segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Entrevista com José Saramago



Saramago conversa sobre o ofício do escritor

O escritor português José Saramago esteve na Folha de São Paulo dia 27 de abril para uma conversa informal sobre o trabalho do escritor. Como um escritor escreve? Por que escreve? Há vocação, não há vocação, há livros mais ou menos fortes, os autores projetam seus livros? Saramago, um homem afável e elegante de 65 anos respondeu a todas as perguntas, "sem fintas". Estavam presentes também a escritora Lygia Fagundes Telles, o poeta e tradutor Horácio Costa, o escritor José Silvério Trevisan e as professoras Maria Aparecida Santilli e Wilma Arêas. Falou-se de livros, máquinas de escrever, transverberação e enfartes, da crítica e da relação entre os comunistas e os escritores. A reunião durou duas horas.

Folha — Como o sr. escreve? Começa o livro escrevendo à caneta e passa à máquina de escrever, usa o computador direto, dita em um gravador?

José Saramago — Eu escrevia numa máquina de escrever. Depois de ter começado numa caneta, há muitos e muitos anos, quando não havia sequer esferográficas - nunca usei esferográfica, porque é um tipo de escrita que nunca me agradou, uma escrita sempre igual - passei a escrever diretamente à máquina, a partir de uma experiência jornalística que tive em 72/73. Por circunstâncias alheias à minha vontade eu estava a trabalhar numa editora e tive de ir trabalhar para um jornal. Evidentemente eu nunca tive uma formação jornalística, nem uma vocação jornalística, digamos; foi alguma coisa que tive de fazer contra vontade. E aí a regra mandava que se tinha de escrever à máquina. Devo algumas coisas ao jornalismo. Com certeza, do ponto de vista tecnológico devo isso. Como estava obrigado a escrever à máquina, habituei-me de tal forma a isso que depois e até hoje, seria completamente incapaz de escrever, enfim, com a velha caneta a tinta permanente, e tampouco com a esferográfica, porque me dá a idéia de que tudo escreve mais depressa - ou que tudo escreve mais devagar do que aquilo que eu necessito. A minha máquina era uma máquina velhíssima, que tinha pelo menos 30 anos, uma Hermes Média, toda ela metálica, que já não se fabrica mais, evidentemente. Chegou a um tal estado de depauperamento físico, que quando se avariava, o mecânico, por duas ou três vezes, teve de fabricar peças para que ela pudesse continuar a funcionar. Essa máquina de escrever deu o último suspiro com o final da história do cerco de Lisboa.

Folha — E agora?

José Saramago — Neste momento tenho um processador de texto, atualizei-me tecnologicamente e estou diante duma inquietante dúvida: do que serei capaz de escrever com essa figura nova, que já não tem aquele ar familiar da minha máquina de escrever e é uma coisa que tem umas luzes que acendem e apagam e tudo o mais? Enfim, eu já me habituei e penso que vou continuar com ele. Eu sempre tive a preocupação de folha limpa, sem correções. Agora com as novas tecnologias isto já não é assim, porque o texto está sempre limpo. Eu levava tão longe esta preocupação, que se me enganava, por exemplo com um erro de digitação - em vez de pôr um "m" metia o "o", por exemplo, na primeira, segunda ou terceira linhas -, minha dificuldade em aguentar o texto sujo ia ao ponto de arrancar a folha e tirá-la fora. A partir da décima linha ou coisa que o valha, já admitia que me pudesse enganar, mas normalmente, e isso verificou-se muito neste último livro. Se ao fim de um dia de trabalho escrevia três ou quatro páginas, por exemplo, vinha um segundo tempo, digamos, desse mesmo trabalho: corrigir essas três ou quatro páginas e limpá-las de forma que quando fossem juntar-se às outras já estivessem limpas. Isto significa que quando eu cheguei ao fim do livro tinha praticamente o livro escrito e revisto, apenas com algumas emendas que eram necessárias. Tanto assim que nem foi preciso passar outra vez a limpo para o entregar ao editor. Tenho, de fato, a mania da página higiênica, embora ache perfeitamente fascinante olhar para uma prova vista pelo Eça de Queiroz, por exemplo, ou por Balzac, que são coisas perfeitamente alucinantes. Há provas do Eça de Queiroz, e são já as provas tipográficas, em que aquilo que ficou de 20 linhas, por exemplo, é uma linha e meia, porque o resto foi todo destruído, modificado. Eram tempos em que a mão-de-obra era barata e o compositor tipográfico podia fazer e desfazer e tornar a fazer, que o livro nunca saía caro.

Folha — Você precisa ter uma situação psicologicamente muito definida ou já chegou num ponto em que é só fazer um "clic" e a musa pinta de lá de dentro?

José Saramago — Eu penso que sofro apenas de um tipo de condicionamento: sou incapaz de escrever fora de casa. Escrever num hotel ou coisa assim. Há, realmente, colegas meus que vão acabar um livro em um hotel. Sou um homem que tem uma rotina, sou muito rotineiro a trabalhar. Não atuo por impulso, tenho consciência de que a primeira coisa necessária para escrever é sentar-se uma pessoa na cadeira e esperar. Eu não vou sentar porque tenho o impulso de escrever, eu sento-me para que esse impulso venha. É como quem tem que se pôr a jeito para que as coisas sucedam. Provavelmente isto desilude, vai decepcionar aquelas pessoas que têm do ofício do escritor uma visão romântica, arrebatada, byroniana, se quisermos. Eu não sou, quer dizer, não me vejo como um funcionário da escrita.

Folha — Você projeta os seus romances? Ou seja, você projeta a ação, você projeta o esquema narrativo antes? Como é que você concebe os romances? Eu sei, por exemplo, que essa história do cerco de Lisboa já vem de alguns anos.

José Saramago — A idéia inicial da "História do Cerco de Lisboa" é de 72 ou 73. Já é uma idéia, mas não é mais que uma idéia, um cerco de Lisboa. Naquela altura nem sequer tinha algo a ver com um cerco histórico. Era uma situação de cerco um pouco fantástica. Depois deste tempo todo nem sou capaz de ter uma idéia já muito definida disso. Essa idéia foi de 72 ou 73. Desde então eu escrevi sete ou oito livros com esse tema sempre vivendo cá dentro. Já se vê que há um tempo para ter as idéias e há um tempo para que elas possam ser realizadas. Mas como é que as idéias surgem? É um bocado difícil. Eu não tenho um plano, eu não fiz como, digamos, o grande mestre Balzac, que fez um plano, numa certa altura de sua vida e depois resolveu arregaçar as mangas e dizer agora vou fazer isto, realizar este plano. Um livro nasce-me porque tem que nascer e não porque eu tenha decidido antes.

Folha — Na entrevista que o sr. deu à Folha há quinze dias, o sr. comentou a questão da força de dois livros, a Bíblia e o Alcorão. Como escritor, essa força que os livros têm sempre esteve na sua consciência ou de repente foi uma surpresa?

José Saramago — Eu acho que os livros não têm essa força. Os livros não têm força alguma. O que acontece é que um ou dois ou três tenham uma força, que não lhes vêm do fato de ser um livro, mas do fato de serem códigos. De serem códigos, de serem leis, porque no fundo o Alcorão não é outra coisa se não isso, a Bíblia não é outra coisa se não isso e a Torá não é outra coisa se não isso. Representa uma lei que tem duas faces, uma lei que é lei humana, porque a Bíblia sabemos muito bem que no Antigo Testamento é feita por uma sociedade concreta, de homens concretos, que estão ali e que vão ser regidos por aquelas leis. E há o lado que é o da suposta revelação, a face divina. Dois livros ou três tomaram realmente uma força exorbitante. Não há nenhuma razão para que esses livros tenham mais força do que qualquer outro livro. Objetivamente não há, porque foram escritos pelas mãos de homens, não com processadores de textos, nem com máquinas de escrever, mas foram as mesmas mãos de homens que os escreveram. O que pode ser assustador - porque o é de fato - é como é que em nome dum livro se faz o que se faz. Se nós pensarmos, tudo isto é assustador. É evidente que esta súbita revelação, esta revelação do escândalo, eu a chamo assim, é muito recente.

Folha — Você considera escrever um ato de que? Você classificaria como o quê esse gesto extremo, coragem?

José Saramago — Eu diria assim, desta maneira muito simples, um ato de escrever é só um ato. Não é nada mais do que isto. Não lhe chamo ato de coragem. Eu sou provavelmente, escandalosamente, prosaico. Não acredito em vocação. Só se pode ter - imaginando que a vocação exista - vocação para as profissões que já existem. Na verdade é a própria necessidade social que vai criando as atividades e as profissões e depois nós vamos para elas. Às vezes, dizemos que fomos para elas porque não tivemos outra solução. Mas, também podemos, somos capazes de dizer, ah, eu fui para isto pela minha vocação. Mas qual vocação? Ninguém pode ter a vocação para a informática antes de a informática existir. Eu vou dizer uma coisa terrível. A transverberação de santa Teresa de Jesus, santa Teresa D´Ávila, o êxtase dela, e peço desculpas se ofendo os crentes, acho que ela teve simplesmente um enfarte do miocárdio. Quer dizer, a agudíssima dor no coração que ela atribuía a Jesus, que a estava transpassando com o raio fulminante do seu amor, não era mais que um enfarte do miocárdio, porque eu presumo que naquele século já havia enfartes de miocárdio.

Folha — Como você concilia o escritor e o comunista? Como é que a coisa se processa agora no seu cotidiano?

José Saramago — Eu acho extremamente interessante essa pergunta, que é fatal, é uma pergunta que vem sempre: como é que você sendo comunista e escritor, como é sua relação com o partido e tudo isso e tal. Mas, é lamento, uma pergunta feita como se um comunista fosse um caso particular da humanidade. Essa pergunta nunca é feita a um escritor de direita. Nunca. Não há memória de que a um escritor de direita, mesmo que seja um reacionário completo, de alguém perguntar-lhe que relação você tem, sendo escritor, com o partido onde você está, que é a coisa pior que há no mundo, de reacionarismo, fascista e tudo o mais. A esse nunca se pergunta. Mas ao escritor que caiu em comunista ou comunista que caiu em escritor, sempre a pergunta vem. Então, eu direi que, tal como no conjunto dessas coisas já ficou claro que tenho uma relação pacífica com as coisas do meu trabalho e na relação que o meu trabalho tem com os outros, que não há relação mais pacífica que aquela que eu tenho com as minhas convicções, em primeiro lugar, com o partido que consubstancia, digamos, assim, essas mesmas convicções. Sou dentro e fora desse partido - fora quando não estou em relação direta com ele, dentro quando há o momento, quando estou em seu nome -, digamos assim, há uma relação de perfeita lealdade, de perfeita responsabilidade e de perfeita liberdade. Quer dizer, eu escrevo exatamente o que quero, exatamente como quero, sem nenhuma prévia determinação, orientação, conselho, aviso, prevenção, arranjo todas as palavras que quiserem, vindas direta ou indiretamente do meu partido. E por uma razão imediata e simplicissima, é que eu sendo convictamente aquilo que sou, também convictamente acho que o meu partido não é competente em matéria literária.

Folha — Como é o seu diálogo com a crítica, se é que existe ou lhe interessa?

José Saramago — Há, realmente, uma certa crítica, que se comporta, digamos, atravessando os passos às escuras, onde se pode pensar porque não se vê o que lá está, está vazio. Esse tipo de crítica leva archote e escolhe um caminho, vai às escuras. Só vê aquilo que o seu próprio archote vai iluminando. Essa é a crítica que, no fundo, só vê o que está no seu caminho, o que significa que só vê o que está no caminho que escolheu. Se escolheu ignorar o resto, o archote não chega lá. Não vai usar archote. Só falará daquilo que o seu próprio archote iluminará. Bom, isso aplica-se a qualquer país do mundo porque, infelizmente, há muita crítica que se comporta desta maneira. A relação com a crítica em Portugal, neste momento, é bastante boa, provavelmente porque praticamente não existe crítica. Há um outro jornal que faz recensões. Quer dizer, algo que não é o que estamos a falar, da crítica, crítica, crítica. Às vezes, recensões feitas com inteligência, com sensibilidade, feitas por pessoas que, enfim, tem alguma capacidade, mas que não significa, de modo geral uma preparação clara, enfim, quer acadêmica, quer não, mas que justifique exatamente essa espécie de missão, de intermediários entre o autor e o público. Já que, realmente, a grande função da crítica é essa. Não é dar lições ao autor, porque o autor não as quer. Não as quer e ainda que quisesse recebê-las, não pode. Não pode, o autor tem o seu caminho próprio e ficará muito aborrecido se lhe disserem que seu livro é mau. Ele, aliás, vai escrever outro livro mau pelas mesmas suas próprias razões. Enfim, não há que fugir disto. Agora, para o público é indispensável. Então, digamos, o que está a acontecer hoje numa relação, a relação entre o público e o autor em Portugal está a fazer-se diretamente. Não passa pela mediação da crítica. A crítica, enfim, vai falando. Os críticos que há, que —repito— não são muitos, vão, enfim, falando dos livros e tudo o mais, mas é realmente uma relação direta entre público e autor.

Folha — Que é o ideal.

José Saramago — Eu não diria que é o ideal, porque, na verdade, embora eu tenha dito aqui algumas palavras, enfim, não muito lisonjeiras para um certo tipo de crítica, a verdade é que eu considero a crítica necessária. Eu considero a crítica indispensável.

Fonte:
Publicado na Folha de São Paulo, São Paulo, sábado, 6 de maio de 1989.
http://almanaque.folha.uol.com.br/entsaramago.htm

domingo, 26 de outubro de 2008

Francisco José Sobreira de Matos (Poesias Dispersas)



O produto dos meus sonhos

O produto dos meus sonhos
Que agora se concretizou
Tenta me deixar
E as pilastras de minha vida esfacelar
Feito lágrima ao tocar o chão

Depois de violar
Com sentimento tão lindo meu mundo
Como podes, por um segundo,
pensar em abandonar

Proponho um amor diferente
Daqueles que poucas pessoas buscam,
sentem ou querem encontrar
Erguido sobre paredes de virtudes
Que o tempo poupará
Pois seu constituto é permanente
Diferente de que com o tempo irá se desmanchar

O amor não é racional
E sendo assim, não tem que torná-lo banal
Como se a toda hora outro novo fossemos encontrar

E todo mal que me traz
Não se compara a paz
Que seu amor me dá

Abrindo as portas do meu pensamento
Para que todo esse excremento efêmero que nos mandam pensar
Dinheiro, velhice, fama e morte
Não consigam me dominar

E se de alguma forma sou forte
Nas dificuldades da vida
É apenas o produto
Do amor que me remete a verdade
Que está para além dos sentidos
E prossigamos unidos
Pois o amor é mais sutil e verdadeiro
Do que toda essa verdade que juras enxergar.
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Sentimentos Calados

Sentimentos calados
Em espaços fechados
Numa luz que se apaga

Do bréu que se anuncia
Minha alma irradia
Uma fagulha de esperança

Em amores latentes
Florescem pungentes
Herança da filosofia

Caminho que se abre
Entre as sombras que já sabem
Que este ser não podem assombrar

Uma razão treinada
Visceralmente incrustada
De uma sutil sensibilidade
É condição para a liberdade
E todo medo enfrentar
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Espelhos

No espelho que nos vemos
Nunca nos reconhecemos
Pois nestas figuras decrépitas que percebemos
Nem de longe são as imagens complexas e difusas
Do que realmente somos

Vemos nossa imagem através de pressupostos
De interpretações que nos sublimam as noções
E naquelas formas projetadas que nos aparecem
São frutos das imaginações
Do acumulo de percepções e interpretações
Que formam as projeções da figura que se expõe

O ser é pensamento,
o ser não é imagem
Imagens, cor, som são tentações
Que nos levam a alçapões de obscuridades
Se assim o desejarmos

Se pensarmos que somos corpos animados
Visivelmente incrustados de falsos baluartes
Prosseguiremos e mataremos em todos os milionésimos momentos
o verdadeiro esplendor do nosso ser
Que é pensamento

O corpo não sente nada
Nunca tocamos em nada
Pois em campos magnéticos
De causas e efeitos,
em repulsões e atrações
É que o mundo empírico se mostra
Muitas vezes entendido de maneira torta
E desprezamos o pensar sem nem tentar conceituar
O mais fundamental “o que sou eu?”

Não somos imagens em espelhos
Somos amálgamas de pensamento
E todo esse excremento que nos mandam pensar
É nosso dever duvidar
E buscar na mais simples dúvida uma certeza
E vislumbrar com clareza a base de onde
A partir daí a tudo, novamente, devemos questionar.
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Francisco José Sobreira de Matos, 23, estudante de filosofia na Universidade Federal do Pernambuco - UFPE, natural da cidade cearense de Juazeiro do Norte, cidade esta, grande expoente da cultura popular nordestina. Procurando unir os conhecimentos obtidos pela temática diversa e profícua dos estudos de filosofia com a forma poética de se transmitir o conhecimento apreendido, produziu uma série poética com temas cotidiano-filosóficos, que buscam angariar o leitor para uma discussão acerca de temas inerentes à questão da formação do sujeito contemporâneo, almejando ser um fomento para auto-reflexão e desenvolvimento da criticidade do leitor
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Fonte:
Poesias enviadas pelo autor.

sábado, 25 de outubro de 2008

Débora Tavares (Santuário da Poesia)



Líbano

ainda se esses olhos baixos se curvassem
ao excesso de sol

mas eles miram os pés a lamentar
o excesso de sombra
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Calmaria

Guarda a tua voz
quando o silêncio grita.

Mareja nos teus olhos
uma ilha.

Descansa o teu barco,
recolhe a vela

Espera
que o ondular das águas
e algum vento
te devolvam a
terra
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Polvo

Liberta tua tinta nanquim
Esfumaça a água
Acende uma coragem qualquer
Alivia teu corpo
Protege-te dele
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Âmago

Render-se à simplicidade das horas.
Apanhar um punhado de areia,
ampulheta viva, esvaindo sais e pedras.
Diluir o gozo da posse
para que restem
apenas as curvas da mão.

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Long, long play

Billy Holiday no vinil,
livros usados e
eu
neste teatro.
Hoje não quero palco.

Avisto olhares cegos.
Rodo invisível e escuro.
Roda escuro e lento o long play.
A paciência da agulha,
o risco,
o pó.

As faixas definidas.
O tempo de atravessar.

Um Rolling Stones agora
I'm "waiting on a friend".
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Serena

Esqueçamos o crepúsculo tristonho
E qualquer longitude
Estejamos rentes
Onde os dedos se enlaçam
Onde os olhos se adentram

Acolhamos nossas raízes
Entendamos que delas depende
O sol da longevidade
Onde os dedos se enlaçam
Onde os olhos se adentram
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Cerrada

Quero

o murmúrio do ouvido na água

o estado de minério
a quietude da rocha

o mergulho da retina no escuro
a densidade da mata

a fundura de um leito de rio
para uma raiz alimentada

e então a voz.
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Anzol

Meu pai não teve filho.
Meu pai aos quatro anos não teve mais pai.
Meu filho de quatro anos senta a seu lado.
Eles pescam a companhia que faltava.
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Sobre a autora
Débora Tavares mora em São Paulo (SP). É graduada em letras. Tem poemas publicados em sites e revistas literárias: www.bestiario.com.br; www.revistazunai.com.br; revista Cigarra; revista Puçanga 2; jornal Casulo 3, entre outros. Está reunindo material para a publicação de seu primeiro livro.
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Fonte:
Jornal de Literatura "O Rascunho" - Curitiba/PR
http://rascunho.rpc.com.br/

Antonio Carlos Olivieri (Uma História Esquisita)

Sabe um dia daqueles? Foi um dia daqueles, relembrou José Carlos, desmilingüido. Para começar, acordou atrasado. Tinha esquecido de botar o despertador. Na garagem, o motor do carro não pegava de jeito nenhum. Depois, nos primeiros quarteirões, a caminho do trabalho, trânsito arrastado, moroso, muito mais lento que o de costume. Para ganhar tempo, recorreu a um atalho pela contramão. Aquela era uma rua tranqüila, quase deserta. Nunca tinha visto um guarda ali. Naquele dia, porém...

O guarda, escondido atrás do poste, mal avistou a infração, mandou o motorista parar.

José Carlos estacionou e aproximou-se dele, que lavrava a multa no talão.

- Não viu a placa? - perguntou o PM, com ironia (autoritária, no topo de uma estaca amarela, pairava o círculo vermelho com a seta preta cortada pela barra transversal).

- Na verdade, não vi o senhor - respondeu José Carlos, querendo fazer graça, para ganhar a simpatia do policial.

Não adiantou. O guarda, bélico, continuou a canetar. José Carlos fez um ar reservado, mas descontraído. Explicou a urgência de bater o cartão de ponto e ofereceu uma cervejinha, pela vista grossa. O olhar do outro, afiado, deixou claro que ele incorrera num agravante. Um guarda honesto! José Carlos desesperou-se. Questionou a gravidade do delito e começou uma discussão. Resultado: teve a carta de motorista apreendida. Quanto ao automóvel, só poderia sair dali se alguém devidamente habilitado viesse retirá-lo. Ponto final.

De resto, o guarda deu-lhe as costas e voltou para trás do poste, em prontidão. Num rádio longínquo, nesse momento, o vozeirão grave de Nelson Gonçalves cantava "Vitrines", de Chico Buarque:

- Eu te vejo sumir por aí, te avisei que a cidade é um vão, dá tua mão, olha pra mim, não faz assim, não vai lá não...

José Carlos deixou o local do incidente como que arrancado a fórceps, pela necessidade. Não podia faltar ao serviço. O chefe andava na sua cola havia meses. Afastou-se do carrinho, humilhado por abandoná-lo ali, estacionado numa rua anônima, sozinho. A quem poderia pedir auxílio? Que amigo se disporia a ajudá-lo naquela hora, quando todo mundo começava a trabalhar? E, falando sério, quantos amigos de verdade tinha mesmo?

Chegou à conclusão de que só poderia retirar seu automóvel dali com os préstimos de um despachante, que resgatasse sua habilitação. De alguém que se incumbisse de vencer os trâmites legais. Era isso, sim, com certeza. Ainda bem que trabalhava nas redondezas da praça da República, onde funcionavam centenas de despachantes. Não seria difícil encontrar um para socorrê-lo.

José Carlos desceu de ônibus do bairro até o Centro. De pé, espremido entre os outros passageiros, arrasado, mas decidido a entregar seu problema a alguém do ramo. Depois, rumar o quanto antes para a firma. Respirou fundo, quase relaxado. O fantasma do atraso desapareceu do seu peito, mas deu lugar ao pavor com essa despesa extra, a do despachante, inesperada, com um preço que aumentava gradativamente em sua preocupação. Fatalmente, o orçamento do mês já estava comprometido. Ganhava tão pouco!

Na verdade, não foi pequena a quantia que lhe pediu o profissional, um sujeitinho pernóstico, que a todo o momento ajeitava o nó da gravata na folga do colarinho. Demonstrava, porém, inabalável segurança na sua perícia, através de um sorriso displicente, sob o risco grisalho do bigode. Com certeza, podia ser considerado um doutor em burocracia, embora só um diploma de torcedor corintiano enfeitasse as paredes desbotadas de seu gabinete.

- Até as cinco horas, o mais tardar, eu lhe trago para o senhor a sua habilitação de volta - garantiu a José Carlos. - É líquido e certo. Vá tranqüilo que eu lhe telefono para o seu escritório logo em breve. Falo consigo quando tudo estiver pronto e terminado.

O cliente agradeceu, entregou dois pré-datados e deixou a saleta entulhada de arquivos de aço, entreabertos, entupidos de pastas suspensas, abarrotadas de formulários e boletos. Mas francamente, não conseguia se sentir tranqüilo, seguro, despreocupado... Ao contrário, como uma pedra no sapato, a insegurança passou a cutucá-lo a cada passo, tão logo se afastou do homem que havia contratado. Alguma coisa o incomodava no tipo. A certeza de ser enganado ou traído apoderou-se de José Carlos, nesse momento, mesmo sem um motivo claro. Afinal, seu despachante não era em nada diferente de outra centena de despachantes estabelecidos na região.

A carta apreendida, o atraso ao trabalho, o despachante suspeito, o chefe intransigente... Aos poucos, o dia adquiria a consistência gelatinosa de um pesadelo. José Carlos sufocava. Todavia, agüentou firme, sabe lá como. Só não podia atrasar mais um minuto para o serviço. Então, marchou para a firma, acelerado, nas brechas da multidão que atulhava a rua Barão de Itapetininga. Interrompeu-se apenas por uma fração de segundos, na esquina da rua Marconi, onde um menino distribuía filipetas sobre a inauguração de um vegetariano na Xavier de Toledo. José Carlos não tinha tempo para o almoço: passavam vinte e cinco do meio-dia.

No escritório, procurou entrar sem ser notado, acreditando que isso não seria impossível, no ambiente labiríntico do seu andar, loteado por duas dúzias de divisórias de eucatex. Aumentando deliberadamente o itinerário até seu cubículo, evitou passar em frente à sala do gerente, seu chefe, o doutor Camargo. Caminhava devagar, na defensiva, os ombros contraídos, como se temesse deparar, a qualquer momento, com um monstro mitológico.

Afinal, quando estava quase chegando, tropeçou no gerente, que avançava em sentido contrário, voltando provavelmente da sala do cafezinho. Tão logo botou os olhos em José Carlos, o homem disparou:

- É o seu terceiro atraso este ano, não sabe?

- Eu...

- Não posso transigir com uma coisa dessas, posso?

- Não... eu...

- Como é que eu posso confiar em quem não consegue cumprir nem sua obrigação com o relógio, não é verdade?

- É... eu...

- Olha que hoje em dia está cada vez mais difícil de arranjar emprego, concorda?

- Sim... eu...

- Ainda mais para quem não tem grande qualificação como o senhor, não é mesmo?

A essa altura, em cada uma das pontas do corredor onde os dois se espremiam, apareceram as caras curiosas de um punhado de colegas de José Carlos. Nem por isso o doutor Camargo interrompeu o sermão. Antes, tornou-se ainda mais veemente, acentuando as questões retóricas do final de cada frase. Do fundo do labirinto de divisórias, para escutar melhor, alguém desligou o sistema de música ambiente, encerrando abruptamente uma versão pasteurizada de "O calhambeque".

Ao dar a bronca por encerrada, o chefe olhou feio para os espectadores nas pontas do corredor. Como um enxame de moscas, que se esgarça a uma palmada, a platéia desapareceu. José Carlos achou melhor segui-la, rapidinho. Resmungando uma hesitante promessa de pontualidade, retrocedeu sobre seus passos, caminhando para trás, de modo a não dar as costas ao doutor Camargo. Este, com a empáfia de um monumento, não arredou um pé de onde tinha se postado até vê-lo sumir. Em seu cubículo, José Carlos sentou-se e ligou seu terminal de computador, ruminando as ameaças do chefe e a vergonha diante dos colegas.

Na parede do escritório, o relógio resolveu fazer cera todo o resto da tarde, uma tarde esparsa, esgarçada, interminável. Cada minuto se arrastava vagarosamente no mostrador sem a mínima pressa. Para piorar, José Carlos não conseguia alinhavar as palavras no monitor, por mais que se esforçasse: não encontrava os termos adequados, confundia-se com os pontos e acentos, dedilhava frases desconcatenadas que nunca chegavam ao final.

Na única ocasião em que um parágrafo parecia encaminhar-se, um colega veio lhe contar uma piada:

- Conhece a do português que comprou uma coruja pensando que fosse um papagaio...

Além disso, antes do fim do expediente, o telefone o assaltou três vezes. Ao toque da campainha, estremecia sempre, como se atravessado por um choque elétrico. Atendia numa espécie de transe atrapalhado, mas em nenhuma delas escutou a voz do despachante do outro lado da linha. Mesmo assim, as três ligações foram de cunho pessoal e as duas últimas - ambas da namorada - aconteceram justamente quando o chefe tinha ido lhe cobrar o relatório. José Carlos, embaraçado, foi tão evasivo com a namorada, que ela se irritou e bateu o telefone na sua cara. Isso, porém, não contribuiu para acalmar o doutor Camargo, que se afastou brandindo os braços.

O gerente, enigmático, não lhe dirigiu mais uma palavra até o final do dia, mas fez questão de acompanhá-lo com o olhar, na fila do relógio de ponto, na hora da saída. Nos olhos do chefe, o funcionário acreditava decifrar o alívio de quem vai se livrar de um trambolho. No entanto, para José Carlos, agora, o doutor Camargo e até mesmo a namorada, enraivecida, tinham passado a habitar um distantíssimo segundo plano, em outro planeta. Só queria saber do despachante e descobrir: por que ele não tinha dado notícia?

No escritório do tipo, apenas a porta fechada esperava por José Carlos, com uma tabuleta a informar que o expediente acabava às 18h. Eram 17h45. Atordoado, José Carlos desceu pelas escadas os quatro andares até o térreo e se colocou de sentinela na entrada do prédio, onde permaneceu até as 19h30, em vão. Noventa minutos de puro sofrimento, em especial devido à batucada que jorrava do botequim na esquina da rua dos Timbiras. Quatro gaiatos, cada vez mais bêbados, executavam interminavelmente "Aquarela Brasileira", recomeçando novamente sempre que chegavam ao final:

- Vejam, essa maravilha de cenário, é o episódio, o relicário, que o artista, num sonho genial, escolheu...

José Carlos cuspiu na calçada e se deu por vencido. Foi mastigar um sanduíche no bar e aceitou deixar o despachante para o dia seguinte. Aliás, não havia alternativa: o que mais poderia fazer? Voltaria pela manhã, na primeira hora. Exigiria uma boa explicação. Mas não podia deixar seu carro dormir ao relento, sob risco de roubo ou vandalismo. Não, isso não. Resolveu que, mesmo sem a carta, iria buscá-lo e conduzi-lo ao aconchego de seu lar. Seu azar não podia ser tanto que a polícia resolvesse implicar novamente com ele naquele dia (dessa vez por dirigir sem a habilitação).

Realmente, conseguiu pegar o carro e chegar em casa sem problemas. A essa altura, tanta facilidade começava a lhe parecer uma coisa suspeita. Deixou o veículo na garagem e subiu para o apartamento, onde entrou sem acender as luzes. Caminhou até a janela e, pela fresta da cortina, olhou para a rua lá embaixo, à espreita de um policial imaginário, de um agente secreto que talvez o tivesse seguido.

Alguns momentos depois, foi abatido pela granada de um cansaço estarrecedor. Desmoronou no sofá, apoplético, desmilingüido. Tinha sido um dia daqueles...

Ali, enquanto a noite avançava, deixou-se consumir, sem resistência, pela premente sensação de ser o culpado por um crime que jamais havia cometido.

Em algum momento, lá pelas nove e meia, uma lembrança retirou José Carlos desse estupor. Recordou-se de um oficial de justiça que um conhecido lhe apresentou, num final de tarde, no Bar do Léo. O homem tinha simpatizado com ele, após conversarem sobre a pena de morte, da qual eram a favor.

Depois daquela ocasião, voltaram a tomar umas Brahmas juntos, pelo menos duas vezes, conforme se lembrava. Como era mesmo o nome dele? Não tinha idéia, mas havia guardado seu cartão de visita, pois sempre considerou conveniente manter uma boa relação com autoridades. Talvez pudesse conversar com o oficial e pedir que ele fizesse uma pressãozinha no despachante, por que não?... A maioria das pessoas só trabalha mesmo sob pressão.

No fundo do armário do quarto, por trás dos ternos pendurados nos cabides, buscou a caixa de sapatos onde arquivava seus documentos e as garantias dos eletrodomésticos. Não achou o cartão que queria, mas descobriu um livro que tinha ganhado havia muito tempo, sabe lá de quem. Não era de ler nada além de uma gazeta esportiva. Não deu maior atenção ao volume nem no dia em que o ganhou. O livro - uma brochura de trezentas páginas - tinha rolado por todos os cantos do apartamento, da sacada à cozinha, até ser depositado ali, sabe Deus quando.

Sem pensar no motivo do gesto, enfiou o volume debaixo do sovaco e voltou para a sala. Esparramou-se no sofá e começou a imaginar que o livrinho poderia distraí-lo e ajudá-lo a relaxar, pois a televisão estava quebrada. Encarou a capa da brochura, intrigado, para matar a charada da abstração que a ilustrava. Leu e releu o título da obra, a marca da editora, o nome estrangeiro do autor, que lhe era totalmente desconhecido.

Então, com a ponta do polegar e do indicador, sentiu a textura da folha de papel. Por fim, abriu o livro e patinou as retinas nas primeiras linhas do parágrafo inicial:

"Alguém certamente havia caluniado Josef K. pois uma manhã ele foi detido sem ter feito mal algum. A cozinheira da senhora Grubach, sua locadora, era a pessoa que lhe trazia o café todos os dias por volta de oito horas, mas desta vez ela não veio. Isso nunca tinha acontecido antes. K. esperou mais um pouquinho, olhou de seu travesseiro a velha senhora que morava em frente e que o observava com uma curiosidade nela inteiramente incomum, mas depois, sentindo estranheza e fome ao mesmo tempo, tocou a campainha."

Supondo que se tratava de uma história policial, José Carlos seguiu adiante, mas o inesperado desdobramento do enredo começou a perturbá-lo. Sentia-se confuso, desorientado, perplexo. Como é que alguém poderia ser processado sem saber qual o motivo? Por que diabo K. não conseguia obter com ninguém nenhuma informação? Que país poderia ter um sistema judicial tão arbitrário? Como um autor se atrevia a escrever assim, de maneira tão surpreendente, de modo a desatinar o leitor?

Cinco dezenas de páginas à frente, desnorteado, cogitou interromper a leitura. Porém, como lhe tornassem à mente a figura do despachante, do chefe, da namorada, retornou às absurdas peregrinações do tal Josef K., até sua inexplicável execução - a facadas! - no décimo capítulo.

Então, José Carlos fechou o volume, atônito. Ficou a observar um ponto inexistente acima da luminária do teto e até do globo terrestre no exato lugar onde as paralelas se encontram. Assim permaneceu, imóvel, durante muito tempo, reflexivo, absorto, concentrado, como se, a partir do que leu, algo fermentasse em sua imaginação e o fizesse descobrir uma verdade pungente, que o atingia em seu âmago. Às três da madrugada, espreguiçando, jogou o livro de lado e se rendeu: aquela história esquisita não lhe dizia absolutamente nada.
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ANTONIO CARLOS OLIVIERI, 51 anos, nasceu no Rio de Janeiro (RJ), mas mora em São Paulo desde a infância. É formado em Letras pela USP e em jornalismo por exercício da profissão. É autor de livros paradidáticos e ficção infanto-juvenil.
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Fonte:
Jornal de Literatura "O Rascunho" - Curitiba/PR
http://rascunho.rpc.com.br/

Carlos Ribeiro (O Conto: Arte do Efeito Único)


Gênero de difícil definição, o conto tem sofrido grandes transformações, mas mantém o vigor neste início do século 21

Não poucos autores dedicaram-se, com competência, mas também com alguma temeridade, à ingrata tarefa de definir o conto, esse gênero ardiloso, capaz de adotar, com familiaridade, os disfarces da crônica, da novela, da fábula, da poesia, das memórias e até do romance. Sherwood Anderson disse, de forma perspicaz, que o mais importante, no conto, não é o que as personagens estão a dizer (ou a fazer, acrescenta Hélio Pólvora), senão o que estão a pensar - o que aponta para a introspecção que se aguçou a partir dos primeiros 25 anos do século passado. O uruguaio Horacio Quiroga contribuiu para a definição do gênero com seu Decálogo do perfeito contista, no qual destaca o ardor (jamais a emoção) necessário ao contista para o sucesso nesta arte, vista como um cume inacessível. Machado de Assis, não menos genial contista do que romancista, assinalou, com habitual ironia, a principal vantagem de um conto medíocre sobre um romance medíocre: sua brevidade.

Para Hélio Pólvora, autor de Itinerários do conto: interfaces críticas e teóricas da moderna short-story, do qual tirei as citações acima, um conto "Pode ter meia página, uma página ou trinta mil palavras, como em Henry James". "Grande Sertão: Veredas não será, em realidade, um conto longo?", provoca. E, se o leitor é desses que entendem o conto "como uma narrativa que não pode ultrapassar 20 ou 25 páginas", peço um pouco de paciência e convoco, em minha defesa, Mário de Andrade, para quem "conto é tudo aquilo que o autor quiser chamar de conto". É verdade que a frase, retórica e provocativa, não ajuda muito a elucidar o gênero, mas deve-se lhe reconhecer o mérito de salvá-lo de definições esquemáticas. Mesmo porque, nas listas pessoais de melhores contos, pode-se incluir, sem escândalo, desde crônicas de Rubem Braga a poemas em prosa de Baudelaire.

Julio Cortázar, no ensaio Alguns aspectos do conto, diz que este parte da noção de limite, "a ponto de passar a receber na França, quando passa de vinte páginas, o nome de nouvelle, gênero equilibrado entre o conto e o romance propriamente dito". O que não o impede de incluir, em sua coleção de preferidos, A morte de Ivan Ilitch, de Tolstói, na nossa modesta opinião, mais precisamente uma novela, aliás, uma das grandes da literatura ocidental, ao lado, por exemplo, de Bartleby, o escrivão, de Melville, e A metamorfose, de Kafka. Tenho em mãos uma edição da editora Alhambra, de 1981, com 77 páginas, 55 a mais do que comporta o gênero, segundo consideravam os franceses, na época em que o autor de Bestiário escreveu seu ensaio.

Daí se vê que o tamanho do texto, em número de caracteres e páginas, embora possa ser tomado como referência importante, não é suficiente para definir o gênero. Se o leitor bater pé firme que Dr. Jekyll and Mr. Hyde, de Robert Louis Stevenson, é um grande conto e não uma novela como querem alguns, não será crucificado por isso. Podemos dizer o mesmo de Enfermaria número 6? De O alienista? De Noites brancas? De O estrangeiro? De A pérola? De A volta do parafuso...?

Noção de limite

Mais do que o tamanho do texto, embora inevitavelmente associado a este, as duas marcas principais do gênero são a intensidade e a densidade. Linguagem que prima pela concisão. A idéia de "tomada" da realidade converge para o conceito cortazariano do conto como fotografia, em relação ao do romance como filme. O romance e o conto, diz Cortázar, "podem ser comparados analogicamente com o cinema e a fotografia, posto que um filme é em princípio uma ‘ordem aberta', romanesca, ao passo que uma fotografia bem-sucedida pressupõe uma rígida limitação prévia, imposta em parte pelo reduzido campo que a câmara abarca e pela maneira como o fotógrafo utiliza esteticamente tal limitação".

Moldado pela "noção de limite", o conto, tal como a fotografia, cede a esse limite para encontrar, adiante, a síntese que possibilita uma transcendência e, portanto, a expressão de uma realidade muito mais ampla do que a captada pela câmera ou pela cena refletida no texto. Um bom conto não se esgota em si mesmo, como simples registro factual ou naturalista de um acontecimento. Ou como mera conceituação da realidade. Antes, ilumina a realidade, como síntese desta. Diz Cortázar:

É preciso chegar à idéia viva do que é o conto, e isso é sempre difícil na medida em que as idéias tendem ao abstrato, a desvitalizar seu conteúdo, ao passo que a vida rejeita angustiada o laço que a conceituação quer lhe colocar para fixá-la e categorizá-la. Mas, se não possuirmos uma idéia viva do que é o conto, teremos perdido nosso tempo, pois um conto, em última instância, se desloca no plano humano em que a vida e a expressão escrita dessa vida travam uma batalha fraternal, se me permitem o termo; e o resultado desta batalha é o próprio conto, uma síntese viva e ao mesmo tempo uma vida sintetizada, algo como o tremor de água dentro de um cristal, a fugacidade numa permanência. Somente com imagens pode-se transmitir a alquimia secreta que explica a ressonância profunda que um grande conto tem em nós, assim como explica por que existem muito poucos contos verdadeiramente grandes.

A definição do gênero, portanto, está intimamente associada à sua excelência. Para entendê-lo há de se procurar suas características definidoras nos textos que se destacam entre os melhores. Para se compreender bem as noções de densidade e de intensidade, que lhe fazem jus, há de se ler um Bábel, um Hoffman, um Borges, um Bradbury, um Tolstói, um Kafka, um Machado, um Borges, um Cortázar, um Graciliano, um Kipling, um Hesse, um Guimarães, um London, uma Clarice, um Merimée. Além, é claro, do próprio Cortázar, e dos grandes mestres definidores do gênero: Edgar Allan Poe e Anton Tchekhov.

Mas podemos também encontrar essas características em nomes que, embora consagrados, ainda permanecem vivos ou com memória recente entre nós, portanto, mais sensíveis às oscilações do gosto e dos critérios valorativos da crítica. De cabeça, posso citar meia-dúzia de obras modelares do gênero, tais como Os cavalinhos de Platiplanto, de José J. Veiga; Venha ver o pôr-do-sol, de Lygia Fagundes Telles; Mar de Azov, de Hélio Pólvora; A maior ponte do mundo, de Domingos Pellegrini; Cação da areia, de Vasconcelos Maia; Fazendo a barba, de Luiz Vilela. Ou, mesmo, tomando como referência a idéia do anticonto, construído sobre a perspectiva da falta de assunto, mas que, mesmo assim, mantém, paradoxalmente, a intensidade necessária, o excelente Conto (não-conto), de Sérgio Sant'Anna.

Tensão e unidade

Vale lembrar, aqui, o conceito poundiano de literatura como "linguagem carregada de significado", e de grande literatura como "linguagem carregada de significado até o máximo grau possível". Neste caso, mais próxima da poesia, sobretudo da poesia lírica, por suas características metafóricas polivalentes. Mas que pode alcançar, também, na prosa, amplitudes memoráveis. O contista, diz Alfredo Bosi, "é um pescador de momentos singulares cheios de significação".

Para Cortázar, um conto é tanto mais significativo quanto mantenha a tensão necessária à história curta - tensão esta que resulta do tratamento que é dado ao tema. Um conto, diz ele, "Não é ruim pelo tema, porque em literatura não há temas bons ou temas ruins, há apenas um tratamento bom ou ruim do tema. Tampouco é ruim porque os personagens careçam de interesse, já que até uma pedra é interessante quando dela se ocupam um Henry James ou um Franz Kafka. Um conto é ruim quando é escrito sem a tensão que deve se manifestar desde as primeiras palavras ou as primeiras cenas. E assim podemos adiantar que as noções de significado, de intensidade e de tensão irão nos permitir [...] abordar melhor a estrutura mesma do conto".

Aqui se encontra a noção de tensão com a nem sempre considerada, como vimos anteriormente, necessidade de um reduzido número de páginas. Vamos convir que seja mais fácil manter a tensão numa história (ou não-história) de meia, dez ou vinte páginas, do que num calhamaço de oitocentas; que a mantenha com três ou quatro personagens, num determinado espaço, do que com as centenas que povoam, por exemplo, os romances de Balzac, com diversos núcleos de conflito, que se desdobram em outros e outros, em numerosos cenários (exteriores ou interiores; reais ou imaginários). Daí decorre, portanto, a definição de Edgar Allan Poe, do efeito único proporcionado pela história curta, que deve ser lida de uma só sentada; e a de Cortázar, na conhecida analogia do conto com o boxe:

Um escritor argentino muito amigo do boxe me diz que, no combate que se dá entre um texto apaixonante e seu leitor, o romance sempre ganha por pontos, ao passo que o conto precisa ganhar por nocaute. Isto é verdade, pois o romance acumula progressivamente seus efeitos no leitor, enquanto um bom conto é incisivo, mordaz, sem quartel desde as primeiras frases.

Mas, adverte o autor, não se deve entender isso demasiado literalmente, "porque o bom contista é um boxeador muito astuto e vários dos seus golpes iniciais podem parecer pouco eficazes quando, na realidade, já estão minando as resistências mais sólidas do adversário".

Daí se infere outra característica marcante do gênero, sua pedra de toque: a introdução. Introdução esta que já condiciona o desfecho. De onde nasce a concepção tchekhoviana do conto como um sistema "fechado", tal como um soneto. A isto se aliando uma total economia de meios e uma rigorosa necessidade funcional de todos os seus elementos. Diz Tchekhov, não sem algum exagero, que "Se, no primeiro capítulo, se disser que da parede pende uma espingarda, no capítulo segundo ou terceiro alguém terá que dispará-la".

Tal unidade é também destacada por Poe:

Um escritor hábil construiu um conto. Se foi sábio, não afeiçoou os seus pensamentos para acomodar os seus incidentes, mas, tendo concebido com zelo deliberado um certo efeito único ou singular para manifestá-lo, ele inventará incidentes tais e combinará eventos tais que melhor o ajudem a estabelecer esse efeito preconcebido. Se a sua primeira frase não tender à exposição desse efeito, ele já falhou no primeiro passo. Na composição toda, não deve estar escrita nenhuma palavra cuja tendência, direta ou indireta, não se ponha em função de um desígnio preestabelecido. (Graham's Magazine, maio de 1842. Citação retirada do livro O conto brasileiro contemporâneo, organizado por Alfredo Bosi.)

Para Ricardo Piglia, que também se debruçou sobre o gênero, para analisá-lo, o conto conta sempre duas histórias: a visível e uma outra, secreta, narrada sempre de um modo elíptico e fragmentário. "O efeito de surpresa se produz quando a história secreta aparece na superfície".

Relativização

Mesmo considerando todas essas definições, há de se abrir espaço para o insight, para uma execução do conto menos condicionada a regras e amarras racionalistas. É óbvio que, por limitações de tamanho e por exigência de uma maior intensidade, o gênero é menos afeito, que o romance, ao fluxo da consciência tão ao gosto dos surrealistas. Mas Virgínia Woolf e Clarice Lispector, James Joyce e Katherine Mansfield descortinaram, também no conto, novas paisagens e atmosferas poéticas, operando um deslocamento que, desde o século 19, vem ocorrendo do realismo, com a descrição pretensamente objetiva de fatos que acontecem lá fora, no mundo externo, material, testemunhados por um observador imparcial, para o mundo interior, de acontecimentos que ocorrem ou se refletem na consciência - e, mais além, no inconsciente: no universo rarefeito dos sonhos, dos delírios, das alucinações, da fragmentação da personalidade.

Tomando como balizas a contística de Maupassant (linear, anedótica e episódica) e de Tchekhov (de atmosfera, na qual o silêncio, o que não é dito, tem função essencial no efeito pretendido), o conto moderno ganhou, no século 20, um tom intimista, um encantamento verbal, também devedor da prosa poética de Rimbaud. Dessas vertentes, muitas vezes cruzadas e amalgamadas, desenvolveram-se estilos diversos, aos quais se agregam nomes como os de Hemingway, Juan Julfo, Raymond Carver, O. Henry, Rubem Fonseca, Dalton Trevisan e Lygia Fagundes Telles.

À relativização da história e da realidade, a partir de múltiplos pontos de vista, soma-se o desenraizamento transcendental, a perda da busca de um sentido e de uma utopia, o que se reflete no tom de paródia, na negação de grandes projetos políticos, sociais e estéticos do modernismo; na preferência por pequenas questões do cotidiano; na aproximação com outras linguagens, a exemplo do cinema, dos quadrinhos, da publicidade. A supervalorização da linguagem leva, nos extremos do pós-estruturalismo, à quebra da ligação original entre o signo e seu objeto, dando-se as costas, segundo Jacques Derrida, "ao exterior referencial da linguagem": ao mundo das coisas. É quando a linguagem se posiciona como realidade autônoma, e as possibilidades de interpretação se multiplicam no vazio criado pela ausência da autoridade - inclusive a do próprio autor em relação à sua obra.

A conseqüência disso é um distanciamento ainda maior do conto episódico, segundo o modelo maupassantiano, da história com começo, meio e fim, com tensão crescente, estrutura fechada e final inusitado. Hoje, é ainda evidente, entre muitos escritores contemporâneos, sobretudo no âmbito universitário, um desdém pela narrativa linear e pela construção de uma história. O que vale é, sobretudo, a linguagem - sendo Clarice Lispector e Guimarães Rosa as principais referências.

Este fenômeno tem provocado um empobrecimento do gênero, considerando: 1) Que existem grandes contos em qualquer vertente, não havendo, necessariamente, a superioridade de uma em relação à outra. O que importa realmente é o talento do escritor; 2) A inexistência, por exemplo, da noção tão valorizada por Rosa, da literatura como fábula, como transcendência - em suma: de uma visão filosófica da vida, hoje na contramão de um olhar voltado, como diz Alfredo Bosi, para o "dia-a-dia normal e socializado", ou seja, para tudo que é anti-Guimarães. Resultado: a produção enfadonha de rococós lingüísticos sem transcendência, sem epifania, sem raízes, sem verticalidade, que compõem quase sempre uma escrita anêmica, narcisista, um cinismo pseudotransgressor, um experimentalismo verbal inconsistente, voltado para o próprio umbigo.

O mesmo ocorre, de certa forma, com outra vertente: a da literatura urbana neonaturalista, limitada pelo registro factual, documental e jornalístico, mas carente das raízes profundas que possibilitaram, num passado não muito distante, a representação de uma realidade humana densa e profunda. Falta, hoje, não apenas no Brasil, haja vista a valorização de autores como o francês Michel Houellebecq e de seus similares nacionais, "o subsolo humano comum onde a criação artística mergulha suas raízes à procura do alimento vitalizante", como escreveu Aníbal Machado a respeito do conto russo do século 19.

Mas o conto resiste e mostra vigor, conforme demonstram as inúmeras coletâneas e antologias que vêm sendo editadas. Embora ainda não se possa vislumbrar grandeza, no que é feito atualmente, já se pode enumerar uma dezena de bons contistas, dentre autores surgidos nas últimas duas décadas, de norte a sul do país, conforme têm demonstrado antologias organizadas por Nelson de Oliveira, Luiz Ruffato e Rinaldo de Fernandes.

Numa época de extremo relativismo, talvez seja anacrônico esperar grandeza nas artes e na literatura, quando os próprios parâmetros de avaliação são desconstruídos, irremediavelmente. Talvez estejamos caminhando para critérios individuais do que é efetivamente o melhor. Com o desenvolvimento das tecnologias digitais, cada leitor poderá editar suas próprias antologias. Se me for possibilitado tal privilégio, não deixarei de reverenciar títulos que marcaram profundamente a minha formação, como leitor, a exemplo de O duelo, de Tchekhov; O escaravelho de ouro, de Poe; O homem da areia, de Hoffmann; O sinaleiro, de Dickens; Terra de cego, de H. G. Wells; A vênus de Ille, de Prósper Merimée; Os construtores de pontes, de Kipling; A morte do leão, de Henry James; Um artista da fome, de Kafka; As ruínas circulares, de Borges; A ilha ao meio-dia, de Julio Cortazar; O planalto em chamas, de Juan Julfo; Chuva, de Somerset Maughan; A sirene no nevoeiro, de Ray Bradbury...

No Brasil, limitando-me a autores já mortos, não poderia esquecer títulos como: A missa do galo, de Machado de Assis; Vestida de preto, de Mário de Andrade; Acudiram três cavalheiros, de Marques Rebelo; Cheia grande, de D. Martins de Oliveira; A hora e a vez de Augusto Matraga, de Guimarães Rosa; Flor, telefone, moça, de Carlos Drummond de Andrade; Viagem aos seios de Duília, de Alcântara Machado"; Baleia, de Graciliano Ramos; O pirotécnico Zacarias, de Murilo Rubião; Laços de família, de Clarice Lispector; Amado cavaleiro o audaz motoqueiro, de Herberto Sales; Sargento Garcia, de Caio Fernando Abreu...

A lista se estenderia muito mais, se não tomássemos aqui o modelo de conto como gênero autônomo, formado a partir do século 19. Nesse caso, não deixaria de citar, sob a rubrica de apólogos, fábulas, novelas e alegorias, as histórias das Mil e uma noites, das Novelas exemplares, de Cervantes, dos Irmãos Grimm, de Voltaire (Zadig, Micrômegas) e tantos outros textos que enobrecem a arte de contar. "Façamos sempre contos", escreveu Diderot. Pois, "O tempo passa e o conto da vida se completa sem disso darmos conta".

Decálogo do perfeito contista
Horácio Quiroga (1878-1937)

I. Crê num mestre - Poe, Maupassant, Kipling, Tchekhov - como na própria divindade.

II. Crê que tua arte é um cume inacessível. Não sonhes dominá-la. Quando puderes fazê-lo, conseguirás sem que tu mesmo o saibas.

III. Resiste quanto possível à imitação, mas imita se o impulso for muito forte. Mais do que qualquer coisa, o desenvolvimento da personalidade é uma longa paciência.

IV. Nutre uma fé cega não na tua capacidade para o triunfo, mas no ardor com que o desejas. Ama tua arte como amas tua amada, dando-lhe todo o coração.

V. Não começa a escrever sem saber, desde a primeira palavra, aonde vais. Num conto bem-feito, as três primeiras linhas têm quase a mesma importância das três últimas.

VI. Se queres expressar com exatidão essa circunstância - "Desde o rio soprava um vento frio" -, não há na língua dos homens mais palavras do que estas para expressá-la. Uma vez senhor de tuas palavras, não te preocupes em avaliar se são consoantes ou dissonantes.

VII. Não adjetives sem necessidade, pois serão inúteis as rendas coloridas que venhas a pendurar num substantivo débil. Se dizes o que é preciso, o substantivo, sozinho, terá uma cor incomparável. Mas é preciso achá-lo.

VIII. Toma teus personagens pela mão e leva-os firmemente até o final, sem atentar senão para o caminho que traçaste. Não te distraias vendo o que eles não podem ver ou o que não lhes importa. Não abuses do leitor. Um conto é uma novela depurada de excessos. Considera isto uma verdade absoluta, ainda que não o seja.

IX. Não escrevas sob o império da emoção. Deixa-a morrer, depois a revive. Se és capaz de revivê-la tal como a viveste, chegaste, na arte, à metade do caminho.

X. Ao escrever, não penses em teus amigos, nem na impressão que tua história causará. Conta, como se teu relato não tivesse interesse senão para o pequeno mundo de teus personagens e como se tu fosses um deles, pois somente assim obterás a vida num conto.

Fonte:
Jornal de Literatura "O Rascunho" - Curitiba/PR
http://rascunho.rpc.com.br/

Henry James (1843 - 1916)

Segundo filho do casal Henry James e Mary Robertson James, Henry James nasceu em 15 de abril de 1843 em Nova York, perto de Washington Square, onde passou a infância.

Em julho de 1855 a família partiu para a Europa. Durante os cinco anos seguintes, entre várias idas e vindas, as crianças freqüentaram alternadamente, escolas européias e americanas. Em 1860 voltaram a morar nos Estados Unidos.

Em 1861 começou a estudar na Faculdade de Direito de Harvard, mas conferências do escritor James Russel Lowell sobre literatura faziam-no esquecer as leis. Em 1863 escreveu seu primeiro conto – A Tragedy of Error - publicado sem assinatura na revista Continental Monthly em fevereiro de 1864, mesmo ano em que junto com a família, muda-se para Boston. Pouco tempo depois redigiu uma nota crítica para The North American Review. No ano seguinte se tornou colaborador da revista The Nation e publicou na revista Atlantic Monthly seu primeiro conto assinado: The Story of a Year.

Em 1866 a família transfere-se para Cambridge, Estados Unidos.

Em fevereiro de 1969 partiu para a Europa. Levava consigo o pequeno lastro de suas experiências literárias, os primeiros contos em que já aparecem alguns dos temas que seriam constantes em sua obra – os artistas, o sobrenatural, o americano viajado. Esteve na Inglaterra, França, Suíça e Itália.

Em março de 1870 recebe a notícia da morte de sua prima Minny Temple, da qual gostava muito e em quem se inspiraria anos mais tarde para criar vários personagens.

Em abril voltou para os Estados Unidos e tornou-se crítico de arte do periódico The Atlantic, no qual publicou, em 1871, sua primeira novela: Watch and Ward.

Em 1875 publicou o romance Roderick Hudson e o livro de contos A Passionate Pilgrim. Em novembro do mesmo ano mudou-se para Paris, onde trabalhou como correspondente do jornal Tribune. Um ano depois James chegou à conclusão de que não tinha talento para repórter e partiu para Londres. Antes de arrumar as malas, fez um balanço dos aspectos positivos de sua estada em Paris. Em termos de criação literária, a melhor obra desse período foi O Americano, publicado pela revista The Atlantic em 1877. Além disso, teve oportunidade de conhecer escritores como Turguêniev, Flaubert, Zola, Maupassant, Edmond Goncourt. Entre eles, quem mais o impressionou foi Turguêniev, sobretudo por sua maneira de concentrar-se nos personagens, dando pouca importância ao enredo.

Em dezembro de 1876, fixou-se em Londres, na esperança de conquistar seu público também na Inglaterra – o que só aconteceria em 1879, com a edição inglesa de Rocerick Hudson e O Americano. Dos três romances escritos até então, apenas Watch and Ward não foi publicado, pois o próprio escritor julgava-o imaturo.

Não foi preciso esperar o lançamento desses dois romances para James firmar-se perante a crítica britânica. A consagração veio em 1878, com a publicação dos ensaios literários French Poets and Novelists, do romance Os Europeus e de mais de trinta contos, entre os quais Daisy Miller e An International Episode.

Em 1880 foi publicado na Inglaterra e nos Estados Unidos A Herdeira, um de seus melhores livros. E em outubro desse ano aparecia a primeira parte de O Retrato de uma Dama, sua obra mais extensa e popular e que encerraria a primeira fase da produção de James. Fase de aprendizado, de sucesso, de descoberta e de uso de temas cosmopolitas.

Em outubro de 1881, Henry James recebe a notícia de que sua mãe está doente. Arruma as malas e viaja para os Estados Unidos. Instala-se em um hotel em Boston, onde escreve à vontade e aproveita horas livres para visitar Nova York e Washington. Em janeiro de 1882 sua mãe morre. Em dezembro está de volta à Europa, e logo recebe outra notícia que o faz arrumar as malas novamente: agora é seu pai. Viaja apressadamente, mas não chega a tempo de encontrar seu pai vivo. Corre ao cemitério e junto ao túmulo, depara com uma carta de seu irmão William: “Boa noite, adorado pai. Se eu não te vir de novo, então adeus, um feliz adeus”.

Henry ficou na América até agosto do ano seguinte. Depois retornou novamente à Inglaterra. Sua produção não sofreu abalos. Ao contrário: durante a década de 1880 escreveu vários contos, a novela The Reverberator e os três romances considerados naturalistas: Os Bostonianos, Princesa Casamassina e A Musa Trágica.

Os Bostonianos trata dos reformadores da Nova Inglaterra. Princesa Casamassina fala dos anarquistas europeus. Nos dois romances as cenas da vida urbana mostram uma visão bastante ampla das cidades de Boston e Londres. Os leitores, porém, esperavam mais contos dos americanos na Europa ou de viajantes estrangeiros na América. Por isso, as duas publicações foram um fracasso.

Henry James não se deixou abalar. Continuou a compor seus contos, nos quais se percebe uma constante evolução de técnica aliada a temas mais ricos e variados. Os escritos desse período podem se agrupados por assuntos: internacionais – alguns na América, outros na Europa – sobre o casamento e sobre artistas. Ao primeiro grupo pertence Lady Barberina, publicado em 1884, história de uma jovem inglesa que se casa com um rico médico americano. Entre os contos do segundo grupo destaca-se A London Life, uma análise da corrupção do casamento. Por fim, dos contos sobre artistas, distinguem-se The Author of Beltraffic, cujo tema é a incompatibilidade de gênio entre um artista e sua esposa, e , que trata do casamento de um escritor e dos efeitos dessa união sobre seu trabalho.

O romance The Reverberator, de 1888, é uma produção menor, que pode ser utilizado como argumento contra as opiniões de que James era sério demais: seu tema é o jornalismo mexeriqueiro, o colunismo social. Em 1889 o escritor fez nova tentativa naturalista no romance com A Musa Trágica, mas que também não alcançou êxito com o público. No fim da década de 1880 o escritor era considerado um artista de extraordinária habilidade artesanal e havia recebido o reconhecimento da crítica. Mas o sucesso não se traduzia em dinheiro. Por isso, em 1890 resolveu tentar o teatro, muito mais rendoso na época. Assim, de 1890 a 1895 escreveu sete peças, das quais apenas duas foram encenadas. Na primavera de 1890 terminou a dramatização de O Americano, que embora bem recebida pela crítica, não alcançou sucesso com o público.

Em 1892 fez a versão teatral de Daisy Miller, recusada pelo empresário, que a considerou literária demais. James, contudo, não desistia de conquistar o palco. Em 1893 escreveu mais quatro peças, que também não chegaram a ser montadas. No ano seguinte, publicou-as em forma de livro, sob o título de Theatricals.

Em 1895, o popular ator e produtor George Alexander encenou a peça Guy Domville. A estréia foi um desastre. No segundo ato quando a Sra. Domville apareceu com um alto chapéu preto, alguém gritou: “Onde foi que você arranjou esse chapéu?”. E no final, quando Guy exclama: “Sou, meu senhor, o último dos Domville”, uma voz respondeu: “E já não é sem tempo”. Até esse instante James não estava no teatro; chegou ao cair do pano e apresentou-se à platéia. Foi uma tempestade de vaias. Em uma carta, o autor referiu-se ao episódio como um “dos mais detestáveis incidentes da minha vida”.

Antes de Guy Domville James havia escrito a peça The Other House, publicada em 1896 e jamais encenada. Depois de Guy Domville, ainda tentou conquistar o público teatral com Summersoft, representada, com algum êxito, em 1908, sob o título The High Bid.

Apesar dos fracassos, James continuou insistindo no teatro até 1909, quando escreveu sua última peça, The Outcry. A obra deveria ser representada na temporada desse ano, mas atrasos na revisão do manuscrito e no preenchimento do elenco foram adiando a estréia, que acabou cancelada.

Entristecido, James desistiu do palco. Retirou-se definitivamente de Londres e mudou-se para Lamb House, em Rye, cidade costeira do Sussex. Voltou a compor romances, novelas e contos. Até 1900 concluiu um grande número de obras de ficção, além de mais de 20 contos. São desse período suas experiências com o relato fantástico, em que se destaca A Outra Volta do Parafuso.

No entanto, mais importantes que os temas são as inovações técnicas introduzidas por Henry James. O teatro deu-lhe muitas lições: apresentação da ação por meio da cena, uso do diálogo como processo narrativo e supressão do autor onisciente como informador e comentarista. Seus escritos posteriores constituiriam a sua maior fase. Nos primeiros dez anos do século XX, Henry James trabalhou intensamente. De 1900 a 1904 escreveu seus três maiores romances: Os Embaixadores, As Asas da Pomba e A Taça de Ouro.

Em 1904 viajou para a Flórida e para a Califórnia, onde realizou algumas conferências.
Quando retornou à Inglaterra, escreveu The American Scene, um livro de observações sobre suas viagens.

Embora tenha sido publicado em 1903, Os Embaixadores foi concluído antes de As Asas da Pomba; apareceu, a princípio, na North American Review, em capítulos.

Nos dois romances analisou dramas humanos, dentro dos grandes sistemas sociais que o homem criou e dentro das idéias pelas quais edificou sua civilização, conservando-se um realista apegado às coisas visíveis e palpáveis.

Em A Taça de Ouro, James procura solução para problemas não resolvidos em trabalhos anteriores. Havia muito tempo queria escrever sobre o adultério: não podia fazê-lo, pois as familiares revistas americanas obrigavam-no a tratar o tema superficialmente. Como não havia planos para o romance ser publicado em série, sentia-se livre para abordar o assunto sem nenhuma restrição. Foi o que fez.

Na mesma época foram publicados mais três livros de contos:The Soft Side, The Better Sort e The Finer Grain.

Dessas coletâneas o conto mais popular é The Beast in the Jungle, que narra a história de um indivíduo tão egoísta que era incapaz de perceber o mundo à sua volta, de compreender e de amar. Esse conto é uma representação alegórica da insensibilidade, da cautela e da falta de ação que, segundo o autor, caracterizam o homem moderno.

Nas horas de folga dedicava-se à preparação da chamada “Edição Nova York” de suas obras. A cada romance e livro de contos, juntou um longo prefácio, no qual fez reflexões sobre os princípios de sua arte e os formula claramente. Mais tarde esses prefácios foram reunidos num volume sob o título The Art of Novel, em que três elementos se destacam: o estudo do processo de criação, a forma pela qual chegou a escrever histórias e as associações pessoais despertadas por uma nova leitura de sua própria obra. Esses trabalhos forneceram à crítica uma terminologia valiosa para a discussão do romance, que até hoje é amplamente utilizada.

Embora não tenha voltado a escrever romances, sua produção literária dos últimos anos foi extraordinária. Dedicou-se a elaboração de textos autobiográficos, críticos e de viagens. Escreveu English Hours, Italian Hours e Little Tour in France. Pouco antes do início da Primeira Guerra Mundial, publicou Notes on Novelists com estudos sobre Zola, Flaubert, Balzac, H. C. Wells e Bennet, além de dois volumes de memórias: A Small Boy and Others e Notes of a Son and Brother. Um terceiro livro sobre sua vida em Londres e Paris - The Middle Year - seria publicado somente após sua morte.

Em 1910 William James viajou à Europa para tratamento de saúde. Embora não estivesse muito bem, Henry acompanhou-o de volta à América. William piorou e faleceu no dia 26 de agosto.
Profundamente abalado, o escritor ficou na América até agosto do ano seguinte. Antes de retornar à Inglaterra foi homenageado com o grau honorário da Universidade de Harvard.

Meses depois recebeu o título de Doutor Honorário de Oxford.

Em 1913 seus setenta anos foram intensamente comemorados.

Em agosto de 1914 começou a guerra. Henry James cessou toda a sua atividade literária, lamentando “o horror de ter vivido para testemunhar tudo isso”, e ingressou num grupo de americanos que voluntariamente prestavam assistência espiritual aos feridos. Nas horas vagas redigia vários artigos sobre os refugiados de guerra.

Desejava que os Estados Unidos se aliassem à Inglaterra e à França. Irritado com a neutralidade do presidente Wilson, adotou a cidadania britânica em 26 de julho de 1915.

Em dezembro desse ano sofreu um derrame. Em 28 de fevereiro de 1916, morreu aos 73 anos. Seu corpo foi cremado e suas cinzas enviadas para a América e colocadas no jazigo da família, em Cambridge, Massachussetts.

Obras
A Volta do Parafuso
As Asas da Pomba
Lady Barberina
A Taça de Ouro
Roderick Hudson (1876)
Daisy Miller (1878)
Retrato de uma Senhora (1881)
Os bostonianos (1886)
A Fera na Selva

Adaptação de obras para o cinema
Taça de Ouro

Os inocentes - adaptação de "Turn of the screw"

As Asas Da Pomba - No Brasil conhecido como As Asas Do Amor. Sobre o triângulo romântico que se inicia quando a herdeira de uma fortuna Americana se muda para Londres a procura de ajuda medica e cai em um trama em que Kate Kroy planeja que ela se apaixone pelo seu amante e que deixa sua fortuna para ele com a chegada da sua morte.

Fonte:
http://www.sociedadedigital.com.br/artigo.php?artigo=238
http://pt.wikipedia.org

Aurora Bernardini (A dama que seduziu Dumas)

Como Marie Capelle, que lia para sobreviver na prisão, se tornou heroína de um folhetim inédito em livro até pouco tempo atrás

Em 1869, aos 67 anos de idade, Alexandre Dumas, o autor dos romances mais lidos na França da época, O conde de Monte Cristo e Os três mosqueteiros, e de um número considerável de outros livros (inclusive um de culinária!) e de 60 peças de teatro (“era uma verdadeira força da natureza!” – dizem seus biógrafos), resolve mudar de rumo. Sempre atento aos interesses de seu público, pressentiu que os leitores queriam agora algo de mais ágil que lhes desse a sensação de continuidade; nada melhor, para tanto, do que recorrer ao gênero folhetinesco.

Passa então a escrever folhetins, cada um dos quais encerra não mais do que um capítulo de sua nova narrativa que, para manter a atenção do leitor numa longa sucessão, deve ter os ingredientes necessários: suspense, ação, reação, golpes de cena, reviravoltas que redundem, no desenlace, em algo de extremamente verossímil, quando não completamente verdadeiro.

É este o caso de Senhora Lafarge e de Le chevalier de Sainte-Hermine. O primeiro acaba de ser publicado pela Martins Fontes, e o segundo (de mais de mil páginas!) está em fase de tradução. Durante quase um século e meio as duas narrativas ficaram inéditas em livro. Só em 2005 Claude Schopp, o “meticuloso guardião do corpus dumasiano” e autor de uma tese e vários livros sobre o grande escritor, reuniu os escritos que vieram a constituir o romance Senhora Lafarge e, pesquisando os periódicos da época nos Arquivos do Sena, trouxe inesperadamente à luz cento e tantos capítulos de Le chevalier de Sainte-Hermine – 70 mil exemplares impressos na França em um único mês – que prefaciou e teve de terminar, preenchendo as lacunas deixadas por Dumas que não conseguiu fazê-lo antes de sua morte, em 1870.

Senhora Lafarge narra a história de Marie Cappelle, jovem de origem aristocrática sem muita fortuna que, pelos descaminhos da vida, acaba casando-se, via agência matrimonial, com o brutamontes Lafarge, que, além de repulsivo, ainda por cima – descobre-se demasiado tarde – é desprovido de meios. As cenas da chegada da mulher à casa da sogra e o seu assédio noite afora são das mais acabrunhantes do livro. O que fazer? Um belo dia de 1840, na cidadezinha de Tulle, onde reside, o senhor Lafarge amanhece envenenado. Arsênico. O fato é verdadeiro, as personagens, também. Instaura-se o processo que irá apaixonar por anos a opinião pública francesa.

Tal como Aleksandr Púchkin, que apesar de ter tido uma vida mais breve (foi morto em duelo aos 38 anos, por um francês!) foi seu contemporâneo, Alexandre Dumas, embora escritor romântico, sabe como lidar com seus leitores de maneira realista. Entremeando referências pes¬soais sem ilações psicologizantes, leva-os a participarem, como interlocutores inteligentes, da ação, das conseqüências da ação, das digressões, das discussões de sua época. Se Púchkin, em seu famoso conto gótico A dama de espadas instrui o público sobre telepatia, alucinação, magnetismo e jogos de azar, Dumas mergulha-o em cheio na história da França.

“Minha vida daria um romance”, teve ocasião de dizer Dumas nos fascículos de suas volumosas memórias que vão desde a queda da Bastilha, o advento de Napoleão até o II Império e a III República. (Nos sebos ainda se encontram as traduzidas por Rachel de Queiroz para a José Olympio, em 1947, Memórias de Alexandre Dumas, pai. Como se sabe, Alexandre Dumas teve um filho, também escritor, que passou a firmar Alexandre Dumas, filho).

De fato ele reconta sua vida a partir do avô, marquês Davy de la Pailetterie, que, devido a intrigas da corte, deixa a França em 1760 e se estabelece na grande propriedade que compra na ilha de São Domingos, colônia francesa, onde se casa com uma escrava e tem um filho mulato que se torna um grande militar: o pai de Dumas. Morta a mulher, a quem queria muito, o avô volta à França em 1784 e, com a idade de 74 anos, torna a casar-se. O filho, Thomas-Alexandre Dumas-Davy de la Pailleterie, célebre por sua bravura e força hercúlea, faz rápida carreira, torna-se general, mas se incompatibiliza com Napoleão durante a campanha do Egito. Volta à França, perde o prestígio e a saúde e morre em Villers-Cotterêts, onde a família possuía uma propriedade, em 1806.

Alexandre Dumas, filho de Thomas-Alexandre, nascido em 1802, e sua irmã ficam portanto órfãos de pai na idade mais tenra. Acontece que o avô de Marie Cappelle, o senhor Collard, fora vizinho e amigo do general republicano e, como tal, fora designado tutor do pequeno Alexandre e de sua irmã. Isso não apenas justifica o fato de Alexandre Dumas ter mergulhado no caso judicial que envolveu Marie Cappelle como conhecedor de todos os detalhes, mas explica a autenticidade que soube imprimir a todas as passagens como protagonista que de fato foi.

O processo desenrola-se com todos os moventes e peças manipulados pelos jurisconsultos mais renomados da época. Documentos a favor e contra a senhora Lafarge são arrolados com a veemência e a meticulosidade que o caso comporta. Formam-se alas de lafargistas e antilafargistas. A comoção é nacional. Por fim, a senhora Lafarge, recolhida à prisão desde o início do processo, é condenada e transferida de Tulle para Montpellier, onde irá expiar sua culpa. Culpada ou mártir?

As várias propostas de fuga para o estrangeiro são recusadas por Marie, que clama sua inocência. O próprio Dumas, amigo da família, propusera à jovem órfã (Marie perdera os pais quando ainda menina, ficando a cargo de uma tia) que o deixasse levá-la para Paris: “Ofereci-me para raptá-la naquela mesma noite. Eu falava seriamente e o teria feito, certo de estar agindo em prol da sua felicidade e, conseqüentemente, de acordo com a Providência. Teria você se tornado cantora, atriz trágica ou literata? Não sei. (...) Com certeza teria sido algo grande, distinto, fora de série!”. Marie não foge e nada mais lhe resta senão escrever suas Reflexões e recordações, as quais, por sinal, Dumas cita várias vezes em sua narrativa. Triste é o destino das mulheres que não se adaptam a seu tempo, opina o escritor.

Enquanto espera pelo indulto que o novo imperador talvez lhe dê, instado pelos esforços do próprio Dumas e após superar os maus-tratos que lhe são infligidos na prisão à custa de sua própria saúde, Marie lê, lê “como quem tenha feito da crença na ficção a chave do funcionamento do real”, dirá Ricardo Piglia no seu O último leitor.

“É preciso ter sido privado de livros para sentir o preço dessa doce companhia, sempre variada, sempre renovada, sempre em uníssono com a corda vibrante de nosso espírito”, escreve Marie. E o que ela lê? Pascal, “o suave agrimensor da dúvida e da fé”; depois Bossuet, “o cronista inspirado dos segredos de Deus”; depois ainda Fénelon, “ a alma de apóstolo e de santo”; Madame de Sévigné, com “o inesgotável gênio de seu amor de mãe”, e enfim Corneille, Racine, Montaigne, La Fontaine, Molière. Em sua clausura vive da lembrança dos livros que carrega em sua memória.

E se ela tivesse tentado fugir?, pergunta-se o leitor, enquanto ainda tenta dirimir a dúvida que lhe ficou quanto à sua culpabilidade. Será que não teria conseguido talvez contornar a sorte que coube às suas contemporâneas literárias, Anna Kariênina e Emma Bovary? Talvez só George Sand, com suas self-made-women (quem, de sua geração, não torceu pela Pequena Fadette?), teria podido dar uma visão mais otimista do que a do romântico Dumas quanto ao destino de suas heroínas.

Fonte:
Revista EntreLivros - edição 24 - Abril 2007

Nilto Maciel (Literatura Fantástica no Brasil – Parte II)

OS SUCESSORES

A preocupação dos modernistas de 22 com o novo, o moderno, o revolucionário afastou-os do fantástico. Ora, o sobrenatural é anterior a toda literatura escrita. Não poderia mais ser motivo literário. No entanto, havia uma contradição no ideário modernista, vez que "a busca de inspiração nas fontes mais autênticas da cultura e da realidade brasileiras”, o nativismo, o verde-amarelismo, o antropofagismo etc. teriam que, necessariamente, se imbricar às lendas e mitos brasileiros. Ou seja, ao maravilhoso, ao fantástico. É o que se vê em Cobra Norato e Martim Cererê, por exemplo. Apesar disso e ainda assim, os modernistas não praticaram o fantástico, vez que nos dois casos estamos dentro dos limites da poesia, e o fantástico, segundo Todorov, não pode subsistir a não ser na ficção. E Macunaíma? Seria romance com ingredientes fantásticos? Talvez um fantástico novo, revolucionário, essencialmente brasileiro.

Em 1934 a paranaense Rachel Prado optou por ser diferente de seus contemporâneos e publicou Contos Fantásticos.

Jorge Amado não ficou imune ao fantástico, apesar do costumbrismo tão presente em sua obra. Porém e exatamente nas lendas, no anedotário que o fantástico se instala. A literatura oral de qualquer país ou região é plena de elementos fantásticos. Lembramos As Mil e Uma Noites.

Há pelo menos uma tese de interesse para estes apontamentos e que tem como objeto a obra do romancista baiano: “O fantástico, o maravilhoso e o realismo mágico na obra de Jorge Amado”, de autoria de Maria Cristina Diniz Leal.

A pioneira da ficção científica no Brasil é Dinah Silveira de Queiroz. Estreou em 1939, com o romance Floradas na Serra. No entanto, são outros seus livros que devem ser aqui lembrados: Eles Herdarão a Terra, de 1960, e Comba Malina, de 1969.

Nessa mesma linha estão Almeida Fischer, Luís Lopes Coelho e Fausto Cunha. O primeiro é autor de O Homem de Duas Cabeças, de 1950. O segundo publicou A Morte no Envelope (1957), O Homem que Matava Quadros (1961) e A Idéia de Matar Belina (1968). O terceiro é autor de As Noites Marcianas (1961) e O Dia da Nuvem (1980), ambos também dentro dos padrões da science fiction.

Voltemos, porém, a narrativa fantástica propriamente dita e sigamos rumo aos dias da hoje. No meio do caminho, no entanto, seremos forçados a abrir três atalhos ou veredas, para depois voltarmos à. grande estrada. Dedicaremos algumas palavras mais a três nomes fundamentais de nossa literatura fantástica: Murilo Rubião, José J. Veiga e Péricles Prade.

Em 1944 estreou em livro Lygia Fagundes Telles. Na apresentação da 3ª edição de Antes do Baile Verde, antologia que vai de 1949 a 1969, Fábio Lucas afirma: “Hoje, todas as literaturas consideradas amadurecidas admitem e aplaudem as obras fantásticas. Jorge Luís Borges, por exemplo, pode ser considerado um dos mais influentes propagadores da narrativa fantástica.” E mais adiante: “A fadiga de algumas formas realistas tem conduzido determinados escritores à região do fantástico e do maravilhoso. Alguns vão ter a esse terreno por natural tendência do espírito. Cremos ser o caso de Lygia Fagundes Telles...”

Que dizer do fantástico Guimarães Rosa?

Sob o título Realismo Mágico, José Hildebrando Dacanal reuniu três ensaios dedicados aos romances Grande Sertão: Veredas, O Coronel e o Lobisomem e Fogo Morto. Os dois primeiros são, para ele, “obras essenciais do ‘realismo mágico’ .“E mais: “o mágico, o maravilhoso em sua naturalidade, o mítico, ou como quer que o denominemos, somente agora, nas literaturas do Terceiro Mundo, passou a fazer parte da narração romanesca.”

Dacanal tudo faz para aproximar o romance de Guimarães Rosa do Cem Anos de Solidão ou do realismo mágico praticado por romancistas hispano-americanos. No entanto, o próprio título do ensaio – “Grande Sertão: Veredas ou A apologia do imanente” – demonstra que Dacanal se ocupou muito mais da importância literária da obra de Rosa do que de sua ligação com o realismo mágico.

Temístocles Linhares menciona a “Estória do homem do pinguelo” como um dos momentos em que Guimarães Rosa se ocupou do fantástico.

Na tese intitulada O fantástico no conto brasileiro, Maria Luísa do Amaral Soares dedica especial atenção ao autor de Sagarana.

A maioria dos estudiosos da obra de Guimarães Rosa – e são incontáveis esses estudiosos, o que o torna um dos mais estudados escritores brasileiros –, a grande maioria pouco se refere ao elemento fantástico na sua imensa obra.

Moreira Campos estreou em livro pouco depois de Guimarães Rosa. Dedicou-se quase que exclusivamente ao conto e se preocupou sempre muito mais com a qualidade do que com a quantidade. Assim, Os Doze Parafusos, publicado em 1978, ou seja, quase 30 anos após o primeiro, é apenas o seu 5º livro de contos.

Comentando esse livro, José Alcides Pinto diz: “Os Doze Parafusos abrem um novo caminho na ficção de Moreira Campos, já esboçada sob o ponto de vista prático em outras obras, mas sem a liberdade de como os assuntos são agora tratados, vistos de frente, com um realismo mágico e epidérmico...".
Para Antonio Hohlfeldt, o contista cearense e um dos cultores do que chama de “conto rural”. Temístocles Linhares em Moreira Campos um discípulo dos “velhos mestres do naturalismo”. De opinião diversa, porém, é Braga Montenegro, ao comentar Os Doze Parafusos: “Elaborando os seus temas sob a inspiração de um realismo mágico, o autor não se desnuda, não blefa, e tudo realiza no âmbito do implícito e do metafórico. Entretanto, nos seus textos nada há de sibilino ou de hermético, ou ainda de supra-realista.”

No artigo “Afinal, os cães veêm coisas?”, Linhares Filho pergunta: "Qual a razão do interesse maior do fantástico em Moreira Campos, se tal categoria não constitui uma constante do escritor?” E responde: “Justamente o fato de, sendo ele um autor neo-realista às vezes, outras vezes neo-naturalista, apresentar-se cioso da verossimilhança, adotando, nos raros contos em que abriga o fantástico, uma postura que mais se inclina para o estranho do que para o maravilhoso. De maneira que o tratamento proporcionado pelo contista ao sobrenatural nunca é gratuito, mas contrabalançado convenientemente com as possibilidades do natural, do que resultam produções cheias de legitimidade artística. “O dia de Santa Genoveva”, inserido no livro Os doze parafusos, constrói-se, na sua tensão entre o sobrenatural e o natural, como um legítimo conto fantástico.” E encerra assim: “Concluímos que, até mesmo no difícil gênero fantástico, em que se exige uma pronunciada ambigüidade, se mantém o equilíbrio artístico de Moreira Campos, confirmando-se o seu talento de ficcionista apreciado pelo leitor comum e consagrado pela mais exigente crítica, e cumprindo-se, assim, o seu papel de intelectual consciente, que usa com sensibilidade, peculiares e poderosos recursos para a expressão do humano.”

Samuel Rawet é anterior a J. J. Veiga, pois estreou em 1956. Segundo Assis Brasil, a estréia de Rawet, com o livro Contos do Imigrante, marca a renovação do conto brasileiro, assim como Doramundo e Grande Sertão: Veredas marcam a renovação do romance.

E quanto ao fantástico? Temístocles Linhares não via o fantástico como traço dominante da literatura de Rawet. No seu entender, tanto ele como Rubião “poderiam ser classificados com outros rótulos”. O fantástico de Rawet seria um “fantástico alimentado de fragmentos biográficos, que se apresenta em vários planos, num tipo de conto analítico, enxadrezado”, explicava.

Hermilo Borba Filho dedicou-se ao teatro e à literatura. Uma de suas últimas obras publicadas foi o conjunto de novelas intitulado O General Está Pintando, onde os personagens “vivem episódios que não se podem qualificar senão de fantásticos”, como está dito na orelha do livro. “São situações inusitadas – continua o observador anônimo –, que o recurso ao mágico é constante, e que dão a cada novela o seu impacto mais violento, justamente por estarem intimamente mescladas com a realidade banal do dia-a-dia. Esse realismo fantástico, que ora se manifesta puramente maravilhoso e ora chega às raias do grotesco, é a forma que o autor encontrou para apresentar um estado de coisas num mundo desencontrado, repleto de contrastes chocantes e absurdos inexplicáveis."

Hélio Pólvora publicou o primeiro livro, Os Galos da Aurora, em 1958. É considerado um dos precursores da literatura brasileira de cunho documental e fantástico.

Estreante na década de 60 é também Moacyr Scliar, que mais recentemente publicou A Balada do Falso Messias, Os Mistérios de Porto Alegre e Histórias da Terra Trêmula, todos em 1976, e O Anão no Televisor, em 1979.

Cultivando o fantástico ou para-fantástico, “os trabalhos de Moacyr Scliar não se esgotam na gratuidade dos temas: vão mais além e se situam ao nível de uma sátira de caráter universal, berço da melhor literatura”, comenta Assis Brasil.

Com relação a Caio Porfírio Carneiro, também há quem veja nele um realista que aqui e ali resvala para o fantástico. Marcos Rey chega a dizer: “ É um autor todo voltado à realidade, sem ser fanático do realismo. A realidade é seu ponto da partida, embora nem sempre da chegada.”

José Cândido de Carvalho estreou em 1939, com o romance Olha Para o Céu, Frederico. Porém somente em 1964 surgiu sua obra maior – O Coronel e o Lobisomem. José Hildebrando Dacanal escreveu um dos ensaios mais argutos sobre o realismo mágico brasileiro, sob o título “O Coronel e o lobisomem entre o Mítico e o Sacral”. Citemos um trecho dele: “A estrutura da narrativa é irracional se apreciada da perspectiva do romance do real-naturalismo ao qual O Coronel e o Lobisomem aparentemente se liga. Contudo, se for colocada dentro do esquema acima encontrarei seu pleno sentido: ela também oscila entre o plano racional, realista, e o mítico-sacral, fantástico, mágico, ou como se quiser chamá-lo. Por sua parte, também a narrativa termina no plano do fantástico ao mesmo tempo em que dissolve a dicotomia entre os dois planos ao elevá-la ao nível da “irracionalidade estrutural” (do ponto de vista técnico) com o último capítulo, no qual Ponciano narra o fim da ação, o fim do romance e sua própria destruição como personagem e, portanto, seu próprio desaparecimento como herói dilacerado entre dois mundos.”

José Alcides Pinto é autor de romances singularíssimos, como O Dragão, Os Verdes Abutres da Colina e O Criador de Demônios. Sua trilogia O Tempo dos Mortos, no dizer de Faria Guilherme, “situa-se numa linha introspectiva, de integração psicológica, num universo esotérico, sem perder da vista o fantástico...”

A melhor análise de sua obra, no entanto, é do também romancista José Lemos Monteiro, no livro O Universo Mí(s)tico de José Alcides Pinto. Diz, a certa altura, o crítico: “...o universo criado por José Alcides Pinto sintoniza com uma diretriz nova da história de nossa literatura, qual seja, a da exploração do fantástico, do estranho ou do maravilhoso.”

Assim como Hermilo Borba Filho, o romancista Ariano Suassuna iniciou-se no teatro. Seus romances constituam uma trilogia, iniciada com Romance d’A Pedra do Reino, em 1971, seguido de História d’O Rei Degolado, em 1976.

A respeito do “realismo mágico”, ele mesmo escreveu “nota” publicada junto ao O Rei Degolado: “será que o mito é uma fantasia irreal e anestesiadora, incompatível com o realismo, ou, pelo contrário, tem um sentido mais real e carregado de significados do que os personagens das novelas meramente “veristas”? Note-se que, de propósito, estou usando um nome ligado ao “verismo” naturalista, e não ao “realismo”, que é outra coisa: inclusive já escrevi uma vez – tentando desfazer certos equívocos a respeito do meu pretenso “realismo mágico” – que, na América Latina de fala espanhola, o “realismo mágico” era mais mágico do que realista, enquanto que no Brasil ele era mais realista do que mágico.”

Fonte:
http://www.vastoabismo.xpg.com.br/6.html

Armando Pompermaier (Universalismo específico: poesia como reinvenção do ser e do mundo)

"Ao contrário do que afirma implicitamente a poesia de seus contemporâneos espanhóis, para nenhum... [dos escritores hispano-americanos] há uma substância original nem um passado por resgatar: há o vazio, a orfandade, a terra do princípio não batizada, a conversação dos espelhos. Há, sobretudo, a busca da origem: a palavra como fundação".
Octávio Paz

Alguns pensadores defendem que o Brasil foi mais inventado que descoberto. Os colonizadores ao invés de tentarem entender as culturas dos nativos deste continente fizeram representações destes a partir de seus interesses e visões de mundo. Inventaram também o Brasil moldando a terra conquistada a esses interesses e visões de mundo no processo de exploração da conquista. Dificilmente se poderia recuperar a maioria da riqueza das visões de mundo contidas na grande multiplicidade de culturas nativas nas especificidades de seus vigores pré-coloniais. No vácuo de uma essência perdida a ser recuperada, o poeta mexicano Octavio Paz[1] vê a palavra poética como fundadora da essência de povos latino-americanos em construção, possível apenas através da “refutação do tempo”, em meio a “todas as eternidades que nós, os homens, fabricamos”.

Na perspectiva de uma ruptura forçada com um passado inacessível ou que lhes é estranho, os povos das ex-colônias são órfãos de culturas das quais não há nem uma substância nem um passado a resgatar. É assim que a palavra poética fundadora da essência latino-americana de Residência na Terra, de Neruda, não se refere a uma “Terra histórica”, mas sim a uma “geologia mítica”, segundo Paz. É desta forma que a criação da poesia do chamado “novo mundo” encontra condições para se tornar a poesia da criação da nova subjetividade de um novo homem, quer dizer, a poesia da reinvenção do homem e do mundo, trazendo simultaneamente “todas as eternidades” herdadas dos predecessores do “velho mundo” em si.

É extremamente interessante e fecundo o conceito de cosmópolis particulares expresso por uma literatura que, por ser órfã de uma antiguidade clássica específica sua para recuperar, além de beber água nas fontes das antiguidades culturais mais diversas ainda sente uma “nostalgia do futuro” a ser construído que supra a ausência deste passado glorioso ausente. A palavra poética, nesta perspectiva, é recriação, releitura, re-significação de todas as criações, leituras e significações; é o revigoramento; é a reinvenção do “velho mundo” em retribuição à sua invenção do “novo”; é a invenção do novo mundo pleno onde o elemento antes subjugado se afirma como parte integrante do todo sob uma nova perspectiva; é uma revolução subjetiva, uma revolução do ser que cria a si mesmo.

Penso no meu Estado, o Acre, no contexto da globalização, concebido como uma cosmópolis realmente muito particular, ligado ao mundo todo por uma revolução tecnológica e imerso em populações indígenas, algumas ainda aparentemente sem contato com a pretensiosamente auto-denominada “civilização”, outras já bem descaracterizadas de seu esplendor original; porções de florestas virgens e florestas habitadas por populações de extrativistas tradicionais em disputas de terras com agropecuaristas, serralheiros, sob interferência dissimulada, direta ou indireta, de mega-empresas globais, ONG’s, governos nacional e estrangeiros, e vários outros neo-mistérios das florestas do terceiro milênio do mundo globalizado. Características e contradições de mundos novos e antigos coexistindo nas eternidades simultâneas juntas com o sentimento de orfandade da nostalgia de um futuro a ser construído, reinventando o passado e a interpretação do presente; inventando o Acre, o Brasil, a Amazônia, o Mundo, o Passado, o Presente e o Futuro; o Eu, o Outro, o Nós e os Outros.

Não se trata mais de simples antropofagismo. Este é uma fase necessária, mas inicial. Trata-se sim de seu desenvolvimento, seu ir além. Estamos falando de todas as sínteses, do hibridismo radical, profundo, pleno; a essência de um coletivo humano transtemporal e transespacial espacializado e temporalizado: um universalismo específico, interativo, dialógico!... o artista é o escritor do gênesis; é o Simon Bolívar da subjetividade; é o Lampião da consciência oprimida; o Zumbi dos quilombos que guardam nossas esperanças livres. Sua arte pode ser nosso quilombo, nosso cangaço, nossa aldeia sideral, nosso seringal astral, nosso sorriso de carnaval. Somos um universo em expansão.
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Armando Pompermaier: Professor de História, Mestrando em Letras, poeta, compositor.
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Fontes:
http://alpinistademuta.blogspot.com/
Mapa =
http://www.henriqueafonso.com.br