sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

Stanislaw Ponte Preta "Sérgio Porto" (Conto de Natal)

Era um Papai-Noel mais subdesenvolvido do que - digamos - o Piauí. Uma barba mixuruquíssima, rala, encardida, que ele acabou por puxar para debaixo do queixo, na esperança de diminuir o calor.

Sim, porque fazia calor.

A calçada refletia por debaixo das calças dos transeuntes o seu bafo quente, o que ocorria também por debaixo das saias das passantes, mas esta imagem é mais refrescante e talvez não dê ao leitor a idéia do calor que fazia. A turba ignara ia e vinha, carregada de embrulhos, vítima da desonestidade dos comerciantes, mas, ávida de comprar presentinhos.

E o Papai Noel avacalhado ali na esquina, badalando. Era um sininho de som fino, que ele badalava meio sem jeito, como se estivesse disfarçando alguma coisa sem aquela dignidade de badalar de sino dos verdadeiros Papais- Noeis.

Também a roupa era mixa! A blusa não tinha aquela vermelhidão dos Papais-Noeis de capa de revistas. Nunquinha Madalena. Era cor-de-rosa, daquele cor-de-rosa das camisas que usam componentes de blocos de sujo, no Carnaval carioca. Isto, inclusive, talvez fosse verdade: aquele Papai-Noel era tão vagabundo que era bem possível que tivesse aproveitado o uniforme do Carnaval anterior, para o Natal.

Tia Zulmira, protegida pela sombra de uma marquise, aguardava condução e observava o Papai Noel. Observava, por exemplo, que o Papai-Noel usava tênis (bossa nova natalina), observava que o Papai-Noel não fazia anúncio de coisa nenhuma, ao contrário de seus coleguinhas de outras esquinas, que traziam às costas grandes cartazes coloridos com os nomes das lojas da cidade.

A velha, num lampejo, percebeu tudo. Viu logo que, naquele Papai-Noel, tinha truque. E, apenas para confirmar a sua teoria, abriu a bolsa, retirou um pedaço de papel e escreveu:

— 500 cruzeiros no grupo do gato — 1.675 pelos sete lados... NCr$ 200,00 — centena 463 (invertido) . . . NCr$ 150,00.

Enrolou o papelzinho no dinheiro correspondente e, saindo de debaixo da marquise, passou disfarçadamente pelo Papai-Noel e espalmou na sua mão a fezinha. Papai Noe1 apanhou tudo e disse baixinho:

— Obrigado, minha senhora. Um bom Natal para a senhora também.

Fonte:
"Dez em Humor", Editora Expressão e Cultura - Rio de Janeiro, 1968, pág. 50.
http://www.releituras.com.br

Sérgio Porto (A Casa)


“A casa”

Seriam ao todo umas trinta fotografias. Já nem me lembrava mais delas, e talvez que ficassem para sempre ali, perdidas entre papéis inúteis que sabe lá Deus por que guardamos. Encontrá-las foi, sem dúvida, pior e, se algum dia imaginasse que havia de passar pelo momento que passei, não teria batido fotografia nenhuma. Na hora, porém, achara uma boa idéia tirar os retratos, única maneira — pensei — de conservar na lembrança os cantos queridos daquela casa onde nasci e vivi os primeiros vinte e quatro felizes anos de minha vida.

Como se precisássemos de máquina fotográfica para guardar na memória as coisas que nos são caras! Foi nas vésperas de sair, antes de retirarem os móveis, que me entregara à tarefa de fotografar tudo aquilo, tal como era até então. Gastei alguns filmes, que, mais tarde revelados, ficaram esquecidos, durante anos, na gaveta cheia de papéis, cartas, recibos e outras inutilidades.

Esta era a escada,que rangia no quinto degrau, e que era preciso pular para não acordar Mamãe. Precaução, aliás, de pouca valia, porque ela não dormia mesmo, enquanto o último dos filhos a chegar não pulasse o quinto degrau e não se recolhesse, convencido que chegava sem fazer barulho.

A idéia de fotografar este canto do jardim deveu-se — é claro — ao banco de madeira, cúmplice de tantos colóquios amorosos, geralmente inocentes, que eram inocentes as meninas daquele tempo. Ao fundo, quase encostado ao muro do vizinho, a acácia que floria todos os anos e que a moça pedante que estudava botânica um dia chamou de “linda árvore leguminosa ornamental”. As flores, quando vinham, eram tantas, que não havia motivo de ciúmes, quando alguns galhos amarelos pendiam para o outro lado do muro. Mesmo assim, ao ler pela primeira vez o soneto de Raulde Leoni, lembrei-me da acácia e lamentei o fato de ela também ser ingrata e ir florir na vizinhança.

Isto aqui era a sala de jantar. A mesa grande, antiga, ficava bem ao centro, rodeada por seis cadeiras, havendo ainda mais duas sobressalentes, ao lado de cada janela, para o caso de aparecerem visitas. Quando vinham os primos recorria-se à cozinha, suas cadeiras toscas, seus bancos... tantos eram os primos!

Nas paredes,além dos pratos chineses — orgulho do velho — a indefectível Ceia do Senhor, em reprodução pequena e discreta, e um quadro de autor desconhecido. Tão desconhecido que sua obra desde o dia da mudança está enrolada num lençol velho, guardada num armário, túmulo do pintor desconhecido. Além das três fotografias — da escada, do jardim e da sala de jantar — existem ainda uma de cada quarto, duas da cozinha, outra do escritório de Papai. O resto é tudo do quintal. São quinze ao todo e, embora pareçam muitas, não chegam a cumprir sua missão, que, afinal, era retratar os lugares gratos à recordação. O quintal era grande, muito grande, e maior que ele os momentos vividos ali pelo menino que hoje olha estas fotos emocionado. Cada recanto lembrava um brinquedo, um episódio. Ah Poeta, perdoe o plágio, mas resistir quem há de?Gemia em cada canto uma tristeza, chorava em cada canto uma saudade. Agora, se ainda morasse na casa, talvez que tudo estivesse modificado na aparência,não maisque na aparência, porque, na lembrança do menino, ficou o quintal daquele tempo.

Rasgo as fotografias. De que vale sofrer por um passado que demoliram com a casa?Pedra por pedra, tijolo por tijolo, telha por telha, tudo se desmanchou. A saudade é inquebrantável, mas as fotografias eu também posso desmanchar. Vou atirando os pedacinhos pela janela, como se lá na rua houvesse uma parada, mas onde apenas há o desfile da minha saudade. E os papeizinhos vão saindo a voejar pela janela deste apartamento de quinto andar, num prédio construído onde um dia foi a casa.

Olha, Manuel Bandeira: a casa demoliram, mas o menino ainda existe.
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Sobre o Livro “A Casa Demolida” (Prefácio)

A casa demolida é o único volume que reúne crônicas de Sérgio Porto. Com o próprio nome, e não com o do primo, ele lançou apenas dois outros livros: uma Pequena história do jazz, dos Cadernos de Cultura editados por Simeão Leal,e as novelas de As cariocas. Estas, por sinal,sete histórias que, resumidas, dariam excelentes crônicas. Ou melhor, são histórias que podem ser lidas como crônicas, só que mais longas, Sérgio já convencido de que poderia ir mais longe como escritor,quem sabe animado por incentivos, elogios e até exageros, como o de Jorge Amado que, no prefácio das novelas, considera-o “jovem mestre de seu ofício”.

Sérgio dividiu a coletânea em cinco partes. A primeira é a que contém as nostálgicas voltas ao passado, ao seu mundo particular, à Copacabana cujas velhas casas iam sendo derrubadas para que modernos edifícios fizessem o bairro crescer para cima. Estão lá a casa,a varanda,o pomar, a rua, as pessoas queridas que habitaram ou passaram por sua infância. É um cronista, vá lá, sério, o que se entrega a essas lembranças, ainda que volta e meia com lances de humor. Sério e de um lirismo que Stanislaw jamais se permitiria. Um cronista da cidade,também. Só quem viveu em casa com quintal e varanda, em rua tranqüila, enfeitada de verde, os almoços de domingo reunindo à mesa uma família que só então se encontrava, pode entender o tom dessas crônicas. O Rio da infância de Sérgio começava a desaparecer. E era com os olhos de antigamente que ele a tudo assistia: “...a casa demoliram, mas o menino ainda existe”.

Na segunda parte, personagens reais como Dolores Duran, o palhaço Benjamim de Oliveira, a cozinheira Almira, Heleno de Freitas, identificado apenas como “o ídolo”, desfilam ao lado de outros que podem ou não ter existido, Pedro Cavalinho, Aurora, Marlene, a moça no banho, a filha do embaixador,os cantores bêbados,o sósia de JK,Frederico, “seu”Torquato.

Das três últimas partes da coletânea constam crônicas, histórias, anedotas, ou o que sejam, em que se acham — entre graças, aí sim, mais próximas às do primo — tocantes referências às mulheres: a que passou, a que se foi, a que se desejou, a que se perdeu. O Sérgio Porto das crônicas sobre fins de caso, amores idos, separações, é, numa palavra, insuperável. A crônica que fecha o livro é pequena obra-prima que bem poderia ter servido de modelo ao Chico Buarque dos versos de “Trocando em miúdos”. Nenhum dos textos sobre mulheres parece ter algo a ver com a fossa da viagem a Buenos Aires. Até porque,ao contrário do que podem sugerir as crônicas sobre a casa, a rua, o bairro, ou sobre as pessoas que conheceu, ou sobre as outras que inventou, ou sobre as mulheres que amou, Sérgio Porto não é um escritor autobiográfico, um memorialista.

É,antes, um cronista que se vale de experiências — vividas ou imaginadas — para nos falar mais como testemunha do que como personagem. Mesmo quando assume o próprio nome (“Chamaste-me ‘meu Sérgio’ e depois partiste. Não fui nem teu Sérgio nem teu porto”), ele nos faz entrar em sua pele em vez de simplesmente o lermos a distância. É como se também nós, e não somente Sérgio, estivéssemos passando pelas mesmas emoções. Não tivesse ele,afinal, pertencido a uma brilhante geração de cronistas — Rubem Braga, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Carlinhos de Oliveira — que sabia exatamente a diferença entre escrever na primeira pessoa e divagar sobre o próprio umbigo.

Claro, Sérgio Porto sabia que, se cometesse esse pecado, o do umbigo, estaria correndo o risco de ver o implacável primo Stanislaw incluí-lo entre os mais fortes candidatos a cocoroca do ano.

Fonte:
http://www.livrariacultura.com.br

Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto) 1923 - 1968)



Sérgio Porto, por ele mesmo, "Auto-retrato do artista quando não tão jovem"

"ATIVIDADE PROFISSIONAL: Jornalista, radialista, televisista (o termo ainda não existe, mas a atividade dizem que sim), teatrólogo ora em recesso, humorista, publicista e bancário.

OUTRAS ATIVIDADES: Marido, pescador, colecionador de discos (só samba do bom e jazz tocado por negro, além de clássicos), ex-atleta, hoje cardíaco. Mania de limpar coisas tais como livros, discos, objetos de metal e cachimbos.

PRINCIPAIS MOTIVAÇÕES: Mulher.

QUALIDADES PARADOXAIS: Boêmio que adora ficar em casa, irreverente que revê o que escreve, humorista a sério.

PONTOS VULNERÁVEIS: Completa incapacidade para se deixar arrebatar por política. Jamais teve opinião formada sobre qualquer figurão da vida pública, quer nacional, quer estrangeira.

ÓDIOS INCONFESSOS: Puxa-saco, militar metido a machão, burro metido a sabido e, principalmente, racista.

PANACÉIAS CASEIRAS: Quando dói do umbigo para baixo: Elixir Paregórico. Do umbigo para cima: aspirina.

SUPERSTIÇÕES INVENCÍVEIS: Nenhuma, a não ser em véspera de decisão de Copa do Mundo. Nessas ocasiões comparativamente qualquer pai-de-santo é um simples cético.

TENTAÇÕES IRRESISTÍVEIS: Passear na chuva, rir em horas impróprias, dizer ao ouvido de mulher besta que ela não tão boa quanto pensa.

MEDOS ABSURDOS: Qualquer inseto taludinho (de barata pra cima).

ORGULHO SECRETO: Faz ovo estrelado como Pelé faz gol. Aliás, é um bom cozinheiro no setor mais difícil da culinária: o trivial.

Assinado, Sérgio Porto, agosto de 1963."
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Filho de Américo Pereira da Silva Porto e de D. Dulce Julieta Rangel Porto, Sérgio Marcos Rangel Porto, um cidadão acima de qualquer desfeita, nasceu no Rio de Janeiro em pleno verão, no dia 11 de janeiro de 1923, e ficou famoso anos depois sob o pseudônimo de Stanislaw Ponte Preta, emprestado à Oswald de Andrade (vide Memórias de Serafim Ponte Grande). Foi casado com Dirce Pimentel de Araújo, com quem teve três filhas: Gisela, Ângela e Solange.

Dizem seus estudiosos que no citado livro teria encontrado seu grande filão:a irreverência. Começou uma obra carioquíssima, até hoje insuperável, transpondo para jornais, livros e revistas o saboroso coloquial do Rio de Janeiro. Afirmam, também, que as melhores crônicas são aquelas onde a disposição de desfazer o sentido de uma palavra ou de uma situação não se manifesta apenas no final do enredo, mas parece atingir a estrutura da narrativa; quer dizer, a partir de pistas falsas, a história é conduzida visando a um final que não acontece, substituído por outro, totalmente inesperado (vejam Menino Precoce e A Charneca, por exemplo).

Era um mestre das comparações enfáticas:
"Mais inchada do que cabeça de botafoguense"
"Mais assanhado do que bode velho no cercado das cabritas"
"Mais suado do que o marcador de Pelé"
"Mais duro do que nádega de estátua"
"Mais feia do que mudança de pobre"
"Mais murcho do que boca de velha"

Traçou, em 12 palavras, o retrato de uma época , os tais anos dourados nada permissivos, quando o preconceito prevalecia, principalmente em matéria de sexo:

"Se peito de moça fosse buzina, ninguém dormia nos arredores daquela praça". Antes da liberação sexual, as praças e outros cantinhos escuros eram, então, um buzinaço.

Criador de Tia Zulmira, Rosamundo e Primo Altamirando, foi com seu Festival de Besteira que Assola o País - FEBEAPÁ, lançado em plena vigência da Redentora, apelido do golpe militar de 1964, que ele alcançou seu grande sucesso. Stanislaw afirmava ser difícil precisar o dia em que as besteiras começaram a assolar o Brasil, mas disse ter notado um alastramento desse festival depois que uma inspetora de ensino no interior de São Paulo, portanto uma senhora de nível intelectual mais elevado pouquinha coisa, ao saber que o filho tirara zero numa prova de matemática, embora sabendo tratar-se de um debilóide, não vacilou em apontar às autoridades o professor da criança como perigoso agente comunista.

Outras besteiras colhidas pelo autor:

"No mesmo dia em que o governo resolvia intervir em todos os sindicatos, resolvia mandar uma delegação à 16a. Sessão do Conselho de Administração da OIT, em Genebra. Ao Brasil caberia exatamente fazer parte da Comissão de Liberdade Sindical. Na mesma ocasião, um time da Alemanha Oriental vinha disputar alguns jogos aqui e então o Itamarati distribuiu uma nota avisando que eles só jogariam se a partida não tivesse cunho político. Em Mariana, MG, um delegado de polícia proibia casais de se sentarem juntos na única praça namorável da cidade, baixando portaria dizendo que moça só podia ir ao cinema com atestado dos pais. Em Belo Horizonte, um outro delegado distribuía espiões pelas arquibancadas dos estádios. Dali em diante quem dissesse mais de três palavrões ia preso."

Na mesma época (1954) em que o jornalista Jacinto de Thormes publicou na revista Manchete a lista das "Mulheres Mais Bem Vestidas do Ano", Stanislaw, que escrevia na mesma revista sobre teatro-rebolado, não quis ficar por baixo e inventou a lista das "Mulheres Mais Bem Despidas do Ano". Com a grita das mães das vedetes, passou a usar uma expressão ouvida de seu pai — "Olha só que moça mais certa" — e estavam, assim, criadas as "certinhas" do Lalau. De 1954 a 1968 foram 142 as selecionadas. Dentre outras, podemos citar Aizita Nascimento, Betty Faria, Brigitte Blair, Carmen Verônica, Eloina, Íris Bruzzi, Mara Rúbia, Miriam Pérsia, Norma Bengell, Rose Rondelli, Sônia Mamede e Virgínia Lane.

Ao contrário do que parecia ser -- um cara folgado, brincalhão, gozador e pouco chegado ao labor, Sérgio Porto, por suas inúmeras atribuições, era um lutador. Nos últimos anos de vida tinha uma jornada nunca inferior a 15 horas de trabalho por dia."Só estou levantando o olho da máquina de escrever pra botar colírio. Hoje fui gravar na televisão e antes foi aquela batalha contra as teclas. Estou trabalhando demais, outra vez. Só para esta semana: seis Stanislaws, um Fatos & Fotos, um final apoteótico para o novo programa do Chico Anísio, roteiro e script para aquela bosta chamada Espetáculos Tonelux, depois quadros humorísticos para a TV Rio, Miss Campeonato, Da Boca pra Fora, o programa de rádio Atrações A-9, além da revisão do livro O Homem ao Lado que será reeditado no próximo mês e da gravação do programa Qual é o assunto?" Para alguém que teve seu primeiro infarto ao 36 anos, era demais.

"Tunica, eu tô apagando". Essas foram as últimas palavras ditas pelo autor ao sofrer seu derradeiro infarto, no dia 29 de setembro de 1968.

Paulo Mendes Campos, o excelente e tão esquecido cronista mineiro, traça um perfil do autor em um texto cheio de humor e de dor pelo falecimento de Stanislaw Ponte Preta (in "O Anjo Bêbado", Editora do Autor – Rio de Janeiro, 1969, pág. 7).

SÉRGIO E STANISLAW PONTE PRETA

O diabo o é que todo mundo pensa que sou um cínico; ninguém acredita que sou um sentimentalão que não agüenta uma gata pelo rabo.

Sérgio me dizia isso a milhares de metros de altitude, copo de uísque na mão, rumo a Buenos Aires. Ao saber que eu tinha resolvido assistir ao jogo Brasil e Uruguai, no Campeonato Pan-Americano de 1959, veio procurar-me com uma ansiedade incomum: precisava afastar-se do Rio de qualquer jeito, me disse, tinha decisivos assuntos íntimos sobre os quais queria pensar.

Sendo assim, por que ir a Buenos Aires? Não fiz a pergunta por entendê-lo: Sérgio possuía o talento de viver em diversas faixas ao mesmo tempo; Buenos Aires lhe calhava numa instância de decisões pessoais porque o recolhimento do hotel se somava aos benefícios do torneio de futebol, da companhia dos amigos, das anedotas jornalísticas e até mesmo dos restaurantes portenhos.

Já dentro do avião, nessa ou em qualquer outra viagem, desligado de suas duras obrigações, transformava-se: mesmo roído por dentro, a gratuidade do instante era boa demais para não ser aproveitada. Sempre que uma aeromoça lhe perguntava se queria um sanduíche ou um refrigerante, respondia alegremente com uma frase que ouviu de Billy Blanco: "Quero tudo a que eu tenha direito." E era verdade.

Na chegada a Buenos Aires, houve uma dessas súbitas situações cômicas criadas por aquele homem carregado de conflitos: avião estacionado, entrou nele um médico da saúde pública, um homem ruivo e bastante calvo. Pedindo aos passageiros que exibissem o atestado de vacina, o médico estendeu a mão para Sérgio, ao mesmo tempo que dizia em tom cavo e impessoal: "Vacunación, señor." Como se estivesse recebendo um cumprimento de boas-vindas, Stanislaw (aí era ele), muito grave, apertou a mão do médico, falando claro e efusivo: "Vacunación para usted también?" O médico, rubro de indignação, expulsou-nos do avião, sem mais exigir o documento sanitário e, enquanto eu explodia de rir, ele sussurrava-me entre os dentes: "Agüenta a mão, se não a gente acaba em cana."

O dom mais surpreendente de Sérgio era esse trânsito livre entre as manifestações da vida. Ainda no dia de nossa chegada a Buenos Aires, eu o veria em atitudes múltiplas: durante o jogo dramático entre o Brasil e o Uruguai (o três a um da briga), ele deu um empurrão nos peitos dum argentino que insultava os brasileiros, chorou quando Paulo Valentim fez o terceiro gol, riu-se às gargalhadas quando o Garrincha passou indiferente entre uruguaios e entrou no ônibus com um sanduíche enorme na boca e outro na mão; e ainda conversou longamente comigo sobre suas aflições, depois de cear com entusiasmo.

Quando acordei, ele já andava pelo saguão, depois de ler os jornais todos, à cata de histórias do Mendonça Falcão - a máquina já destampada no quarto.

Fiquei seu amigo há mais de vinte anos, quando ele escrevia crônicas de música popular para a revista Sombra. Bonito, forte, elegante, inteligente, alegre, simpático - era um privilegiado sem ostentação. Só lhe faltava o dinheiro, como de resto ao grupo todo: mesmo mal pagos, tínhamos de aceitar as ofertas que a imprensa nos fazia como um favor, bicando aqui e ali, sofrendo na carne os atrasos do caixa, brigando pelo dinheirinho de cada dia. Mas o clima não era de miséria nem de tristeza: bebíamos crepuscularmente nosso uísque escocês no Pardellas da Rua México, dançávamos no Vogue, andávamos de táxi. Já que o dinheiro era pouco, o jeito era gastá-lo no essencial: o apartamento próprio que esperasse.

Eustáquio Duarte, Lúcio Rangel, Luís Jardim, Cássio Fonseca, Jarbas Duarte eram diariamente pontuais no Pardellas; Zé Lins do Rego, Rosário Fusco, Santa Rosa, Jaime Adour da Câmara, Flávio de Aquino, Simeão Leal, Luis Santa Cruz e outros apareciam com freqüência. O jazz negro era o nosso alimento: Sérgio e seu tio Lúcio Rangel ensinaram ao resto da turma o que era puro nesse setor e o que se contaminara.

Por um momento, numa fase financeira mais dura, quase o acompanhei num gesto até certo ponto desesperado: o de escrever programas de rádio. Para ele foi o início duma vida de sucesso profissional e cruel desgaste físico. Na imprensa, no rádio e na televisão do Brasil a ascensão se confunde com a queda. Sucesso nesse terreno não é poder trabalhar menos e ganhar o suficiente: é trabalhar sempre mais. Vitorioso no Brasil é o jornalista que sempre encontra mercado de trabalho; e não preços mais altos. Só chega ao chamado certo nível de vida somando diversas atividades corrosivas.

O humorista começou a surgir no semanário Comício, excelente escola de descontração do estilo jornalístico, dirigido por Rubem Braga, e Joel Silveira, onde escreviam ainda Clarice Lispector, Millôr Fernandes, Fernando Sabino, Otto Lara Resende, Rafael Correia de Oliveira, Carlos Castelo Branco, Edmar Morel, onde também apareceram as primeiras crônicas de Antônio Maria e as primeiras reportagens de Pedro Gomes.

Digo o humorista profissional, porque o da convivência com os amigos vinha do tempo das peladas em Copacabana: Sandro Moreira, João Saldanha, Mauricinho Porto, George Rangel, Máriozinho de Oliveira, Carlos Peixoto e Carlinhos Niemeyer são alguns que se lembram das histórias engraçadas de Sérgio, o Bolão.

Sua vivacidade era tão instantânea que sempre a aceitei com naturalidade. Espantava-me, isto sim, seu discernimento, agudo, preciso, a respeito de tudo: uma canção, um cantor, um vestido, um quadro, uma atmosfera, uma situação complicada. Dizia em cima a palavra exata, a observação certa, o julgamento justo.

O contraditório é que pudesse fazer humorismo uma pessoa que possuía tanto senso das proporções e da verdade escondida. Seu humorismo, bem reparado, não era o usual, pelo contrário, ele fazia humor sem caricaturar o assunto. Bernard Shaw, quando queria fazer graça, dizia a verdade. Ele também fez graça falando verdades, descobrindo verdades, tendo a coragem de ser odiado por dizê-las.

Como todo homem de sensibilidade, precisava de amigos e afeto; mas desprezava os mesquinhos, os medíocres, os debilóides, os cretinos.

Seu gosto era certo. Amava os livros e os discos, milhares de discos, discos que ouvia às vezes enquanto trabalhava, atendendo ao telefone a todo instante, recebendo amigos, contando piadas, e continuando a batucar na máquina, insistindo para que o visitante ficasse, sob a afirmação (verdadeira) de que estava acostumado a escrever no meio da maior confusão.

Eu, que apesar de tarimbado, já começo a ficar afobado no fim deste mal enramado artigo, com a redação querendo saber se já pode mandar buscá-lo, lembro a tranqüilidade de Sérgio no meio do caos, e não entendo o segredo que o dotou ao mesmo tempo de extraordinária capacidade de trabalho e da calma que deve ser a dos monges tibetanos.

De que morreu Sérgio Porto? Do coração e do trabalho.

No fim do ano passado, nas vésperas de Natal, estivemos juntos em Brasília: ele se lamentou o tempo todo no dia da volta, dizendo que ficaria ali, na ociosidade do hotel, por um tempo indeterminado. Foi difícil arrancá-lo da cama ao anoitecer. Este ano viajamos novamente juntos para São Paulo e Belo Horizonte. Foi a mesma coisa. Queria descansar, transfigurando-se no repouso, encarando com horror as atividades que o esperavam no Rio.

Na nossa última noite em Belo Horizonte, ele, Fernando, Rubem, Gérson Sabino e eu jantamos num restaurante muito bonito, que tinha de tudo, menos comida mineira. Sérgio reclamou tristemente durante todo o jantar. Queria arroz, feijão, couve, lingüiça.

Não sei por que essa lembrança me comove e serve para fechar esta página que eu não queria triste. Que a tristeza fique conosco, os amigos que o amavam.

Bibliografia:
Como Stanislaw Ponte Preta:
- Tia Zulmira e Eu - Editora do Autor, 1961
- Primo Altamirando e Elas - Editora do Autor, 1962
- Rosamundo e os Outros - Editora do Autor, 1963
- Garoto Linha Dura - Editora do Autor, 1964
- FEBEAPÁ1 (Primeiro Festival de Besteira Que Assola o País), Editora do Autor, 1966
- FEBEAPÁ2 (Segundo Festival de Besteira Que Assola o Pais), Editora Sabiá, 1967
- Na Terra do Crioulo Doido - FEBEAPÁ3 - A Máquina de Fazer Doido - Editora Sabiá, 1968

Com o nome de Sérgio Porto:
- A Casa Demolida - Editora do Autor/1963 (Reedição ampliada e revista de O Homem ao Lado - Livraria. José Olympio Editores)
- As Cariocas - Editora Civilização Brasileira, 1967

Fonte:
http://www.releituras.com.br

quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

Jandira Zanchi (Poesias Avulsas)



Amendoeira

O poeta é
tão instante
e fronteira
quanto as
estrelas
pisadas
do óleo
de uma
amendoeira.
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Luvas de Aço

Desfaço com
luvas de aço
a complexidade
do conhecimento
consciente

Arranho com
punhos da água
a valsa
do recôndito
rebanho
inconsciente

Vago por marés
de plumas e
cortejo jasmins
jesuítas sisudos no
toque de recolher.
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Língua Cifrada

Língua cifrada
de Arcanjos
NEGROS
Lençóis de agulhas ao vento
lilases as metáforas da sina
em frente e por sobre
a fralda do Tempo
(Anjo Arcanjo
de mim)

na casa do pai
em nome do Santo
Amém
teu verbo é ósculo
de pranto e pompa
arena de sereno
quase estupidez

que flor de vida
nas cores do jardim
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Gume de Gueixa

Sou uma única mulher
quando a trombeta anuncia
um inverno sem tropeços.

Os legionários da palavra
espiam sua falta de dados
como me fiz por nenhum motivo
conheço o luxo de ser nua e insofismável
inquestionável é a questão e o próximo dia.
Também invoco nas santas armações
da luta contínua por porto algum
as desculpas estilhaçadas em farpas
dos ausentes cansados em dentes de ogro.

Mas me canso descanso de meu fel.
Ardia na boca do estômago a fúria da pretensão
– esqueci-a retaliada no sofá branco e bagunçado –
deve haver algo melhor do que essa faca
gume de gueixa
a ponta de prata que rebola a qualquer ultraje
para dentro através da margem.

e porém... como dizia tenho azia
dor de baço e um cansaço...
aí retomei a pena e o pó dos livros
a lide das pernas e a busca do pão
pensei no amor como um condimento vespertino
dos enfeites adiei o aprumo e por três ou quatro
minutos dos restantes sorri e adormeci
ali ao pé do carvalho planto, morena,
serena e de orvalho em pé e sombra
afogada e deslumbrada
– o nome daquele é o mesmo deste?
Estes os problemas e sua função.
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Claudicante





Alvéolos de partículas semicerradas
alheias e frias, pingando sua calda
quente e quimérica
Ruiva e Romã
enlevos de ouro e prata
azul lançado para água
e estirado no mar
ainda me fazem sonhar......
Claudicante, a neblina da noite, faiscante
de pudor e amassada de desejo, não extraí
em seus ruídos nenhum símbolo sedimentado
nenhuma curva consciência de onipresenças
antes, enrola-se a meus pés, arfante,
vinil de neve agridoce e quase rude em
seu percurso de longa latitude de extorsão
enviesada e serena nos compartimentos
ora fluídos, outros, efervescentes de gases
e experimentos dessas terras extensas.
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Anunciação
O sonho e suas sete partes de dúvidas
as esperanças e suas intoleráveis
vertentes de lixo e dor

maresia maré morena
a agonia esquecida
que fatos eram aqueles
que remavam e vexavam
o desanuviar certeiro
do esplendor?

Joguei-os em meio aos cadernos
mal elaborados
maltrapilhos ensangüentados
nu e decidido o poente da terra
a anunciação do demover solícito
- era plano e mácula
e nada me dizia a respeito
a respeito do que forma e se conforma.


era oriente na face oeste da lua –
divisei o pranto e o exílio
e fui-me vencida
em meio ao luxo da vitória.
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Aspirinas
Me levem em
surdina e sem gritos
o leito perfumado
de aspirinas
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Vésperas

A negra sombra do fio da lua
assombrou a serpente em
sua cauda de fantasia,
amava-te em frases perjuras
espiava-te senhor do amanhecer
e esquecia-me sobre o sol
- verde véspera –
das notícias malevolentes
que levaram-me
santa pontífice navegadora
a espiar enviesada
uma suave passagem
semáforo e sombra
fugas fugazes do meu ser.

No dia demarcado te darei
três pontas da flor amarela
nave trevo entressafra

Minhas mãos enfraquecem
e não se formam
no molde cor de marte
que se arrasta na encosta

aqui no árido vale da morte
os ventos se envaidecem
de nuvens e grinaldas
tules de aspargos e
vazadas aspirações .

Malvada maldita colheita
estimo em cem tantos mil
os passos que contei
chamuscando os seios
nas setas indiferentes

mas te aguardo com tamanha
contenção de euforia
que quase rezo em
cima de duas afrontas
a certeza do amor.

Vácuos de luz me acompanham
na reforma os vestidos e as vésperas
quatrocentos arroubos de incertezas
era quase já tanto tanto tarde
mais dia e muita pouca noite
eram tropeços trôpegos do silêncio
no seu colar de gestos e enfoques....
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Pontífices

sou vazada e diurna
escorrego na ponte
pontífices e pedras
––––––––––––––––––

Favorita

O mistério não cede
ele sobe desce.

As três flores da geração passada
Curvaram o boreal de divergências.
Público e privado – quantas vertentes
vértices vacâncias exprimiu teus lábios.

Independência – morte
sugerida em 120 flexões.

Enquanto cursava discursava
a ponte desligou o último beijo
- nos prepararam cem mil milhas
de vidas mal vividas.

Noite e calor – quem parte ?
O que vence se distraiu , o
espelho turvo eram as águas
do rio dourado e sujo –
brincalhão.

O Barco passava ao largo
- ajuste de contas –
te devo alguns cem mil réis,
me deves uma esperança
redonda e não jocosa.

Estou na porta aberta
rumo ruminante
ao futuro branco
esfarelado de reticências
pós vontades

que humano tolo
não interroga a estrela
mas tenta devorar
a entranha do outro.

Não falo mais verdades
as palavras enrubescem
frente ao fronte.

Fulmino esse momento branco
As cores coradas da manhã de Sábado

Desconheci o amplamente reconhecido

Seguro pôr hoje o novecentos.
Se parto? Quedo-me em teus braços.
Espero pôr teus olhos que engoliram
dos meus a corrente que enfurecia
essas entranhas de medusa
e Madona aborrecida.

Ah, os compassos e seus componentes,
quem eram e pôr que vieram?
Nunca soube imprimir a
expressão balbuciada do outro.

Me diziam que era um aparte
apostei na briga
esvaziei a intriga.

A branca montanha que se nos oferecem
distancia abaixo o desvio das faces.

Não percebi porque foi sem muito entender
que vesti a túnica creme cor de amarelo
se me basto...
ignoro a tal corrente
me deram a folha e seu perfume
namoro essa macia visão na água.

Estúpida estúpido espetáculo
sombras na noite vieram despedir
acenei-lhes com o envelope branco,
dentro a alforria e vinte e sete
pares de ímpares.

Saí pela manhã, era o 1º
dia da liberdade,
os códigos estavam mornos
se já sabes e inventas
sela o selo do silêncio

No 1º dia na 1ª missa
conjunto de hóstias na cabeça
a cabaça vazia e feita
- vi as malas que partiam para
um rumo desconhecido e certo –

Tão quente e favorita
a menina guardou na
caixinha de madrepérola
suas jóias turcas
azuis e ametistas

luz e dia sombra alta
a terra arde e ama
o Sol de seu príncipe
segue-se um terço
e partes.

- e recomeça-se na quinta hora
quando definir-se a margem –
te veremos com três lances
de cores e momentos
és fria e fácil e farta
fulmina-te no fado fascinante
de tuas últimas facetas
agrimensora de noite e circo
é teu e vela-o
os frutos, que nascem em grupos,
terão seus pés amarelos
azul anil e açucarado

te reúnas, pôr 5 ou 6 vezes,
com sábios e alfarrábios
satisfazes esse silêncio
de sonatas e sonetos.
================
Sobre a Autora
Poeta, ficcionista e educadora. Curitibana, licenciou-se em Matemática em 1979 pela Universidade Federal do Paraná. Tem cursos de pós-graduação em astronomia e educação e é profissional de magistério, com experiência em ensino superior, médio e preparatório. Entre as muitas faculdades e colégios em que trabalhou, inclui-se a Universidade Agostinho Neto, em Luanda – Angola, no período de 1985 a 1987, como professora cooperante. É autora de alguns livros de poesia e literatura ainda inéditos.
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Fontes:
http://jandirazanchigueixa.blogspot.com/
http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/parana/jandira_zanchi.html

Balaio de Trovas V



Numa visita diária
a um coração em carência,
a saudade solidária
tenta suprir tua ausência...
ÉLBEA PRISCILA DE S. E SILVA
Caçapava-SP

Zumbindo sobre as corolas,
de delicada beleza,
os insetos são violas
na orquestra da Natureza!
ANGÉLICA VILLELA SANTOS
Taubaté-SP

Sem alegria no rosto,
mas para espantar o pranto,
tento esquecer meu desgosto
cantando, triste, mas canto.
ARGEMIRA F. MARCONDES
Taubaté-SP

É sina dos trovadores,
no mundo tão incomum,
falar de tantos amores,
às vezes sem ter nenhum.
CARLOS ALVES CABRAL
Pindamonhangaba-SP

Falamos muito de paz
mas, às vezes, esquecemos
que todo bem que ela traz
é todo o bem que fazemos.
JUDITE DE OLIVEIRA
Taubaté-SP

A natureza se enflora
e eu vivo um contraste assim:
é primavera lá fora
e inverno dentro de mim...
OSCAR DIAS SOARES
Taubaté-SP

Toda a noite, quando saio,
vendo o céu luminescente,
sinto a paz que é como um raio
de luar dentro da gente.
MYRTHES MAZZA MAZIERO
São José dos Campos-SP

Folha em branco à minha frente,
inquisidora, calada,
como a esperar que eu invente
um verso, uma trova...e nada !
NÉLIO BESSANT
Pindamonhangaba-SP

Sou, nas praias dessa vida,
que o destino desprezou,
fugaz espuma esquecida
que o mar, na areia, deixou!
JOSÉ VALDEZ DE C. MOURA
Pindamonhangaba-SP

Sábio é quem, mesmo que falhe
nos caminhos que envereda,
corrige cada detalhe
para evitar outra queda.
MAURÍCIO CAVALHEIRO
Pindamonhangaba-SP

Deixando o orgulho de lado,
meu amor lhe declarei
e, por ter me declarado,
com mais orgulho fiquei.
PAULO TARCÍZIO MARCONDES
Pindamonhangaba-SP

Tangendo as tropas em sonho,
velho tropeiro: ar cansado...
- Este é o tropel mais tristonho
pelos sertões do passado!...
JOSÉ OUVERNEY
Pindamonhangaba-SP
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Fonte:
Boletim Literário da UBT de Tremembé/SP – Vale Trova – Ano I – n.3 – 15 nov 2008
Responsável: Luiz Antonio Cardoso

Ana Lúcia Carvalho (Poesias Avulsas)

Canção do Talvez

Talvez sonhe demais
Ria demais
Peça demais
Ame demais
Talvez...
Viva de olhos fechados
Vá de encontro aos espinhos,
Nas rosas cravados
Talvez sangre demasiado.
Talvez...
Viva para sonhar
Por ter medo de acordar e,
Abrir os olhos e ver
Que não há primavera ou verão
Só o inverno nesse teu coração.
Talvez...
Ame demais,
Ria demais,
Espere demais...
Talvez estejas cansado
De todos os meus ais
De todo o meu medo
De todos os meus vendavais
Talvez...
Talvez eu me canse de ser assim
E me torne como me queres
Um espelho de ti dentro de mim....
Talvez...
Desista de te dar o meu perdão
E que me canse de procurar justificação
Por não seres alguém,
Que sonha demais,
Ama demais,
Mas espera demais.
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Jardim do meu velho Castelo

Não há flores novas no meu velho jardim,
Só as heras espalhadas pelas paredes
Das antigas muralhas do meu castelo
Borboletas, já nem as conheço
Não param aqui neste lugar morto
Cofre do que esqueço
Lugar onde escondo o que desconheço
Espinhos foram rosas
Lembranças, sonhos
Suspiros do vento, sorrisos
Palavras soltas, belos poemas...
Já não há vida neste canto,
Apenas o sopro do desencanto
Já não crescem flores no meu jardim, onde,
A terra afunda ao mais leve toque
O verde se esconde por detrás das sombras
Das imponentes eras que,
Foram tempo de indomáveis feras,
Brilhantes cavaleiros, belas princesas,
E grandes herois do derradeiro...
Não crescem flores novas no meu jardim...
O sol já não brilha como antes, aqui...
Só a lua desperta os antigos cantares
Das velhas vozes dos apaixonados
Que uivam de dor, esquecidos neste lugar perdido...
Só os velhos contadores de histórias sabem,
Deixar-se enganar pelos sentidos,
E ver aqui, aquele velho jardim...
Onde flores cobriam a terra de mil diferentes cores
Os pássaros cantavam para fazer sorrir o vento
Linhas soltas de belos poemas,
Cantados pelas princesas e heróis que,
Caminhavam descalços sobre a terra,
Em direcção ao por do sol, a caminho da lua...
Já não crescem flores aqui,
Restam-me os contadores de histórias
Que avivam com as suas palavras sábias
As velhas memórias do que já foi,
O mais belo jardim do meu velho castelo...
=================
Larga-me da mão

Larga-me a mão
Deixa-me livre para voar
Deixa-me perder
Para me voltar a encontrar.
Larga-me,
Solta-me os pés
Deixa-me partir,
Sabes que volto para ti outra vez.
Ferida da batalha
Tu curas-me o corpo e a alma
Eu agradeço e acabo por ficar,
Acabo sempre contigo no final.
Larga-me a mão
Deixa-me ir, então
Porque se não partir
Não terás nada para curar
E eu não terei razões para ficar.
==================
Marioneta

Neste pedaço de chão
De terra sem dono
Somos só pequenas,
Frágeis, indefesas
Trôpegas marionetas.

Pedaços de madeira viva
Por seiva molhada, corrida
Personagens por detrás da cortina
De uma continua peça teatral
De assistência divina.

Eu...
Eu, sou um pedaço de pau.
Quem sabe já fui parte de uma velha nau
Das que partiram procurando, em segredo
Um novo mundo, um novo porto,
Vencendo as teias do eterno medo.

Agora sou só um pedaço de pau
A tremer por detrás de um pano vermelho
Ansiosa por entrar em cena
De uma peça, num teatro velho.

Onde a atriz é pequena
Feita de madeira, sempre serena ,
E presa por fios de corda torcida,
Vive o teatro a que chama vida
==========================
Sobre a autora, por ela mesma
Chamo-me Ana Lúcia Carvalho, tenho 21 anos e desde há muito que encontro conforto entre as palavras. Sinto-me ainda uma criança perante a vida. Há tanto que não sei, tanto para aprender...

As minhas palavras reflectem isso mesmo; os meus sentimentos e sonhos, o que sou e quem sou.
São elas que me dão as asas que tanto preciso para voar e o dom de pintar realidades que só existem na minha mente... O meu caderno anda comigo onde quer que eu vá e o meu blog, onde escrevo os meus textos, tornou-se como uma especie de espelho, onde aprendi a observar o meu reflexo.
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Fonte:
http://www.estudioraposa.com/index.php/category/lugar-aos-outros/

quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

José Feldman diplomado pela ONE em Sorocaba

No dia 19 de dezembro o presidente da Ordem Nacional dos Escritores diplomou e entregou mais sete colares a novos associados.
A cerimônia aconteceu no Gabinete de Leitura Sorocabano às 10h seguido de um almoço junto aos escritores e novos sócios. No encontro, a mesa foi composta pelo presidente do Gabinete, Cel. Res. PM João Oliveira Verlangieri, o diretor do núcleo da região, Douglas Lara, e o presidente da ONE, José Verdasca dos Santos.






Além da presença do ex-presidente da Fundec, Alexandre Latuf, os sete novos associados, entre os quais as mais jovens escritoras associadas, Maria Giulia Jacção Alves e Roberta Rodrigues Giudice, ambas tem nove anos e declamaram suas poesias publicadas na antologia Rodamundinho.


Entre os novos membros estavam o escritor, trovador e criador do blog literário Singrando Horizontes José Feldman, o jornalista e escritor Pedro Viegas, o editor Mylton Ottoni e o empresário Alexandre Latuf.

No momento da entrega também foram declamadas poesias pelos escritores Gonçalves Viana, Oswaldo Biancardi, Nicanor Filadelfo, João Verlangieri e pelo presidente da Ordem.

O presidente da Ordem acrescentou que anteriormente o Estatuto não previa a admissão de menores de idade em sua associação e que hoje esse termo foi reformulado. “A Diretoria Nacional tudo fará para apoiar, estimular e incentivar aos jovens a seguirem este rumo, propiciando bons exemplos a seus colegas de escola, vizinhos e parentes, nós encaramos este trabalho como uma missão, talvez a mais importante da nossa associação”, comenta Verdasca.

Durante a reunião, a TV COM registrou o momento das entregas dos colares, também entrevistou os novos associados e o presidente da Ordem que se emocionou dizendo sobre a importância dos jovens exercitarem a escrita e não somente a leitura. A TV COM (canal 7 da NET Sorocaba) exibiu partes das entrevistas e está preparando uma matéria especial sobre literatura em Sorocaba.

A ONE é uma sociedade civil com fins culturais e científicos, sem objetivos lucrativos e abrange todo o espaço da Lusofonia. Os principais objetivos da Ordem são preservar, promover, estimular, incentivar as atividades literárias de escritores, aconselhar e auxiliar os autores em suas obras e produções, bem como defender a atuação do escritor lusófono na livre manifestação de seu pensamento e em defesa de seus trabalhos e direitos.

Segundo José Feldman «a acolhida recebida em Sorocaba foi de tal maneira surpreendente, que me senti como se fosse uma reunião de família. Foi uma honra enorme receber este colar, mas o trabalho para a divulgação da nossa cultura tão vasta em solo brasileiro é árduo, é uma semente que estamos plantando, que espero um dia dar frutos. Enfatizo que o meu blog assim como tantos outros blogs e sites é uma das sementes que eu regarei todos os dias até se tornar uma árvore frondosa que envolva em seus ramos todos os estados do Brasil, as nações de lingua portuguesa e todas as outras nações do mundo. Agradeço ao escritor Douglas Lara e à jornalista Cintian Moraes, principalmente, entre tantos outros que colaboraram direta e indiretamente para esta conquista. Um agradecimento especial ao Cel. Verlangieri pela recepção em seu Gabinete de Leitura, e à ONE pelo reconhecimento de meus esforços ».
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Fontes:
http://www.cintianmoraes.com.br/ONE/index.htm
Douglas Lara. http://www.sorocaba.com.br/acontece

sábado, 20 de dezembro de 2008

17 a 29 de Dezembro (Intervalo)


No período de 17 a 29 de dezembro não haverá postagem.

Dia 30 retorno com novidades e maior quantidade de postagens, e novas valiosissimas colaborações.

Feliz Natal a todos!

José Feldman

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Artur da Tavola (1936 - 2008)


José Feldman (A Virada de Ano sem Artur da Tavola)

Meu amigo,

Este ano se encerra, e você não está mais junto de nós, e as saudades de você que nos deixou, não fará com que seja um final de ano feliz, pois a sua ausência será sentida e muito, muito mesma. Esta é uma distância que não permite que possamos te ver, nem te abraçar, e nem ouvir a sua voz.

E quando partiu, você deixou saudades, pois foram marcantes senão em minha vida, mas em tantas outras. Podemos ver seus retratos, escutar sua voz gravada em algum lugar, mas sempre aquele aperto no coração persiste, pois a saudade é muito forte.

Sentimos saudades de amigos que não vimos mais, e mais ainda, nos arrependemos ao saber que a distância nos separou, e nunca mais nos veremos mais.

Daí vem à mente tantos momentos que tivemos e sentimos saudades. Das pessoas que falamos e nunca mais, da infância que vivemos, de nossos pais quando vivos, ou bem mais jovens. Dos namoros, das risadas que sempre demos. Sentimos saudades do passado e dos muitos momentos que não vivemos e também daqueles que vivemos e nunca mais teremos novamente. Saudades dos sonhos que tivemos e que hoje, talvez nem lembremos mais quais são, mas que acreditávamos como algo mágico.

Sinto saudades de você que se foi, e nem mesmo tive oportunidade para lhe dizer adeus. Dos momentos que nos falamos, sejam de dor ou de alegria, foram momentos inesquecíveis.

Queria poder fazer uma trova, um haicai, uma poesia, alguma coisa bonita que perpetuasse para sempre a falta que faz, pois direta ou indiretamente, participou de minha vida.

Mas, mesmo que eu sinta a tristeza que há pela sua ausência, meu coração sorri, pois o seu espírito está mais vivo do que nunca em mim, e fostes um dos construtores de um santuário colossal, denominado Cultura. E, a cada tijolo que colocarmos nele, poderemos sentir sua presença, sua mão nos ajudando a coloca-lo no local exato.

Até mais tarde, meu amigo Artur, que este ano de 2009 seja a consolidação de seu sonho.
José Feldman

*****************
(Artur da Tavola ) Vida Ensina

Se você pensa que sabe; que a vida lhe mostre o quanto não sabe.

Se você é muito simpático mas leva meia hora para concluir seu pensamento; que a vida lhe ensine que explica melhor o seu problema, aquele que começa pelo fim.

Se você faz exames demais; que a vida lhe ensine que doença é como esposa ciumenta: se procurar demais, acaba achando. Se você pensa que os outros é que sempre são isso ou aquilo; que a vida lhe ensine a olhar mais para você mesmo.

Se você pensa que viver é horizontal, unitário, definido, monobloco; que a vida lhe ensine a aceitar o conflito como condição lúdica da existência.Tanto mais lúdica quanto mais complexa.

Tanto mais complexa quanto mais consciente.Tanto mais consciente quanto mais difícil.

Tanto mais difícil quanto mais grandiosa. Se você pensa que disponibilidade com paz não é felicidade; que a vida lhe ensine a aproveitar os raros momentos em que ela (a paz) surge.

Que a vida ensine a cada menino a seguir o cristal que leva dentro, sua bússola existencial não revelada, sua percepção não verbalizável das coisas, sua capacidade de prosseguir com o que lhe é peculiar e próprio, por mais que pareçam úteis e eficazes as coisas que a ele, no fundo, não soam como tais, embora façam aparente sentido e se apresentem tão sedutoras quanto enganosas.

Que a vida nos ensine, a todos, a nunca dizer as verdades na hora da raiva.

Que desta aproveitemos apenas a forma direta e lúcida pela qual as verdades se nos revelam por seu intermédio; mas para dizê-las depois. Que a vida ensine que tão ou mais difícil do que ter razão, é saber tê-la. Que aquele garoto que não come, coma.

Que aquele que mata, não mate. Que aquela timidez do pobre passe.

Que a moça esforçada se forme. Que o jovem jovie.

Que o velho velhe. Que a moça moce. Que a luz luza. Que a paz paze.

Que o som soe. Que a mãe manhe. Que o pai paie. Que o sol sole. Que o filho filhe. Que a árvore arvore.

Que o ninho aninhe. Que o mar mare. Que a cor core. Que o abraço abrace. Que o perdão perdoe.

Que tudo vire verbo e verbe. Verde. Como a esperança. Pois, do jeito que o mundo vai, dá vontade de apagar e começar tudo de novo. A vida é substantiva, nós é que somos adjetivos.

domingo, 14 de dezembro de 2008

Nelson Capucho (A Vaca do Oitavo Andar)

Trrriiiiimmm.

Turíbio esfrega os olhos, olha o relógio sobre a cômoda: 9 horas. Não pode ser o despertador. Trabalha à noite, só vai para a cama por volta das 3 horas. Assim, teoricamente, alguém está lhe telefonando às 6 horas da madrugada.

Trrriiiimmm.

Vira-se, cobre a cabeça com o travesseiro. “Ninguém me deixa dormir”, pensa. Quando não é o cachorro da vizinha do 803 é o telefone.

Triiiiiimmm.

Não deve ser alguém da família. Todos os parentes sabem que ele dorme até mais tarde, que é diferente da maioria dos mortais.

Trrriiiiimmm.

Arrepende-se por não ter desligado o aparelho da tomada. Depois começa a imaginar que aconteceu alguma desgraça. Tio Luís não anda bem de saúde. O irmão que se casou com uma nissei e está morando no Japão. Lá tem muito terremoto. Movimenta a mão na direção do telefone com a agilidade de um astronauta em solo lunar.

Trrim...

Desligaram. Antes que pudesse dizer alô.

Resmunga um palavrão, ofende o coitado do Graham Bell e decide retomar o sono. Lembra-se que estava sonhando com a Sandrinha. E era bom. Tenta recuperar o roteiro do sonho. O maldito cachorro do 803 começa a latir.

Ah, a Sandrinha...

Trrriiiiimmmm.

Ah, não...

Trrriiiimmm.

Atende.

- Hum?

- Bom dia. É da residência do senhor Turíbio? (Voz feminina. Alguma secretária – logo deduz).

- É.

- O senhor Turíbio está?

- Ele.

- Aqui é da Associação dos Pecuaristas Anônimos e o senhor participou do nosso concurso beneficente, não foi?

- E eu por acaso sou boi para participar do concurso de vocês?

- Muito boa, essa. O senhor comprou uma de nossas rifas, certo?

- Sei lá, compro tanta porcaria...

- O senhor ganhou o primeiro prêmio, seu Turíbio!

- Ganhei alguma coisa? Não é possível, minha filha. Ultimamente ando perdendo até no jogo da velha para o meu sobrinho de quatro anos.

- Pois a sua sorte mudou. O senhor ganhou a novilha.

- Como é que é?

- A vaca. O primeiro prêmio!

Agradece à moça, senta-se na cama e sorri. Enfim, uma boa notícia. Mas logo começa a se preocupar. Mora em um edifício, oitavo andar. O que vai fazer com uma vaca? Precisa ir buscar o prêmio na manhã seguinte. Telefona para alguns conhecidos: ninguém quer comprar uma novilha. Quem sabe os açougues? Não, não teria coragem.

Vai à Associação dos Pecuaristas disposto a contar o seu drama, entregar o animal ao primeiro que se interessar. De graça. Mas quando vê a vaquinha, aquele olhar carente, Turíbio muda de idéia:

- Tudo bem. Vou levar. Agora a vizinha do 803 vai ver o que é bom para tosse!

Fonte:
CAPUCHO, Nelson. O Jardineiro de Flores Estranhas. Curitiba: Imprensa Oficial, 2002. (Série Crônicas de Londrina).

Machado de Assis (Duas Juízas)

Uma era a Devoção de Nossa Senhora das Dores, outra era a Devoção de Nossa Senhora da Conceição, duas irmandades de damas estabelecidas na mesma igreja. Qual igreja? Este é justamente o ponto falho do meu conto; não posso lembrar-me em qual das nossas igrejas era. Mas, pensando bem, que necessidade há de saber-lhe o nome? Uma vez que eu diga os outros e todas as circunstâncias do acontecimento, do caso, o resto pouco importa.

No altar da esquerda, à entrada, ficava a imagem das Dores, e no da direita a da Conceição. Esta posição das duas imagens definia até certo ponto a das Devoções, que eram rivais. Rivalidade nestas obras de culto e religião não pode ou não deve dar de si se não maior zelo e esplendor. Era o que acontecia aqui. As duas Devoções brilhavam de ano para ano; e que era tanto mais admirável quanto que o ardor fora quase repentino e recente. Durante longos anos, as duas associações vegetaram na obscuridade; e, longe de serem contrárias, eram amigas, trocavam obséquios, emprestavam alfaias, as irmãs de uma iam, com as melhores toilettes, às festas da outra.

Um dia, a Devoção das Dores elegeu para juíza uma senhora D. Matilde, pessoa abastada, viúva e fresca, ao mesmo tempo que a da Conceição punha à sua frente a esposa do comendador Nóbrega, D. Romualda. O fim de ambas as Devoções era o mesmo: era dar mais alguma vida ao culto, desenvolvê-lo, comunicar-lhe certo esplendor que não tinha. Ambas as juízas eram pessoas para isso, mas não corresponderam às esperanças. O que fizeram no seguinte ano foi pouco; e, ainda assim, nenhuma das Devoções pôde dispensar os obséquios da congênere. Enfim, Roma não se fez num dia, repetiram as devotas de ambas, e esperaram.

Na verdade, as duas juízas tinham distrações noutras partes; não podiam subitamente cortar por hábitos antigos. Note-se que eram amigas, andavam muita vez juntas, encontravam-se em bailes, e teatros. Eram também bonitas e vistosas; circunstância que não determinara a eleição, mas agradou às eleitoras, tão certo é que a beleza não é só um ornato profano, e, posto que a religião exija principalmente a perfeição moral, os pintores não se esquecem de pôr o arrependimento de Madalena dentro de belas formas.

Vai senão quando, D. Matilde, presidindo a uma sessão de mesa administrativa da Devoção das Dores, disse que era preciso cuidar seriamente de levantar a associação. Todas as companheiras foram do mesmo parecer, com grande contentamento, porque realmente não desejavam outra coisa. Eram pessoas religiosas; e, salvo a secretária e tesoureira, viviam na obscuridade e no silêncio.

— As nossas festas, continuou D. Matilde, têm sido muito descuidadas. Não vem quase ninguém a elas; e da gente que vem pouca é a de certa ordem. Vamos trabalhar. A deste ano deve ser esplêndida. Há de pontificar monsenhor Lopes; estive ontem com ele. A orquestra deve ser de primeira qualidade; podemos ter uma cantora italiana.

E foi por diante a juíza, dando os primeiros lineamentos do programa. Em seguida, adotaram certas resoluções: — alistar novas devotas — e D. Matilde www.nead.unama.br 3 indicava as suas amigas da alta sociedade —, fazer entrar as anuidades atrasadas, comprar alfaias porque, ponderou a juíza, “não é bonito estarmos a viver de Coisa interessante! Quinze dias depois, ou três semanas, quando muito, a outra Devoção celebrava uma sessão da mesa administrativa em que D. Romualda exprimia iguais sentimentos, propunha uma reforma análoga, espertava o espírito religioso das companheiras para o fim de celebrar uma festa digna delas. D.

Romualda também prometeu fazer entrar um certo número de devotas abastadas e briosas.

Dito e feito. Nem uma nem outra das duas juízas deixou de cumprir o prometido. Era uma ressurreição, uma vida nova; e justamente o fato da vizinhança das duas Devoções serviu-lhes de estímulo. Ambas souberam dos planos, ambas tratavam de levar a cabo os seus com mais particular fulgor.

D. Matilde, que a princípio não cuidava daquilo principalmente, daí a pouco não pensava em mais nada. Não rompeu com outros hábitos; mas não lhes deu mais do que se dá a um costume. O mesmo acontecia a D. Romualda. As duas associações estavam contentíssimas, porque, em verdade, a maior parte das devotas não o eram só de nome. Uma delas, pertencente à Devoção das Dores, que supunha continuar a antiga troca de serviços, lembrou que se pedisse não sei o que à outra devoção. D. Matilde repeliu com desdém: — Não; antes vendamos a última jóia.

A devota não compreendeu bem a resposta; era digna e espartana, mas pareceu-lhe que, em matéria de religião, a confraternidade e a caridade eram as primeiras leis. Entretanto, achou bom que todas se obrigassem ao sacrifício, e não tornou ao assunto. Ao mesmo tempo, dava-se na Devoção da Conceição análogo incidente. Dizendo uma das irmãs que D. Matilde trabalhava muito, acudiu D.

— Eu saberei trabalhar muito mais.

Era claro que a rivalidade e o despeito ardiam nelas. Por desgraça, tanto o dito de uma como o da outra correram mundo, e chegaram ao conhecimento de ambas; foi como lançar palha ao fogo. D. Romualda bradou em casa de uma amiga: — Vender a última jóia? Talvez ela já tenha as suas empenhadas! E D. Matilde: — Creio, creio... Creio que trabalhe mais do que eu, mas há de ser de A festa das Dores foi realmente bonita; muita gente, boa música, excelente sermão. A igreja estava tomada com um luxo desconhecido dos paroquianos.

Alguns entendidos da matéria calcularam as despesas e subiram a um algarismo muito alto. A impressão não se restringiu ao bairro, foi a outros; os jornais deram notícia minuciosa da festa, e o trouxe o nome de D. Matilde, dizendo que a esta senhora era devido aquele esplendor. “Folgamos de ver, concluía aquele órgão religioso, folgamos de ver que uma senhora de tão superiores qualidades emprega www.nead.unama.br 4 uma parte da sua atividade no serviço da Virgem Santíssima.” D. Matilde mandou transcrever a notícia nos outros jornais.

Não é preciso dizer que D. Romualda não foi à festa das Dores; mas soube de tudo, porque uma das zeladoras foi espiar e contou-lhe o que houve. Ficou passada e jurou que havia de meter D. Matilde num chinelo. Quando, porém, leu nos , a irritação não teve mais limites. Não todos os nomes feios, mas aqueles que uma senhora educada pode dizer de outra, esses disse-os D. Romualda falando da juíza das Dores — pretensiosa, velhusca, tola, intrometida, ridícula, namoradeira, e poucos mais. O marido procurava aquietá-la: — Mas, Romualda, para que há de você irritar-se tanto assim? E batia o pé, amarrotava a folha que tinha na mão. Chegou ao extremo de dar ordem para não receber mais o ; mas a idéia de que podia merecer da folha alguma justiça, quando chegasse a festa da Conceição, fê-la retirar a ordem.

Dali em diante, não se ocupou de outra coisa, senão de preparar uma festa que vencesse a das Dores, uma festa única, admirável. Convocou as irmãs, e disselhes francamente que não poderia ficar abaixo da outra Devoção; era preciso vencêla, não igualá-la; igualá-la era pouco.

E toca a trabalhar na coleta de donativos, na cobrança de anuidades. Nas últimas semanas, o comendador Nóbrega quase não pôde ocupar-se de outra coisa, senão de ajudar a mulher nos preparos da grande festa. A igreja foi armada com uma perfeição que excedia a da festa das Dores. D. Romualda, a secretária, e duas zeladoras não saíam de lá; viam tudo, falavam de tudo, corriam tudo. A orquestra foi a melhor da cidade. Estava de passagem um bispo da Índia; alcançaram dele que pontificasse. O sermão foi incumbido a um beneditino de fama. Durante a última semana trabalhou a imprensa, anunciando a grande festa.

D. Matilde caiu em mandar para as folhas algumas mofinas anônimas, em que argüía a juíza da Conceição de ser dada à charlatanice e à inveja. Respondeu D. Romualda, também anonimamente algumas coisas duras; a outra voltou à carga, e recebeu nova réplica; e isto serviu ao esplendor da festividade. O efeito não podia ser maior, todas as folhas deram uma notícia, embora curta; o um longo artigo, dizendo que a festa da Conceição fora das melhores que se tinham dado no Rio de Janeiro, desde muitos anos. Citou também o nome de D. Romualda como o de uma senhora distinta pelas qualidades de espírito, como digna de apreço e louvor pelo zelo e piedade. “Ao seu esforço, concluía a folha, devemos o prazer que tivemos no dia 8. Oxalá muitas outras patrícias possam imitá-la!” Foi uma punhalada em D. Matilde. Trocaram-se os papéis; ela agora é que deitava à outra os nomes mais cruéis de um vocabulário elegante. E jurava que a Devoção das Dores não ficaria vencida. Imaginou então umas ladainhas aos sábados e contratou uma missa especial aos domingos, fazendo anunciar que era a missa aristocrática da paróquia. D. Romualda respondeu com outra missa, e uma prática, depois da missa; além disso, instituiu um mês de Maria, e convidou a melhor gente.

Esta luta durou uns dois anos. No fim deles, D. Romualda, tendo dado à luz uma filha, morreu de parto, e a rival ficou só em campo. Vantagem do estímulo! Tão depressa morreu a juíza da Conceição como a das Dores sentiu afrouxar o zelo, e já a primeira festa esteve muito aquém das anteriores. A segunda foi feita com outra juíza, porque D. Matilde, alegando cansaço, pediu dispensa do posto.

Um paroquiano curioso tratou de indagar, se além das causas de estímulo religioso, alguma outra houve; e veio a saber que as duas damas, amigas íntimas, tinham tido uma pequena questão, por causa de um vestido. Não se sabe qual delas ajustara primeiro um corte de vestido; sabe-se que o ajuste foi vago, tanto que o dono da loja imaginou ter as mãos livres para vendê-lo a outra pessoa.

— A sua amiga, disse ele à outra, já aqui esteve e gostou muito dele.

— Muito. E quis até levá-lo.

Quando a primeira mandou buscar o vestido, soube que a amiga o comprara. A culpa, se a havia, era do vendedor; mas o vestido era para um baile, e no corpo de outra fez maravilhas; todos os jornais o descreveram, todos louvaram o bom gosto de uma senhora distinta, etc... Daí um ressentimento, algumas palavras, frieza, separação. O paroquiano, que, além de boticário, era filósofo, tomou nota do caso para contá-lo aos amigos. Outros dizem que era tudo mentira dele.

Fonte:
ASSIS, Machado de. Contos sem data. Rio de Janeiro: Ediouro (coleção prestígio).

Jane Tutikian (O acordeão e a bicicleta de motor)

Doce paz em mim,
em minha família, que veio de brumas sem corte de sol
e por estradas subterrâneas regressa às suas ilhas,
na minha rua, no meu tempo — afinal — conciliado,
[...]
— Carlos Drummond de Andrade

Difícil de saber exatamente o que passou pela cabeça do pai, quando tomou aquela decisão. Talvez porque já tivesse tentado outras coisas. Talvez porque acreditasse que a educação devia mesmo passar por isso. Eu não sei. Mas estava decidido: teria, sim, que estudar música. Desta vez, estava decidido, seria acordeão. Por mais que tentasse — ou pensasse, melhor diria se dissesse — por mais que pensasse em explicar, dizer que não queria, que não gostava, por mais que pensasse em me atirar no chão e gritar e chorar e bater com os pés e com as mãos, por mais que pensasse em sofrer um terrível e incontrolável ataque de asma, se trancasse a respiração para sempre - eu sabia, minha mãe sabia, minhas irmãs sabiam o que vinha daquele olhar pequeno, fechado, pensativo: eu estudaria acordeão, sim.

Tínhamos tentado o piano, mas aqueles pedais que me colocavam em um carro de alta velocidade eram muito mais sedutores do que o teclado e. Aquelas partituras não eram mais do que esboços de pistas em que as curvas e os obstáculos se desenhavam pelas claves, pelas notas cheias e vazias. Era de tirar o fôlego de qualquer sujeito! Não aprendi música inteira. Uma que fosse, só para que meu pai se orgulhasse de mim. Não aprendi. Agora, entretanto, era o que passava pela sua cabeça, não haveria mais os pedais a distrair minha atenção. E, no final de tarde do final de semana, seria bonito, minhas irmãs sentariam ao piano e eu estaria ao lado delas, no acordeão. Pensei que sempre poderia deixar de comer ou deixar de falar. Mas. Minha intuição também não me deixava saída. Corri para o quarto. Bati a porta e fiquei longo tempo assim: em silêncio. Já sabia que, com ele, não adiantava discutir nem nada. Poderia, quem sabe, levar uma surra, mas isso não me assustava, me assustava o olhar pequeno, fechado, pensativo. Fizesse o que fizesse e teria de dedicar longas e intermináveis horas da minha vida, com toda a turma da rua andando de bicicleta! Ou trocando figurinha de carros de corrida! Ou montando carrinho de lomba com rolimã de aço e tudo!, Teria de dedicar longas e intermináveis horas da minha vida a longos e intermináveis solfejos. Isso é de arrasar qualquer sujeito de quase 11 anos!

Quando a campainha tocou, me apresentaram dona Conceição. Ela era gorda, baixa, usava uma saia justa que avolumava ainda mais a barriga, onde acomodava, mesmo de pé, acomodava o acordeão. Usava uns óculos pretos, de aros redondos, que aparavam uns olhinhos pequenos e sempre sorridentes. Pensava que estava ali para me ajudar e foi o mais simpática possível. Essas coisas de mulher. Ela me chamou de querido, assim que me viu, e eu odiava que me chamassem de querido assim que me viam, sobretudo uma professora, sobretudo uma professora de acordeão. Passamos para o escritório e começou o martírio. Primeiro a mão direita. Sem olhar para as teclas, queridinho. Odiava mais ainda que me chamassem de queridinho! Teria sido uma tarde inteira de dórémifásollásidódósilasolfámirédó, se minha mãe não tivesse entrado com uma limonada e uma fatia de bolo de milho. Vamos de novo, amor. Amor era absolutamente insuportável! Não esquece de abrir o instrumento, aqui, o fole. Muito bem. Assim. Ele precisa cantar. Não. Não olha. Dórémifásollásidódósilasolfámirédó.

Ficou combinado: as aulas seriam às segundas, quartas e sextas, às quatro horas da tarde. Antes disso, eu faria os temas da escola. Não me parecia nem um pouco justo! Quando eu pudesse sair para a rua, a tarde já teria quase passado, e, quando fosse noite, eu teria de entrar. Pensei em falar com a minha mãe sobre isso, mas ela diria que o meu pai. Pensei em falar com o meu pai sobre isso, mas. Se o assunto fosse aquele, como das outras vezes, ele não queria falar. Então, me conformei. Eu ia crescer, mesmo, um dia.

Tentamos a outra mão e ela batia palmas rápidas para que eu pudesse acompanhar. Tã -tã,tã-tã-tã,tã-tã. Depois, depois era questão de juntar tudo, mas. Só depois, porque em todos os agora que tentamos não conseguimos e, algumas vezes, os querido, queridinho, amor e amado eram acompanhados de uma visível irritação. Eu até que tentava me concentrar, mas sabia quando as bicicletas passavam, porque a gente prendia uma papeleta com prendedor de roupa, na roda, ela pegava nos raios e dava um barulho parecido com motor. É verdade! Eu até que tentava me concentrar, mas aí ouvia, ao longe, o barulho de um carrinho de lomba. E, então, eu ia, sentado no banquinho do escritório, com um acordeão vermelho e preto, imenso e pesado, muito maior do que eu, eu ia junto e sentia o vento na cara e tudo. E foi muito, muito tempo assim.

Agora, tentávamos uma música: Ó Minas Gerais! Ó Minas Gerais! Quem já te viu não te esquece jamais. Ó Minas Gerais! Eu não sabia por que tinha que tocar Ó Minas Gerais, não sabia, não queria saber e, mais do que tudo, não queria tocar. Agora, o desafio era tocar uma musica inteira.

Passado um ano, meu pai achou que as aulas não estavam rendendo e decidiu dispensar dona Conceição que saiu com o coração pesado, porque, apesar de tudo, ela sabia que eu tinha certo talento, era só uma questão de tempo e de treino!, argumentou.

Eu? Fiquei entre o que se pode dizer de um homem feliz e um homem meio culpado. Dona Conceição não era tão ruim assim, pensei olhando as miniaturas de carros que tinha nas prateleiras do meu quarto, eu é que era, mas. Nada que durasse muito tempo, e meu pai anunciou que as aulas seriam, a partir de então, com o professor Clóvis.

Pensei, de novo, em explicar, dizer que não queria, que não gostava, em me atirar no chão e gritar e chorar e bater com os pés e com as mãos, em sofrer um terrível e incontrolável ataque de asma, se trancasse a respiração para sempre — mas. Não podia. Já tinha quase doze anos e sabia, de novo, minha mãe sabia, de novo, minhas irmãs sabiam, de novo, o que vinha daquele olhar pequeno, fechado, pensativo: eu estudaria acordeão, sim, nem que fosse a última coisa que fizesse na vida e, desta vez, com o professor Clóvis. Além disso, agora, me dava certo prazer, quase físico, ficar tentando, uma hora inteira, três vezes por semana, tocar Ó Minas Gerais. Minha mãe trazia um olhar desesperançado, junto com cada fatia de bolo de milho com limonada, mas. Minhas irmãs, aos poucos, foram trocando os olhares debochados de risos furtivos por olhares desesperados, e disso eu gostava e imaginava que, um dia, os vizinhos viriam tocar à porta e pedir, por amor de Deus que. Só meu pai não mudava o olhar.

Soube que o professor tinha chegado, quando uma bicicleta de motor parou diante da porta da minha casa. Eu nunca tinha visto uma! Embora aquele homem alto, magro, curvado, de cabelos muito compridos, de olhos grandes num rosto encovado dissesse que era o professor Clóvis, e embora eu achasse um tipo muito engraçado, eu não conseguia responder nada, queria ver inteiro 0 que havia atrás dele: e o que havia atrás dele era uma bicicleta azulzinha, de guidão prateado e tudo, ali, na minha frente, atrás dele, tão na minha frente que parecia sonho e tudo.

Minha mãe disse-lhe que entrasse, fomos direto para o escritório e, enquanto ele queria explicar que aquele era um instrumento de sopro muito antigo, inventado em Viena, no século 19, eu queria falar daquela máquina maravilhosa que estava estacionada na frente da minha casa e da potência daquele motor, e da velocidade que andava e de como funcionava a correia. Ele, então, riu um sorriso magro e decidiu que, sim, certo, era do que falaríamos, e começou a me explicar o funcionamento. Quando minha mãe entrou com o bolo, ele piscou para mim — enfim, alguém cúmplice que não me chamaria nem de querido, nem de queridinho, nem de amor, nem de amoreco! — quando a minha mãe entrou com o bolo, ele piscou para mim e continuou a história do instrumento, que quando a conversa é para ser só entre homens é assim mesmo. Quando minha mãe saiu, quis fazer, de homem para homem, uma aposta. Pediu que eu mostrasse o que sabia e eu, rindo, de homem para homem, disse-lhe que não sabia nada, só o começo de Ó Minas Gerais, mas que nunca tinha tocado música inteira, o que ele, evidentemente, podia entender entendido. Foi quando o professor fez a proposta: quando tu tocares uma música inteira, pode até ser este Ó Minas Gerais, eu te deixo andar na minha bicicleta de motor, mas só uma volta na quadra.

Eu mal podia respirar de tanta excitação. Bastava tocar uma música inteira e eu subiria naquela máquina e daria a volta na quadra! Decerto toda a turma ia ficar me fazendo perguntas: de quem é? É tua? Posso dar uma voltinha? E eu diria que sim e que não. Seria minha, como mulher que se ama de verdade, aquela bicicleta de motor de verdade, por toda uma volta na quadra.

— Fechado?, Ele perguntou.

— Fechado, respondi, falando com um igual. Apertamos as mãos, a minha pequena e a dele enorme, quase seca, e ele foi embora.

Ninguém me perguntou sobre a operação do milagre e, se perguntasse, também não responderia. Acabada a aula, não fui para a rua e comecei a me exercitar: dórémifásollásidódósilasolfámirédó, era o aquecimento. Depois, a outra mão, e eu tinha no ouvido as batidas das mãos de dona Conceição: Tã-tã, tã-tã-tã, tã-tã. E foram muitas vezes seguidas, vezes repetidas, monótonas, enlouquecedoras. Minha mãe chamou para jantar, mas, embora a fome de sempre, eu não podia. Meu coração estava acelerado em uma bicicleta de motor azul, minha respiração estava difícil, o que me separava dela era só uma Ó Minas Gerais inteira. Às dez horas, meu pai disse que tinha que terminar com aquele barulho. Fiquei muito brabo, bem quando eu queria tocar ninguém me apoiava! Ninguém me apóia, resmunguei, sem resposta. Passei a noite tocando sem som, sem deixar que o instrumento cantasse, apenas tocando, levemente, tocando as teclas e os botões, enquanto imaginava Ó Minas Gerais.

De manhã, não pude ir ao colégio, e foi fácil fazer com que acreditassem no enjôo porque estava abatido por uma noite não dormida. Até minhas irmãs ficaram preocupadas! Quando o enjôo acalmou um pouco, pude voltar ao acordeão e voltei o dia inteiro.

Ninguém dizia nada, mas eu sabia — e até era engraçado saber — que todos estavam achando tudo aquilo muito estranho. Era um pacto e, de pacto, homem não fala, pensava, embora meu pai firmasse e reafirmasse como era bom aquele professor, tinha, enfim, achado a pessoa certa para lidar comigo.

Quando o professor Clóvis chegou — soube que ele havia chegado desde que dobrara a esquina, pelo ronco do motor — fui eu a abrir a porta, levei-o ao escritório e toquei, cheio de orgulho, toquei toda a Ó Minas Gerais, soltei o acordeão e perguntei: agora posso? Acho que o professor não entendeu muito, ou não esperava que o progresso fosse tão rápido. Disse que sim, claro, decerto profundamente arrependido, que tem coisas na vida, como as grande paixões, que a gente não empresta nunca — isso eu só descobri muito mais tarde — mas só uma volta na quadra, hein?, e me entregou uma chave pequeninha, a que guardava toda a minha felicidade.

Subi na máquina e fui para o lado oposto do que estava a turma. Não queria nada nem ninguém que pudesse atrapalhar aquele momento que me valera todo o sacrifício que havia por trás de uma Ó Minas Gerais inteira e andei. Difícil dizer o que eu estava sentindo porque, algumas vezes, o que se sente ainda e sempre é maior. Estava sentindo ainda e sempre maior A máquina eu a liberdade as ruas o barulho do motor meu pai eu a liberdade eu grande a liberdade a máquina meu pai o motor acelerador a máquina as outras ruas o professor que tinha ficado para trás gostava dele a bicicleta de motor aquele era meu amigo sim a liberdade eu de verdade meu pai as ruas a minha casa lá atrás a noite caindo o chão andando ruas desconhecidas liberdade. Sabia que, mais cedo ou mais tarde, ou talvez só mais tarde, teria de voltar. Sabia que encontraria o professor, contrariado, na calçada, e o meu pai furioso, de olho apertado e faiscante, e a minha mãe chorando, e as minhas irmãs caladas de tanto susto. Sabia, mas tinha que arriscar porque aquele isso dentro de mim me dizia que tinha de arriscar e arrisquei.

Quando voltei, o professor Clóvis disse que eu não sabia cumprir um acordo, pegou a bicicleta e não disse mais nada. Senti uma coisa, assim, forte, no peito, dessas que parecem dor e que a gente sente quando se dá conta de que está perdendo um amigo. Um amigo de duas aulas, mas amigo. Minha mãe me abraçou chorando. Minhas irmãs, pulando, nervosas, só diziam pulando, nervosas, que eu ia apanhar. Meu pai me mandou para o quarto e as vizinhas diziam, nas minhas costas, graças a Deus!, não aconteceu nada.

Tinha acontecido, sim, mas talvez ainda não fosse visível. Meu pai entrou no quarto, os cabelos grisalhos despenteados faziam com que ficasse arrumando com a mão a toda a hora, e me olhava como se quisesse dizer alguma coisa enquanto ia e vinha, e acho que, desta vez, quase conversamos. Tinha o olhar pequeno, fechado, decidido, o meu pai. Só não falamos porque ele estava ocupado: colocou o acordeão dentro da caixa e levou embora. Eu era um homem de 12 anos e, na linguagem dos homens e seus imponderáveis, ele começava a me enxergar.
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Sobre a Autora
Jane Tutikian (1952) nasceu em Porto Alegre (RS). É formada em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Doutora em Literatura Comparada, atua, na mesma Universidade, como professora de literatura na graduação e pós-graduação. Colaborou com diversos jornais (“Correio do Povo”, Folha da Tarde”, “Jornal do Brasil”, etc.). Participou de várias antologias e seus contos foram traduzidos para o inglês e o espanhol.

prêmios recebidos:

1982 – Prêmio Alfredo Machado Quintella – Fundação Nac. do Livro Infanto-Juvenil – RJ.

1984 – Prêmio Jabuti – categoria infanto-juvenil – Câmara Brasileira do Livro – SP.

1986 – Finalista da Bienal Nestlé de Literatura – categoria conto – SP.

2001 – Prêmio Açorianos – categoria infanto-juvenil – Secretaria Municipal de Cultura – Porto Alegre (RS).

Obras:

Batalha naval (contos), 1981 – Civilização Brasileira
A cor do azul (novela infanto-juvenil), 1984 (21ª edição)
Pessoas (contos), 1987 – Movimento
Geração traída (novela), 1990 – Mercado Aberto
Um time muito especial (novela infanto-juvenil), 1993 (12ª edição)
Inquietos olhares (ensaio), 1999, Arte & Ciência
O sentido das estações (contos), 1999 – Movimento
Alê, Marcelo, Ju & eu (novela infanto-juvenil), 2000 – WS Editor
A rua dos secretos amores (contos), 2002 – WS Editor

Fonte:
TUTIKIAN, Jane. A rua dos secretos amores. Porto Alegre, RS: WS Editor, 2003.

Guimarães Rosa (O espelho)

Pintura de Leonora Weissmann
O espelho é o centro da obra Primeiras Estórias, de Guimarães Rosa, onde o narrador, em primeira pessoa, conta de sua luta para provar a falta de lógica e de sentido do mundo. Diante de um espelho, foi descobrindo com o passar dos dias a mentira que é a aparência humana. Num processo de “desimaginar-se”, vai verificando que o homem, como todas as coisas, não passa de uma metáfora. No limite do absurdo, ele chega a ver sua “forma” invisível.

O tema da identidade é tratado através da metáfora do ato de se ver e se reconhecer no reflexo dos espelhos.

No conto reaparece a estrutura narrativa inovadora, trata-se da relação diálogica de um narrador que não se identifica nominalmente e que interpela o leitor por "senhor". O narrador relata uma experiência insólita: Se quer seguir narro-lhe; não uma aventura, mas experiência, a que me induziram, alternadamente, séries de raciocínios e intuições. Tomou-me tempo, desânimos, esforços. /.../ O senhor, por exemplo, que sabe e estuda, suponho nem tenha idéia do que seja na verdade – um espelho?. Assim, o leitor é chamado a trilhar as veredas de uma devassa da alma humana.

De tema metafísico, transcendente, o conto não é uma narrativa com história, intriga, no sentido tradicional. É uma experiência, como o próprio narrador personagem declara.

Seguindo um método próprio, o narrador desenvolve a sua busca durante anos, experimentando as diferentes formas que podem brotar de sua própria imagem no espelho e eliminando todas, na tentativa de encontrar a sua verdadeira essência, livre de qualquer ilusão que os seus olhos pudessem criar.

Após anos dessa experiência, o personagem chega ao ponto de não conseguir ver nenhuma imagem, quando está diante de um espelho. Então, resolve parar por um bom tempo com as experiências e não dirige mais o olhar a nenhum espelho. Porém, num dia, ele retoma essa experiência e consegue ver apenas um esboço muito mal feito do seu rosto, um quase rosto. Nesse instante, o narrador se sente contente e tranqüilo e convida o leitor a refletir sobre o que é de fato a vida.

O elemento anedótico consiste na situação absurda, relatada pelo narrador, de que é possível ver outras pessoas, objetos e até animais no lugar da própria imagem no espelho. O narrador passou a acreditar nessa louca idéia, quando ainda era jovem e estava num lavatório, onde de súbito, se deparou com um perfil humano feio, desagradável que lhe gerou nojo e repulsa. Porém, essa figura era ele mesmo dentro de um jogo de ângulos produzido por dois espelhos: um fixo na parede e outro numa porta lateral. A partir desse acontecimento, o narrador inicia uma busca pelo seu eu através dos espelhos: comecei a procurar-me - ao eu por detrás de mim - à tona dos espelhos.

O conto é como um jogo da verdade. O espelho é o instrumento da análise. O narrador vai descendo em suas experiências até não encontrar mais sua imagem: as máscaras (aparência) vão sendo destruídas. Por fim, começa a emergir no espelho uma outra imagem ...um rostinho de menino, de menos-que-menino.

Este conto apresenta um aspecto que o destaca em relação aos demais de Primeiras Estórias: sua linguagem é erudita, carregada de termos científicos e filosóficos, numa formalidade que se afasta do caráter oral dos outros 20 textos, significando o fascínio exercido pelo espelho sobre cientistas e filósofos de todos os tempos.

Seu narrador, que parece conversar com o leitor diz que realizou um enorme esforço, por meio de seu reflexo num espelho, de busca do seu verdadeiro eu, o “eu por trás de mim”.

Esse verdadeiro eu precisa ser encontrado por meio de seu reflexo. Estuda-se, pois, sua imagem e semelhança. Assim, a busca do verdadeiro eu está na busca de Deus. Para tanto, o narrador vê-se na necessidade de realizar exercícios que têm a proposta de eliminar as superfícies enganadoras de sua imagem. Com esforço, elimina sucessivamente a imagem do seu sósia animal, dos seus pais, de suas paixões, das idéias que os outros lhe atribuem, dos interesses efêmeros. O resultado de todos esses esforços causa-lhe muito sofrimento, principalmente uma terrível dor de cabeça. Resolve, pois, abandonar a tarefa.

Tempos depois, voltou a se olhar no espelho e não viu nada. Aos poucos, uma imagem vai-se formando, de forma luminosa. No final, surge a imagem de algo que é menos que um menino. Eis a idéia de que a criança enxerga melhor a verdade (eis um dos motivos para a predileção para esse tipo de personagem na obra). Tornando-se adulto, a visão é embaçada. No entanto, existe a promessa de que se voltará ao estágio da perfeição. Vai-se estar face a face com Deus, como se diante de um espelho.

No conto O Espelho, predominou o aspecto esotérico, quando a obra Primeiras estórias nos apresenta vivamente retratos de pobreza, exclusão e abandono a que são entregues os habitantes do sertão.

Fonte:
http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/resumos_comentarios/o/o_espelho_conto

sábado, 13 de dezembro de 2008

Lançamento dos livros de Marli Fantini Scarpelli "A Poética migrante de Guimarães Rosa" e "Crônicas da antiga corte"

A poética migrante de Guimarães Rosa é uma coletânea de textos que privilegia a diversidade dos olhares sobre a obra do escritor. Os autores abordam a riqueza lingüística, estrutural e temática do romance, de novelas, contos, crônicas e poemas produzidos com dedicação e genialidade do escritor mineiro. Crônicas da antiga corte – Literatura e memória em Machado de Assis, também uma coletânea, evidencia o paralelismo entre a obra e a vida de Machado de Assis. Ser-tão natureza – a natureza em Guimarães Rosa é resultado da tese de doutorado defendida por Mônica Meyer em 1998.
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Marli de Oliveira Fantini Scarpelli

Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq 2 É professora Associada da Faculdade de Letras da UFMG, onde leciona na Graduação e na Pós-Graduação, nas áreas de Teoria da Literatura, Literatura Comparada e Literatura Brasileira. É Coordenadora da Câmara de Pesquisa da FALE/UFMG, Coordenadora da Comissão editorial da Ed. FALE/Ed. da UFMG, Membro titular do Comitê Assessor de Letras, Lingüística e artes da Pró-Reitoria de Pesquisa da FALE/UFMG. Foi chefe do Departamento de Semiótica e Teoria da Literatura, Diretora do Centro de Estudos Portugueses e Editora da Revista do CESP. É líder (CNPq) do Grupo de pesquisa REDES - Literatura e Cultura ibero-afro-americanos; e Coordenadora do Núcleo de Pesquisa MESCLA - Literatura, Memória e Cultura na Esfera Ibero-Afro-Americana, na FALE/UFMG. Atua principalmente nos seguintes temas: Guimarães Rosa, Machado de Assis, literatura ibero-afro-americana. Possui Mestrado em Estudos Literários (1994) e Doutorado em Literatura Comparada, ambos pela FALE-UFMG (2000); e Pós-Doutorado em Literatura Brasileira na USP (2003-2004).
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Livros publicados

1. A poética migrante de Guimarães Rosa. 1. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.
2. Guimarães Rosa: Fronteiras, margens, passagens. 2. ed. São Paulo: Senac; Ateliê Editorial, 2008.
3. Crônicas da antiga corte: literatura e memória em Machado de Assis. 1. ed. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008.
4. Guimarães Rosa: fronteiras, margens, passagens. 1. ed. São Paulo: Senac/Ateliê, 2004. v. 1.
5 FANTINI, e DUARTE, E. A. (Org.) . Poéticas da diversidade. Belo Horizonte: POSLIT/Faculdade de Letras da UFMG, 2002.
6. FANTINI e DUARTE, C. L. (Org.) . Gênero e representação nas literaturas de Portugal e África. Belo Horizonte: POSLIT/Faculdade de Letras da UFMG, 2002. v. III.
7. FANTINI, Marli (Org.) . Revista do Centro de Estudos Portugueses. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 2002. v. 22.
8. FANTINI e OLIVEIRA, Paulo Motta (Org.) . Os centenários: Eça, Freyre, Nobre. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 2001. v. 1.

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Fontes:

Colaboraçaõ de Douglas Lara. http://www.sorocaba.com.br/acontece
Currículo Lates