quarta-feira, 16 de julho de 2008

Conan Doyle (Sherlock Holmens, em O Vampiro de Sussex)

texto na íntegra
Título original: The Sussex Vampire

Holmes tinha lido atentamente um bilhete que o último correio lhe trouxera. Então, com um ruído seco produzido na garganta e que nele era o que mais se aproximava do riso, atirou-o a mim.
— Como mescla do moderno e do medieval, do prático e do puramente fantástico, penso que isso é certamente o limite a que é possível chegar. Que diz a isso, Watson?

Li o que se segue:

Old Jewry, 46. 19 de novembro.
Assunto: Vampiros.
Prezado senhor:

O sr. Robert Ferguson, nosso cliente, sócio da firma Ferguson & Muirhead, vendedores de chá, de Mincing Lane, em memorando desta data fez-nos uma consulta relativa a vampiros. Como nossa firma é especializada estritamente na avaliação de maquinarias, o assunto da consulta foge à nossa alçada, e por isso sugerimos ao sr. Ferguson que procurasse V. Sa. e lhe expusesse o caso. Não esquecemos o triunfo obtido por V. Sa. no caso Matilda Briggs.
Com elevado apreço, subscrevemo-nos,
Morrison, Morrison, and Dodd
E. J. C."

— Matilda Briggs não é nenhum nome de mulher, Watson — disse Holmes, com voz que traía uma recordação. — Era um navio cuja sorte andou ligada à do gigantesco rato de Sumatra, uma história para a qual o mundo ainda não se acha preparado. Mas que sabemos nós acerca de vampiros? Isso não escapa também à nossa alçada? Antes isso que a estagnação dos charcos, mas parece que fomos transportados para o mundo encantado onde se desenrolam as histórias de Grimm. Estenda o braço para esse livro, Watson, e veja o que nos diz a letra V.

Eu me inclinei para trás e retirei da estante o grande volume de registro a que ele se referia, Holmes equilibrou-o sobre o joelho, e seus olhos moveram-se vagarosamente e com amor pêlos seus casos antigos, que se misturavam com a informação acumulada de toda uma vida.

— Viagem do Gloria Scott — leu ele. — Mau negócio foi esse. Tenho uma vaga lembrança de que você tomou apontamentos sobre o caso, Watson, embora eu não pudesse me congratular com você pelo resultado obtido. Victor Lynch, o falsário. Veneno de lagarto ou do gila monster. Caso notável, esse! Vittoria, a beldade de circo. Vanderbilt e o vagabundo criminoso. Víboras. Vigor, a maravilha de Hammersmith. Sim, sim. Belo índice este! É realmente insuperável. Escute isto, Watson: vampirismo na Hungria. E ainda: vampiros na Transilvânia. — Folheou as páginas com avidez, mas, após uma leitura atenta e rápida, pôs de lado o grande livro com um gesto de desapontamento.

Tolices, Watson, só tolices! Que nos importam cadáveres ambulantes que só podem ser mantidos no túmulo por estacas que lhes atravessem o coração? Puro desvario.

— Mas com certeza — disse eu — o vampiro não era necessariamente um morto, não é verdade? Um vivo podia muito bem pegar-lhe o costume. Eu, por exemplo, já li a respeito de certos velhos que sugavam o sangue dos moços a fim de conservar a juventude.

— Tem razão, Watson. Numa dessas referências vem mencionada a lenda. Mas iremos dar atenção a tais coisas? Esta agência tem grande solidez e reputação, e assim deve se manter. O mundo é bastante grande para nós. Não precisamos recorrer a fantasmas. Receio que não possamos levar muito a sério esse Robert Ferguson. É provável que esta carta tenha sido escrita por ele e lance alguma luz sobre o problema que o aflige.

Pegou uma segunda missiva, que estava em cima da mesa e na qual não reparara enquanto se ocupava da primeira. Começou a lê-la com um ar sorridente, mas esse sorriso foi aos poucos cedendo lugar a uma expressão de intensa concentração e interesse. Terminada a leitura, ficou por algum tempo mergulhado em pensamentos, com a carta esquecida entre os dedos. Finalmente, com um estremeção, despertou do devaneio.

— Cheeseman's, Lamberley. Onde fica Lamberley, Watson?
— Fica em Sussex, ao sul de Horsham.
— Não muito longe, hein? E Cheeseman's?
— Conheço a região, Holmes. Está cheia de velhas casas cujas denominações se prendem aos homens que as construíram há séculos. Assim é que você encontra por lá Odley's e Harvey's e Carriton's... As pessoas estão esquecidas, mas seus nomes perduram nas casas.
— Precisamente — disse Holmes com frieza. Uma das singularidades de sua natureza orgulhosa e pouco comunicativa era que, embora arquivasse no cérebro com grande rapidez e cuidado qualquer nova informação, raramente manifestava agradecimento ao informante. — Desconfio de que antes de chegarmos ao fim saberemos muita coisa mais a respeito de Cheeseman's, Lamberley. A carta é, como eu esperava, de Robert Ferguson. A propósito, ele diz que o conhece.
— A mim?
— É melhor que você a leia.

Holmes entregou-a a mim. Encimava-a o citado endereço.

"Prezado sr. Holmes: [dizia a carta]

Escrevo-lhe a conselho de meus advogados. Porém, o assunto que me traz à sua presença é tão delicado que nem sei como encetá-lo. Diz respeito a um amigo que aqui represento. Esse cavalheiro casou-se há uns cinco anos com uma senhora peruana, filha de um negociante do Peru, que ele conheceu numa transação de importação de nitratos. A dama era muito formosa, mas sua nacionalidade estrangeira e sua religião diferente ocasionaram uma divergência de interesses e de sentimentos entre marido e mulher, de modo que, depois de algum tempo, seu amor por ela talvez tenha esfriado, chegando ele provavelmente a considerar sua união como um erro. Meu amigo descobriu no caráter da esposa certos aspectos que nunca chegou a sondar ou entender. Isso era tanto mais penoso quanto ela se mostrava a esposa mais dedicada que um homem podia ter, segundo todas as aparências, absolutamente devotada a ele.
Passo agora ao ponto que esclarecerei melhor quando nos encontrarmos. É que a presente missiva tem exclusivamente por fim dar-lhe um apanhado geral da situação e saber se o senhor gostaria de se envolver pessoalmente no assunto. A senhora começou a exibir algumas facetas curiosas, inteiramente alheias à sua índole, em geral branda e delicada. O cavalheiro foi casado duas vezes, tendo um filho do primeiro matrimônio. O rapazinho tem agora quinze anos e é um adolescente encantador e muito meigo, embora infelizmente aleijado em conseqüência de um acidente que sofreu quando era criança. Duas vezes a esposa foi apanhada maltratando o pobre rapaz, sem qualquer provocação da parte deste. Uma vez, bateu-lhe com um pau, deixando-lhe um grande vergão num braço.
Isso, entretanto, foi coisa sem importância em comparação com o procedimento dela para com seu próprio filhinho, uma linda criança que ainda não conta um ano de idade. Em certa ocasião, há cerca de um mês, a criança ficara sozinha por alguns minutos, sem a assistência da ama. Um grito estridente, soltado pelo bebé, como que provocado por dor aguda, fez a ama voltar para junto dele. Ao entrar correndo no quarto, viu a patroa inclinada sobre o bebé, aparentemente no ato de lhe morder o pescoço. Havia nesse ponto um pequeno ferimento do qual corria um fio de sangue. A ama ficou tão horrorizada que teve vontade de chamar o pai da criança, porém a senhora implorou-lhe que não o fizesse, e chegou a dar-lhe cinco libras como paga de seu silêncio. Não foi apresentada nenhuma explicação para o caso, e daquela vez a coisa ficou por ali.
Todavia, o incidente deixou uma terrível impressão no espírito da ama, e daí por diante ela começou a observar a patroa com maior atenção e a vigiar mais de perto o bebê, a quem amava ternamente. Pareceu-lhe que, assim como ela observava a mãe, também a mãe a observava, e que cada vez que era obrigada a deixar o bebê sozinho, a mãe ficava à espera para se aproximar dele. Dia e noite a ama protegia a criança, e noite e dia a mãe, silenciosa e vigilante, parecia estar à espreita, como o lobo espera o cordeiro. O caso talvez se lhe afigure incrível, e contudo rogo-lhe que o leve a sério, porque a vida de uma criança e a sanidade mental de um homem podem depender dele.
Chegou afinal o dia em que já não foi possível conservar oculta do marido a terrível realidade. Os nervos da ama haviam cedido; a pobre mulher não suportou por mais tempo tamanho esforço e fez uma confissão franca e completa ao homem. A este, a história pareceu tão absurda como talvez pareça agora ao senhor. Ele sabia que a esposa era uma mulher amorosa e, excluindo suas agressões contra o enteado, uma mãe afetuosa. Como admitir, então, que ela ferisse o próprio filhinho? Disse à ama que ela devia estar sonhando, que suas suspeitas eram próprias de uma demente e que não era possível tolerar acusações daquele tipo contra a patroa. Enquanto os dois conversavam, ouviu-se de súbito um grito lancinante. Ama e patrão correram ao quarto do bebê. Imagine os sentimentos do marido, sr. Holmes, ao ver a esposa, que estivera de joelhos, levantar-se de junto do berço, e ao ver sangue sobre o pescoço descoberto do bebê e o lençol. Com um grito de horror, virou o rosto de sua mulher para o lado da luz e viu-lhe sangue nos lábios. Fora ela — ela, sem sombra de dúvida — quem tinha bebido o sangue da pobre criança.
É essa a atual situação do caso. Ela agora não sai do quarto. Não foi dada nenhuma explicação. O marido está quase desnorteado. De vampirismo, tanto ele como eu pouco mais sabemos que o nome. Pensávamos que era alguma lenda estrangeira. E todavia aqui, bem no coração do Sussex inglês... Bem, tudo isso pode ser discutido com o senhor pela manhã. É possível? Estará disposto a usar suas grandes faculdades para ajudar um homem aflito? Em caso afirmativo, queira telegrafar para Ferguson, Cheeseman's, Lamberley, e aí pelas dez horas eu estarei em sua casa. Com grande estima e apreço,

Robert Ferguson.

P.S. — Creio que seu amigo Watson jogou rúgbi para o Black-heath quando eu era jogador do Richmond. É a única apresentação da minha pessoa que posso oferecer
."

— Claro que me lembro dele — disse eu ao largar a carta. — O imenso Bob Ferguson, o melhor jogador que o Richmond já teve. Foi sempre um sujeito de bom coração. Por isso não admira que se preocupe tanto com a aflição de um amigo.

Holmes olhou pensativo para mim e abanou a cabeça.

— Ainda não cheguei a compreender aquilo de que você é capaz e aquilo de que não é, Watson — disse ele. — Há na sua pessoa possibilidades inexploradas. Como bom companheiro, mande-lhe um telegrama. "Examinarei seu caso com prazer."
— Seu caso?
— Não vamos consentir que ele pense que esta agência é um asilo de papalvos. É claro que o caso é dele. Mande-lhe o telegrama e deixe o negócio descansar até amanhã.

No dia seguinte, precisamente às dez horas da manhã, Ferguson entrou no nosso aposento. A lembrança que eu conservava dele era a de um homem alto e esguio, de membros ágeis, que lhe conferiam movimentos fáceis e rápidos, capazes de fazer face a qualquer adversário no campo. Nada na vida é mais penoso do que topar com a ruína de um belo atleta que conhecemos na flor da idade. Sua enorme compleição tinha descaído, seu cabelo louro-claro estava ralo e os membros, encurvados. Receio ter despertado nele emoções correspondentes.

— Olá, Watson — disse, e sua voz ainda era grave e cordial. — Você já não parece mais o homem que era quando eu o atirei por cima das cordas, no meio da multidão, no Old Deer Park. Também devo ter mudado um pouco. Porém, envelheci ainda mais nestes dois últimos dias. Vejo pelo seu telegrama, sr. Holmes, que é inútil fingir que represento alguém.
— É mais simples tratar sem intermediário — disse Holmes.
— Não há dúvida. Mas o senhor deve calcular como é difícil falar da única mulher que temos obrigação de proteger e ajudar. Que posso fazer? Como referir à polícia uma história destas? E, contudo, os pequenos têm de ser protegidos. Será loucura, sr. Holmes? Será qualquer coisa no sangue? O senhor tem algum caso semelhante em sua experiência? Pelo amor de Deus, dê-me qualquer conselho, pois estou quase a ponto de perder a cabeça.
— É muito natural, sr. Ferguson. Agora sente-se e acalme-se e dê-me algumas respostas claras. Posso lhe assegurar que, quanto a mim, estou longe de perder a cabeça, e tenho confiança em que arranjaremos uma solução. Antes de mais nada, fale-me das providências que tomou. Sua esposa ainda se encontra perto das crianças?
— Tivemos uma cena medonha. Ela é uma mulher muito afetuosa, sr. Holmes. Se já houve mulher que amou um homem de todo o coração e com toda a alma, minha esposa é essa mulher. Sentiu no mais íntimo de seu ser a descoberta que fiz desse horrendo, desse incrível segredo. Nem ao menos quis falar. A única resposta que deu às minhas censuras foi fitar-me com uns olhos em que se lia uma espécie de desespero selvagem. Depois, dirigiu-se arrebatadamente para o seu quarto e fechou-se lá dentro. Desde então, recusou-se a me ver. Ela tem uma criada que já a servia antes do casamento, chamada Dolores... uma amiga, mais que uma criada. Dolores leva-lhe a comida.
— Então a criança não se acha em perigo imediato?
— A sra. Mason, a ama, jurou que não a abandonará nem de dia nem de noite. Ela me merece absoluta confiança. Mais inquietação me causa o pobre do pequeno Jack, pois, conforme lhe disse em minha carta, ele foi duas vezes agredido por minha mulher.
— Mas nunca foi gravemente ferido?
— Não. Ela bateu nele desapiedadamente. Isto é muito mais terrível porque ele é um inofensivo aleijadinho. — As feições descarnadas de Ferguson abrandaram-se quando ele começou a falar do menino. — Era de esperar que o estado do pobrezinho enternecesse qualquer coração. Foi uma queda na infância, sr. Holmes, que lhe ocasionou um defeito na espinha. Mas aquele corpo abriga o coração mais terno e afetuoso.

Holmes pegara a carta da véspera e leu-a toda outra vez.

— Quantas pessoas há em sua casa, sr. Ferguson?
— Duas criadas que estão lá há pouco tempo. Um moço de cavalariça, Michael, que dorme em casa. Minha mulher, eu, o meu rapazinho Jack, o bebê, Dolores e a sra. Mason. Aí tem todos.
— Segundo depreendo, o senhor não conhecia bem sua esposa na época do casamento.
— Conheci-a apenas umas semanas antes.
— Há quanto tempo essa criada Dolores estava com ela?
— Havia alguns anos.
— Então ela devia conhecer a índole de sua esposa melhor que o senhor, não é verdade?
— Sim, é provável.

Holmes tomou um apontamento.

— Imagino — disse ele — que poderei ser mais útil em Lamberley do que aqui. O caso é essencialmente de investigação pessoal. Se a senhora permanece no quarto, nossa presença decerto não a molestará. Ficaremos, evidentemente, na estalagem.

Ferguson teve um gesto de alívio.

— É o que eu esperava, sr. Holmes. Se o senhor puder ir, há um trem excelente, que parte da Estação Vitória às duas horas.
— É claro que iremos. Tenho agora umas férias, e posso dedicar ao seu caso todas as minhas energias. Watson sem dúvida vai conosco. Há, porém, um ou dois pontos sobre os quais desejo ter mais certezas antes de partirmos. Segundo compreendi, a infeliz senhora foi vista agredindo ambas as crianças, a dela e o seu filho, não?
— Exatamente.
— Mas os ataques tomam formas diferentes, não é verdade? Ela bateu no seu filho.
— Uma vez com um pau e outra, ferozmente, com as mãos.
— Ela não explicou por que fez isso?
— Não. Disse apenas que o odiava. Disse-o repetidas vezes.
— Bem, não é coisa muito rara nas madrastas. Chamaríamos a isso ciúme póstumo. Sua mulher é de natureza ciumenta?
— Muito ciumenta, um ciúme tão forte quanto o seu ardente amor tropical.
— Mas o rapazinho tem, segundo me parece, quinze anos, e é provavelmente de inteligência muito desenvolvida, uma vez que o corpo ficou tolhido no seu desenvolvimento. Ele não lhe deu nenhuma explicação a respeito dos ataques de que foi vítima?
— Não. Declarou simplesmente que não havia razão para isso.
— Antes disso eles eram amigos?
— Não. Nunca houve afeição entre os dois.
— Contudo, o senhor diz que ele é afetuoso.
— Jamais houve filho mais afeiçoado. Minha vida é a sua vida. Ele se interessa extraordinariamente por tudo quanto eu digo ou faço.

Holmes tornou a tomar nota. Durante algum tempo esteve mergulhado em cogitações.

— O senhor e o menino eram sem dúvida muito amigos antes do segundo matrimônio. A solidão uniu-os muito, não é assim?
— Sim.
— E o menino, tendo uma índole tão afetuosa, com toda a certeza era devotado à memória de sua mãe, não é verdade?
— Muito devotado.
— Parece realmente ser uma criança bem interessante. Mais um esclarecimento a propósito desses ataques: coincidiam no tempo essas estranhas agressões contra o bebê e o ataque contra o seu filho?
— No primeiro caso, sim. Era como se a invadisse uma fúria incontrolável e ela se sentisse forçada a descarregá-la em ambos. No segundo caso, foi apenas Jack a vítima. A sra. Mason não teve queixa a fazer a respeito da criança.
— Isso certamente vem complicar o caso.
— Como assim, sr. Holmes?
— É que nós formulamos teorias provisórias e esperamos até que o tempo ou um conhecimento mais pleno do assunto as desmintam. É um mau hábito, sr. Ferguson; mas a natureza humana é fraca. Receio que seu velho amigo aqui tenha uma opinião um tanto exagerada dos meus métodos científicos. Contudo, direi somente que seu problema, nesta primeira fase, não me parece insolúvel, e que certamente nos encontraremos na Estação Vitória às duas horas.

Era uma tarde tristonha e brumosa de novembro quando, depois de deixarmos nossa bagagem no Tabuleiro de Xadrez, em Lamberley, nossa carruagem entrou por uma estrada sinuosa, onde se notava a argila de Sussex, e finalmente chegamos à isolada e vetusta casa de fazenda em que Ferguson morava. Era uma construção enorme e irregular, muito velha no centro, muito nova nas alas, com altas chaminés da época dos Tudors e com um telhado de lajes de Horsham, em bico e manchado de liquens. Os degraus da soleira estavam gastos pelo uso, e os antigos ladrilhos que forravam o vestíbulo traziam a marca de um signo icônico, representando um queijo e um homem, do nome do primitivo construtor. No interior, as pesadas vigas de carvalho davam ao teto um aspecto ondulado, e os soalhos irregulares formavam curvas sensíveis. Um cheiro de antigüidade e deterioração desprendia-se de todo o prédio em ruínas.

Havia uma sala central muito espaçosa para a qual Ferguson nos conduziu. Ali, numa imensa lareira antiquada, com uma grade de ferro que tinha na parte de trás a data de 1670, ardia uma esplêndida fogueira, alimentada pela lenha, que crepitava.

O aposento era, conforme verifiquei com um relancear de olhos, um misto singular de datas e de lugares. As paredes almofadadas até certo ponto bem podiam ter pertencido ao primitivo proprietário rural do século XVII. Eram, entretanto, ornadas na parte inferior por uma linha de aquarelas modernas e bem escolhidas; ao passo que em cima, no ponto onde o estuque amarelo substituía o carvalho, estava pendurada uma bela coleção de armas e utensílios sul-americanos, que sem dúvida tinham sido trazidos pela dama peruana do andar superior. Holmes ergueu-se, com aquela rápida curiosidade que brotava do seu espírito irrequieto, e pôs-se a examiná-los com certo cuidado. Voltou-se, com seus olhos sonhadores.

— Olá! — gritou ele. — Pst!

Um cãozinho spaniel estivera deitado num cesto ao canto. Veio andando vagarosamente na direção de seu dono. Caminhava com dificuldade. Suas pernas traseiras moviam-se irregularmente, e o rabo arrastava-se pelo chão. Lambeu a mão de Ferguson.

— O que é, sr. Holmes?
— O cão. Quem tem ele?
— É o que deixou o veterinário perplexo. Uma espécie de paralisia. Segundo ele, trata-se de meningite dorsal. Mas está melhorando. Em breve ele estará bom, não é verdade, Cario?

A cauda pendente foi sacudida por um tremor equivalente a uma aprovação. Os olhos macilentos do animal passearam de um de nós para o outro. Ele sabia que estávamos discutindo o seu caso.

— Isso apareceu sem mais nem menos?
— Numa única noite.
— Há quanto tempo?
— Deve ter sido há quatro meses.
— Muito notável. Bastante sugestivo.
— Que é que o senhor vê nisso, sr. Holmes?
— Uma confirmação do que já pensava.
— Pelo amor de Deus, que pensa, sr. Holmes? Pode ser que para o senhor seja um simples quebra-cabeça intelectual, mas para mim significa vida ou morte! Minha mulher, uma assassina virtual... meu filhinho em constante perigo! Não graceje comigo, sr. Holmes. O assunto é demasiado sério.

O colossal jogador de rúgbi tremia dos pés à cabeça. Holmes pôs-lhe mansamente a mão sobre o braço.

— Temo que o senhor vá sofrer, sr. Ferguson, seja qual for a solução — disse ele. — Preferiria poupá-lo de tudo, se pudesse. No momento, não posso dizer mais nada; porém, antes de deixar esta casa, é possível que disponha de alguns dados mais positivos.
— Praza a Deus que assim seja! Desculpem-me, senhores, mas vou subir até o quarto de minha mulher para ver se houve alguma mudança.

Esteve ausente alguns minutos, que Holmes aproveitou para retornar ao exame das curiosidades que havia na parede. Quando o dono da casa voltou, via-se claramente no seu semblante abatido que não houvera qualquer progresso. Acompanhava-o uma jovem morena, alta e esbelta.

— O chá está pronto, Dolores? — perguntou Ferguson. — Não deixe que falte seja o que for à sua patroa.
— Ela está muito doente — exclamou a jovem, olhando para o patrão com olhos indignados. — Não quer comer. Está muito doente. Precisa de um médico. Tenho medo de ficar sozinha com ela sem um médico.

Ferguson dirigiu-me um olhar quase de súplica.

— Teria grande prazer se pudesse ser útil em alguma coisa.
— Quem sabe se sua patroa receberia o dr. Watson?
— Eu o levo lá sem pedir licença. Ela precisa de médico.
— Então vamos imediatamente.

A jovem tremia de emoção; subi com ela a escada, e depois percorremos um corredor antigo, ao fim do qual havia uma porta maciça, chapeada de ferro. Veio-me à ideia que, se Ferguson tentasse entrar à força no aposento da esposa, tal coisa não lhe seria muito fácil. A moça tirou uma chave do bolso, e as pesadas pranchas de carvalho rangeram nos velhos gonzos. Passei, e ela me seguiu logo, fechando a porta imediatamente.

Na cama, jazia uma mulher que tinha, evidentemente, febre alta. Estava apenas meio acordada, mas, assim que entrei, ergueu os olhos, aterrorizados mas formosos, e fitou-os em mim apreensivamente. Ao ver um estranho, pareceu tranqüilizar-se, e com um suspiro de alívio deixou-se cair sobre o travesseiro. Acerquei-me dela, dizendo algumas palavras de consolação, e a enferma permaneceu imóvel enquanto eu lhe tomava o pulso e a temperatura. Ambos estavam altos, e o pulso, descompassado, e contudo minha impressão era de que o estado dela era resultado mais de uma excitação mental e nervosa do que de uma enfermidade real.

— Ela está aí deitada há dias — disse a moça. — Receio que morra.

A mulher voltou para mim seu belo rosto afogueado.

— Onde está o meu marido?
— Está lá embaixo e queria vê-la.
— Eu não quero vê-lo. Não quero vê-lo. — E, dizendo isso, parecia que ia entrar em delírio. — É meu inimigo, não é meu marido! Oh, que hei de fazer com esse demônio?
— Posso ajudá-la de alguma maneira?
— Não. Ninguém pode me ajudar. Está acabado. Tudo está destruído. Faça eu o que fizer, está tudo destruído.

Aquela mulher devia ser vítima de alguma alucinação. Não me era possível pensar no honrado Bob Ferguson sob as vestes de inimigo ou de demônio.

— Minha senhora — disse-lhe eu —, seu marido lhe dedica o maior afeto. Ele está profundamente penalizado com o que houve.

Ela tornou a voltar para mim aqueles lindos olhos.

— Ele me ama. Sim. Mas, e eu, não o amo? Não o amo a ponto de antes querer me sacrificar do que lhe destruir o bondoso coração? É assim que eu o amo. E, contudo, ele foi capaz de pensar isso de mim, de afirmar isso de mim.
— Ele está cheio de mágoa, mas não consegue compreender.
— Sim. Não consegue compreender, mas devia ter confiança.
— Não quer vê-lo? — propus.
— Não, não. Não me esqueço daquelas palavras terríveis e da expressão de seu rosto. Não quero vê-lo. Agora pode ir embora. O senhor nada pode fazer por mim. Diga-lhe somente uma coisa: quero o meu filho. Tenho direito a ele. É o único recado que lhe mando. — Dito isso, virou-se para a parede e nada mais acrescentou.

Desci a escada e voltei para a sala, onde Fergurson e Holmes ainda permaneciam sentados, junto do fogo. Ferguson ouviu com tristeza o relatório da entrevista.

— Como posso lhe mandar a criança? — disse ele. — Sei lá se a invade de repente algum estranho impulso? Como poderei esquecer a cena em que a vi levantar-se de junto de nosso filhinho com o sangue dele na boca? — Estremeceu a essa recordação. — Com a sra. Mason a criança está segura, e com ela deve ficar.

Uma mocinha elegante, a única coisa moderna que tínhamos visto na casa, trouxera o chá. Enquanto ela o servia, a porta abriu-se, e entrou um jovem. Era um adolescente notável, de semblante pálido e cabelos louros, com vivos olhos azul-claros nos quais cintilou de súbito uma centelha de emoção e alegria, quando se fixaram no pai. Caminhou para a frente e atirou os braços em redor do pescoço dele com o abandono de uma jovem amorosa.

— Oh, papai — exclamou —, não sabia que ia chegar agora! Se soubesse, estaria aqui à sua espera. Oh, como estou contente de vê-lo!

Ferguson desembaraçou-se brandamente do abraço, não sem certo constrangimento.

— Meu querido — disse, alisando delicadamente com a mão a cabeça loura do filho. — Vim mais cedo porque consegui convencer estes meus amigos, o sr. Holmes e o dr. Watson, a passarem uma noite conosco.
— Este é o sr. Holmes, o detetive?
— Sim.

O jovem lançou-nos um olhar penetrante e, segundo me pareceu, pouco amistoso.

— E seu outro filho, sr. Ferguson? — indagou Holmes. — Podemos conhecê-lo?
— Peça à sra. Mason que traga o bebé aqui — disse Ferguson. O rapazinho saiu, arrastando a perna com um passo curioso, que revelou ao meu olho clínico que sofria da espinha. Voltou pouco depois, e atrás dele vinha uma mulher alta e magra, trazendo nos braços uma linda criança de olhos negros e cabelos dourados, uma admirável mistura do saxão e do latino. Era evidente o afeto que Ferguson lhe dedicava, pois tomou-a nos braços e afagou-a carinhosamente.
— É preciso coragem para magoar um anjinho destes — disse ele entre dentes, ao mesmo tempo em que pousava os olhos na pequena dobra muito vermelha que se via no pescoço da criança.

Foi nesse momento que eu, por acaso, olhei para Holmes e vi no seu olhar uma atenção pouco comum. Seu rosto estava imóvel, como se tivesse sido esculpido em marfim antigo, e seus olhos, que tinham passado por um momento do pai para o filho, haviam se fixado agora, com intensa curiosidade, em alguma coisa que se encontrava do outro lado do aposento. Acompanhando-lhe o olhar, pude apenas conjecturar que estava olhando para fora, pela janela, para o jardim melancólico, que gotejava. Verdade é que uma das folhas da janela estava fechada e tapava a vista, mas apesar disso era certamente na janela que Holmes fixava sua concentrada atenção. Nisso, sorriu, e seus olhos tornaram a pousar no bebê. Lá estava, no seu pescocinho rechonchudo, aquele pequeno sinal enrugado. Sem dizer palavra, Holmes examinou-o com cuidado. Finalmente, abanou um dos punhozinhos roliços, que se mexiam na sua frente.

— Então, meu homenzinho? Você fez uma estranha entrada no mundo. Sra. Mason, eu gostaria de lhe dar uma palavrinha em particular.

Chamou-a à parte e falou-lhe sério, durante alguns minutos. Ouvi somente as últimas palavras, que foram as seguintes: "Sua preocupação vai acabar em breve, segundo espero". A mulher, que parecia uma criatura azeda e calada, afastou-se com a criança,

— Como é essa sra. Mason? — perguntou Holmes.
— Aparentemente não é muito simpática, como o senhor vê, mas tem um coração de ouro, e é toda dedicação para a criança.
— Você gosta dela, Jack? — Com essa pergunta, Holmes voltou-se de repente para o rapazinho. O rosto expressivo do interpelado cobriu-se de sombra, e ele abanou a cabeça.
— Jack tem fortes simpatias e antipatias — balbuciou Ferguson, enlaçando o rapazinho com o braço. — Felizmente, sou uma das suas simpatias. O menino arrulhou e escondeu meigamente a cabeça no peito do pai. Ferguson, com brandura, desembaraçou-se dele.
— Agora pode sair, Jack — disse, e com olhos amorosos ficou observando o filho até ele desaparecer. — Então, sr. Holmes — prosseguiu depois —, quase me convenço de que o trouxe a um beco sem saída, pois que mais poderá o senhor fazer senão sentir pena de mim? De seu ponto de vista, este deve ser um assunto extremamente delicado e complexo.
— Delicado é, por certo — confirmou meu amigo, com um gracioso sorriso —, mas até agora não lhe notei nenhuma complexidade. É um caso para dedução intelectual; mas quando essa primitiva dedução é confirmada ponto por ponto por um bom número de episódios independentes, então o subjetivo passa a objetivo e podemos dizer com certeza que atingimos nosso intuito. De fato, eu o atingira antes de sairmos da Baker Street, sendo o resto mera observação e confirmação.

Ferguson pôs a enorme mão na testa vincada.

— Por caridade, Holmes — disse ele com voz rouca —, se sabe a verdade, não me deixe mais tempo na incerteza. Qual é a minha posição? Que devo fazer? Pouco me importa o modo como descobriu os fatos, uma vez que realmente os sabe.
— Devo-lhe certamente uma explicação, e o senhor há de tê-la. Mas espero que me permita conduzir o assunto a meu modo. Watson, a senhora se acha em condições de nos receber?
— Ela está doente, mas em seu perfeito juízo.
— Muito bem. É somente na presença dela que podemos esclarecer esta questão. Subamos ao seu quarto.
— Ela não vai querer me ver! — gritou Ferguson.
— Oh, sim, vai vê-lo, sim — disse Holmes. Rabiscou algumas linhas numa folha de papel. — Pelo menos você, Watson, tem entrada. Quer ter a bondade de lhe entregar este bilhete?

Tornei a subir e entreguei o papel a Dolores, que abriu cautelosamente a porta. Um minuto depois, soou lá dentro um grito, um grito em que parecia haver um misto de alegria e de surpresa. Dolores apareceu.

— Ela vai recebê-los. Disse que quer ouvi-los.

Quando lá de cima os chamei, Ferguson e Holmes subiram. Ao entrarmos no quarto, Ferguson deu alguns passos na direção da esposa, que havia se erguido um pouco no leito, mas ela levantou a mão como que para detê-lo. O pobre homem afundou-se, sucumbido, numa cadeira de braços, enquanto Holmes se sentava ao lado dele depois de fazer um leve cumprimento à senhora, que olhou para ele cheia de espanto.

— Creio que podemos dispensar Dolores — disse Holmes. — Oh, muito bem, senhora; se prefere que ela fique, não ponho objeção. E agora, sr. Ferguson, como sou um homem ocupado e devo atender a muitos chamados, meus métodos têm de ser breves e diretos. A intervenção cirúrgica, quanto mais rápida, menos dolorosa. Deixe-me primeiro dizer-lhe algo que o confortará bastante. Sua esposa é uma mulher muito boa, muito amorosa e muito mal-tratada.

Ferguson soergueu-se da cadeira com um grito de alegria.

— Prove-o, sr. Holmes, e meu débito para com o senhor será eterno.
— Vou provar, mas, ao fazê-lo, tenho de magoá-lo profundamente em outro sentido.
— Não importa, contanto que isente minha mulher de qualquer responsabilidade. Tudo o mais na terra é ínfimo, comparado a isso.
— Deixe-me então transmitir-lhe o fio do raciocínio que passou por meu espírito na Baker Street. A idéia de um vampiro era para mim absurda. Tais coisas não acontecem na prática do crime, na Inglaterra. E, todavia, sua observação foi exata. O senhor viu sua esposa levantar-se de junto do berço da criança com sangue nos lábios.
— Vi realmente.
— Não lhe ocorreu que uma ferida que sangra pode ser sugada com outro fim que não seja o de tirar o sangue? Não houve até uma rainha na história da Inglaterra que sugou uma ferida para dela extrair veneno?
— Veneno!
— Estamos numa casa sul-americana. Meu instinto sentiu a presença dessas armas na parede antes que meus olhos as vissem. Podia ter sido outro veneno, mas isso foi o que me ocorreu. Quando vi aquele pequeno carcás vazio ao lado do arco, era justamente o que eu esperava ver. Se a criança fosse atingida por uma dessas flechas embebidas em curare, ou qualquer outra tisana infernal, a morte seria certa, se o veneno não fosse logo sugado.

E o cão? Se alguém ia usar tal veneno, não o experimentaria primeiro, a fim de se certificar de que a terrível droga não perdera sua eficácia? Eu não podia prever a existência do cão, mas pelo menos adivinhei-a, e ele enquadrou-se perfeitamente na minha reconstrução.

Compreende agora? Sua esposa temia um desses ataques. Viu-o realizado e salvou a vida da criança, e no entanto esquivou-se de lhe contar toda a verdade, porque sabia que o senhor ama o seu filho e receava dilacerar o coração do marido.

— Jacky?!
— Ainda há pouco eu o observei, enquanto o senhor fazia carinho no bebé. Seu rosto refletia-se com nitidez no vidro da janela, no ponto em que a respectiva veneziana formava um bom fundo de quadro. Vi-lhe um tal ciúme, um ódio tão cruel, como poucas vezes tenho visto num semblante humano!
— O meu Jack!
— É preciso coragem, sr. Ferguson, para aparar o golpe. E isso é tanto mais penoso quanto o fato de que o que lhe sugeriu tal ação foi um amor deformado, um amor exagerado e maníaco para com o senhor e provavelmente para com sua falecida mãe. Sua alma está até o íntimo consumida de ódio por essa esplêndida criança, cuja saúde e beleza formam um contraste com a debilidade dele.
— Santo Deus! Mas é incrível!
— Disse a verdade, minha senhora?

Ela soluçava, com o rosto enterrado nas almofadas. Nesse momento, virou-se para o marido.

— Como podia eu dizer-lhe isso, Bob? Eu sentia o golpe que seria para você. Era melhor que eu esperasse e que você soubesse por outra boca que não a minha. Quando este cavalheiro, que parece ter poderes mágicos, me escreveu dizendo que sabia tudo, fiquei contente.
— Creio que o que eu aconselharia ao jovem Jacky seria passar um ano no mar — disse Holmes, levantando-se.
— Apenas uma coisa ainda está envolta em mistério, minha senhora. Podemos perfeitamente entender os seus ataques contra o jovem Jacky. A paciência de uma mãe tem limites. Mas como a senhora teve coragem de abandonar a criança nos dois últimos dias?
— Contei tudo à sra. Mason. Ela sabia.

Ferguson estava junto ao leito, sufocado, com as mãos estendidas e trémulas.
— Creio que é hora de irmos embora, Watson — disse Holmes num cochicho. — Se você pegar num dos cotovelos da fidelíssima Dolores, eu pegarei no outro. E agora — acrescentou ele, fechando a porta depois de passar —, creio que podemos deixá-los decidir o resto entre eles.

Tenho apenas mais um apontamento sobre este caso. É a carta que Holmes escreveu em resposta final àquela com que abre a presente narrativa. Diz:

Baker Street, 21 de novembro.
Assunto: Vampiros.
Prezados senhores:

Com referência à sua carta de 19 do corrente, comunico-lhes que me interessei vivamente pela questão proposta pelo cliente de V. Sas., sr. Robert Ferguson, da firma Ferguson & Muirhead, vendedores de chá, de Mincing Lane, e que o assunto foi resolvido satisfatoriamente.
Com meus agradecimentos pela recomendação d V. Sas., seu, com elevado apreço,
Sherlock Holmes


Fonte:
DOYLE, Sir Arthur Conan. As Aventuras de Sherlock Holmes, Volume VII, Círculo do Livro (tradução de Hamílcar de Garcia).
Publicado em The Strand Magazine, Londres, 1924

terça-feira, 15 de julho de 2008

Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa

Alfabeto
Nova Regra O alfabeto é agora formado por 26 letras
Regra Antiga O "k", "w" e "y" não eram consideradas letras do nosso alfabeto.
Como Será Essas letras serão usadas em siglas, símbolos, nomes próprios, palavras estrangeiras e seus derivados. Exemplos: km, watt, Byron, byroniano

Trema
Nova Regra Não existe mais o trema em língua portuguesa. Apenas em casos de nomes próprios e seus derivados, por exemplo: Müller, mülleriano
Regra Antiga agüentar, conseqüência, cinqüenta, qüinqüênio, frqüência, freqüente, eloqüência, eloqüente, argüição, delinqüir, pingüim, tranqüilo, lingüiça
Como Será aguentar, consequência, cinquenta, quinquênio, frequência, frequente, eloquência, eloquente, arguição, delinquir, pinguim, tranquilo, linguiça.

Acentuação
Nova Regra Ditongos abertos (ei, oi) não são mais acentuados em palavras paroxítonas
Regra Antiga assembléia, platéia, idéia, colméia, boléia, panacéia, Coréia, hebréia, bóia, paranóia, jibóia, apóio, heróico, paranóico
Como Será assembleia, plateia, ideia, colmeia, boleia, panaceia, Coreia, hebreia, boia, paranoia, jiboia, apoio, heroico, paranoico

obs: nos ditongos abertos de palavras oxítonas e monossílabas o acento continua: herói, constrói, dói, anéis, papéis.

obs2: o acento no ditongo aberto "eu" continua: chapéu, véu, céu, ilhéu.

Acentuação
Nova Regra O hiato "oo" não é mais acentuado. O hiato "ee" não é mais acentuado
Regra Antiga enjôo, vôo, corôo, perdôo, côo, môo, abençôo, povôo; crêem, dêem, lêem, vêem, descrêem, relêem, revêem
Como Será enjoo, voo, coroo, perdoo, coo, moo, abençoo, povoo; creem, deem, leem, veem, descreem, releem, reveem

Acentuação
Nova Regra Não existe mais o acento diferencial em palavras homógrafas
Regra Antiga pára (verbo), péla (substantivo e verbo), pêlo (substantivo), pêra (substantivo), péra (substantivo), pólo (substantivo)
Como Será para (verbo), pela (substantivo e verbo), pelo (substantivo), pera (substantivo), pera (substantivo), polo (substantivo)

Obs: o acento diferencial ainda permanece no verbo "poder" (3ª pessoa do Pretérito Perfeito do Indicativo - "pôde") e no verbo "pôr" para diferenciar da preposição "por"

Acentuação
Nova Regra Não se acentua mais a letra "u" nas formas verbais rizotônicas, quando precedido de "g" ou "q" e antes de "e" ou "i" (gue, que, gui, qui)
Regra Antiga argúi, apazigúe, averigúe, enxagúe, enxagúemos, obliqúe
Como Será argui, apazigue,averigue, enxague, ensaguemos, oblique

Acentuação
Nova Regra Não se acentua mais "i" e "u" tônicos em paroxítonas quando precedidos de ditongo
Regra Antiga baiúca, boiúna, cheiínho, saiínha, feiúra, feiúme
Como Será baiuca, boiuna, cheiinho, saiinha, feiura, feiume

Hífen
Nova Regra O hífen não é mais utilizado em palavras formadas de prefixos (ou falsos prefixos) terminados em vogal + palavras iniciadas por "r" ou "s", sendo que essas devem ser dobradas
Regra Antiga ante-sala, ante-sacristia, auto-retrato, anti-social, anti-rugas, arqui-romântico, arqui-rivalidae, auto-regulamentação, auto-sugestão, contra-senso, contra-regra, contra-senha, extra-regimento, extra-sístole, extra-seco, infra-som, ultra-sonografia, semi-real, semi-sintético, supra-renal, supra-sensível
Como Será antessala, antessacristia, autorretrato, antissocial, antirrugas, arquirromântico, arquirrivalidade, autorregulamentação, contrassenha, extrarregimento, extrassístole, extrasseco, infrassom, inrarrenal, ultrarromântico, ultrassonografia, suprarrenal, suprassensível

obs: em prefixos terminados por "r", permanece o hífen se a palavra seguinte for iniciada pela mesma letra:
hiper-realista, hiper-requintado, hiper-requisitado, inter-racial, inter-regional, inter-relação, super-racional, super-realista, super-resistente etc.

Hífen
Nova Regra O hífen não é mais utilizado em palavras formadas de prefixos (ou falsos prefixos) terminados em vogal + palavras iniciadas por outra vogal auto-afirmação
Regra Antiga auto-ajuda, auto-aprendizagem, auto-escola, auto-estrada, auto-instrução, contra-exemplo, contra-indicação, contra-ordem, extra-escolar, extra-oficial, infra-estrutura, intra-ocular, intra-uterino, neo-expressionista, neo-imperialista, semi-aberto, semi-árido, semi-automático, semi-embriagado, semi-obscuridade, supra-ocular, ultra-elevado autoafirmação,
Como Será autoajuda, autoaprendizabem, autoescola, autoestrada, autoinstrução, contraexemplo, contraindicação, contraordem, extraescolar, extraoficial, infraestrutura, intraocular, intrauterino, neoexpressionista, neoimperialista, semiaberto, semiautomático, semiárido, semiembriagado, semiobscuridade, supraocular, ultraelevado.

Obs: esta nova regra vai uniformizar algumas exceções já existentes antes: antiaéreo, antiamericano, socioeconômico etc.

Obs2: esta regra não se encaixa quando a palavra seguinte iniciar por "h": anti-herói, anti-higiênico, extra-humano, semi-herbáceo etc.

Hífen
Nova Regra Agora utiliza-se hífen quando a palavra é formada por um prefixo (ou falso prefixo) terminado em vogal + palavra iniciada pela mesma vogal.
Regra Antiga antiibérico, antiinflamatório, antiinflacionário, antiimperialista, arquiinimigo, arquiirmandade, microondas, microônibus, microorgânico
Como Será anti-ibérico, anti-inflamatório, anti-inflacionário, anti-imperialista, arqui-inimigo, arqui-irmandade, micro-ondas, micro-ônibus, micro-orgânico

obs: esta regra foi alterada por conta da regra anterior: prefixo termina com vogal + palavra inicia com vogal diferente = não tem hífen; prefixo termina com vogal + palavra inicia com mesma vogal = com hífen

obs2: uma exceção é o prefixo "co". Mesmo se a outra palavra inicia-se com a vogal "o",

NÃO utliza-se hífen.
Nova Regra Não usamos mais hífen em compostos que, pelo uso, perdeu-se a noção de composição
Regra Antiga manda-chuva, pára-quedas, pára-quedista, pára-lama, pára-brisa, pára-choque, pára-vento
Como Será mandachuva, paraquedas, paraquedista, paralama, parabrisa, pára-choque, paravento

Obs: o uso do hífen permanece em palavras compostas que não contêm elemento de ligação e constiui unidade sintagmática e semântica, mantendo o acento próprio, bem como naquelas que designam espécies botânicas e zoológicas:
ano-luz, azul-escuro, médico-cirurgião, conta-gotas, guarda-chuva, segunda-feira, tenente-coronel, beija-flor, couve-flor, erva-doce, mal-me-quer, bem-te-vi etc.

Observações Gerais
O uso do hífen permanece

Em palavras formadas por prefixos "ex", "vice", "soto" ex-marido, vice-presidente, soto-mestre

Em palavras formadas por prefixos "circum" e "pan" + palavras iniciadas em vogal, M ou N pan-americano, circum-navegação

Em palavras formadas com prefixos "pré", "pró" e "pós" + palavras que tem significado próprio pré-natal, pró-desarmamento, pós-graduação

Em palavras formadas pelas palavras "além", "aquém", "recém", "sem" além-mar, além-fronteiras, aquém-oceano, recém-nascidos, recém-casados, sem-número, sem-teto

Não existe mais hífen

Em locuções de qualquer tipo (substantivas, adjetivas, pronominais, verbais, adverbiais, prepositivas ou conjuncionais)
cão de guarda, fim de semana, café com leite, pão de mel, sala de jantar, cartão de visita, cor de vinho, à vontade, abaixo de, acerca de etc. água-de-colônia, arco-da-velha, cor-de-rosa, mais-que-perfeito, pé-de-meia, ao-deus-dará, à queima-roupa

Fonte:
Colaboração de Nilton Manoel

Geir Campos (1924 - 1999)

Geir Nuffer Campos nasceu em São José do Calçado (ES) no dia 28/02/1924. Foi piloto da marinha mercante e ex-combatente civil na Segunda Guerra Mundial. Formou-se em Direção Teatral (FEFIERJ-MEC, Rio), mestre e doutor em Comunicação Social pela Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), da qual foi professor. Sempre engajado nas lutas de seu tempo, foi um dos fundadores do Sindicato dos Escritores do Rio de Janeiro e da Associação Brasileira de Tradutores, hoje Sindicato Nacional dos Tradutores, de que foi presidente. Em 1962 candidatou-se a vereador na cidade de Niterói, mas foi derrotado.

Jornalista, colaborou no "Diário Carioca", "Correio da Manhã", "Última Hora", "O Estado", "Diário de Notícias", "Para Todos", Letras Fluminenses", "Jornal de Letras" e no jornal "A Ordem", de sua terra natal.

Radialista, apresentou na Rádio MEC, por mais de 20 anos, o programa "Poesia Viva".

Foi diretor da Biblioteca Pública Estadual de Niterói (1961-1962), transformando-a em um centro cultural. É de sua autoria, juntamente com Neusa França — que fez a música —, a letra do hino oficial de Brasília (DF).

A vida de Geir parece ter sido sempre ligada ao livro. Filho de pai dentista e mãe professora, estudou como interno no Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, o que deve ter fortalecido sua relação com a cultura escrita. De bom leitor passou a estudioso de línguas e literaturas. Morando em Niterói (RJ) desde 1941, logo conheceu os jovens do Grêmio Literário Humberto de Campos e a livraria-engraxataria Mônaco. Tornou-se uma espécie de guru na vida literária da cidade, orientando os escritores interessados em conhecer as novas tendências literárias, nacionais e estrangeiras. Trouxe para autografar nas reuniões matinais do Grupo de Amigos do Livro, presidido por Sávio Soares de Sousa, na então já Livraria Ideal, nomes como Astrojildo Pereira e Moacyr Félix, seu amigo da vida inteira.

Começou a escrever, em 1940, contos e poemas originais ou traduzidos, que foram publicados na imprensa. Em 1950, seu primeiro livro de poesias, "Rosa dos Rumos", foi publicado. Depois vieram "Da profissão do poeta", Canto claro & poemas anteriores", "Operário do canto", "Cantigas de acordar mulher", "Metanáutica" e "Canto de Peixe", dentre outros. Sua bibliografia inclui livros de contos, peças teatrais, obras de referência, literatura infanto-juvenil, ensaios e teses. Incluído pela crítica na famosa "Geração 45", que renovou a poesia brasileira, ao final dos anos cinqüenta já havia publicado nove livros de poesia, tendo recebido, em 1956, o Prêmio Olavo Bilac da Prefeitura do Distrito Federal por "Canto Claro & Poemas anteriores". Exímio tradutor, verteu para o Português obras de Rilke, Kafka, Brecht, Shakespeare, Herman Hesse, Walt Whitman e Sófocles. O ensaio "Carta aos livreiros do Brasil", obteve menção honrosa no concurso ao Prêmio Monteiro Lobato, promovido pela Academia Brasileira de Letras. Publicou significativa obra ensaística sobre tradução, que até hoje é fonte de referência para os interessados no assunto. É, também, de sua autoria, o "Pequeno Dicionário de Arte Poética", obra que contém centenas de verbetes e remissões, com farta exemplificação e resenha bibliográfica.

Fundou, com Thiago de Melo, em 1951, as Edições Hipocampo, que revolucionou as artes gráficas no Brasil. Foram publicados textos poéticos, em prosa e verso, de autores consagrados e novos, todos ilustrados primorosamente por grandes artistas. Os livros eram compostos tipograficamente, diagramados pelos próprios editores e impressos após o expediente da gráfica de fundo de quintal, em Niterói, dirigida por Antonio Marra e Armando Cabral Guedes. O processo de acabamento era feito na casa onde Geir residia, com a colaboração de toda a família. Dobravam-se as capas em forma de envelope, onde se inseriam as folhas soltas. Com tiragens médias de 116 exemplares, em dois anos foram feitas 20 edições, que incluíam nomes como Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles, Manuel Bandeira, Iberê Camargo, João Guimarães Rosa, Fayga Ostrower, Santa Rosa e Darel Valença.

Dele falou Aníbal Bragança, professor do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense e doutor em Ciências da Comunicação pela ECA/USP, autor, com Maria Lizete dos Santos, de "Geir Campos - O poeta, o editor & a Carta aos livreiros do Brasil", de onde extraímos os dados acima: "Geir Campos não foi apenas um artesão da palavra e um operário do canto. Esteve em todas as frentes de ação pelo fortalecimento do livro, como editor, como bibliotecário, como tradutor, como líder da categoria, como professor e como autor. Autor, diga-se, de uma obra sólida e múltipla, rica e diversificada, que marcou a literatura brasileira da segunda metade deste século".

Geir Campos faleceu no dia 08 de maio de 1999, aos 75 anos, em Niterói (RJ).

Fonte:
http://www.releituras.com/

Geir Campos (Da profissão do poeta)

A Paulo Mendes Campos

Da
Identificação
Profissional

Operário do canto, me apresento
sem marca ou cicatriz, limpas as mãos,
minha alma limpa, a face descoberta,
aberto o peito, e — expresso documento —
a palavra conforme o pensamento.

Do Contrato
de Trabalho


Fui chamado a cantar e para tanto
há um mar de som no búzio do meu canto.
Embora a dor ilhada ou coletiva
me doa, antes celebro as coisas belas
que movem o sol e as demais estrelas
— antigos temas que parecem novos
de tão gratos ao meu e aos outros povos.

Da Relação
com Vários
Ofícios

Meu verso tine como prata boa
pesando na confiança dos bancários;
os empregados no comércio bem
sabem como atender aos que encomendo
e recomendo mais do que ninguém;
aos que funcionam em telefonia
com ou sem fio, rádio, a esses também
sei dizer à distância ou de mais perto
a cifra e o texto no minuto certo;
para os músicos profissionais,
sem castigar o timbre das palavras
modulo frases quase musicais;
para os operadores de cinema
meu verso é filme bom que a luz não queima;
trilho também as estradas de ferro
e chego ao coração dos ferroviários
como um trem sempre exato nos horários;
às equipagens das embarcações
de mares ou de lagos ou de rios
meu verso fala doce e grave como
doce e grave é a taboca dos navios;
nos frigoríficos derrete o gelo
da apatia, se é para derretê-lo,
meu canto a circular nas serpentinas;
à boca da escotilha ou nas esquinas
do cais, o meu recado é força viva
guindando a atenção dos homens da estiva;
desço cantando aos subsolos e às minas
onde outros operários desenterram
o minério de suas artérias finas;
a outros, que dão sua têmpera aos metais,
meu canto ajuda feito um sopro a mais
aflando o fogo em flâmulas vermelhas;
aos colegas que lidam nos jornais
boas noticias dou e, mais do que isso,
jeito de as repetir e divulgar
quando o patrão quisera ser omisso;
à gente miúda, pronta a ser maior,
passo lições de um magistério puro
e o que é dever escrevo a giz no muro;
para os químicos sei fórmulas novas
que os mártires elaboram nas covas...
e a todos que trabalham vai assim
meu canto sugerindo meio e fim.

Do Horário
do Trabalho

Marcadas as minhas horas de ofício,
de dia em sombras pelo chão e à noite
no rútilo diagrama das estrelas,
só quem ama o trabalho sabe vê-las.

Dos Períodos
de Descanso

Seja domingo ou dia de semana,
mais do que as horas neutras do repouso
confortam-me os encargos rotineiros;
meu descanso é confiar nos companheiros.

Do Direito
a Férias

Nunca me participam por escrito
ou verbalmente os ócios que mereço,
mas sempre gozo bem o merecido:
pois o ócio não é ofício pelo avesso?
É quando fio o verso; depois teço.

Da Remuneração
das Férias

Em férias tenho a paga de saber
lembrado o verso meu por quem o inspira;
é como se outra mão tangesse a lira

Do Salário
Mínimo


Laborando entro os pontos cardinais,
de norte a sul, de leste a oeste, vou
cobrando aqui e ali quanto me basta:
o privilégio de seguir cantando.
(Imposto é cuidar onde e como e quando.)

Do Expediente
Noturno

Trabalho à noite e sem revezamentos.
Se há mais quem cante, cantaremos juntos;
sem se tornar com isso menos pura
a voz sobe uma oitava na mistura.

Da Segurança
do Trabalho


Mesmo no escuro, canto. Ao vento e à chuva,
canto. Perigo à vista, canto sempre;
e é clara luz e um ar nunca viciado
e sol no inverno e fresca no verão,
meu canto, e sabe a flores se é de flores
e a frutos se é de frutos a estação.
Só não me esforço à luz artificial
com que a má fé de alguns aos mais deslumbra
servindo-lhes por luz o que é penumbra;
também quando o ar parece rarefeito
a lira engasga, o verso perde o jeito.

Da Higiene
do Trabalho


Não canto onde não seja o sonho livre,
onde não haja ouvidos limpos e almas
afeitas a escutar sem preconceito.
Para enganar o tempo ou distrair
criaturas já de si tão mal atentas,
não canto...

Canto apenas quando dança,
nos olhos dos que me ouvem, a esperança.

Da Alteração
de Contrato
Etc.

Meu ofício é cantando revelar
a palavra que serve aos companheiros;
mas se preciso for calar o canto
e em fainas diferentes me aplicar
unindo a outros meu braço prevenido,
mais serviço que houver será servido.
Fontes:
Geir Campos. Antologia Poética. RJ: Léo Christiano Editorial Ltda, 2003. Disponível em http://www.releituras.com/

http://www.annex.com.br/ (desenho)

Konstantinos Kaváfis (À Espera dos Bárbaros - O Espelho da Entrada)






À Espera dos Bárbaros

O que esperamos na ágora reunidos?

É que os bárbaros chegam hoje.

Por que tanta apatia no senado?
Os senadores não legislam mais?

É que os bárbaros chegam hoje.
Que leis hão de fazer os senadores?
Os bárbaros que chegam as farão.

Por que o imperador se ergueu tão cedo
e de coroa solene se assentou
em seu trono, à porta magna da cidade?

É que os bárbaros chegam hoje.
O nosso imperador conta saudar
o chefe deles. Tem pronto para dar-lhe
um pergaminho no qual estão escritos
muitos nomes e títulos.

Por que hoje os dois cônsules e os pretores
usam togas de púrpura, bordadas,
e pulseiras com grandes ametistas
e anéis com tais brilhantes e esmeraldas?
Por que hoje empunham bastões tão preciosos
de ouro e prata finamente cravejados?

É que os bárbaros chegam hoje,
tais coisas os deslumbram.

Por que não vêm os dignos oradores
derramar o seu verbo como sempre?

É que os bárbaros chegam hoje
e aborrecem arengas, eloqüências.

Por que subitamente esta inquietude?
(Que seriedade nas fisionomias!)
Por que tão rápido as ruas se esvaziam
e todos voltam para casa preocupados?

Porque é já noite, os bárbaros não vêm
e gente recém-chegada das fronteiras
diz que não há mais bárbaros.

Sem bárbaros o que será de nós?
Ah! eles eram uma solução.

[Antes de 1911]
==================
O Espelho da Entrada

À entrada da mansão
havia um grande espelho muito antigo,
comprado pelo menos há mais de oitenta anos.

Um rapaz belíssimo, empregado de alfaiate
(e nos domingos atleta diletante)
estava ali com um pacote.

Deu-o a alguém da casa, que o levou para dentro
com o recibo. O empregado do alfaiate
ficou sozinho, à espera.

Acercou-se do espelho e mirou-se
para ajeitar a gravata. Após cinco minutos,
trouxeram-lhe o recibo e ele se foi.

Mas o antigo espelho, que vira e revira
nos seus longos anos de existência
coisas e rostos aos milhares;
mas o antigo espelho agora se alegrava
e exultava de haver mostrado sobre si
por um instante a beleza culminante.
[1930]
===============
Notas sobre o autor
Numa pesquisa feita pela Folha de S. Paulo, publicada em 02/01/2000, críticos literários incluem o poema "À Espera dos Bárbaros", do grego Konstantinos Kaváfis (1863-1933), entre os 100 melhores poemas do século XX. Nessa pesquisa, ele ocupa a oitava posição.

Concursos e eleições, desse e de outros tipos, são um campo aberto para erros e distorções. No entanto, não deixa de ser marcante quando um conjunto de especialistas coincide em afirmar a alta qualidade de um mesmo texto.

Nascido em Alexandria, no Egito, Kaváfis é considerado o mais importante poeta grego do século passado. Em "À Espera dos Bárbaros" combinam-se ações políticas coletivas e atitudes individuais. Todos se deixam conduzir e enfeitiçar pelo mito da invasão dos bárbaros, que nunca acontece.

A reunião de pessoas na praça de uma presumível cidade grega antiga mostra um traço da poesia de Kaváfis. Ele sempre revisita figuras da história ou da mitologia e também inventa personagens de ficção ambientados no passado grego.

Outra face importante da poesia de Kaváfis aparece no poema "O Espelho da Entrada". Aí o que se destaca é o sensualismo homossexual do autor. Em vários poemas ele expressa sua fascinação pelo corpo de jovens (aqui ele fala em "rapaz belíssimo"). Refere-se também, em outros poemas, a encontros furtivos com efebos em lugares suspeitos.

Mas, forçado à ambigüidade, Kaváfis é muito discreto. José Paulo Paes, seu tradutor para o português, diz que o poeta alexandrino trabalha a linguagem com cuidado para manter essa discrição. Escreve Paes: "... o sexo deste [o agente, na frase] poderia ser denunciado pelo gênero dos adjetivos, mas o poeta ou cuida de evitá-los ou os usa do tipo dito uniforme, isto é, com a mesma forma para o masculino e o feminino" (in Konstantinos Kaváfis, Poemas, trad. de José Paulo Paes, Nova Fronteira, 2a. ed., Rio de Janeiro, 1982).

É curioso notar que a poesia de Kaváfis só foi publicada em livro postumamente. Poucos a conheciam durante sua vida. Ele imprimia folhas soltas com poemas e as distribuía entre amigos. A obra também não é extensa: são apenas 154 poemas — o suficiente para colocar o autor na condição de poeta mais significativo do modernismo grego.

Fonte:
Konstantinos Kaváfis. In Poesia Moderna da Grécia. Seleção, tradução direta do grego, prefácio, textos críticos e notas de José Paulo Paes. Editora Guanabara, Rio de Janeiro, 1986 Disponível em Carlos Machado, Poesia.net. In http://www.algumapoesia.com.br/ , 2004

Jorge Amado (Gabriela, Cravo e Canela)

Na progressista Ilhéus, a capital do cacau, vivia Nacib, sírio, naturalizado brasileiro, que aqui estava desde os quatro anos de idade. Dono do bar Vesúvio e ilheense de coração, não se lembrava de nada de seu país. Numa manhã, precisamente às seis horas, foi acordado por Filomena, sua cozinheira. Meio atordoado entendeu que ela estava indo embora; iria para junto do filho, agora casado e carente de sua presença.

Repentinamente, Nacib se viu sem cozinheira, exatamente, um dia antes do jantar para trinta pessoas, que seria dado no Vesúvio, em comemoração da recém-inaugurada empresa de ônibus que fazia Ilhéus-Itabuna duas vezes por dia. Agora Ilhéus tinha um serviço de transporte coletivo, graças ao empreendimento de dois homens corajosos - o russo Jacob e o Moacir da garagem. Além disso, precisava de um tabuleiro de doces e salgados para o bar.

Foi à casa das irmãs dos Reis, Quinquina e Florzinha que, além de excelentes doceiras e quituteiras, faziam o maior e o mais visitado presépio da cidade. Aceitaram a encomenda, por que se tratava do senhor Nacib; estavam muito atarefadas com o presépio. Naquela manhã, trabalhando no bar, contava sua desventura a todo freguês, na expectativa de que este conhecesse uma cozinheira disponível. Não poderia ficar com as dos Reis; eram muito caras. Logo após o almoço, aceitou a sugestão do professor Josué; iria mais tarde ao 'Mercado de Escravos', onde se instalara uma leva de retirantes flagelados. Talvez, com sorte, pudesse encontrar uma cozinheira em meio àquela gente.

Naquela manhã, muitas coisas ocorreram em Ilhéus, fazendo a cidade fervilhar. Quando estava para atracar no porto, o Ita encalhou na areia, ficando ali horas. Dizia-se, com veemência que a falta de um porto decente era um despropósito para uma cidade daquele porte. Além da costumeira leva de comerciantes e aventureiros, o navio trazia de volta o exportador de cacau, Mundinho Falcão que tinha ido ao Rio para ver a família e fazer contatos políticos. Era solteiro e, como a maioria das pessoas, viera para Ilhéus em busca de fortuna. Além disso, queria tentar esquecer um grande amor.

A notícia do assassinato de um casal de jovens correu rápido como um relâmpago pela preconceituosa cidade. Naquela manhã, o coronel Jesuíno flagrou sua esposa, Sinhazinha, na cama com o dentista, Dr. Osmundo, matando-os em seguida. Comentava-se e discutia-se calorosamente a tragédia dos dois apaixonados; divulgavam-se versões da sociedade, opunham-se detalhes, mas com uma coisa todos concordavam: o gesto macho do coronel era constantemente louvado. Para a provinciana Ilhéus, honra de homem enganado, só o sangue poderia limpar. Na busca de razões, os mais conservadores diziam que o vilão de tudo isso era o clube Progresso com seus bailes.

Quando a tarde caiu sobre Ilhéus e o bar começou a esvaziar, Nacib se dirigiu ao Mercado. Entre os retirantes notou uma mulher em trapos miseráveis, pés imundos descalços e cabelos desgrenhados. Estava tão suja que não se podia ver-lhe as feições ou dar-lhe a idade; respondeu que se chamava Gabriela e que sabia fazer de tudo. Mesmo achando que não era verdade, Nacib levou-a consigo, para experimentar o seu serviço. Quando chegaram em casa, mostrou-lhe os aposentos e o quarto onde ela ficaria. Antes de sair, mandou que tomasse um bom banho; iria ao bar e depois acabaria a noite no Bataclan, onde estava de xodó com Risoleta.

Para surpresa de Nacib, Gabriela revelou-se competentíssima no forno, fogão e arrumação de casa. Além disso, era uma bela morena com lábios de pitanga; era de uma beleza simples, pura. Logo, a moça se inteirou de tudo da casa, arrumando tempo até para levar o almoço do patrão e ajudá-lo no bar, enquanto este almoçava. Não só os quitutes da jovem cozinheira trouxeram mais clientes ao bar, como também sua presença que a todos encantava. Ela, por sua vez, se encantava também com os moços bonitos que freqüentavam o bar. Voltava para casa, quando o Sr Nacib se acomodava na espreguiçadeira para a sesta de alguns minutos no começo da tarde. Gabriela gostava de brincar, correr com as crianças, ficar descalça, ir ao circo e de rir, ria sem motivo, ria sempre e muito com sua boca de pitanga e uma flor nos cabelos.

Os Bastos comandavam o destino político de Ilhéus há mais de vinte anos, prestigiados pelos sucessivos governos estaduais. O velho coronel Ramiro Bastos não via com bons olhos a liderança do rico forasteiro, Mundinho Falcão. O exportador estava presente em quase tudo o que se fazia em Ilhéus: a instalação de filiais de bancos, empresa de ônibus, a avenida na praia, a publicação do jornal diário, os técnicos vindos para as podas de cacau, arquitetos para projetar os palacetes dos coronéis. Preocupado, o coronel achava que a sombra de Mundinho estava escapando de seu controle.

Mundinho, cuja família era importante nos meios políticos do sul, tinha um irmão deputado e parentes na diplomacia. Para ele, as necessidades dos coronéis não mais correspondiam com as necessidades da cidade em rápido progresso, por isso auxiliava novos empreendimentos. O capitão, cuja família sempre se opôs aos Bastos, via no jovem exportador uma pessoa com condições de fazer frente ao poder do coronel Ramiro. Mundinho gostou da idéia e se colocou em campanha política.

Nacib, como todo ilheense, queria ganhar dinheiro, prosperar e comprar terras para plantar cacau. Gostava das coisas simples e boas da vida, mas mostrava-se preocupado; os homens do bar estavam todos de olho em Gabriela, ela recebia recados, bilhetes com propostas de coronéis para as quais sempre respondia não, nunca deixaria seu Nacib. Quando um mais ousado lhe tocava a mão ou pegava-lhe no queixo, ria apenas, não se zangava. Nacib não sabia por quanto tempo ela resistiria à tão boas ofertas e isso o afligia.

Ele não queria perdê-la. Desde o segundo dia em sua casa, dormiam juntos à noite, e a cada noite ele morria em seus braços ardentes e corpo insaciável. Renovada a cada noite, ela chamava-o de seu moço bonito, minha perdição. Ela nunca pedia nada por isso. No outro dia, agia como se nada tivesse ocorrido entre os dois, olhava-o como aos outros, tratava-o como patrão. Para Nacib, o fogo de sua pele morena cor de cravo e cheiro de canela estava cravado no seu corpo, que não queria perder.

O motivo pelo qual Ilhéus ainda não tinha um porto era a grande quantidade de areia na barra, fazendo os navios encalharem. Todo o cacau para o estrangeiro saía via Salvador e, conseqüentemente, boa parte do dinheiro da exportação ficava na capital. Segundo Mundinho, esse era o motivo do desinteresse dos sucessivos governos e, por tabela, dos coronéis em adiarem a construção de um porto em Ilhéus. Um dia, ao desembarcar do Ita, vindo do Rio, o exportador espalhava a todos que a solução para o caso da barra já havia sido providenciada; um engenheiro estaria a caminho em alguns dias.

Nacib não ia mais ao Bataclan; não precisava; todos notaram. Mesmo sabendo o tipo de relacionamento que o árabe mantinha com a formosa empregada, oficialmente, para os fregueses, ela não passava de sua cozinheira e, por isso, tratavam-na como tal, enchendo-a de propostas atrevidas, bilhetinhos, atenções e piscadelas. Surpreendentemente, notava Nacib que, o único a tratar Gabriela com certa distância, como uma senhora respeitável, era o filho do coronel Ramiro, Tonico Bastos, o garanhão de Ilhéus.

Era casado com Olga, filha única de família muito rica. Apesar de a mulher trazê-lo com rédeas curtas, era tido como mulherengo e conquistador. Todos os dias, religiosamente, antes de voltar ao tabelião, depois das duas, Tonico parava no bar para um digestivo. Nessas ocasiões, Nacib confidenciava-lhe suas agruras afetivas. Achava que a solução era se casar com Gabriela. Assim, ela não viria mais ao bar; ele perderia muitos fregueses, o que para ele, não importava mais. O problema era como se casar com uma mulata, cozinheira, sem família, retirante encontrada no mercado, naquela cidade preconceituosa. Com certeza, todos iriam falar.

Uma noite, ao invés de ir ao quarto de Gabriela, Nacib, pela primeira vez, trouxe-a para o seu quarto e ali se amaram. Ele a chamava de Bié, e ela gostava, achava que era nome de gringo Ele disse que se casariam; ela seria a senhora Saad; vestiria roupas finas e jóias caras. Para Gabriela, não carecia casar, era melhor do jeito que estava; ela nunca deixaria Nacib. Gostava muito dele, era seu pai, seu irmão, seu amante. Entretanto, gostava também de correr solta no sol, tomar banho frio, mastigar goiaba, comer manga espada e morder pimenta. Gostava de andar pelas ruas, cantar cantigas, com um moço dormir e com outro sonhar. Achava que teria de tomar cuidado, Nacib era homem bom, não queria magoá-lo. Mas, por outro lado, não podia ficar sem sair de casa, sem ir à janela, sem ouvir a voz de homem.

Após três meses, chegou Dr. Rômulo Vieira, o engenheiro que faria os estudos da Barra. Malvina, filha do coronel Melk, era conhecida pela personalidade ousada. No enterro de Sinhazinha, levou uma flor à infiel falecida, o que deu origem a muito falatório na cidade. Gostava de ler; Lia bastante, sempre sob orientação de João Fulgêncio, o livreiro de Ilhéus. Ela apaixonou-se por Rômulo, que era casado. Quando Melk soube desse pormenor, tentou impedir, surrando a filha. Esta tentou fugir com o engenheiro, que não quis assumir a paixão. Acabou interna, em um Colégio de freiras no Rio. Mais tarde, aproveitando a saída para as férias, conseguiu fugir.

O casamento trouxe uma série de proibições para Gabriela. Não podia andar descalça, correr na praia com os cabelos despenteados, molhar os pés na água, ir ao bar ou ao circo; não podia mais rir sem razão. Ela era a senhora Saad e como tal, tinha que se vestir como as mulheres dos médicos e advogados da cidade, tinha que ouvir as maçantes palestras do Grêmio tinha que visitar a tia de Nacib. Às escondidas, ia ensaiar para o Terno dos Reis; se, nas festas de fim de ano, Nacib não a deixasse sair vestida de pastora, levando o estandarte, pelo menos já teria dançado bastante nos ensaios.

Na véspera de ano novo, teve de ir com o marido ao enfadonho baile no Clube Progresso. Quando deu onze horas, todos correram para a rua ver o Terno dos Reis que passava. Gabriela, cega, não enxergando mais ninguém, correu para o bloco, roubou o estandarte de Miquelina e entrou na dança. Dona Jerusa, vendo o constrangimento de Nacib, saiu dançando também, puxando outros consigo. Em seguida, toda alta sociedade ilheense dançava com o Terno, ladeira abaixo.

Como o tempero de Gabriela estava fazendo sucesso, Mundinho propusera a abertura de um restaurante em sociedade com o árabe, que aceitou prontamente. Este se chamaria Restaurante do Comércio. Nesse período também, Nacib começou a notar que Gabriela não o esperava mais com o ardor inicial. Uma tarde, na hora do trago de Tonico, queixou-se ao seu antigo confidente, padrinho também do casamento. O tabelião lhe explicara que assim se passava em todos os casamentos: o amor se acalmava; era um doce amor de esposa, discreto e espaçado, sem mais a violência da amante, exigente e lasciva.

A desavença com Bico-Fino, um dos seus funcionários, levou-o a descobrir que Gabriela o traía com Tonico. Este se enfiava na casa de Nacib, logo após o digestivo da tarde. Em confissão o outro ajudante, Chico Moleza, confirmou que Tonico era o mais recente; tinha havido outros e desfiou nomes. No dia seguinte, após o amargo da tarde, Tonico saiu. Nacib esperou um quarto de hora e foi para casa, flagrando os dois na cama. Mesmo com o revólver na mão, não os conseguiu matar. Surrou Gabriela até marcá-la.

Naquela sociedade, se ela fosse sua rapariga, as pancadas que lhe dera bastavam, mas como marido, manchas roxas não eram suficientes para lavar a honra. Teria de sair de Ilhéus se não quisesse servir de chacota. João Fulgêncio sugeriu que seria fácil anular o casamento e se propôs cuidar do caso para o árabe. Como retirante, Gabriela não possuía documento. Para casar, Tonico forjara uns papéis no cartório para Nacib. A prova de que os documentos eram falsos se caracterizava como 'erro essencial de pessoa', o que anularia o casamento, e assim ele não estaria mais casado; tudo não passara de amigação.

Como a civilização ilheense foi construída à base de documentos falsos, algumas conversas com quem de direito bastaram para que o processo de anulação do casamento fosse aprovado. Dessa forma, Nacib encontrou-se novamente solteiro e a senhora Saad voltou a ser Gabriela, que não entendia o motivo que impedia seu Nacib de não a quer mais de volta, se já não eram mais casados, se nunca tinham sido. Não entendia porque só aos homens era dado o direito de trair. Para ela, era difícil; quando tinha vontade, fazia, sem lembrar que não era permitido. Magoada, queria, pelo menos, cozinhar para ele, preparando os quitutes para o bar. Ficou morando na casa de dona Arminda e costurando para o florescente atelier de Dora.

O combate político entre Mundinho e Ramiro Bastos teve como saldo: sede de jornal queimada, atentados de morte, homens surrados, além do falecimento do próprio Ramiro, cujo coração velho não agüentou. Até Gabriela se viu envolvida, ao esconder, no quarto dos fundos de sua casa, sem que Nacib soubesse, o negro Fagundes, retirante que ela conhecera na estrada, a caminho de Ilhéus. Capanga do coronel Melk, ele tinha comandado o atentado contra Aristóteles, o intendente de Itabuna.

Para Nacib, aparentemente, tudo voltara ao normal. Os fregueses lá estavam, jogando, rindo, bebendo aperitivos antes do almoço e do jantar. Ele se refizera por completo, a ferida cicatrizara no peito, já não cercava dona Arminda para saber de Gabriela, ouvir notícias das propostas recebidas e recusadas por ela. Sentia muita falta, sim, do seu tempero e quitutes. No Vesúvio, não havia tanto consumo como no tempo de Gabriela. A cozinheira, que mandara vir de Sergipe, não ia além do trivial; era um blefe.

Quanto ao Restaurante do Comércio, Mundinho mandara vir um cozinheiro de Salvador, Fernand chef de cuisine. Gabriela viu, na presença desse cozinheiro, uma ameaça: nunca mais voltaria a trabalhar para o seu Nacib. Infeliz, com o peito vazio e sem gosto para vida, procurou auxílio no terreiro de Sete Volta. Na véspera da inauguração do restaurante, Fernand desapareceu.

Na tentativa de solucionar o problema, dona Arminda sugeriu, mais uma vez, Gabriela, que até então não tinha sido aceito por Nacib. Ao ouvir o nome da cozinheira, João Fulgêncio disse que ali estava a solução e explicou a Nacib, que a relação anterior com ela não passara de amigação; já estava tudo anulado. No dia seguinte, o restaurante foi inaugurado. Para a felicidade geral, Gabriela tinha voltado, mas o restaurante era um fracasso em termos de clientela. Todavia, suas mesas se deram muito bem para a jogatina que ali ocorria todas as noites.

Algum tempo depois, Mundinho se elegeu deputado federal por Ilhéus, os trabalhos no porto na Barra estavam em adiantado progresso e Jesuíno foi condenado, tornando-se o primeiro coronel do cacau a ser preso pelo assassinato de Sinhazinha, esposa adúltera, e do amante. Gabriela voltara a ser a mulher livre e feliz de outrora. Ria e folgava, mas às onze horas estava de volta em casa para esperar seu Nacib que, por sua vez, quando não havia nada interessante no cabaré, voltava aos braços ardentes de sua cozinheira, não existindo nada igual.

Fontes:
http://www.algosobre.com.br
http://www.sebodomessias.com.br (imagem)

Sylvia Plath (1932 - 1963)

Como ocorre freqüentemente com artistas, o trabalho da poeta americana Sylvia Plath (1932-1963) só se tornou conhecido após sua morte. Sylvia suicidou-se, depois de abandonada pelo marido, o também poeta Ted Hughes. Muitos apontaram Hughes como o principal motivo do suicídio da ex-esposa. O certo é que Sylvia era uma alma atormentada e já havia feito três tentativas de suicídio antes da separação. A história tornou-se até roteiro de cinema, para o filme Sylvia (2003), dirigido por Christine Jeffs, com Gwyneth Paltrow e Daniel Craig, nos papéis da personagem-título e do marido.

O primeiro livro de Sylvia Plath foi publicado em 1960. Era a coletânea The Colossus. Nessa obra, o talento dela já se mostrava, mas a autora ainda estava amarrada a padrões convencionais. Somente nos poemas póstumos — Ariel (1965); Crossing The Water (1971); Winter Trees (1972); e The Collected Poems (1981) — é que se revelaram sua criatividade, técnica e força emocional.

A riqueza da poesia de Sylvia, combinada com as circunstâncias trágicas de sua morte, transformou a escritora num verdadeiro ícone de admiração internacional. Se você for hoje ao Google e digitar o nome dela, vai encontrar nada menos que 144.000 referências. Trata-se de um resultado incrível para um poeta. Apenas a título de comparação: as referências ao roqueiro Mick Jagger, ligado à indústria do entretenimento há mais de 40 anos, não são terrivelmente superiores, como se poderia esperar: 251.000.

Sylvia também escreveu ficção e alguns de seus livros nesse gênero estão disponíveis no Brasil. O único de poesia é uma coletânea bilíngüe, traduzida por Rodrigo Garcia Lopes e Maurício Arruda Mendonça (Poemas, Ed. Iluminuras, 1994).

Para ter acesso a toda a poesia de Sylvia Plath no original, visite o site http://PlathOnline . A página oferece os poemas listados por título e permite a busca por palavras ou expressões no conjunto dos textos.

Além da óbvia importância de sua poesia — à publicação, em 2004, do livro Ariel: The Restored Edition, prefaciado por Frieda Hughes, filha de Sylvia Plath. Ariel é um volume póstumo, dado a público originalmente em 1965 pelo poeta inglês Ted Hughes (1930-1998), viúvo de Sylvia e pai de Frieda.

Nessa edição, Hughes alterou o conteúdo do livro, concluído por Sylvia poucos meses antes de cometer suicídio, com apenas 30 anos. Sob o argumento de que pretendia defender a memória da mãe de seus filhos (Frieda tem um irmão mais novo, Nick), respeitar pessoas vivas e preservar sua própria reputação, Hughes subtraiu e adicionou poemas ao volume. Além disso, ele também eliminou poemas por considerá-los fracos.

Somente 41 anos após a morte trágica de Sylvia — e também com Hughes já desaparecido — é que veio à luz a "edição restaurada", trazida por Frieda Hughes. Trata-se, portanto, do Ariel tal como a autora o concebeu. Há cerca de um mês, a Verus Editora, de Campinas (SP), publicou uma versão brasileira da obra, traduzida por Rodrigo Garcia Lopes e Maria Cristina Lenz de Macedo.

Bilíngüe, essa edição traz a reprodução fac-similar das páginas datilografadas e muitas vezes corrigidas à mão pela autora. Garcia Lopes dedica-se à tradução de Sylvia Plath há bastante tempo. Também é dele (em parceria com Maurício Arruda Mendonça) o livro Poemas (Ed. Iluminuras, 1994), que serviu de base para o primeiro boletim com a poeta americana.

Como se sabe, Hughes e Sylvia haviam se separado e ele mantinha um caso com outra mulher. Feministas e admiradores de Sylvia consideravam o marido responsável pela sua morte. Acusavam-no de tê-la abandonado num momento em que ela se encontrava emocionalmente instável. Esse mesmo viés é abraçado pelo filme Sylvia, de 2003, dirigido por Christine Jeffs, com Gwyneth Paltrow e Daniel Craig nos papéis da personagem-título e do marido.

No prefácio do Ariel restaurado, Frieda Hughes, também poeta, explica em detalhes os motivos do pai. Defende-o, falando sobre a profunda angústia da mãe, seu "temperamento feroz e caráter ciumento" e sobre as calúnias que se abateram sobre o pai. "A crítica a meu pai foi feita até mesmo em relação à posse dos direitos autorais de minha mãe, que couberam a ele na morte dela e que ele usou para beneficiar diretamente a mim e a meu irmão", relata ela.

O que parece não deixar espaço para dúvida é a "grande confusão emocional" (palavras de Frieda) vivida por Sylvia Plath nos meses que antecederam seu suicídio. Poesia e tragédia deram a ela, post mortem, uma popularidade inusitada. Aparentemente, em "Lady Lazarus", a poeta diz que, aos 30 anos, tem nove vidas, como um gato. "Esta é Número Três". Naquele momento, 1962, ela já havia feito três tentativas de suicídio. "Um ano em cada dez / Eu dou um jeito", escreve, com um toque de humor angustiado.

Os dois poemas: "Ariel" e "Lady Lazarus" são exemplos do talento de Sylvia Plath, que combina um ritmo forte com imagens inusitadas. "Orvalho que voa / Suicida, e de uma vez avança / Contra o olho / Vermelho, caldeirão da manhã", escreve ela, no final de "Ariel".

Fonte:
Carlos Machado. Poesianet. in http://www.algumapoesia.com.br

Sylvia Plath (Espelho - Ariel - Lady Lazarus)

ESPELHO
Tradução: Rodrigo Garcia Lopes e Maurício A. Mendonça

Sou prateado e exato. Não tenho preconceitos.
Tudo o que vejo engulo no mesmo momento
Do jeito que é, sem manchas de amor ou desprezo.
Não sou cruel, apenas verdadeiro —
O olho de um pequeno deus, com quatro cantos.
O tempo todo medito do outro lado da parede.
Cor-de-rosa, malhada. Há tanto tempo olho para ele
Que acho que faz parte do meu coração. Mas ele
[ falha.
Escuridão e faces nos separam mais e mais.

Sou um lago, agora. Uma mulher se debruça
[ sobre mim,
Buscando em minhas margens sua imagem
[ verdadeira.
Então olha aquelas mentirosas, as velas ou a lua.
Vejo suas costas, e a reflito fielmente.
Me retribui com lágrimas e acenos.
Sou importante para ela. Ela vai e vem.
A cada manhã seu rosto repõe a escuridão.
Ela afogou uma menina em mim, e em mim uma velha
Emerge em sua direção, dia a dia, como um
[ peixe terrível.

MIRROR

I am silver and exact. I have no preconceptions.
Whatever I see, I swallow immediately.
Just as it is, unmisted by love or dislike
I am not cruel, only truthful —
The eye of a little god, four-cornered.
Most of the time I meditate on the opposite wall.
It is pink, with speckles. I have looked at it so long
I think it is a part of my heart. But it flickers.
Faces and darkness separate us over and over.

Now I am a lake. A woman bends over me.
Searching my reaches for what she really is.
Then she turns to those liars, the candles or the
[ moon.
I see her back, and reflect it faithfully
She rewards me with tears and an agitation of hands.
I am important to her. She comes and goes.
Each morning it is her face that replaces the
[ darkness.
In me she has drowned a young girl, and in me an old
[ woman
Rises toward her day after day, like a terrible fish.

Poema extraído de:
Sylvia Plath. Poemas. Tradução de Rodrigo Garcia Lopes e Maurício Arruda Mendonça. Ed. Iluminuras, 2a. ed., São Paulo, 1994

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ARIEL

Estase no escuro.
E um fluir azul sem substância
De rochedos e distâncias.

Leoa de Deus,
Como nos unimos,
Eixo de calcanhares e joelhos! — O sulco

Divide e passa, irmão do
Arco castanho
Do pescoço que não posso pegar,

Olhinegras
Bagas lançam escuros
Ganchos —

Goles de sangue negro e doce,
Sombras.
Algo mais

Me arrasta pelos ares —
Coxas, pêlos;
Escamas de meus calcanhares.

Godiva
Branca, me descasco —
Mãos mortas, asperezas mortas.

E agora
Espumo com o trigo, um brilho de mares.
O choro da criança

Dissolve-se no muro.
E eu
Sou a flecha,

Orvalho que voa
Suicida, e de uma vez avança
Contra o olho

Vermelho, caldeirão da manhã.

ARIEL

Stasis in darkness.
Then the substanceless blue
Pour of tor and distances.

God's lioness,
How one we grow,
Pivot of heels and knees! — The furrow

Splits and passes, sister to
The brown arc
Of the neck I cannot catch,

Nigger-eye
Berries cast dark
Hooks —

Black sweet blood mouthfuls,
Shadows.
Something else

Hauls me through air —
Thighs, hair;
Flakes from my heels.

White
Godiva, I unpeel —
Dead hands, dead stringencies.

And now I
Foam to wheat, a glitter of seas.
The child's cry

Melts in the wall.
And I
Am the arrow,

The dew that flies
Suicidal, at one with the drive
Into the red

Eye, the cauldron of morning.

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LADY LAZARUS

Tentei outra vez.
Um ano em cada dez
Eu dou um jeito —

Um tipo de milagre ambulante, minha pele
Brilha feito abajur nazista,
Meu pé direito

Peso de papel,
Meu rosto inexpressivo, fino
Linho judeu.

Dispa o pano
Oh, meu inimigo.
Eu te aterrorizo? —

O nariz, as covas dos olhos, a dentadura toda?
O hálito amargo
Desaparece num dia.

Em muito breve a carne
Que a caverna carcomeu vai estar
Em casa, em mim.

E eu uma mulher sempre sorrindo.
Tenho apenas trinta anos.
E como o gato, nove vidas para morrer.

Esta é a Número Três.
Que besteira
Aniquilar-se a cada década.

Um milhão de filamentos.
A multidão, comendo amendoim,
Se aglomera para ver

Desenfaixarem minhas mãos e pés —
O grande striptease.
Senhoras e senhores,

Eis minhas mãos
Meus joelhos.
Posso ser só pele e osso,

No entanto sou a mesma, idêntica mulher.
Tinha dez anos na primeira vez.
Foi acidente.

Na segunda quis
Ir até o fim e nunca mais voltar.
Oscilei, fechada

Como uma concha do mar.
Tiveram que chamar e chamar
E tirar os vermes de mim como pérolas grudentas.

Morrer
É uma arte, como tudo o mais.
Nisso sou excepcional.

Desse jeito faço parecer infernal.
Desse jeito faço parecer real.
Vão dizer que tenho vocação.

E muito fácil fazer isso numa cela.
É muito fácil fazer isso e ficar nela.
É o teatral

Regresso em plena luz do sol
Ao mesmo local, ao mesmo rosto, ao mesmo grito
Aflito e brutal:

"Milagre!"
Que me deixa mal.
Há um preço

Para olhar minhas cicatrizes, há um preço
Para ouvir meu coração —
Ele bate, afinal.

E há um preço, um preço muito alto
Para cada palavra ou cada toque
Ou mancha de sangue

Ou um pedaço de meu cabelo ou de minhas roupas.
E aí, Herr Doktor.
E aí, Herr Inimigo.

Sou sua obra-prima,
Sou seu tesouro,
O bebê de ouro puro

Que se funde num grito.
Me viro e carbonizo.
Não pense que subestimo sua grande preocupação.

Cinza, cinza —
Você fuça e atiça.
Carne, osso, não há mais nada ali —

Barra de sabão,
Anel de casamento,
Obturação de ouro.

Herr Deus, Herr Lúcifer
Cuidado.
Cuidado.

Saída das cinzas
Me levanto com meu cabelo ruivo
E devoro homens como ar.


LADY LAZARUS

I have done it again.
One year in every ten
I manage it —

A sort of walking miracle, my skin
Bright as a Nazi lampshade,
My right foot

A paperweight,
My featureless, fine
Jew linen.

Peel off the napkin
O my enemy.
Do I terrify? —

The nose, the eye pits, the full set of teeth?
The sour breath
Will vanish in a day.

Soon, soon the flesh
The grave cave ate will be
At home on me

And I a smiling woman.
I am only thirty.
And like the cat I have nine times to die.

This is Number Three.
What a trash
To annihilate each decade.

What a million filaments.
The Peanut-crunching crowd
Shoves in to see

Them unwrap me hand and foot —
The big strip tease.
Gentleman , ladies

These are my hands
My knees.
I may be skin and bone,

Nevertheless, I am the same, identical woman.
The first time it happened I was ten.
It was an accident.

The second time I meant
To last it out and not come back at all.
I rocked shut

As a seashell.
They had to call and call
And pick the worms off me like sticky pearls.

Dying
Is an art, like everything else.
I do it exceptionally well.

I do it so it feels like hell.
I do it so it feels real.
I guess you could say I've a call.

It's easy enough to do it in a cell.
It's easy enough to do it and stay put.
It's the theatrical

Comeback in broad day
To the same place, the same face, the same brute
Amused shout:

"A miracle!"
That knocks me out.
There is a charge

For the eyeing my scars, there is a charge
For the hearing of my heart —
It really goes.

And there is a charge, a very large charge
For a word or a touch
Or a bit of blood

Or a piece of my hair on my clothes.
So, so, Herr Doktor.
So, Herr Enemy.

I am your opus,
I am your valuable,
The pure gold baby

That melts to a shriek.
I turn and burn.
Do not think I underestimate your great concern.

Ash, ash —
You poke and stir.
Flesh, bone, there is nothing there —

A cake of soap,
A wedding ring,
A gold filling.

Herr God, Herr Lucifer
Beware
Beware.

Out of the ash
I rise with my red hair
And I eat men like air.

Sylvia Plath. Ariel. Edição restaurada e bilíngüe, com os manuscritos originais. Tradução de Rodrigo Garcia Lopes e Maria Cristina Lenz de Macedo. Verus Editora, Campinas-SP, 2007
Fonte:
Carlos Machado. poesia.net, 2007. In www.algumapoesia.com.br

Geraldine Brooks (As Memórias do Livro)

Com um título sugestivo, “As Memórias do Livro” parece soar estranho à primeira vista, mas traduz exatamente seu conteúdo: é um livro que conta a história de outro livro.

Este é o quinto livro da autora, a jornalista do Washington Post, Geraldine Brooks e já se tornou um best-seller. A autora usou uma pitada de ficção para relatar os caminhos percorridos por um livro conhecido como a “Hagadá de Sarajevo”, de alguns daqueles que tentaram destruí-la e também de outros que, com sucesso salvaram-na nos últimos séculos.

Quem conta a história é a fictícia personagem Hanna, uma australiana contratada pela ONU para trabalhar na restauração e preparação do livro para ser apresentado ao público. A cada página, a personagem encontra pistas, que posteriormente darão inicio de onde e com quem o manuscrito esteve quando foram parar no livro, relatando todo o percurso, problemas e personagens (alguns deles reais) que colaboraram (ou não) para que o manuscrito chegasse daquela forma ao local onde está.

O ponto mais alto do livro é mostrar um lado talvez esquecido, ou melhor, ignorado, por muitos de nós, fatos que esclarecem o passado e põe à tona verdades um tanto desconhecido pela maioria: a perseguição dos judeus, que começa com a Inquisição feita pela Igreja Católica (bem antes do que muitos se recordam e com conseqüências talvez tão grandes como feitas por Hitler) e chega ao cume com os nazistas. Fala também sobre as questões entre mulçumanos e judeus, que mostrou compaixão e respeito por esse povo no decorrer dos séculos.

“As Memórias do Livro” retrata os momentos delicados no mundo para o povo judeu, colocando em evidência épocas desesperadoras, sem terra, sem país, vivendo em um local onde eram perseguidos por sua crença, considerados “assassinos de Jesus”. Ao mesmo tempo mostra outro lado pouco mencionado, quem estendeu a mão, deu abrigo e liberdade religiosa: os mulçumanos. Esses dos quais são os principais heróis de “As Memórias do Livro”, já que por diversas vezes, encararam o perigo para que a Hagadá de Sarajevo não fosse para a fogueira.

É interessante explicar sobre o manuscrito que deu origem ao livro: Hagadá é um manuscrito judaico que relata a escravidão e a saída dos hebreus do Egito descrita no livro de Êxodo, acrescido de orações e Salmos. É um manuscrito usado nas celebrações da páscoa utilizado por diversas famílias judaicas, para facilitar em uma das leis instituídas por Deus: “E contarás a teu filho, naquele dia, dizendo: por causa do que o Senhor fez por mim, quando saí do Egito” (Êxodo 13:8).

A Hagadá de Sarajevo foi criada para ser um presente de casamento. Foi produzida na Espanha, durante o reino de Aragão, é decorado com ouro e bronze e cores vivas. Tornou-se especial por possuir peculiaridades, dentre elas ilustrações que não são comuns nos livros judaicos, que costumam seguir ao mandamento que proíbe imagens esculturas.

No século XV, a Hagadá sai da Espanha junto com a família que a possuía e que foram expulsos, junto com os demais judeus, pela Inquisição espanhola. Os judeus espanhóis se refugiaram nas áreas do Império turco-otomano dominada pelos mulçumanos. Chegou à cidade de Sarajevo, capital da Bósnia, no século XVI, levada pela família a quem pertencia, os Cohen, que vendeu o manuscrito séculos depois para o Museu Nacional da Bósnia devido a problemas financeiros.

Desde então a Hagadá de Sarajevo passou por guerras e conflitos armados grandes naquela região, como I e II Guerra Mundial e a guerra civil da Iugoslávia, as duas últimas, salvas por mulçumanos, que mostraram assim o respeito que possuem por outras religiões, ação contrária ao que o cristianismo tem mostrado desde sua criação.

Com uma história como essa, o livro de Geraldine Brooks se torna fascinante, nos ensina mais sobre a cultura e história de um povo muito comentado, mas que só conhecemos nos tempos de Moisés e Jesus, mas ainda continua a criar história. De seus ritos e cultura, e principalmente, os motivos de ações e conflitos atuais, são bem diferentes dos que pensamos ser.

Fonte:
http://www.dotgospel.com/blog/as-memorias-do-livro-resenha/

Adalberto Nascimento (1946)

Brasileiro, casado, duas filhas, nascido em Sorocaba/SP aos 06 de junho de 1946, filho de Romeu do Nascimento e Maria Hannickel Nascimento.

FORMAÇÃO
- Engenheiro civil pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, 1972;
- Pós-graduado em Engenharia de Transportes pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, 1979;
- Curso de Matemática pela Universidade de São Paulo, 1972;
- Curso de Engenharia de Sistemas de Transportes pela Faculdade de Engenharia Industrial (FEI), 1975;
- Cursos e Seminários na área de Transportes no Brasil e Estados Unidos (Ohio State University), 1976;

ATIVIDADES
- Auxiliar técnico da CODRASA e ASPLAN - Assessoria e Planejamento, 1968/1970;
- Professor da Escola Técnica Getúlio Vargas, São Paulo, 1970;
- Professor da Escola Técnica Antarctica, São Paulo, 1971/1973;
- Auxiliar técnico da Prefeitura de São Paulo, 1972;
- Engenheiro civil da CBPO e COMASP, 1973;
- Diretor técnico da Then de Barros Ltda - Engenheiros Consultores, 1974/1982;
- Professor Titular de Estradas e Transportes - Faculdade de Engenharia de Sorocaba, de 1980 a 2000;
- Consultor de transportes e infra-estrutura urbana, desde 1981;
- Diretor da Área Civil e Vice-Presidente da Associação dos Engenheiros e Arquitetos de Sorocaba, 1982/1985;
- Chefe do Departamento de Engenharia Civil da Faculdade de Engenharia de Sorocaba, 1985/1986;
- Secretário de Edificações e Urbanismo da Prefeitura Municipal de Sorocaba, 1983/1986;
- Secretário de Edificações e Transportes da Prefeitura Municipal de Sorocaba, 1987/1988;
- Conselheiro do CREA/SP - Conselho Regional de Engenharia, Arquitetura e Agronomia, 1989/1991;
- Presidente da URBES - Empresa de Desenvolvimento Urbano e Social de Sorocaba e Secretário de Transportes da Prefeitura Municipal de Sorocaba no mesmo período, 1993/1996;
- Conselheiro dos Conselhos Municipais de Planejamento, Trânsito e Desenvolvimento Econômico e Social de Sorocaba, 1997/2000;
- Diretor da COTEC ENGENHARIA, desde 1986;
- Consultor nas áreas de planejamento urbano, transporte, trânsito, projetos viários e sistemas de informações geográficas / geoprocessamento.

Fluente em quatro idiomas – inglês, italiano, espanhol e francês - é grande conhecedor da obra de poetas portugueses como José Régio e Fernando Pessoa. A este último, dedica uma das páginas do seu site www.testonline.com.br, dedicado à matemática e idiomas.

O engenheiro Adalberto Nascimento foi eleito, por unanimidade, sócio titular da Academia Sorocabana de Letras, ocupando a Cadeira nº 1, que tem como patrono Euclides da Cunha, sucedendo o jurista e historiador José Aleixo Irmão, sócio-fundador e primeiro presidente da instituição.

É autor de seis livros de grande sucesso sobre matemática, todos publicados pela Editora Ottoni:
“Dos nove e outras matemágicas”,
“Curiosidades do diabo matemático”,
“O número de ouro e outras histórias”,
“Histórias da matemática para curiosos”,
“Um sexto dos 666 problemas do Diabo matemático” e
“Só matemágicas”.
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Veja artigo de Adalberto, "Okinawanos", postado em 08 de junho.
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Fontes:

Adalberto Nascimento (Ultimus annus confusionis)

Quem, como eu, foi universitário na década de 60 ainda não deve saber qual foi o nosso “ultimus annus confusionis”, desde o golpe militar em 1964 até os dias de hoje. Acho mesmo que nenhum brasileiro e de qualquer época sabe. Parece que todo ano vai ser “o último ano de confusão” em nosso país. E olha que não temos terremotos, tornados, furacões e outros tipos de catástrofes. Bastam-nos os nossos políticos. Haja vista o atual ano! Bota confusionis nele.

O “ultimus annus confusionis” é como foi batizado pelos romanos o ano de 46 a.C. Mal sabiam eles que, vários séculos depois, boa parte de seus descendentes estaria nestas paragens e em eterna confusionis.

A confusão mesmo, no sentido original, ocorreu por causa da reforma do calendário promovida por Júlio César. O calendário romano inicialmente era lunar, com 304 dias divididos em dez meses, de março a dezembro. O ano, então, começava em primeiro de março. Posteriormente, Numa Pompilius (715-673 a.C.) acrescentou mais dois meses – janeiro e fevereiro –, fez alterações e estabeleceu o ano com 354 dias. Mais adiante, Tarquinius Priscus (616-579 a.C.), por superstição aos números pares, deu um dia a mais a janeiro e o sistema passou a ser de um ano com doze meses e 355 dias.

Em 46 a.C., Julio César, embevecido pelos atributos de Cleópatra e, como decorrência, influenciado pela cultura egípcia, promoveu a reforma do calendário romano auxiliado pelo astrônomo alexandrino Sosígenes. Adotou-se então um calendário com 365,25 dias do ano solar (365 dias mais um quarto de um dia – os romanos tinham a mania de arredondar qualquer fração menor que a metade de um inteiro para um quarto). Com essa reforma as datas ficaram mais condizentes com as estações do ano. Estava consagrado o Calendário Juliano, que perdurou até 1582, quando se estabeleceu o Calendário Gregoriano. É esse o atual calendário, com 365,2425 dias do ano solar, e também com “confusionis” devido à supressão de 10 dias, pois ao dia 4 de outubro de 1582 sucedeu o dia 15 de outubro do mesmo ano.

De forma semelhante ao calendário atual, a diferença de 6 horas entre o ano solar e o ano civil adotado pelos romanos era ajustada de 4 em 4 anos, repetindo-se o dia 24 do mês de fevereiro, que na época tinha 29 dias. Esses anos de 366 dias chamam-se bissextos porque os romanos repetiam o dia 24 de fevereiro "bis VI antediem calendas martias". Simplificadamente “bis VI”, ou “bissextum”. Daí a origem do ano bissexto – duas vezes o sexto dia antes do início de março – e não, como muita gente atribui, ao duplo seis em 366.

Novas alterações ocorreram. O começo do ano mudou de 1o de março para 1o de janeiro. Mudou-se também o nome do antigo quinto mês do ano, "quintilius", para julho (Julius) em homenagem a Júlio César, e mais tarde o sexto mês, "sextilius", passou para o que hoje é agosto (Augustus) em homenagem a Otávio César Augusto. Como julho tinha 31 dias, por razões políticas o mês de agosto passou a ter também 31 dias, com a diminuição de um dia de fevereiro, que ficou, em anos normais, com 28 dias.

Mas, antes de tudo isso, a enorme confusão aconteceu mesmo em 46 a.C. pelo fato também de se impor, por tradição, que o equinócio da primavera ocorresse no dia 25 de março. Para tanto, o dito cujo ano foi esticado até “intermináveis 445 dias”. Criou-se o maior “imbróglio” da paróquia. Daí aquela denominação latina de “confusionis” para esse ano.

Equinócio é a data em que o dia tem a mesma duração da noite. Ocorre um equinócio na primavera e outro no outono. Como curiosidade, temos também os solstícios – de verão, quando o dia é mais longo que a noite, e de inverno, quando a noite é mais longa.

Aquela esticada no ano pode ter sido, talvez, um jeitinho que Júlio César encontrou, sem envelhecer, para ficar mais tempo com a Cleópatra... Chi lo sa?

Agora imaginem este nosso ano com 445 dias... Quem o suportaria?

Fonte:
http://matemagia.blogspot.com/

Adalberto Nascimento (Manias matemáticas)

Tenho uma mania esquisita, entre outras tantas das quais nem me dou conta. Fora os vícios, quem não as tem?

Quanto a mim, não posso ver números que fico criando associações entre eles ou uma forma de correlacioná-los. Basta ver a chapa de um carro e fico divagando, tentando verificar se com os ímpares, pares e primos consigo uma fórmula que os relacione. E quando, num curto prazo de tempo, não consigo nada, não desisto – faço o “noves fora” do dito cujo número da chapa.

E, por incrível que pareça, guardo números de telefones, por exemplo, criando alguma regrinha. Exemplo: 325712 - para mim: 3 + 2 = 5; 5 + 7 = 12. E pronto: está registrado. Isso vale para senhas, carteira de identidade, título de eleitor e outras tantas coisas do gênero que nos perseguem e que são quase motivo de suicídio quando perdemos algum desses algozes.

Muitas vezes, fico exultante quando dou de cara com números palíndromos ou capicuas – aqueles que são os mesmos quando lidos nos dois sentidos, da esquerda para a direita e vice-versa. Exemplo: 3443. A propósito, números desse tipo com número par de dígitos são sempre divisíveis por 11.

E, por falar em 11, volta e meia quando olho para o relógio do computador e ele marca 11:11. Em rigor não é volta e meia. É quando realmente é 11:11.

Um amigo ficou intrigado porque com ele isso acontece na configuração 22:22. Pensou em até se benzer por isso!

A explicação que tenho é de que se trata de uma dada configuração numérica que, por alguma razão inconsciente, é marcante para os olhos de cada um. Só isso.
Já fiz algumas apostas usando os uns do meu computador, somando-os, multiplicando-os (11x11) e com outras expressões. Nada aconteceu. “Nadica de nada”, como dizemos em Sorocaba.

Recentemente, além dos números, passei a observar formas geométricas. Tirante as curvas, verifiquei que somos cercados por retângulos.

Você já se deu conta disso? Camas, mesas, livros, talões, cartões, bandeiras, boletos, dinheiro, etc. Só retângulos...

Embora o quadrado seja um caso particular de retângulo, essa figura não é tão recorrente em nossas vidas. Virou até termo pejorativo – “fulano é um quadrado”. Menos recorrente ainda é o círculo, com toda sua perfeição mística. Só dá retângulo. Até o fim – caixão e sepultura.

E nós, brasileiros, que curtimos o futebol – campo, pequena área, grande área, trave: só retângulos. É bem verdade que temos o círculo central. E a bola... Detalhes, no meio de tantas bandeiras e cartazes de propaganda... retangulares.
Talvez por isso os brasileiros nem dêem bola para a meia-lua que “enfeita” a grande área. Pergunte aos muitos esportistas e até aos praticantes para que serve aquela tal de meia-lua. Seguramente um porcentual próximo de 90% dos entrevistados não saberá dizer. Pode testar, no país pentacampeão do esporte bretão.

Isso talvez também deva ser creditado à nossa “mania” de não ler bulas ou manuais de instruções. “Vamos que vamos”, na prática – sem teoria –, mesmo que levando choques ou derretendo equipamentos. Ah, esses badulaques chineses...

Afinal, o leitor, no meio de tantos retângulos, sabe para que serve a meia-lua da grande área?

Aposto que não.

Fonte:
http://matemagia.blogspot.com/

segunda-feira, 14 de julho de 2008

Leonilda Hilgenberg Justus (1923)

Leonilda nasceu em Ponta Grossa, estado do Paraná, foi poeta e jornalista muito atuante no meio intelectual daquele estado.

Desde jovem demonstrou interesse pela poesia. Após casada, estimulada pelo esposo, Germano Justus e por colegas de escola, começou a escrever e seus poemas passaram a ser publicados regularmente na imprensa em publicações como O Diário de Campos onde criou a coluna Hipocrene, que depois passou a ser publicada no Jornal da Manhã.

Em 1981, estreou em livro com a obra Versos para você, poesia lírica onde relata o cotidiano e desencontros da vida, sempre com alegria de viver.

A forma poética da autora é a popular da quadra, em versos redondilhos (7 sílabas), com esquema rítmico ABAB. A estrutura é a do canto espontâneo dos cantadores populares. A autora cultiva em sua poesia a linha haicai ao qual passa a se dedicar na coletânea Naquelas horas. Consegue o domínio dessa forma de fazer poesia na obra Lampejos, que consiste em conter, em 17 sílabas, uma vivência essencial.

Devido a sua enorme produção poética, Leonilda é figura presente em inúmeras antologias brasileira e internacionais, como: Antologia de prosadores e poetas ponta-grossenses, 1995; Brasil trovador, Rio de Janeiro, 1986; Nova poesia brasileira, Rio de Janeiro, Shogum Arte, 1985; Mulher poesia hoje, Vitória, 1986; World poetry, Universidade Nacional da Coréia do Sul, 1987; International poetry. International Writers Association, USA, 1987; Directory of international writers and artists, Universidade Colorado, 1986.

Leonilda é membro de várias entidades culturais pelo Brasil. Em 1987, foi membro-fundador do Centro Cultural Professor Faris Michaele, tendo sido sua primeira presidente e reeleita várias vezes para o cargo. Dentre as academias que pertence, estão entre elas: Academia de Letras José de Alencar, Curitiba, estado do Paraná; Academia Internacional de Heráldica e Genealogia, Rio Grande do Sul; Internacional Academy of Letter of England, Londres; International Writers and Artists Association, USA. É integrante dos quadros sociais do Centro Cultural Euclides da Cunha e UBT Ponta Grossa;correspondente da Academia Anapolina de Ciências e Letras´, de Anápolis, GO e ALJA, FEBET e Entidades Culturais das Três Fronteiras, RS.

A autora já recebeu dezenas de distinções e menções honrosas, entre elas: Medalha de Ouro, Jogo Florais de Campinas, São Paulo, Brasil 1986. Recebeu, também, títulos de mérito, entre eles: Cidadã Benemérita de Ponta Grossa, Câmara Municipal de Ponta Grossa, estado do Paraná; Embaixatriz da Poesia do Brasil, 1994, Correio de Poesia, João Pessoa, estado da Paraíba.

Publicações da autora: Versos para você, 1981; Se me amasses, 1983; Chamas erradias, 1985; Naquelas horas..., 1986; Ponte terra infinito, 1988; Hipocrene 1992; Abstratos concretos, 1994; Lampejos, 1996, e Castália, 1997.

Fontes:
http://www.allaboutarts.com.br
TABORDA, Vasco José e WOCZIKOSKY, Orlando. Antologia de trovadores do Paraná. Curitiba: O Formigueiro - Insituto Assistencial de Autores do Paraná, 1984.
http://www.academiaprletras.kit.net (foto)

Entrevista com Leonilda Hilgenberg Justus

Leonilda Hilgenberg Justus é a única mulher do interior do Paraná a integrar a Academia Paranaense de Letras

A beleza, a harmonia, o amor, a dor, a alegria. A vida bem vivida, cheia de emoções e sentimentos, é a musa inspiradora da maior poetisa de Ponta Grossa, Leonilda Hilgenberg Justus. Cheia de histórias para contar, Leonilda sempre foi uma das maiores entusiastas da cultura local. Fundou entidades, liderou movimentos, integra e participa ativamente de centros literários. Enfim, além de dedicar amor sem fim a seu marido Germano e seus filhos Ipuran e Ipojuçan (os três já falecidos), Leonilda sempre guardou espaço privilegiado em seu coração para as letras e artes. Agora, ela se dedicou a compor a sua 15ª obra, ‘Fortuna Crítica’, na qual reune críticas sobre sua obra provenientes das mais variadas partes do Brasil e do exterior, e reestreiou agora na Revista Urbe, uma coluna semanal.

URBE Como a senhora começou a escrever?
LEONILDA
Comecei a escrever num dia de insônia. Eu nunca tinha escrito nada. Nós estávamos na fazenda, e eu adoro a fazenda, porque até o meu marido [Germano Justus] perguntou para mim um dia: ‘Leonilda, você tanto tempo ficou esperando a casa nova, onde é que você quer, aqui em Ponta Grossa ou na fazenda?’ Na mesma hora eu falei: ‘Na fazenda’. ‘Meu Deus, é tanto assim?’, ele disse. Eu digo: ‘é tanto assim.’ Eu queria muito. E daí eu não podia dormir, não podia dormir, e me veio uma poesia sobre a fazenda. ‘Meu presente’ é nome da minha primeira poesia. No dia seguinte, acordei e falei para o Germano: ‘Germano, fiz uma poesia à noite’. ‘Você? Você nunca escreveu nada?!’. E o ‘Meu Presente’ escrevi como aconteceu, que o Germano um dia me perguntou se eu queria aqui ou lá, daí eu disse que me desse uma casa nova na fazenda, uma sede bonita. Foi um agradecimento ao meu marido.

URBE Quais as formas poéticas que a senhora trabalha?
LEONILDA
Todas as manifestações poéticas eu domino e já fui premiada. Haicai, que é aquela forma com três linhas, que eu ganhei um primeiro lugar em São Paulo. Soneto eu já ganhei alguns prêmios primeiros lugares. Poemas, prosa - vou muito bem na prosa – e trova também. Por isso eu acho que sou muito querida e muito protegida pelos anjos e santos que estão lá em cima. Às vezes, eu estou na cama, vendo um filme, de repente, parece que me sopram, eu levanto ligeiro, pego o caderno e vou escrevendo. É uma coisa maravilhosa.

URBE Como a senhora define poesia?
LEONILDA
Foi uma coisa muito linda que me aconteceu. Eu estava fazendo uma apresentação lá no Colégio Sagrada Família, fazendo uma palestra para as alunas, contando minha vida. Tinha mais de 300 naquele salão enorme. E uma delas, uma menina muito inteligente, me fez uma pergunta que eu nunca sonharia em fazer. ‘Dona Leonilda, posso perguntar uma coisa?’. Eu disse ‘claro, pergunte sobre o que você quiser. Se eu puder responder eu respondo. ‘O que é poesia?’. ‘Eu respondi na hora. Foi Deus ou algum poeta que me soprou. Eu disse poesia é som da vida, minha querida’. Você veja que coisa mais linda. E de fato, qualquer coisa, cai uma florzinha e eu faço [a poesia] em cima daquilo que me vem a inspiração. Se eu vejo uma criança chorando, chego em casa e vou bolando e escrevo sobre aquilo. É tudo que eu presencio andando pela vida.
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URBE Quantos livros a senhora já publicou?
LEONILDA
Agora, o 14º o Coletânea. O primeiro, ‘Se me amasses’, lancei por volta de 1983.

URBE Entre eles, quais são seus trabalhos principais, que a senhora mais gosta?
LEONILDA
Acho que quase todos. São filhos meus, né? Eu pergunto: você vai ter dez filhos, qual é o que você prefere? Não tem. Um pode ser mais bravo, outro pode ser mais carinhoso. Mas não tem: todos são meus filhos.

URBE Quais são seus próximos projetos
LEONILDA
Um dos meus projetos é um espaço maravilhoso no Jornal da Manhã (risos). A minha coluna, que estará também nessa nova fase do jornal.

URBE E em relação aos seus trabalhos, seus livros?
LEONILDA
Agora estou começando o meu 15º livro, que será ‘Fortuna Crítica’ o título. Quem me deu essa sugestão foi a Luísa Cristina [Santos Fontes]. Então, agora estou fazendo, porque recebo críticas do mundo inteiro. São trechos de críticas que são feitas sobre a minha obra, de acadêmicos do mundo inteiro.

URBE Qual a sua avaliação sobre a produção poética e literária que circula no Brasil?
LEONILDA
Acho que está muito bem, apesar da maioria achar que não, que está muito apática, não tem retorno... eu não posso me queixar. Nunca me faltou, nesses 20 e tantos anos que eu sempre falo sobre livros, nunca me faltou um livro numa semana. Eu leio muita coisa, todo mundo criticando que a poesia e os livros também... mas acho que está muito bem.

URBE E a qualidade?
LEONILDA A qualidade é mesclada. Mas tem coisas muito boas, tem coisas que não são tão boas. Mas mantém sempre uma ‘tabelinha’, entre bons, ruins e médios.

URBE O que a senhora mais gosta é a poesia. Como a senhora se relaciona com outras formas literárias?
LEONILDA
O que eu mais gosto é o soneto, aquele clássico, difícil. O soneto exige muita técnica, cada linha tem que obedecer às regras. Se escapar das regras, não é concursável e não é valorizado. Romance eu nunca fiz. Daqui por diante quem sabe... Eu sou muito fantasista, viajo muito, invento... Quem sabe se de repente... Crônicas eu faço, já ganhei prêmios também.

URBE Uma das suas maiores inspirações também é a sua família, né?
LEONILDA
Muito, muito, muito. Adorava, adoro minha família. Meus pais foram muito bons. Perdi meus pais, perdi minhas irmãs mais moças que eu, perdi meu marido e perdi meus dois filhos. Todo mundo eu perdi, fiquei sozinha. Daí a Margarida [Santos Lima, amiga há décadas]: ‘Você não está sozinha. E nós?’. ‘Vocês sabem disso: estou dizendo sozinha dos meus’.
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URBE E agora a senhora vai reestrear uma coluna no Jornal da Manhã?
LEONILDA
O jornal está muito bom, muito bonito, muito eclético – tem tudo um pouco. Quem não gosta de uma coisa, pula aquilo e vai para outra. Abrange um número de leitores muito grande. Foi a primeira coisa que me saltou à vista. Mas também a aparência do jornal. Você abre e tudo é bonito, as fotos, a diagramação.
Escrevi por 21 anos todos os domingos no Jornal da Manhã. E agora, com muita honra, muita satisfação, muito reconhecimento, continuo nessa nova fase.

URBE Quais as principais entidades que a senhora fundou e das quais faz parte
LEONILDA Aqui em Ponta Grossa, com muita coragem e incentivo do meu esposo, foi o Centro Cultural Professor Faris Michaeli, e também por incentivo do doutor Enno Teodoro Wanke. No começo não tínhamos dinheiro nem para papel. Toda a minha família me ajudava, o doutor David [Pilatti Montes] quantas vezes ajudou! Daí a diretoria sugeriu de passar a cobrar. Daí eu disse não. A cultura tem que ir ao povo e o povo tem que ir à cultura. Tem que ser uma troca, porque se for para pagar ninguém vem. Depois fundei o Soroptimista Internacional de Ponta Grossa, fui uma das primeiras a integrar a Associação das Mulheres de Negócios e Profissionais de Ponta Grossa [BPW]... Pertenço a todas as entidades do Paraná, Centro Literário do Paraná, Academia Feminina de Letras... E sou a única mulher do interior do Paraná a integrar a Academia Paranaense de Letras.

URBE A que se deve o seu trabalho?
LEONILDA Ao incentivo do meu esposo e meus filhos. Nunca vou esquecer uma coisa. Papai tinha uma letra tão linda e quando ele viajava com meu avô para o interior do Paraná ele ia fazendo trova. Eu puxei deles, eu herdei de papai. Acho que é uma coisa que nasceu em mim. [...] Ah, um dia ainda vou escrever um romance sobre minha vida.

URBE Esse é um dos seus projetos?
LEONILDA Meu primeiro projeto é o Fortuna Crítica. Mas faz tempo que estou pensando em escrever minha vida. Tenho tanta coisa linda para falar. Deus foi muito bom para mim. É sinal de que a minha vida tem sido muito bem vivida.

Fonte:
Jornal da Manhã. JM News. http://www.jmnews.com.br/ . 9/9/2007.