou mais nisto, mas de alguma forma deu certo, pois acabou se casando, teve vários filhos e, segundo ouvi dizer, vive feliz até hoje.

Com a outra.

Fonte:
“Fernando Sabino – Obra Reunida”, Volume III, Editora Nova Aguilar S.A. – Rio de Janeiro, 1996. in http://www.releituras.com/

quarta-feira, 25 de junho de 2008

Ibn Ammar (1031 – 1084)

A vida de Abú Bakr Mubammad ibn 'Ammar, nascido em Sannabus (possivelmente Estômbar), perto de Silves, em 1031 e morto em 1084, parece arrancada a um drama shakesperiano, feita, como é, de aventura, grandeza e tragédia. Foi certamente um ser excepcional, nele coexistindo uma invulgar inteligência e uma ambição enorme servida por fria determinação. Uma infância e juventude pobres e a consciência do seu valor intelectual e artístico explicarão talvez o arrivismo que dominará toda a sua existência. Filho de um verdugo, parte como al-Mutanabbi, aventureiro e vagabundo, à conquista do sucesso confiado no seu talento. Discípulo do grande gramático al-A'lam, estuda em Córdova e Silves. Mais tarde torna-se amigo dileto de al-Mu'tamid que, ascendendo ao trono de Sevilha, o nomeia, entre outros cargos, governador de Silves. Antes disso, conta-se que certa vez Ibn 'Ammãr procurara fugir da presença do amigo, pois em sonhos havia-lhe sido revelado que viria a ser morto por ele. lbn 'Amniãr segue urna trajetória política meteórica, revelando dotes de guerreiro valente e diplomata não inferiores aos de poeta. O demônio da ambição é, porém, mais forte que a amizade que, por certo, sempre conservou por al-Mu'tamid, levando-o à conspiração e à revolta visando obter para si um trono. Tais fatos, aliados às intrigas dos seus inimigos, viriam a perdê-lo. Sendo entregue a al-Mu'tamid, este, inclinado a perdoar- lhe, acabaria por dar-lhe a morte por suas próprias mãos, num acesso de cólera, julgando-se traído, urna vez mais.

A vida dos dois grandes poetas foi indissoluvelmente ligada no drama. Para além de ter sido muito tratada por todos os especialistas, foi objeto de duas crônicas romanceadas, Os Luso-Árabes, de Oliveira Parreira, e Ben Ammar de Sevilla, de C. Sánchez-Albornoz, e de uma peça de teatro, Mutamid, el último Rey de Sevilla, de Blás Infante.

A sua poesia é de uma elegância requintada, fruto de um superior domínio da língua, e o brilho da imagística sobrepõe-se, de fato, a um acento pessoal que quase só se manifesta como expressão de orgulho, forma de afirmação de qualidades auto-atribuídas.

lbn 'Ammãr foi poeta multímodo que cultivou, a par das formas clássicas, a muwassahat e o zajal, ao serviço dos gêneros lírico, ditirâmbico ou satírico. Excelentes poetas, como lbn Sahi de Sevilha, foram influenciados pela sua obra, e dele disse al-Marrãkusi que foi "um dos gloriosos poetas que seguiram as pisadas de Ibn Hani al-Andalusi".

A AL-MU'TAMID (I)

Nada me move, meu príncipe,
Senão a tua vontade.
Contigo vou,
Como o viajante noturno
Guiado pelo clarão dos relâmpagos.
Queres voltar Para a tua amada?
Vai num rápido veleiro
E seguirei no teu encalço,
Ou salta antes para a sela,
Contigo irei também.
E quando,
Graças à proteção divina,
Chegarmos aos umbrais do teu palácio
Permite que torne sozinho à minha casa.
Não percas tempo a sacar a espada!
Lança-te aos pés da que tem a cintura delicada
E compensa-a do tempo perdido.,
Beija-a e aperta-a contra o peito.
E murmurem vossas bocas
Meigas e doces palavras,
Como os pássaros se respondem mutuamente
Em suaves cantos ao romper da alva.

*****

A LEITURA

Minha pupila liberta
Quem da página é cativo:
O branco, da margem certa
E da palavra, o negro vivo.
A AMADA

Ela é uma frágil gazela:
Olhares de narciso
Acenos de açucena
Sorriso de margarida.

E se seus brincos se agitam
Quedam-se os braceletes na escuta
Da música do requebro da cintura.
********

BOM É que não esqueçais
Que o que dá ao amor rara qualidade
É a sua timidez envergonhada.
Entregai-vos ao travo doce das delícias
Que filhas são dos seus tormentos.
Porém, não busqueis poder no amor...
Que só quem da sua lei se sente escravo
Pode considerar-se realmente livre.
=====
MAÇÃS E PERAS

Aceitai,
Como rostos amáveis que se vos mostrassem
Ou tímidos seios palpitando vossas mãos
Estas maçãs: Pérolas entre nós espalhadas
Como botões em seu ramo postos.
Tomai-as e ofertai-as aos presentes
Como vinho preso de surpresa
Pelo gelo do inverno.
Eis também peras para duplicar a minha dádiva,
E apenas se me oferece dizer:
São tão-somente brancas faces
Onde pousaram profundos olhos negros.

*****
A ALCACHOFRA

Filha das águas e da terra
Para quem lhe almeja os dons
É corpo numa veste de recusa.
E na sua beleza obstinada
Bem no cimo lá da haste
lembra uma jovem cristã
Que cota de espinhos usa.

*****
Minha alma quer-te, ainda que em tortura,
E sigo-te alegre na ânsia de procura.
Que estranho, ser defesa a nossa ligação,
Se os desejos ambos concordaram!
Que quereria mais o coração
Quando amargurado te buscou em vão
E meus olhos te viram e amaram?
Como desejo que quem tem poder
Sobre ti em nosso encontro não esteja!
Só assim a minha sede vai beber
Em doce fonte se teus lábios beija.

*****
A AL-MU'TAMID (II)

Quantas noites passadas lá no açude
Sinuosas deslizavam as correntes do rio
Como manchadas serpentes.
As correntes murmuravam junto a nós
Ao passar, qual gente ciumenta,
A querer magoar-nos à força da calúnia.
Mas no recanto escolhido
Era o jardim que vinha visitar-nos
Enviando seus presentes
Nas perfumadas mãos da brisa.

*****
Eis nuvens...
Que espessas são!
Parecem formadas,
Deste lado do azul do céu,
Do fumo que ao arder,
Madeira verde lhes deu.

Vem chuva fina,
Palha de prata
A polvilhar terra ambarina.
Mas se um instante
O Sol fica a brilhar
É como escrava provocante
Que se mostra quem a vai comprar.

*****
A SANNABUS

Sannabus!
Chora aqueles que são meus
Com um choro tão abundante
Como o rio que te atravessa
Em furiosa torrente.

*
Não será por mim
Mas por quem vertem
Então as nuvens suas lágrimas?
Não será por mim?
Mas por quem gemem
Então tristemente as pombas?

*
Sou Ibn Ammar: a minha glória
Não há quem a possa ignorar
A não ser tolos, dos quais não reza a história,
E que nem astros conseguem enxergar.

Se o meu Tempo me despreza
Não é isso motivo para espanto
Notas em livros é o que mais se preza
E nas margens se escrevem, no entanto.

*
Mais uma rodada, copeiro,
Que já se ergue a aragem da manhã
E a estrela de alva
Desviou a rota da noite viajeira.
A alvorada trouxe-nos brancura de cânfora
Assim que a noite reclamou seu negro âmbar

O jardim parece uma donzela vestida com a túnica
Bordada a flores e adornada com pérolas de orvalho
Ou então, jovem ruborizado de pudor
De rosas, alentado com a sombra do mirto.

E esse jardim,
Onde o rio lembra branca mão
Pousada sobre um tecido verde,
Mostra-se agitado pela brisa:
Dir-se-ia, meu rei,
A tua espada desbaratando exércitos.
Meu Senhor!
Verde brilhante são os favores da tua mão
Quando os céus se turvam de cinzento.
Teu dom é sempre generoso:
Se virgens dás têm seios opulentos
Se cavalos são de nobre raça
Se alfanges têm pedras preciosas.
Meu Rei!
Quando os demais reis se dessedentam
Esperam que ergas primeiro a tua taça.
És mais refrescante para os corações
Que o orvalho que se vai formando gota a gota
E mais agradável para os olhos
Que o doce peso do sono.
Faz faiscar a chispa da tua glória
Que não deixa nunca o fragor da lide
Senão para se abeirar do lume
Que mandaste acender para os teus hóspedes.
Rei,
Esplêndido no talhe e no espírito,
Como o jardim, belo de perto ou à distância.
Quando a teu lado me é servido
O rio celestial que mana do teu ser
É bem certo que estou no Paraíso.

Fizeste pender da tua lança
As cabeças dos reis teus inimigos
Só porque o ramo agrada
Na impaciência da flor?

Tingiste a tua cota com sangue de heróis
Só porque a formosa se enfeita de vermelho?
A espada, se a tua mão lhe serve de tribuna,
Dá lugar a súplicas mais eloqüentes
Que as do melhor dos oradores quando prega.
Este poema é para ti,
Como um jardim que a brisa visitou
Sobre o qual repousou o orvalho da noite
Até que o ataviou de flores.
Do teu nome fiz-lhe uma veste de ouro.
Com o teu louvor derramei o melhor almíscar.
Quem me suplantará? Se o teu apoio é sândalo
Eu o queimei no fogo do meu gênio
Quando as brasas estavam ainda a arder.
O orgulho no amor - temei-o - é a sua vergonha
Mas o prazer - aproveitai-o - é o seu ardor.
Não peças à paixão que te dê domínio
Prefere ser escravo, nas suas mãos é que tu és livre!
Vós me dissesses: O amor prejudicou-te.
Eu respondi: Quem dera me tivesse feito mal
É que meu coração escolheu doença para o corpo
Como forma própria de o adornar.
Deixai-o, pois, fazer a sua escolha
E não me critiqueis por estar emagrecido:
Não está a excelência de uma adaga
Precisamente na finura do seu gume?
Troçastes porque me deixou minha amada?
Quanto fim do mês oculta o crescente que vai vir!
Julgais que o fogo do esquecimento me consolará
Ou que um profundo sono chegará depois?
Mas ó coração, guerreiro da dor, se não sofresses mais
Como te acudiria o socorro das lágrimas?

Fonte:
http://escritas.paginas.sapo.pt/al_mutamid.htm

Al Mutamid (1040 – 1095)

Al Mutamid, poeta do "Al Andaluz" (parte da Península Ibérica ocupada pelos Árabes), nasceu em Beja em 1040 (sul de Portugal e antes da formação da nacionalidade portuguesa que se deu em 1145).Morreu em Marrocos em 1095. Considerado um dos maiores poetas árabes. A poesia árabe canta o amor, os feitos da guerra, os prazeres. A civilização árabe na Península Ibérica atingiu um desenvolvimento brilhante, nomeadamente na poesia e na arquitetura, sendo os habitantes de cada um dos reinos da Península completamente bárbaros, incluindo o que hoje é Portugal. Al Mutamid foi rei de Sevilha, depois e ter sido califa de Silves.

I

Quando será que estarei
Livre de desdém tão fero
Cujos fortes esquadrões
Me dão guerra que não quero.
Desvio assim é injusto.
Juro pela luz altaneira
Que em suas tranças se divisa:
Não sou cobra traiçoeira
Das que mudam de camisa

II

De negras madeixas
Amo uma gazela
Um sol é seu rosto
E palmeira é ela
De ancas opulentas.
Há entre seus lábios
Do néctar o gosto.
Ó sede, se intentas
Sua boca beijar
Não o vais lograr

III

Em encanto não tem
Rival tal senhora,
E fora do sonho,
Quem bela assim fora?
Qual espadas seus olhos
Lhe brilham; e rosas
Lhe enfeitam a face
Na sombra vistosas.

IV

Dá paz ao ardor
De quem te deseja.
Contenta o amor
E faz dom de ti,
amos, sorri,
Quando a boca beija.
Me disse na hora:
«Pecar me refreia.»
Respondi-lhe:
«Ora! Não é coisa feia.»

V

Uma vez era noite
De bem longa festa.
Adormeci. Me disse
Me acordando com esta:
«Teu sono vai longo
Toca a levantar!»
Então me beijou
E eu pus-me a cantar:
«Fazem reviver
Teus lábios a arder!»

VI

Guerra vil e obscena
E que inspira a cantilena
De quem se morre de pena:
«Eu assim não estou bem,
Me sinto desesperar,
Que farei? Vem minha mãe,
Que não paro de chorar.»

VII

SOLTA A alegria! Que fique desatada!
Esquece a ânsia que rói o coração.
Tanta doença foi assim curada!
A vida é uma presa, vai-te a ela!
Pois é bem curta a sua duração.

E mesmo que tua vida acaso fosse
De mil anos plenos já composta
Mal se poderia dizer que fora longa.
Que seres triste não seja a tua aposta
Pois que o alaúde e fresco vinho
Te aguardam na beira do caminho.

Que os cuidados não sejam de ti donos
Se a taça for espada brilhante em tua mão.
Da sabedoria só colherás a turbação
Cravada no mais fundo do teu ser
É que, de entre todos, o mais sábio
É aquele que não cuida de saber.

EVOCAÇÃO DE SILVES

Saúda, por mim, Abg Bakr,
Os queridos lugares de Silves
E diz-me se deles a saudade
É tão grande quanto a minha.
Saúda o palácio dos Balcões
Da parte de quem nunca os esqueceu.
Morada de leões e de gazelas
Salas e sombras onde eu
Doce refúgio encontrava
Entre ancas opulentas
E tão estreitas cinturas!
Mulheres níveas e morenas
Atravessavam-me a alma
Como brancas espadas
E lanças escuras.
Ai quantas noites fiquei,
Lá no remanso do rio,
Nos jogos do amor
Com a da pulseira curva
Igual aos meandros da água
Enquanto o tempo passava..
E me servia de vinho:
O vinho do seu olhar
Às vezes o do seu copo
E outras vezes o da boca.
Tangia cordas de alaúde
E eis que eu estremecia
Como se estivesse ouvindo
Tendões de colos cortados.
Mas retirava o seu manto
Grácil detalhe mostrando:
Era ramo de salgueiro
Que abria o seu botão
Para ostentar a flor.
SIM,
Bebi o vinho derramando luz
Enquanto a noite despia o seu sombrio manto.

Finalmente,
Veio a Lua Cheia, surgida de Gêmeos
Rainha, no cume do esplendor e fausto.
Estrelas brilhantes à compita a rodearam
Para acrescentarem também o seu fulgor.
Depois caminhou até ao Ocidente
E sobre ela flutuou Oríon, feita docel
Um exército de estrelas abriu alas
Sendo então as Pléiades o estandarte.

Assim,
Na terra eu me mostro
No meio de esquadrões e mulheres formosas
Competindo no brilho e na estirpe.
Se as lorigas dos meus bravos espalham a treva
O vinho por donzelas dado traz a claridade.
E se as escravas cantam com a citara
Também meus homens fazem cantar
As espadas nos cascos do inimigo.
=========
A PROPÓSITO DE UMA CARTA

Horto, de fulgentes estrelas faladas,
Iluminador do negríssimo fosso das trevas!
Chegou-me o teu poema em hora de tristeza:
Fê-la minguar, depois desaparecer.
Aqui fica um puro poço de amor
Que te convida a beber de novo
Como se fosse agora a vez primeira.
Ó ALMA, não te desesperes!
Peleja com coragem
Ou às mãos do amor acabarás.

A amada tratou-te cruelmente,
Teu coração já não te obedece?
Alguém te injuriou?
Ninguém te dá conforto?

A mágoa, essa,
Negou repouso às pálpebras
E só lhes deu em troca
As lágrimas de sangue.
Ao PASSAR junto da vide
Ela arrebatou-me o manto,
E logo lhe perguntei:
Porque me detestas tanto?
Ao que ela me respondeu:
Porque é que passas, ó rei,(*)
Sem me dares saudação,
Não basta beberes-me o sangue
Que te aquece o coração?

Fonte:
http://escritas.paginas.sapo.pt/al_mutamid.htm

Silas Corrêa Leite (RODA MUNDO - A Antologia Que Pode Dizer o Nome)

Sempre fui a favor das Antologias literárias em geral, eu mesmo um participante de várias delas, em regime de cooperativas ou até mesmo como simples convidado, inclusive no exterior, como as do Instituto Piaget (Portugal), Cristhmas Anthology (Estados Unidos), Antologia Multilingue de Letteratura Contemporanea (Itália) e Poesia Sempre (Edição 500 Anos do Brasil) MEC-Fundação Biblioteca Nacional, entre outras tantas, oficiais ou marginálias, desses brasis gerais e os seus plangentes criares periféricos por atacado.

Toda abelha-rainha sonhadora, ou abelhudo-rei, digamos assim, que se propõe a juntar poetas inéditos e - ou neomalditos (ah essa safra contemporânea brasileiríssima) merece respeito, carinho e admiração, porque formar uma colméia de elos a partir de um verdadeiro clube de egos (e núcleos de abandonos editoriais) não é fácil. É preciso cara limpa e muita coragem, além do conhecimento de área.

E só gente nobre topa a empreita, a toleima, o desafio desse quilate, garimpando em tantas jazidas novas, puras e valiosíssimas letras livres.

Acho que, juntando poetas, contistas, cronistas, memorialistas, contadores de causos, você vai dando um acervo histórico de lastro ao que sabiamente já apregoou o francês Rimbaud, de que todo artista deve ser antena da sua época. É por aí.

Eu mesmo já fui sondado por editoras de fanzines e mesmo fora do eixo Rio-SP para ser coordenador de uma ou outra antologia de minorias, e só recusei às vezes por absoluta falta de tempo – ah a sobrevivência - mas, de presto, ao meu jeito e com o meu modus operandi, dei o fermento de minha contribuição, divulguei em nichos, indiquei nomes preciosos, criei títulos interessantes, sugeri eventual desenho de capa, tal o amor por essa resistência literária, a verdadeira vox do povo, o brado retumbante dos que escrevem com talento, e ainda a magna coragem de nadar contra a corrente do falso mercado editorial, sempre com seus suspeitos livrecos pseudo-popularescos trazidos do exterior a preço de banana, mas que não acrescentam nadica de nada a historicidade crítico-criativa nacional, culturalmente falando também.

Como um mambembe produtor lítero-cultural no reino da web, ainda inédito em livro solo de ficção, atrás de um mecenas (ou anjo-da-guarda) com um projeto inédito aprovado( e empacado) pela Comissão 450 de São Paulo, apesar de vários prêmios, com bom currículo e até um livro pioneiro, inédito e de vanguarda que fez até algum sucesso ocasional na mídia como e-book (livro virtual) no site www.hotbook.com.br/int01scl.htm (O Rinoceronte de Clarice), fico chateado quando vejo parte da mídia veicular edições impressas de livros inócuos do Hosmanny Ramos, do Ratinho, da Simonny, do Derico, enquanto muita gente talentosa cria à míngua, pois as editoras, em geral, na verdade não têm pessoal capacitado para bem julgar, com competência avaliar, até porque vários escritores mundiais de renome tardio só foram lançados depois de mortos; muitos foram recusados por editoras convencionais, ficando a prova peremptória de que tentar sempre, correr atrás o tempo inteiro, sonhar com dinamismo, ser determinado e com estilo, faz parte do cultivo das hortênsias poéticas ou das groselhas pretas das prosas humanizadas.

Assim, penso que cada Antologia, seja ela como for, caseira, sazonal, multinacional ou mesmo bancada por eventual Ong ou órgão público, é sempre uma bendita janela para o céu, um respiradouro de almas, um solário de líricas que fundam a sensibilidade, a magia do tear poético em proveito social, o curtume ainda sensorial desses tempos insanos de muito ouro e pouco pão.

Cada antologia é uma porta que se abre, um cofre aberto para Deus; banca um tijolo na própria construção da busca individual que seja por méritos próprios, faz-se andaime para arquiteturas maiores, a obra perfeita, a edição, o sucesso que, claro, não acontece por acaso. Há um Deus.

Foi mais ou menos isso o que eu captei quando recebi via e-mail o release do Editor Douglas Lara, da Manchester Sorocaba, sondando-me para estar na Antologia Roda Mundo, Roda-Gigante (Editora Ottoni), que acabou – sorte nossa – internacional, com gente criativa de quatro continentes, o que nos envaidece, e premia o talento e a visão do editor e o produto final da editora enquanto mercadoria-livro.

Honra e orgulho de quem abriu essa estrada de tijolos amarelos, para nosotros que queremos o palco iluminado para mostrar nosso chão de estrelas em infames tempos de neoliberalismo globalizador inumano e aético, com suas riquezas injustas (São Lucas) e lucros impunes (Millôr Fernandes). Aleluia.

Faz escuro mas eu canto, disse um poeta.

É preciso que a emoção sobreviva, disse outro.

Tudo vale a pena, quando a alma não é pequena, frisou um outro ousado lusonauta da península ibérica que, pra mim, sendo o maior poeta do mundo, só foi lançado depois que faleceu (de cirrose, por causa do diário vinho do Porto), e ainda assim, cem anos depois é estudado com cautela acadêmica, admirado como referencial, completo por inteireza de lucidez, a persona do Fernando Pessoa e seus heterônimos-ele-mesmo.

Se houvesse tempo e espaço para uma, vá lá, antologia desse naipe na terrinha-mãe, talvez Fernando Pessoa tivesse o reconhecimento antecipado, o jeito todo especial de ser valorado, além de ser salutar e importante em sua usina de criames com espiritualidade lírica fora de série.

Está feito: esse é o papel da Antologia. Trazer à tona o filão rico de nossos criadores que teimam, cismam, reinam e fecundam idéias e ideais pelai. Não é a primeira Antologia do Mestre Douglas Lara (como respeitosamente o chamo), certamente não será a última, outros canais virão, novos tempos trarão outras visões, novas lutas nos engrandecerão enquanto trupes, pois lá estaremos com a sua soma, juntando elos em versos e prosas, porque, afinal, como bem cantou Caetano Veloso – Caetanear, por que não? – Gente é Para brilhar...

E a Antologia Roda Mundo, Roda-Gigante, fundou esse propósito, ornou-se dessa gala, e assim somos vitoriosos todos nós que acreditamos que o sonho não acabou como disse John Lennon, mas que, verdadeiramente o estamos tecendo dia após dia; página após página de rosto, de coração para coração, como se um mosaico de tributo à vida; de inteligência criativa, pois, afinal, escrever é a nossa mais doce transgressão, a nossa mais valiosa rebeldia, em contribuição à causa de ler para ser, ler para ter, ler para também estarmos com o arco-da-promessa dentro do pote de ouro, quando for o leitor interessado em prosopopéia & aventuras líricas, buscar seu arco-iris.

E depois, falando sério, como digo num poemeto “Deus deve amar os loucos/Pois criou tão poucos...".

E o poeta é sim, como a cana: mesmo pisado, ralado, posto nas moendas das vicissitudes, ainda assim resiste e dá açúcar-poesia.

Habemus Douglas Lara. Ave Douglas Lara. Os poetas-saúvas te saúdam.

Fonte
http://escritas.paginas.sapo.pt/rodamundo.htm

Sônia Bettencourt (Mar Vazio)

Prêmio Conto (Categoria Sênior) no Certame da Macaronésia de Jovens Artistas, Lanzarote, Canárias, 2005

À memória de todos os jovens que perderam a vida no mar
Há dois dias e duas noites que estive a olhar o mar. Sim, a olhar o mar através da janela da sala da minha casa. Não era uma casa muito grande, nem uma sala muito grande, mas tinha janelas largas, daquelas que deslizavam em vez de abrir ao meio. Através dela via uma praia onde o mar parecia querer abraçar-me. Às vezes estava manso e quieto, outras vezes sentia-se irado e batia violentamente contra as rochas.

Outro dia foi mesmo assim, a sua revolta era tão grande que as marés galgavam a orla costeira por completo. E o vento assobiava na janela como se fosse uma voz de alguém que já se fora. Para sempre. O irmão falecido: o olhar dele cheio de medo de morrer quando as forças lhe faltaram. Imaginava.

Mas uma semana depois, quando as casas se afundavam numa luz frágil, já o mar estava relaxado e adormecido como que a descansar da fúria dos dias anteriores. As gaivotas protegiam-no, ou não fossem os anjos das suas águas salgadas.

Naqueles dias de calmaria imaginava que um barco iria passar junto à janela e que alguém me levantaria a mão a acenar para me levar numa viagem, para longe; uma viagem que eu não queria fazer. Seria um daqueles barcos pequenos, pintados de branco com o rebordo de cor garrida e identificado por um nome de peixe ou de mulher.

Há dois dias e duas noites que estive a olhar o mar. Sim, a olhar o mar através da janela da sala da minha casa. Ainda nenhum barco passou e os que supostamente iriam passar jamais se lembrariam de olhar para a minha janela. Estariam ocupados a seguir o peixe pelo seu rumo certo. E naquele exato momento eu estaria fora de rumo. Pelo menos era este o meu desejo.

Ao tentar perceber o medo tão profundo de estar longe dali, o alvoroço no peito de me encontrar em todo o lado e em lado nenhum que não fosse aquela casa e aquela janela, decidi ficar dois dias e duas noites a olhar o mar. Sem tirar os olhos uma única vez.

No primeiro dia senti um orvalho gelado nas palmas das mãos. Fechei a janela sem nunca desistir do meu propósito. O meu corpo não vacilava, ou não tivesse eu vinte anos, contudo o meu espírito sentia-se fraco e perdido naquele vai e vem da ondulação.

Um grito na garganta nasceu-me no segundo dia. Queria ter a certeza que estava ali. Apetecia-me gritar de alegria ou de medo, não sei bem, como se tivesse acabado de ver o mar pela primeira vez. Abri a janela e no exato momento em que o grito se preparava para soltar, uma náusea tomou conta de mim tal verdadeira viagem de barco em alto mar.

Lembrei-me da infância, viva e fresca: A Luisa, a mais nova do grupo, que brincava com bicicletas usadas que o pai consertava na sua garagem de mecânico; o Bruno e o irmão Bernardo, que todos pensavam ser gêmeos verdadeiros, mas não eram; A Ritinha de olhos verde-azeitona que tinha bonecas sem conta, o Jorge, o herói de histórias de aventura que só ele conhecia e só ele protagonizava a qualquer hora e a qualquer momento e, por fim, o Miguel traquinas e irrequieto, que me perseguia por todo o lado, a imitar o zorro com uma espada em punho.

No Verão eram as brincadeiras na rua à macaquinha do chinês e os jogos do apanha e do esconde... Tudo passado naquela rua, defronte do mar. E quando os dias começavam a ficar pequenos e frios, juntávamo-nos umas vezes na garagem da Luisa, outras no sótão da Ritinha ou ali, naquela sala, a jogar às cartas e a brincar à janela, que ao contrário de todas as outras janelas não abria nem para os lados, nem para cima, simplesmente deslizava.

Se não fosse o vento a sacudir ao de leve a memória infantil, teria desmaiado, com certeza.

Olhei à volta a sala, a minha casa e sabia que tinha que partir. Estava cansado como se já tivesse feito mil viagens. Mas, a verdade, era que nem tinha feito a primeira, aquela que parecia ser a mais longa de todas e que doía como nenhuma outra. Sempre vivi sem pressa e sem ruído com os meus dias flexíveis fechados em livros de estudo e em brincadeiras com os vizinhos, amigos e companheiros de escola. Cheio de princípios e frases colhidas da Literatura e da Filosofia.

Depois a vida naquela casa, os pais e eu, passou a ser apenas um eco das coisas acontecidas; uma lembrança a recompor um tempo findo- por entre os cheiros do quarto de cama, do vestuário, dos lençóis; o desarrumo da secretária e do guarda-roupa; as prateleiras a abarrotar de Cds de música, livros escolares e jogos de computador; o pôster do Eminem... Os pesados cortinados de riscas coloridas cerrados sem deixar escapar uma lâmina de luz.

- Miguel!

Mas ninguém respondia. Nenhuma voz humana. Nenhuma presença de gente.

Ele continuava ali no retrato do canto. Sorridente e cheio de vida. Como na noite em que decidira brincar junto ao mar. De repente, do riso fizera-se o pranto, e o jogo entre amigos tornou aquela noite a mais longa das nossas vidas.

- Vem para aqui falar com a gente! – chamaram-me o Jorge, o Bruno, o Bernardo e a Luisa numa tentativa de me distrair e relaxar o vácuo que tinha no cérebro. A Ritinha de olhos verde-azeitona, não estava presente, pois já não morava naquela cidade, tão pouco naquele bairro. Mas mesmo assim não deixou de prestar os seus pêsames e condolências.

Deixei a janela e fui para junto deles. Sentei-me no sofá da sala, mas os meus olhos estavam pregados àquela vidraça onde o vento assobiava com uma força estranha.

Lembrei-me que àquela hora havia um resto de noite e uma neblina junto ao rés-do-mar. A cidade, ainda mal acordada, começava a lavar-se, a vestir-se e a aquecer o café da manhã com os olhos pregados no relógio. E eu ali, no sofá da sala com o dia suspenso, sem vontade de querer e de saber aonde me levava o rasgar das horas.

Entretanto adormeci. Mas por pouco tempo. Umas vozes distantes a flutuar pela sala fizeram-me abrir os olhos fatigados.

- O mar castiga!- exclamou a minha mãe a olhar através da janela com uma voz que parecia ter vindo do outro lado do abismo.

- Vamos sair daqui, Nuno.- informava o meu pai.- Temos que ir viver para outro lado.

Para aonde?, pensei eu. Para onde não há mar e as crianças não brincam, e as árvores são de cimento, e os homens são mortos em vez de morrerem?

Fez-se um diálogo de surdos. A voz dos meus pais vinha do outro lado do tempo numa língua diferente carregada de dor.

O medo de partir colocou-me à janela da sala durante muitos dias. Os momentos de alegria cada vez mais no fundo do tempo, espiando-me. Já não era só os meus dias que estavam suspensos, era todo o meu futuro.

O automóvel buzinou impaciente pela segunda vez. Vesti o casaco e peguei nas duas malas de viagem caminhando com cerimônia até à porta de saída.

Antes de sair pousei as malas e voltei atrás. Abri a janela deslizando-a devagarinho. Quase chorei de alegria quando um ruído distante de um barco a passar me fez levantar a mão e acenar num gesto lento.

Fonte:
http://escritas.paginas.sapo.pt/marvazio.htm

Poesias Soltas ao Vento III

Walt Whitman (EUA, 1819-1892)
DO INQUIETO OCEANO DA MULTIDÃO

Do inquieto oceano da multidão
veio a mim uma gota gentilmente
suspirando:

- Eu te amo, há longo tempo
fiz uma extensa caminhada apenas
para te olhar, tocar-te,
pois não podia morrer
sem te olhar uma vez antes,
com o meu temor de perder-te depois.

- Agora nos encontramos e olhamos,
estamos salvos,
retorne em paz ao oceano, meu amor,
também sou parte do oceano, meu amor,
não estamos assim tão separados,
olhe a imensa curvatura,
a coesão de tudo tão perfeito!
Quanto a mim e a você,
separa-nos o mar irresistível
levando-nos algum tempo afastados,
embora não possa afastar-nos sempre:
não fique impaciente - um breve espaço –
e fique certa de que eu saúdo o ar,
a terra e o oceano,
todos os dias ao pôr-do-sol
por sua amada causa, meu amor.

Jean Richepin (Argélia, 1849-1926)
TUAS PALAVRAS

Tuas palavras têm melodias divinas,
Acordes de cristal, pianíssimo, vibrando!
De olhos cerrados fico, imerso em gozo, quando,
Dizendo-me um segredo o alvo pescoço inclinas.....
Então não me inebria o olor de balsaminas
De tua boca, é, mais o tom límpido e brando,
Que dás a uma palavra, a um simples "sim", falando....
Tuas palavras têm meiguices peregrinas!
Eis, pois, o que me faz dormentes os sentidos;
Ouço-te, sem saber o que estás a dizer-me,
Qual numa língua estranha e suave aos meus ouvidos!
E em pleno arrebatar duns êxtases radiosos
Sinto invisível mão percorrer-me a epiderme...
Tuas palavras, flor! Têm dedos cariciosos....

Elisabeth Barrett Browning (Inglaterra, 1806 – 1861)
QUATRO SONETOS


I
Amo-te quanto em largo, alto e profundo
Minhalma alcança quando, transportada
Sente, alongando os olhos deste mundo,
Os fins do ser, a graça entressonhada.

Amo-te em cada dia, hora e segundo:
À luz do Sol, na noite sossegada.
E é tão pura a paixão de que me inundo
Quanto o pudor dos que não podem nada.

Amo-te com o doer da velhas pernas,
Com sorrisos, com lágrimas de prece,
E a fé da minha infância, ingênua e forte.

Amo-te nas coisas mais pequenas
Por toda a vida. E assim Deus o quisesse.
Ainda mais te amarei depois da morte.

II
As minhas cartas! Todas elas frio,
Mundo e morto papel! No entanto agora
Lendo-as, entre as mãos trêmulas o fio
Da vida eis que retomo hora por hora.

Nesta queria ver-me-era no estio-
Como amiga ao seu lado...Nesta implora
Vir e as mãos me tomar...tão simples!Li-o
E chorei. Nesta diz quanto me adora.

Nesta confiou:sou teu e empalidece
A tinta no papel, tanto o apertara
Ao meu peito, que todo inda estremece!

Mas uma...Ó meu amor, o que me disse
Não digo. Que bem mal me aproveitara
Se o que então me disseste eu repetisse...

III
Parte: Não te separas! Que jamais
Sairei de tua sombra. Por distante
Que te vás, em meu peito, a cada instante,
Juntos dois corações batem iguais.

Não ficarei mais só. Nem nunca mais
Dona de mim, a mão, quando a levante,
Deixarei de sentir o toque amante
Da tua-ao que fugi. Parte: não sais!

Como vinho, que às uvas donde flui
Deve saber, é quanto faça e, quanto
Sonho, que assim também todo te inclui.

A ti, amor! Minha outra vida, pois
Quando oro a Deus, teu nome ele ouve e o pranto
Em meus olhos são lágrimas de dois.

IV
Ama-me por amor do amor somente
Não digas: Amo-a pelo seu olhar,
O seu sorriso, o modo de falar
Honesto e brando. Amo-a porque se sente

Minh’alma em comunhão constantemente
Com a sua. Por que pode mudar
Isso tudo, em si mesmo, ao perpassar
Do tempo, ou para ti unicamente.

Nem me ames pelo pranto que a bondade
De tuas mãos enxuga, pois se em mim
Secar, por teu conforto, esta vontade

De chorar, teu amor pode ter fim!
Ama-me por amor do amor, e assim
Me hás de querer por toda a eternidade.

Alexandre O'Neil (Portugal, 1924 – 1986)
Poema Pouco Original do Medo

O medo vai ter tudo
pernas
ambulâncias
e o luxo blindado
de alguns automóveis
Vai ter olhos onde ninguém o veja
mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes
ouvidos não só nas paredes
mas também no chão
no teto
no murmúrio dos esgotos
e talvez até (cautela!)
ouvidos nos teus ouvidos
O medo vai ter tudo
fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo
milagres
cortejos
frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas de penhor
maliciosas casas de passe
conferências várias
congressos muitos
ótimos empregos
poemas originais
e poemas como este
projetos altamente porcos
heróis
(o medo vai ter heróis!)
costureiras reais e irreais
operários
(assim assim)
escriturários
(muitos)
intelectuais
(o que se sabe)
a tua voz talvez
talvez a minha
com a certeza a deles
Vai ter capitais
países
suspeitas como toda a gente
muitíssimos amigos
beijos
namorados esverdeados
amantes silenciosos
ardentes
e angustiados
Ah o medo vai ter tudo
tudo
(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer)
O medo vai ter tudo
quase tudo
e cada um por seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos
a ratos
Sim
a ratos

Alexandre O'Neil (Portugal, 1924 – 1986)
HÁ PALAVRAS QUE NOS BEIJAM

Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca,
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.

Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto,
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.

De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas, inesperadas
Como a poesia ou o amor.

(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído,
No papel abandonado)

Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte.

Yolanda Morazzo (Cabo Verde, 1926)
BARCOS

-
"Nha terra é quel piquinino
É Sao Vicente é que di meu"

Nas praias
Da minha infância
Morrem barcos
Desmantelados.
Fantasmas
De pescadores
Contrabandistas
Desaparecidos
Em qualquer vaga
Nem eu sei onde.
E eu sou a mesma
Tenho dez anos
Brinco na areia
Empunho os remos...
Canto e sorrio...
A embarcac,ão:
Para o mar!
É para o mar!...
E o pobre barco
O barco triste
Cansado e frio
Não se moveu...


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Alda Lara (Angola, 1930 - 1962)
Presença Africana

E apesar de tudo
ainda sou a mesma!
Livre e esguia,
filha eterna de quanta rebeldia
me sagrou.
Mãe - África!
Mãe forte da floresta e do deserto,
ainda sou
a irmã - mulher
de tudo o que em ti vibra
puro e incerto!
- A dos coqueiros,
de cabelos verdes,
e corpos arrojados
sobre o azul...
A do dendém
nascendo dos abraços
das palmeiras...
A do sol bom, mordendo
o chão das Ingombotas...
A das acácias rubras,
salpicando de sangue as avenidas,
longas e floridas...
Sim! Ainda sou a mesma
A do amor transbordando
pelos carregadores do cais
suados e confusos,
pelos bairros imundos e dormentes
(Rua 11!... Rua 11!...)
pelos negros meninos
de barriga inchada
e olhos fundos...
Sem dores nem alegrias,
de tronco nú e corpo musculoso
a raça escreve a prumo,
a força destes dias...
E eu, revendo ainda
e sempre, nela,
aquela
longa história inconsequente...
Terra!
Minha, eternamente!
Terra das acácias,
dos dongos,
dos cólios, baloiçando
mansamente... mansamente!...
Terra!
Ainda sou a mesma!
Ainda sou
a que num canto novo,
pura e livre,
me levanto,
ao aceno do teu Povo!...

Euclides Cavaco
AMOR...FEITO POESIA


.
AMOR
É um conceito divino
É dimensão sem medida
É viagem sem destino
É melodia da vida...

AMOR
É um caminho sem fim
É não ter que perdoar
É não querer e dizer sim
É dar tudo o que há p'ra dar !…

AMOR
É voz da razão que cala
É ter dôr e não sentir
É o silêncio que fala
É ver o mundo sorrir...

AMOR
É sopro de nostalgia
É canção leve e suave
É das trevas fazer dia
É saber de quem não sabe.

AMOR
É bem mais que sentimento
É sussurro de magia
É da alma o alimento...

AMOR
É hoje aqui...Feito poesia !…

Euclides Cavaco
PALAVRAS AO VENTO

.
Sou companheiro do vento
E conto ao vento que passa
Deste mundo o meu lamento
No tempo que se esvoaça ...
Conto-lhe da injustiça
Neste mundo praticada
Da maldade e da cobiça
O vento não me diz nada.

Falo da fome e da guerra
Da miséria que se esconde
E dos crimes que há na terra
O vento não me responde...
Quero que leve um recado
De quem ajuda implora
E de quem sofre calado
O vento tudo ignora ...

Peço ao vento que se agite
Em prol da humanidade
E que com direito grite
Para os homens liberdade.
Se o vento não me ouvir
Nesta minha petição
Então eu irei pedir
Para o vento maldição !...

Fontes:
http://www.euclidescavaco.com/
http://escritas.paginas.sapo.pt/

terça-feira, 24 de junho de 2008

Palavras estrangeiras (aportuguesadas )

Abajur (do francês) – quebra-luz
Álibi (do latim) - noutro lugar.
Ateliê (do fr.) – oficina
Baguete (do fr.) – tipo de pão
Bangalô (do inglês) - casa residencial com arquitetura do bangalô indiano.
Basquetebol (do inglês) – jogo ao cesto.
Batom (do fr.) – lápis para pintar os lábios
Bege (do fr.) – cor parda
Bibelô (do fr.) – adorno
Bidê (do fr.) – aparelho sanitário de banheiro
Bifê (do fr.) - mesa com refeição para reuniões
Bife (do inglês) – fatia de carne
Bijuteria (do fr.) – adorno
Biquíni (ilhota do Pacífico, Bikini) - veste para banho
Birô (do fr.) - mesa de escrever
Bistrô (do fr.) – restaurante pequeno e aconchegante
Blecaute (do inglês) – escurecimento
Boate (do fr.) – casa noturna
Bói (do inglês) – garoto de recado, contínuo
Boxe (do inglês) – pugilismo
Brevê (do fr.) - diploma, certificado de aviador.
Bulevar (do fr.) - rua larga, avenida
Buquê (do fr.) – ramalhete
Capô (do fr.) – capuz de motor de veículo
Carrossel (do fr.) – rodízio em cavalos, cadeiras, etc.
Cassetete (do fr.) – cacete curto de madeira ou borracha usado por policiais.
CD (do inglês) – compact disc – coletânea de músicas gravadas num disco.
Champanha (do fr.) – vinho branco espumante. Gênero masculino.
Chassi (do fr.) – carroceria de veículo
Chiclete/ Chicle – (do inglês) – goma de mascar
Chique (do fr.) – elegante
Chofer (do fr.) - motorista
Clichê (do fr.) - fotogravura
Clipe (do inglês) – grampo para prender papéis
Comitê (do fr.) – comissão, delegação
Complô (do fr.) – conspiração
Conhaque (do fr.) – aguardente de vinho
Coquetel (do fr.) – mistura de várias bebidas alcoólicas
Croquete (do fr.) – bolinho de carne
Croqui (do fr.) – esboço
Cupom (do fr.) – obrigação ao portador
Debênture (do inglês) – título de dívida amortizável
Debutar (do fr.) – estrear
Debute (do fr.) – estréia
Decolagem (do fr.) – levantamento do avião
Escore (do inglês) – resultado de uma partida esportiva
Esporte (do inglês) – conjunto de exercícios físicos
Esqui (do dinamarquês) – Tábua que serve para deslizar sobre a neve
Estêncil (do inglês) – papel multiplicador de cópias
Estresse (do inglês) – cansaço
Flerte (do inglês) – namoro ligeiro.
Folclore (do inglês) – costumes e artes conservadas pelo povo
Fórceps (do inglês) - boticão usado para retirar crianças do útero da mãe
Guichê (do fr.) – pequena janela por onde se atende o público
Habituê (do fr.) – freqüentador certo
Jérsei (do inglês) – tecido de malha de algodão, seda ou lã
Locaute (do inglês) – greve de empregadores
Maiô (do fr.) – traje de banho
Manicura (do fr.) - profissional do tratamento de unhas. A forma francesa manicure é mais usada por populares.
Manicuro (do fr.) – masculino de manicura. A forma francesa manicure é mais usada por populares.
Menu (do fr.) – cardápio.
Metrô (do fr.) – abreviatura de metropolitano. Estrada de ferro subterrânea e urbana
Náilon (do inglês) – fibra têxtil sintética
Nocaute (do inglês) – termo usado em luta de boxe.
Omelete (do fr.) – fritada de ovos. Palavra do gênero feminino
Piquenique (do inglês) – pequena excursão
Piquete (do fr.) – pequeno grupo promotor de greve
Pulôver (do inglês) – agasalho de malha, sem mangas.
Purê (do fr.) – preparado de batatas
Rali (do inglês) – competição automobilística
Recorde (do inglês) – a melhor atuação esportiva. Pronúncia: palavra paroxítona, sílaba forte é COR.
Repórter (do inglês) – jornalista, profissional da notícia
Relé (do fr.) – dispositivo que liga determinados circuitos automaticamente
Réveillon (do fr.) – festa de véspera do Ano Novo. Não foi aportuguesada
Socaite (do inglês) – grã-finagem
Suéter (do inglês) - agasalho fechado
Sutiã (do fr.) – peça feminina para apoiar os seios
Teste (do inglês) – exame, prova
Time (do inglês) – conjunto de jogadores
Tique (do fr.) – trejeito
Toalete (do fr.) – vestuário
Treiler (do inglês) – carro rebocado por veículo motorizado
Turnê (do fr.) – viagem programada, com roteiro certo
Voleibol (do inglês) – esporte no qual se usa a mão. Forma abreviada: vôlei.

Fonte:
O português nosso de cada dia – Vicente de Paulo Sampaio e Rosimir Espíndola Sampaio – Editora LTR, São Paulo, 2003.
http://www.portrasdasletras.com.br/