quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Pedro Albino de Aguiar (1944)



Nasceu em 03-03-1944, no antigo distrito de Ibicuitinga, hoje município, onde fez o Primário. Registrou-se em Morada Nova – Ce, para onde se mudou em 1964 para continuar os estudos. Filho de Raimundo Castelo de Aguiar e Maria Francisca de Jesus. Sempre contando com a ajuda dos pais, transferiu-se para Fortaleza - Ce em 1967, objetivando trabalhar para poder continuar estudando.

Em Fortaleza concluiu o 2º Grau no Colégio Estadual Liceu do Ceará e o curso superior de Administração de Empresas, na Escola de Administração da Universidade Estadual do Ceará – UECE. Juntamente com outros intelectuais cearenses, entre eles Carneiro Portela, Antônio Girão Barroso, Jader de Carvalho, Rembrandt de Matos Esmeraldo e outros, fundou o Clube dos Poetas Cearenses – CLUPCE, onde se reuniam semanalmente na Casa de Juvenal Galeno, objetivando discutir e expandir a poesia e a cultura regional.

Através do CLUPCE participou da I e III Antologia “Os Novos Poetas do Ceará’, Editora Henriqueta Galeno, 1971/73. Escreveu vários artigos no jornal Tribuna do Ceará, como correspondente do interior. Trabalhou de 1968 a 1977 na Cia. de Eletricidade do Ceará – COELCE (antiga CONEFOR)

Quando concluiu o curso superior, em dezembro de 1977, foi selecionado para trabalhar no Governo do Ex-Território Federal de Rondônia, onde prestou serviços como Administrador e exerceu várias funções públicas no período de 17-02-1978 a 19-08-2002, quando se aposentou.

Mestre em Engenharia da Produção pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC.

Professor da UNIR, da UNIRON e da FATEC.

Publicou os seguintes livros:
Poemas, Sonetos & Trovas, 1989;
Versos Soltos X Rimados & Pensamentos, 1992;
69 Poemas de Amor, 1995,

Participou de várias antologias editadas pela Secretaria de Cultura do Estado de Rondônia.

Cadeira numero 18 da Academia de Letras de Rondônia, tendo por patrono Humberto de Campos.

Secretário Geral da Academia de Letras de Rondônia – ACLER, eleito no dia 04 de janeiro de 2008, para um mandato de dois anos - 2008/2009.

Fonte:

Artur de Azevedo (A Filosofia do Mendes)



Decididamente o Fulgêncio não nascera para cavalarias altas: não havia rapaz de trinta anos mais tímido nem mais pacato vivendo só, na sua casinha de solteiro, independente e feliz.

Aconteceu, porém, que um dia o Fulgêncio foi tão provocado pelos bonitos olhos de uma senhora, que se sentara ao seu lado num bondinho da Carris Urbanos, que se deixou arrastar numa aventura de amor.

Quando, depois da primeira entrevista, na casa dele, Bárbara - ela chamava-se Bárbara - lhe confessou que era casada com um sujeito chamado Mendes, o pobre rapaz, que a supunha solteira ou pelo menos viúva, ficou horrorizado de si mesmo. Ficou horrorizado, mas era tarde: gostava dela, e não teve forças para fugir-lhe.

As entrevistas amiudaram-se. Quando Bárbara não ia ter pessoalmente com o Fulgêncio escrevia-lhe cartas inflamadas, e nenhuma ficava sem resposta.

Essa imprudência teve mau resultado: um dia Bárbara Mendes entrou em casa do amante acompanhada de duas malas, uma trouxa e um baú.

- Que é isto?

- Alegra-te! Meu marido, que é muito abelhudo, encontrou debaixo do meu travesseiro a tua última carta e expulsou-me de casa.

- Hein?

- Foi melhor assim: agora sou tua, só tua, e por toda a vida!... Não estás contente?

- Muito...

- Estou te achando assim a modo que...

- É a surpresa... a comoção... a alegria...

- Como vamos ser felizes! Mas olha, peço-te que não te exponhas nestes primeiros tempos... O Mendes é ciumento e brutal e, mesmo antes de ter certeza de que eu o enganava, andava armado de revólver!

O Fulgêncio, que não tinha sangue de herói, viveu dali por diante em transes terríveis. Saía de casa o menos possível, e nas ruas só andava de tilburi, recomendando aos cocheiros que fossem depressa. Quando via ao longe um sujeito qualquer parecido com o Mendes, punha-se a tremer que nem varas verdes.

Um dia, tendo descido de um tílburi no Largo da Carioca, para comprar cigarros, encontrou na charutaria o Mendes, que comprava charutos. Ficou de repente muito pálido e trêmulo e quis fugir, mas o outro agarrou-o por um braço, dizendo-lhe com muita brandura:

- Faça favor... venha cá... não se assuste... não trema... não lhe quero mal... ouça-me... é para o seu bem...

O Fulgêncio caiu das nuvens. O marido continuou:

- Eu sei que o sr. tem medo de mim que se péla: receia que eu o mate, ou que lhe bata... Tranqüilize-se: não lhe farei o menor mal. Pelo contrário!

O pobre Fulgêncio não conseguiu articular um monossílabo.

As maxilas batiam uma na outra.

- Matá-lo? Bater-lhe? Seria uma ingratidão! O Sr. Prestou-me um relevante serviço: livrou-me de Bárbara! E não era meu amigo, sim, porque em geral são os amigos que têm a especialidade desses obséquios...

O Fulgêncio continuava a tremer.

- Não esteja assim nervoso! Depois que o Sr. me libertou daquela peste, sou outro homem, vivo mais satisfeito, como com mais apetite, tudo me sabe melhor e durmo que é um regalo... Aqui entre nós, se o amigo quiser uma indenização em dinheiro, uma espécie de luvas, não faça cerimônia; estou pronto a pagar - não há nada mais justo... Ande desassombradamente por toda a parte... não receie uma vingança que seria absurda... e se, algum dia, eu lhe puder servir para alguma coisa, disponha de mim. Não sou nenhum ingrato.

Daí por diante, o Fulgêncio nunca mais teve receio de estar na rua, mas em pouco tempo se convenceu de que não podia estar em casa, porque Bárbara era definitivamente insuportável. O Mendes foi o mais feliz dos três.

Fonte:
- Domínio Público
- Imagem = http://wellcorp.blogspot.com

Antonio Hohlfeldt (O Conto de Atmosfera)



(...) Em Autran Dourado (...) o escritor está sempre a reescrever seus textos, e mais do que isso, a combiná-los em conjuntos diversos. Isso ocorreu tanto em relação às obras de estréia quanto a outras que se seguiram, na aparente busca de uma obra ampla e contínua, que permita ao leitor grandes relações ou que, ao contrário, as esconda. Estreando em 1947, com uma novela, Teia, a que se seguiria outra, "Sombra e Exílio" (1950), narrativas de dimensões médias que bem poderiam caber na classificação com que se preocupa este volume, Autran Dourado viria porém a preocupar-se com a questão dos "gêneros ao longo do tempo. criando em outro momento obra congênere, sobre a qual os críticos discutiram, e discutiram, sem que se chegasse a qualquer conclusão. Refiro-me a O Risco do Bordado — (1970), para uns, romance, como no caso do critico Hélio Pólvora, para outros, contos, talvez enquadrados na melhor tradição clássica, como parece decidir Temístocles Linhares, que termina por considerá-las representantes de qualquer gênero; uma vez que "todas as suas estórias autônomas. Podem ser lidas cada uma de per si, sem necessidade de imbricá-las uma na outra. Depois, cada uma delas conserva o seu tom peculiar".

O que importa, porém, neste caso, é que, como anotava Hélio Pólvora, a obra de Autran Dourado "é uma das mais felizes combinações, em nossa prosa, de regionalismo e psicologismo", com o que viria a concordar depois o crítico norte-americano Malcolm Silverman, ao falar de uma "introspecção regionalista, mostrando que” através de uma cuidadosa e calculada manipulação desse influxo regionalista ou ambiental (isto é, o material), Dourado canaliza e desdobra a psique de suas criaturas (isto é, o espiritual) para levá-las a revelar-se num crescendo geralmente orientado para um “clímax”.

É o mesmo crítico quem, citando ao romancista, lembra não se ter nem ele mesmo decidido a respeito do gênero desta obra, embora tenha-se preocupado com outras questões que envolvam seu trabalho. Em depoimento a Edla van Steen, por exemplo, Dourado afirma: "eu fui um dos primeiros a usar a técnica do fluxo de consciência, o que espantou, escandalizou um pouco. O diálogo incluso, o diálogo dentro da própria narrativa, o sujeito vendo, falando e pensando ao mesmo tempo, criou alguma dificuldade de leitura."

A troca de pessoas durante a narrativa, apontada em relação a Clarice Lispector, também é prática comum em Autran Dourado, que sobre isso assim se refere: “venho usando desses recursos conscientemente. Em certos casos (. .. ) passo uma história escrita originalmente na terceira pessoa para a primeira, e o efeito é sempre surpreendente, quando não desconcertante, mesmo para mim ( ... ). Na mudança da pessoa ou do tempo do verbo, é espantoso como somos obrigados a ser bons artesãos; senão nos perdemos, e o recurso não funciona". Também à semelhança de outro mineiro, Guimarães Rosa, enfocado neste volume no capítulo dedicado ao conto rural, Autran Dourado preocupa-se com a etimologia dos nomes de suas personagens, criando-as e estudando-as cuidadosamente.

Nem sempre, porém, houve esta consciência tão forte no escritor, o que leva Silverman a dizer que a primeira grande modificação em direção ao que depois se tornaria o Autran Dourado que todos admiramos, dar-se-ia com Tempo de Amor, em que "um personagem-tipo persistentemente perseguido pelo autor torna-se de repente tridimensional e refinado. Não é mais mostrado: ele próprio mostra o que é, passando de títere atormentado a atormentado ator". O próprio escritor, aliás, concorda que todo seu aprendizado se deu justamente a partir deste livro, que ante as dificuldades de editoração, ele reescreveu diversas vezes. Dai nasceria a experiência dos blocos narrativos entremeados que reutilizaria em O Risco do Bordado, principalmente, tornando-o uma espécie de "esfinge" enigmática, pronta a devorar todo e qualquer leitor — inclusive o crítico — que dela se aproxime.
Graças a todo o seu artesanato, cuidadosamente elaborado e exercitado (todo o livro de Autran Dourado leva alguns anos para construir-se, seja um romance ou uma coletânea de narrativas curtas), chegou ele a um "sistema expressivo altamente eficaz. Autran Dourado, aperfeiçoando cada vez mais a sua linguagem narrativa, pousa entre o realismo e o simbolismo, interpondo uma cortina de valores poéticos entre o leitor e a descrição dos cenários, dos caracteres e dos vertiginosos acontecimentos", no dizer de Fábio Lucas.

Tematicamente, poder-se-ia referir à obra de Autran Dourado na base da síntese que Hélio Pólvora dela realizou: "a decadência senhorial, o desajuste entre o tempo histórico e o tempo social", mas isso não basta. Silverman observou, corretamente, haver "similaridades" que entrelaçam todas as obras, como um continuum — "uma por vezes densa 'cor local' em ,que ou frente à qual as personagens de ordinário atormentadas de Dourado lutam consigo (e em si) mesmas, ora com sucesso, o mais das vezes não, para tornar as suas vidas suportáveis".

O tom da maioria destas narrativas, segundo ainda o mesmo crítico, "tende a ser de modo geral soturno, em harmonia com o arquétipo sistematicamente conturbado do escritor; os finais quase sempre acomodam-se ao caráter predominante; e o estilo mostra-se tão agudamente analítico quanto no caso das composições mais largas, em que pesem as limitações estruturais".

Quem melhor apreendeu, em sua globalidade, a obra de Autran Dourado, alcançando ver a totalidade dos imbricamentos que todos os elementos até aqui levantados pelos diversos críticos, realizam, foi Maria Lúcia Lepecki. Em obra fundamental para a compreensão do escritor, a crítica mostra que "todas as narrativas de Autran Dourado organizam-se em torno de um núcleo ideológico mínimo e totalizante como significação-significado: a morte. Problema fundamental com que se debatem, consciente ou inconscientemente, seus personagens, agentes da narrativa, amor te caracteriza-os e torna-se presença inarredável em nível de conflitos, de ambiente físico, de objetos, de animais e até de matéria". A morte confere sentido ao mundo e à própria vida, pois, como ela demonstra em seguida, "entendendo a morte como passagem, esta ficção no-la mostra qual prova (que até pode ser, mas nunca, apenas, provação) inevitável, cujo cumprimento integra o ciclo vital e não o interrompe. Os mortos de toda a obra de Autran Dourado ( ... ) continuam a viver, tornando-se até agentes provocadores de conflitos no protagonista e/ou outras personagens".

É sob esta perspectiva que surge a dimensão mítica da literatura de Autran Dourado, estruturada sobre a oposição entre espaços e, consequentemente, entre tempos" (. .. ) As oposições de tempos e espaços vinculam-se, por sua vez, à problemática da busca — integrante da vivência do homo religiosus, sempre e necessariamente à procura do absoluto, do transcendente ou do 'real' suscetível de conferir sentido ao 'mundo de baixo'. Através da correlação tempo-espaço-vida, chega-se à viagem como submotivo desta ficção" .

Maria Lúcia Lepecki mostra haver um tempo narrativo primordial, o imperfeito do indicativo, em todas as narrativas de Autran Dourado, o que a) veicula a persistência de valores arcaicos, dentro de um tempo histórico subtextual; e b) cria o conteúdo mítico (que não só existiu como ainda existe em processo de criação): o passado é a fonte de sabedoria, tanto mais valiosa e digna de crédito, quanto mais remotamente se localize em relação aos agentes. Mas também a imaginação cumpre importante papel, pois preenche as lacunas possíveis.

O próprio escritor concorda plenamente com a tese da crítica, ao afirmar que sempre utiliza "uma pessoa real filtrada pelas lentes da memória e da imaginação (a pessoa real pode morrer que continuará viva na memória do autor)", seja para inspirar-se, seja para conduzir sua narrativa .

Para Silverman, este tempo, "em si, é não mais que incidental na obra de Dourado, mais uma parte da mente deformada e deformante dos protagonistas que uma medida para a evolução da trama. A intemporalidade significa em si mesma universalidade, e é precisamente o talento de Autran Dourado em projetar padrões universais de comportamento humano ao focalizar introspecções individuais que fez dele um dos mais destacados ficcionistas brasileiros". AIiás, o aspecto acima citado é especialmente verificável nos recentes Novelário de Donga Novais e sobretudo no livro de contos As Imaginações Pecaminosas (1981), em que, a todo o momento, o narrador está a interrogar-se sobre se tal fato terá mesmo ocorrido ou terá sido mera imaginação sua e dos demais agentes que com ele repartem o conhecimento do(s) fato(s) pretenso(s).

Esta mesma ambigüidade, já anotada em Salim Miguel e essencial em Autran Dourado, ocorre também episodicamente nos contos do crítico literário e ficcionista baiano Hélio Pólvora. Estreando na ficção curta com Os Galos da Aurora (1958), a que se seguiria A Mulher na Janela (1961) — projetando-se aqui mais uma vez uma questão de gênero, pois o volume pretende mesclar crônicas e contos — sua obra viria a afirmar-se com Noites Vivas, (1972), que cheguei a aproximar das narrativas das mil e uma noites, em plena área mítica, através da introdução ambígua de um constante "talvez", onde a memória suportava a ponte de transição do universo rural para o urbano. Seguir-se-ia Estanhos e Assustados (1966), que Flávio Loureiro Chaves vincularia ao regionalismo, em aparência, para mostrar, ferem, que seu texto "esconde camadas mais profundas sob a superfície do cenário exótico e particularizado", embora ocorra neste livro, como no anterior e no que se seguiria, e que se constitui até o momento na obra mais recente do autor, Massacre no Km. 13 (1980), um condicionante da paisagem à existência das personagens, provavelmente devido às "raízes evidentemente naturalistas do escritor, traduzias, desde o primeiro conto, no telurismo, no animalismo que marca suas personagens, num quase fatalismo". A propósito deste último livro, numa observação extensiva a todos os seus demais trabalhos, Lygia Fagundes Telles afirma que "sua emoção é trabalhada por um estilo vigoroso, implacável, e é esse estilo que imprime às idéias uma força selvagem, um vigor original, impregnado às vezes de alto sopro lírico. Temos assim um texto raro, arrebatador, que nos comove e nos provoca a lúcida admiração que só as verdadeiras obras de arte conseguem nos provocar".
Na verdade, os enredos de Hélio Pólvora, como registrei justamente a respeito deste livro mais recente, são apenas razões aparentes para que ele possa ampliar o estudo dos climas que muito gosta de desenvolver: pairam sobre suas personagens e as narrativas que delas emanam ou sobre elas se constroem, uma tensão provocada pela indagação constante sobre o que irá lhes suceder. Mas o narrador, longe de cair na armadilha do simples conto de ação, dilata o enredo, suspende a trama, tece longos circunlóquios a respeito de uma série de outros elementos para, então, num repente, reunir a tudo num único parágrafo, geralmente curto, que não é aquele "clímax" do conto clássico de um Maupassant, porque na verdade não resolve nada, mas, ao contrário, apenas permite uma ampliação do que o narrador vinha realizando: é como se, dado o "motivo", o escritor dissesse ao leitor: suspendo aqui a narrativa. Complete-a você. O leitor, evidentemente, pensará em Machado de Assis. O que terá ocorrido exatamente com o filho de Capitu? E com o estudante do conto sempre citado, "Missa do Galo"? E o casal inspirador da tão ansiada canção? Pois o mesmo ocorre no caso de Hélio Pólvora: como irá o adolescente situar-se na cidade? O que esperar da mulher louca (será ela a débil mental ou realmente o marido e padastro, um perverso?), presa junto à casa? Escapará o assassino que usa a gilete contra indefesas donzelas? E assim por diante.

Eminentemente interrogativo é o texto do carioca mineiro Sérgio Sant'Anna. Com apenas dois livros de contos, O Sobrevivente (1969) com que estreava na literatura, e Notas sobre Manfredo Rangel, Repórter (1973). Sérgio goza de imenso renome, possuindo mais dois largos romances e tendo publicado recentemente duas narrativas de dimensões menores. No entanto, não há gênero fixo para o escritor, se bem que vários críticos, já à época de sua estréia, prognosticassem sua maior dedicação ao romance, a partir do conto, como ocorreu com Assis Brasil e Fausto Cunha . (Assis Brasil, em A nova literatura, já assinalava: "é outro escritor que tende também para o romance, daí a sua predileção por enredos" (op. cit., p. 136). enquanto Fausto Cunha escrevia. "Sérgio Sant'Anna incorpora ao seu conto - que em alguns casos já aspira a ser novela e dirige-se visivelmente para a marca do romance - alguns elementos do jornal, do cinema e da publicidade" A leitura aberta.)

Seja como for, todos os contos de Sérgio Sant' Anna, como aliás, seus romances, mantêm constantes, que, sinteticamente estudadas por Malcolm Silverman, mostram que, "salvo poucas exceções, Sérgio Sant' Anna baseia seus enredos ou no ramerrão da vida diária (urbana). ou, inversamente, em alguma forma de (romântico) escapismo" .

Para este crítico, há também unidade quanto às perspectivas espaciais, pois os locais, ou seja, o espaço, desempenham um papel capital na ficção de Sérgio Sant' Anna, suprindo, em conjunto com as atmosferas a eles inseparavelmente ligadas, a força externa que enseja o desenvolvimento interno das personagens. Esta atmosfera, em geral, "reduz-se a uma sensação única, dosada em termos ora físicos, ora psíquicos", em que a ironia e a semidemência, ou um estado de "infernização demoníaca" é a melhor imagem que as pode expressar, seja ao nível dos contos mais realistas em sua linguagem, como os encontramos em qualquer um dos dois volumes, seja mesmo em seus romances. Dir-se-ia que as personagens passam a ser possuídas ou manejadas por forças ou elementos externos que as comandam, quase como autômatos, até o final de suas reações possíveis.

O crítico Hélio Pólvora, quando da estréia de Sérgio Sant' Anna, tecia-lhe algumas restrições quanto à inconclusa dos climas que o escritor buscava criar, enquanto Assis Brasil acreditava haver boa situação dos flagrantes escolhidos pelo escritor. Seja como for, e a evolução da obra de Sérgio Santana bem o demonstrou, o escritor enveredou para' um caminho relativamente raro em nossa literatura, identificável a partir de O Alienista de Machado de Assis e que tem boa prática, hoje em dia, num escritor como Marcos Rey, que estudamos em outro capítulo deste volume, dedicado ao conto de costumes. Há qualquer coisa de "pícaro" nas personagens de Santana, até mesmo pela intensa mobilidade que — em especial nos romances — suas personagens experimentam, embora ao nível do enredo os espaços se fixem em diminutas porções, através de figuras arquetípicas, como observa Malcolm Silverman, para quem, ainda, "o autor mostra marcada preferência por uma linguagem espontânea, coloquial e fluente, que, em suas variações, é manejada de modo a refletir realisticamente as diversas índoles dos variados narradores-protagonistas".

Falecido recentemente, o caráter experimental da obra literária de Osman Lins coloca-o como figura excepcional em nossas letras. Ensaísta, dramaturgo, romancista, Osman Lins produziu apenas um livro de contos, com que estreava na literatura, Os Gestos (1957) e posteriormente Nove, Novena (1966), a que classificaria, generalizadamente, apenas como "narrativas".

Quando de sua estréia, Fausto Cunha queixava-se do excesso de "poeticidade" que seus contos apresentavam. Este aspecto seria mais tarde ampliado, o que levaria João Alexandre Barbosa a referir que Osman Lins "não conta: escreve. Mas, por este ato, cria um espaço em que se situa a fabulação. E faz surgir, então, a narrativa como se fora uma imposição inevitável decorrente do enlaçar-se e fundir-se das palavras, refundindo a indagações da sensibilidade ao encontro com a realidade. Daí, possivelmente, o caráter ornamenta da linguagem utilizada ( ... ) e que nos parece responder, por outro lado, a um princípio estrutural de extração de significados a partir da própria organização literária" .

"Um jogo refinado e um jogo em estado bruto a que se entrega o autor", ainda no dizer do mesmo crítico, nada se apresenta de maneira gratuita ou casual nesta literatura, até mesmo os títulos, como em Nove, Novena, em que se faz referência não apenas ao número de narrativas como ao elemento religioso — novena — que integra o ritual em seu contexto: "a todo o instante, Osman Lins procura buscar a gênese do homem, mobiliza as noções acerca da evolução da espécie, escora-se em explicações antropológicas para considerar a natureza mutável e transitiva do gênero humano", afirma Fábio Lucas em extenso estudo sobre o escritor. Para ele, "o autor cria e, ao mesmo tempo, se interroga acerca da linguagem, progride impulsionado por uma asa escondida — o talento, que, no caso, compete com o artesanato. A síntese, vai encontrá-la na velha arte egípcia, aquela de traços breves e dimensões monumentais", porque "enquanto cria tensões, alinha entre elas as indecisões do escritor, põe em questão a própria arte" .

Metatexto, neste sentido, seus contos "ambicionam apresentar um simultaneísmo de eventos, de diálogos, de cenários e de monólogos, tentando a instauração de tensões multipolarizadas. É a sua originalidade. A totalidade de cada conto é menos uma soma de diversos elementos vitais e técnicos do que a compactação de tudo em torno de conflitos que se repetem em níveis, contextos, instâncias e situações diferentes. Daí a multiplicação de recursos tipográficos para situar cada pólo em seu compartimento", ainda no dizer do mesmo crítico, que conclui: "A sucessão de monólogos indica apenas a mudança de ângulo visual pelo qual se filtra a relação humana nos seus diferentes índices de profundidade. ( ... ) Os diálogos perdem muito da função tradicional, pois são mais ilustrativos de situações, prolongamento de um conflito interior ( ... ); o jogo não é de palavras, mas crispação no plano da consciência, onde a linguagem procura inaugurar-se e compreender o destino do homem, investigar as origens humanas, a finalidade da existência".

Em depoimento realizado pouco antes de sua morte, indagado sobre o que entendia por "ficção", Osman Lins respondeu: "Acho ser a fixação, através da palavra escrita. e com ênfase na aparência das coisas, pelo autor decompostas e reorganizadas, de uma visão pessoal de mundo, não raro absurda e quase sempre insólita, que, no entanto. se confunde, sob a pressão do gênio do escritor, com o universo onde todos habitamos".

Por isso mesmo, tem razão Wendel Santos ao dizer que "não é a estória que conta, mas a forma da estória. Não tendo mais uma forma fixa de começo, meio e fim, a narrativa não permite, em momento nenhum, o repouso da percepção: suspensa, ela precisa descobrir o melhor modo de ir até o mundo. Tudo isso divide a consciência leitora, que fica indecisa entre o histórico e o meta-histórico", o que determina o nível de exigência no texto de Osman Lins: o que a narrativa exige é a aprendizagem da leitura aberta; da leitura que não se pretende fechar, pois sabe que a única realidade que se fecha, na existência do homem, é a realidade da morte" , afirmativa contra a qual, quem sabe, posicionar-se-ia Autran Dourado, mas que permite, em todo o caso, a Antonio Houaiss afirmar: "acabados, arredondados, cuidados, que sugerem, que impressionam, que podem, às vezes, ajudar a confiar — todos, aliás, colocando um problema ético ou filosófico de forma vivencial, excluído qualquer aparato técnico Explícito, a não ser aquele atribuído à personagem de que tal aparato possa derivar" (o crítico referia-se, evidentemente, ao primeiro livro do escritor), a verdade é que a obra de Osman Lins poderia ter ido bem mais além. E embora seus textos provoquem certa reação por parte dos leitores ainda presos ao folhetinesco romantizo, nem por isso são efetivamente tão complexos: seu vocabulário não foge ao comum, a psicologia de suas personagem é bastante acessível à nossa compreensão e, enfim, excluído o eventual aparato visual de alguns contos, os demais — mesmo numa primeira complexidade pela múltipla perspectiva das narrativas — amoldam-se à atenção do leitor, desde que este entenda estar a lidar com palavras que, fora do "estado de dicionário" a que se referiu o poeta, estarão sempre amplamente dispostas a ofertar a seu manipulador — escritor ou leitor — amplo chão de interpretações. Se o estilo é a casa do homem, como já se disse, o clima a ser criado pela palavra é o teto da "construção. E sob certa perspectiva, sua motivação.

(Extraído de Conto Brasileiro Contemporâneo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1981, 230 p.)

Fontes:
http://www.jornaldecontos.com/
imagem =
http://botecoliterario.wordpress.com

Almir Câmara (Caldeirão Literário da Bahia)



POUCO, MAS BASTANTE

As coisas boas que não conhecemos,
sabendo até que elas estão em vida,
de faltas suas não padeceremos
se a nossa alma estiver abastecida.

Não vale a pena a elas se ter acesso
se para consegui-las for preciso
sentir nosso conforto agora opresso,
pois tempo futuro é muito impreciso.

Feliz do ser que o pouco for bastante
para levar a vida que ele gosta
sem a riqueza ver muito importante.

Quem reputa o bastante muito pouco
de muita coisa boa se desgosta
e se consome num viver de louco.

(04/07/1989)
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O SABOR DA TRISTEZA

Nada pode ser tanto condolente
quanto ver a chorar um sofredor
que está cativo de uma grande dor
sem ver um só calor que lhe acalente.

Não, não há nada mais comovedor
do que assistir as lágrimas de um ente,
que está a sofrer uma dor ardente,
fluírem sem tirá-lo dessa dor.

Suas lágrimas são sangue incolor,
mas que deixa impressões de alto calor,
fazendo a gente chorar com certeza.

Elas têm o sabor da água do mar,
sabor que não dá para costumar,
pois é também o gosto da tristeza.

(18/07/1990)
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CONFERÊNCIAS AMARGAS

Tenho do meu rincão muita saudade,
mas só do tempo que eu era criança,
pois lá eu só vivi toda essa idade
e tudo ficou fixo na lembrança.

Hoje se vê por lá outra verdade,
tudo se transformou, houve mudança.
Por toda parte tudo é novidade.
Para mim não existe mais pujança.

As árvores antigas não há mais.
O povo mais velho, também jamais.
De amigos que deixei, só referências

Até seu rio não é mais o tal,
está sujo, doentio, não vital.
É triste fazer estas conferências.

(10/10/1990)
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ENDEREÇO DA FELICIDADE

Se é um endereço onde há felicidade
que você está tanto na procura,
não vá onde houver pompa com fartura
nem onde muito houver necessidade.

No primeiro lugar há corredura
para sempre se ter prosperidade,
enquanto no outro, que disparidade,
só manter-se vivo é carreira dura.

Investigue onde o pouco for bastante,
onde não haja inveja assinalada,
onde parar se possa algum instante,

onde valor ninguém dê a adereço
e onde a raiva ninguém veja instalada,
pois, com certeza, é lá esse endereço.

(12/10/1990)
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O HOMEM FELIZ

O homem feliz não é muito exigente.
No geral é de classe média baixa.
Não é considerado diligente,
mas sempre tem algum dinheiro em caixa.

Também não é julgado inteligente,
sua cultura é de pequena faixa,
mas todos o acham uma boa gente
e a amizade de todos, ele encaixa.

Muitas vezes eu fico-lhe observando
viver bem sem haver tanta exigência,
e nesse exame dou-lhe o grau distinto.

E assim, sem ganas, vai se conservando.
Pode não ser de grande inteligência,
porém é um racional de grande instinto.

(14/10/1990)
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CALÚNIA, ARMA DO MAL

Se tua ira algum dia aconselhar-te
fazer acusações falsas a alguém,
contém-te, nada inventes de ninguém,
ainda que se ponha a atrapalhar-te.

Defende-te com as armas só do bem,
usando-as com justiça e com muita arte,
mas a calúnia deixe bem à parte.
Ela atingirá tua alma também.

Se a vomitares, num lance cruel,
pedes logo desculpas da desfeita,
confessando que tu foste infiel.

Faças como o cachorro que retoma
sua vomição logo após a feita
e do mal sanarás seu hematoma.

(03-11-1990)
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Sobre o Autor
Almir Querino Câmara, filho de Antonio Querino Câmara e Maria Madalena Lemos Câmara, nasceu em Faisqueira, vila do Município de Ubaitaba, Bahia, em 16 de outubro de 1932. Reside em Vitória da Conquista, Bahia, desde maio de 1964. É casado com Heleusa Figueira Câmara, tem 4 filhos (Diana, Mônica, Danilo e Verônica) e 6 netos (Matheus, Heleusa, Raquel, Isaque, João Pedro e Leonardo).
Formado em engenharia civil em 11 de dezembro de 1958 pela Escola Politécnica da Universidade Federal da Bahia. Foi engenheiro da Prefeitura Municipal de Vitória da Conquista, Bahia de 16/03/1973 a 31/12/2005. É engenheiro credenciado da Caixa Econômica Federal desde maio de 1975.
Vem se dedicando a fazer versos rimados desde maio de 1989. Participou no livro Coletânia de Poesias, Volume I, da Usina de Letras, publicado em 2005

Fonte:
Antonio Miranda

Marli Savelli de Campos (A Personagem do Romance)



Quando lemos um romance, fica a impressão de uma série de fatos organizados em enredo e de personagens que vivem estes fatos. Enredo e personagem exprimem, ligados, os intuitos dos romances, a visão da vida que decorre dele, os significados e valores que o animam. Portanto os três elementos centrais de um desenvolvimento novelístico são: o enredo, a personagem e as idéias, que juntos formam um conjunto elaborado pela técnica, por isso são elementos inseparáveis nos romances bem realizados.

Um erro freqüente é pensar que o essencial do romance é a personagem, como se este pudesse existir separado das outras que lhe proporcionam vida. Pode-se dizer que, este é o elemento mais atuante, mas a construção estrutural é a maior responsável pela força e eficácia de um romance.

A personagem é um ser fictício, isto é, algo que, sendo uma criação da fantasia, comunica a impressão da mais lídima verdade existencial. É uma relação entre o ser vivo e o fictício que se concretiza através do personagem. Entre o ser vivo e a ficcção há tanto diferenças como afinidades e ambas são extremamente importantes para criar o sentimento de verdade que é a verossimilhança. Para isso é preciso uma investigação sumária sobre as condições de existência essencial do personagem, começando por descrever do modo mais empírico possível a nossa percepção do semelhante.

Os seres são por sua natureza misteriosos, inesperados, daí concluímos que a noção a respeito de um ser elaborada por outro ser, é sempre incompleta. Por isso, no romance, o escritor estabelece algo mais coeso, menos variável que é a lógica do personagem. Podemos dizer então que, embora mais lógica e fixa não seja mais simples do que o ser vivo. O personagem é complexo e múltiplo porque o romancista pode combinar os elementos de caracterização organizados segundo uma certa lógica de composição que cria a ilusão do ilimitado.

No romance moderno percebemos a complicação crescente da psicologia das personagens imposta pela necessidade de caracterização, tratando os personagens de dois modos principais:

Seres íntegros delimitáveis: marcados com certos traços que os caracterizam.
Seres complicados: não se esgotam nos traços característicos, podendo jorrar a cada instante o desconhecido e o mistério.

Na técnica de caracterização definem-se duas famílias de personagens: os personagens de costumes de Fielding, e os personagens de natureza de Richardson.

Personagens de Costume: são muito divertidos e podem ser compreendidos por um observador superficial. São caracterizados por personagens cômicos, pitorescos, sentimentais ou trágicos, dominados por uma característica invariável e desde logo revelada.

Personagens de Natureza: não são imediatamente identificáveis, é preciso mergulhar nos recursos do coração humano. A cada mudança do seu modo de ser, o autor precisa lançar mão de uma caracterização diferente, geralmente analítica e não pitoresca.

Em nossos dias, Forster retomou a distinção de modo mais sugestivo e amplo falando em personagens planas e personagens esféricas.

Personagens planas: eram chamadas “temperamentos”. São construídas em torno de uma única idéia ou qualidade, podendo ser expressa numa frase.

Personagens esféricas: é capaz de nos surpreender de maneira convincente; traz em si a imprevisibilidade da vida.

Forster também estabelece uma distinção pitoresca entre o personagem de ficção e a pessoa viva. É a comparação entre o Homo fictus e o Homo sapiens.O homo fictus é e não é equivalente ao homo sapiens, pois vive segundo as mesmas linhas de ação e sensibilidade, porém numa proporção e avaliação, diferentes.

Quando estabelecidas as características da personagem fictícia, surge um problema que Forster aborda: o personagem deve dar a impressão que vive, de que é como um ser vivo, para tanto, deve lembrar um ser vivo, isto é, manter relações com a realidade do mundo. E um personagem só nos parece real quando o romancista sabe tudo a seu respeito. É como se a personagem fosse inteiramente explicável e isto lhe dá uma originalidade maior que a vida.

Para François Mauriac, o grande arsenal do romancista é a memória, pois é dela que se extraem os elementos da invenção e isto confere acentuada ambigüidade aos personagens, pois não correspondem as pessoas vivas, mas nascem delas. Ele propõe uma classificação de personagens levando em conta o grau de afastamento em relação ao ponto de partida na realidade:

Disfarce leve do romancista como ocorre ao adolescente que quer exprimir-se.

Cópia fiel de pessoas reais que não constituem propriamente criações, mas reproduções.

Inventadas a partir de um trabalho tipo especial sobre a realidade, sendo esta um dado inicial, servindo para concretizar virtualidades imaginadas.

Tomando o desejo de ser fiel ao real como um dos elementos básicos na criação do personagem, podemos admitir que oscila entre dois pólos de idéias: transposição fiel de modelos e invenção totalmente imaginária. E é essa combinação variável que define cada romancista.

Baseando-se nos dois tipos polares acima referidos, podemos esquematizar, entre outros, do seguinte modo:

Personagens transpostas com relativa fidelidade de modelos dados ao romancista por experiência direta _ seja interior (incorpora a sua vivência, os seus sentimentos); seja exterior (Transposição de pessoas com os quais o romancista teve contato direto, como por exemplo: pai, mãe…)

Personagens transpostas de modelos anteriores, que o escritor reconstitui indiretamente _ por documentação ou testemunho, sobre os quais a imaginação trabalha.

Personagens construídas a partir de um modelo real, conhecido pelo escritor, que serve de eixo ou ponto de partida. O trabalho criador desfigura o modelo que, todavia se pode identificar.

Personagens construídas em torno de um modelo, direta ou indiretamente conhecido, mas que é apenas um pretexto básico, um estimulante para o trabalho de caracterização, que explora ao máximo as suas virtualidades por meio da fantasia, quando não as inventa de maneira que os traços da personagem resultante não poderiam, logicamente convir ao modelo.

Personagens construídas em torno de um modelo real dominante, que serve de eixo, ao qual vem juntar-se outros modelos secundários, tudo refeito e construído pela imaginação.

Personagens elaboradas com fragmentos de vários modelos vivos, sem predominância sensível de uns sobre outros, resultando uma personalidade nova.

Ao lado de tais tipos de personagens, cuja realidade pode ser traçada mais ou menos na realidade, é preciso assinalar aquelas cujas raízes desaparecem de tal modo na personagem fictícia resultante, que, ou não tem qualquer modelo consciente, ou os elementos eventualmente tomados à realidade não podem ser traçados pelo próprio autor.

Para finalizar, é possível dizer que a natureza da personagem depende em parte da concepção que preside o romance e das intenções do romancista e antes do mais, da função que exerce na estrutura do romance, do modo a concluirmos que é mais um problema de organização interna que à realidade exterior.

Cada traço adquire sentido em função de outro de tal modo que a verossimilhança, o sentimento da realidade, depende da unificação do fragmentário pela organização do contexto. Esta organização é o elemento decisivo da verdade dos seres fictícios, o princípio que lhes infunde vida, calor e o faz parecer mais coesos, mais apreensíveis e atuantes do que os próprios seres vivos.

Fontes:
- CANDIDO, Antonio. A personagem de Ficção. 3º edição. São Paulo. Perspectiva, 19
- http://mscamp.wordpress.com/a-personagem-do-romance/

Anton Tchekhov (A Aposta)


I

Era uma noite escura de outono. O velho banqueiro media a passadas o seu gabinete e recordava como, quinze anos atrás, no outono, dera uma festa. Nessa reunião estivera muita gente inteligente e houvera muitas conversas interessantes. Entre outros assuntos, falara-se da pena de morte. Os convidados, entre os quais havia não poucos sábios e jornalistas, na sua maioria tinham uma atitude negativa para com a pena de morte. Achavam esse método de punição obsoleto, impróprio para os Estados cristãos e imoral. A opinião de alguns deles era que a pena de morte deveria ser definitivamente abolida e substituída pela prisão perpétua.

— Não estou de acordo — disse o banqueiro, dono da casa. — Nunca experimentei nem a pena de morte nem a prisão perpétua, mas, se é possível julgar a priori, a minha opinião é que a pena de morte é mais moral e mais humana do que a prisão. A execução mata duma vez, ao passo que a prisão perpétua mata aos poucos. Que carrasco é, pois, mais humano — aquele que mata de repente ou o que arranca a vida no decorrer de muitos anos?

— Tanto uma coisa como outra são igualmente imorais — observou um dos convidados —, porque ambas têm a mesma finalidade — tirar a vida. O Estado não é Deus. Não tem o direito de tirar aquilo que não pode devolver, se quiser.

Entre os convidados estava um jurista, jovem de uns vinte e cinco anos. Quando lhe perguntaram a sua opinião, ele disse:

— Tanto a pena de morte como a prisão perpétua são igualmente imorais, mas, se me oferecessem a escolha entre a morte e a prisão perpétua, eu certamente escolheria a segunda. Viver de qualquer maneira é melhor do que não viver de todo.

Começou uma discussão animada. O banqueiro, que era então mais jovem e mais nervoso, súbito ficou fora de si, deu um murro na mesa e gritou para o jovem advogado:

— Não é verdade! Aposto dois milhões que o senhor não agüentaria numa cadeia nem cinco anos.

— Se o senhor fala sério — respondeu-lhe o advogado —, eu aposto que posso agüentar a prisão não por cinco, mas por quinze anos!

— Quinze? Aceito! — gritou o banqueiro. — Senhores, eu ponho na mesa dois milhões!

— De acordo! O senhor põe dois milhões, e eu, a minha liberdade! — disse o jurista.

E essa aposta selvagem e insensata realizou-se! O banqueiro, que naquele tempo não tinha conta dos seus milhões, mimado e leviano, estava encantado com a aposta. Durante a ceia, ele pilheriava com o jurista e dizia:

— Caia em si, jovem, enquanto ainda não é tarde. Para mim, dois milhões são uma ninharia, mas o senhor se arrisca a perder três ou quatro dos melhores anos de sua vida. Eu digo três ou quatro, porque o senhor não agüentará mais do que isso. Não esqueça tampouco, infeliz, que a prisão voluntária é muito mais penosa do que a compulsória. O pensamento de que, a cada momento, o senhor pode sair para a liberdade vai lhe envenenar toda a existência na prisão. Eu tenho pena do senhor!

E, agora, o banqueiro, andando dum lado para outro, recordava tudo isso e se perguntava:

— Para que foi essa aposta? Qual era o proveito disso? O jurista perdeu quinze anos de sua vida, e eu jogo fora dois milhões? Será que isso poderá provar aos outros que a pena de morte é pior ou melhor que a prisão perpétua? Não e não — é tolice e insensatez. De minha parte, isso foi um capricho de homem enfastiado, e, da parte do jurista, nada mais que avidez de dinheiro...

E ele continuou recordando o que aconteceu depois da famosa noitada. Ficou resolvido que o advogado passaria a sua reclusão, sob a mais severa vigilância, numa das alas construídas no jardim do banqueiro. Combinou-se que, no decorrer de quinze anos, ele ficaria privado do direito de atravessar a soleira da sua ala, de ver gente, ouvir vozes humanas e receber cartas e jornais. Permitiu-se que ele possuísse um instrumento musical, lesse livros, escrevesse cartas, tomasse vinho e fumasse. Pelo trato, suas comunicações com o mundo exterior poderiam ser apenas mudas, através de uma janelinha especialmente construída para esse fim. Tudo aquilo de que precisasse, livros, notas musicais, vinho e o resto, ele receberia, por intermédio de bilhetes, em qualquer quantidade, mas somente pela janelinha. O contrato previa todos os detalhes e minúcias, que faziam a reclusão rigorosamente solitária, e obrigava o advogado à permanência de quinze anos exatos, das doze horas de 14 de novembro de 1870 até às doze horas de 14 de novembro de 1885. A menor tentativa, da parte do jurista, de quebrar qualquer das condições, ainda que dois minutos antes do término do prazo, libertava o banqueiro da obrigação de pagar-lhe os dois milhões.

Durante o primeiro ano o jurista, conforme se podia julgar pelos seus lacônicos bilhetes, sofreu muito da solidão e do tédio. Da sua ala, constantemente, dia e noite, ouviam-se os sons do piano. Ele recusou o vinho e o tabaco. O vinho, escrevia ele, excita os desejos, e os desejos são os primeiros inimigos do prisioneiro; além disso, não existe nada mais aborrecido do que tomar bom vinho sem ver ninguém. Quanto ao tabaco, poluía o ar do seu quarto. No primeiro ano, mandaram-lhe livros, de preferência de conteúdo leve: romances com complicadas intrigas amorosas, contos policiais e fantásticos, comédias, etc.

No segundo ano, a música silenciou na ala, e o jurista, nos seus bilhetes, exigia somente os clássicos. No quinto ano, novamente ouviu-se música, e o prisioneiro pediu vinho. Aqueles que o observavam através da janelinha diziam que todo esse ano ele só comia, bebia e ficava deitado na cama, bocejava muito e falava consigo mesmo, em tom irado. Não lia livros. Às vezes, durante a noite, ele se punha a escrever, escrevia longamente e, pela madrugada, rasgava em pedaços tudo o que escrevera. Mais de uma vez ouviram-no chorar.

No sexto ano de reclusão, o prisioneiro dedicou-se com afinco ao estudo de línguas, filosofia e história. Ele se entregou a esses estudos com tamanha avidez, que o banqueiro mal tinha tempo de fazer vir os livros necessários. No decorrer de quatro anos, por exigência do prisioneiro, foram importados cerca de seiscentos volumes. No período dessa paixão, o banqueiro recebeu, entre outras, esta carta:

“Meu caro carcereiro! Escrevo-lhe estas linhas em seis idiomas. Mostre-as a pessoas competentes, para que as leiam. Se não encontrarem nem um erro, peço-lhe encarecidamente que mande dar um tiro de espingarda no jardim. Esse tiro me informará que os meus esforços não foram vãos. Os gênios de todos os séculos e países falam línguas diversas, mas em todos eles arde a mesma chama. Oh, se soubesse que inefável felicidade experimenta hoje a minha alma porque agora eu os posso compreender!” O desejo do prisioneiro foi atendido. O banqueiro mandou dar dois tiros de espingarda no jardim.

Mais tarde, depois do décimo ano, o jurista ficou sentado, imóvel, à mesa, e lia somente o Evangelho. Parecia estranho ao banqueiro que um homem que assimilara em quatro anos seiscentos tomos eruditos gastasse um ano inteiro na leitura de um único livro, de fácil compreensão e pouca espessura. Depois do Evangelho, vieram a história das religiões e a teologia.

Nos últimos dois anos de reclusão, o encarcerado leu em quantidade enorme, sem nenhum critério. Ora ele se ocupava de ciências naturais, ora exigia Byron ou Shakespeare. Havia bilhetes seus em que pedia que lhe mandassem simultaneamente uma obra de química, um compêndio de medicina, um romance e um tratado de filosofia ou de teologia. Suas leituras semelhavam algo como se ele, boiando no mar entre os destroços de um navio naufragado e querendo salvar sua vida, se agarrasse convulsivamente ora a um destroço, ora a outro!

II

O velho banqueiro relembrava tudo isso e pensava:

“Amanhã às doze horas ele recuperará a liberdade. Pelo contrato, eu terei de lhe pagar dois milhões. Se eu pagar, tudo estará perdido — eu estarei definitivamente arruinado”.

Quinze anos atrás ele não tinha conta dos seus milhões, mas agora tinha medo de se perguntar o que tinha mais: dinheiro ou dívidas? Jogadas imprudentes na Bolsa, especulações arriscadas e a impulsividade, da qual ele não conseguira se libertar nem mesmo na velhice, pouco a pouco minaram os seus negócios, e o ricaço orgulhoso, destemido e auto-suficiente transformou-se num banqueiro de categoria mediana, que tremia a cada alta ou baixa das ações.

— Maldita aposta — balbuciava o velho, apertando cabeça, em desespero. Por que esse homem não morreu? Ainda está com quarenta anos apenas. Ele me tirará os últimos recursos, casar-se-á, gozará a vida, jogará na Bolsa, e eu, como um mendigo, ficarei a olhá-lo com inveja e a ouvir dele, todos os dias, a mesma frase: “Eu lhe devo toda a felicidade da minha vida, permita-me que o ajude!” Não, isso é demais! A minha única salvação da bancarrota e da vergonha é a morte desse homem!

Soaram as três horas. O banqueiro ficou atento: na casa todos dormiam e só se ouvia, atrás das janelas, o farfalhar das árvores friorentas. Procurando não fazer nenhum ruído, ele tirou do cofre-forte a chave da porta que não fora aberta durante quinze anos, vestiu o capote e saiu da casa.

O jardim estava escuro e frio. Chovia. Um vento áspero e gelado uivava no jardim e não dava sossego às árvores. O banqueiro forçava a vista, mas não conseguia distinguir nem a terra, nem as alvas estátuas, nem a ala, nem as árvores. Aproximando-se do lugar onde ficava a ala, ele chamou o guarda por duas vezes. Não houve resposta. Decerto, o guarda se abrigara do mau tempo e agora dormia em algum canto da cozinha ou do caramanchão.

“Se eu tiver coragem suficiente para executar o meu plano”, pensou o velho, “as primeiras suspeitas recairão sobre o guarda.”

Ele encontrou, tateando no escuro, os degraus e a porta, e entrou no vestíbulo da ala; depois, tateando sempre, entrou no pequeno corredor e acendeu um fósforo. Ali não se via vivalma. Havia uma cama sem colchão e, num canto, a mancha escura de uma estufa de ferro. Os lacres da porta que dava para o quarto do prisioneiro estavam intactos.

Quando o fósforo se apagou, o velho, tremendo de emoção, espiou pela janelinha.

No quarto do prisioneiro ardia a chama baça de uma vela. Ele mesmo estava sentado diante da mesa. Só se viam as suas costas, os cabelos e as mãos, Sobre a mesa, nas duas poltronas e no tapete junto à mesa, espalhavam-se livros abertos.

Cinco minutos transcorreram sem que o prisioneiro se mexesse uma só vez... Quinze anos de reclusão tinham-no ensinado a permanecer perfeitamente imóvel. O banqueiro bateu na janelinha, e o prisioneiro não respondeu às batidas com um movimento que fosse. Então o banqueiro arrancou, com cuidado, os lacres da porta e introduziu a chave no buraco da fechadura. A fechadura enferrujada emitiu um som rouco e a porta rangeu. O banqueiro esperava que imediatamente se ouvisse uma interjeição de espanto e passos, mas transcorreram uns três minutos e atrás da porta tudo continuava silencioso como antes. Ele decidiu-se a penetrar no quarto.

Diante da mesa estava sentado um homem que não se parecia com os homens comuns. Era um esqueleto coberto de pele, com longos cachos femininos e barba hirsuta. Sua tez era amarela, com matizes terrosos, as faces encovadas, as costas longas e estreitas, e a mão que sustentava a cabeça descabelada era tão fina e magra que dava arrepios olhar para ela. Nos seus cabelos já brilhavam fios de prata e, olhando o seu rosto encovado de velho, ninguém acreditaria que ele tinha apenas quarenta anos. Ele dormia... Diante da sua cabeça inclinada, na mesa, estava uma folha de papel, na qual estava escrita alguma coisa em letra miúda.

“Homem lamentável!”, pensou o banqueiro. “Dorme e, decerto, sonha com os seus milhões! E, no entanto, basta que eu segure esse semimorto, atire-o na cama, abafe-o de leve com o travesseiro, e a mais minuciosa diligência policial não encontrará sinal algum de morte violenta. Mas leiamos primeiro o que ele escreveu aí...”

O banqueiro apanhou o papel da mesa e leu o seguinte:

“Amanhã às doze horas eu receberei a liberdade e o direito de comunicação com os meus semelhantes. Mas, antes de deixar este quarto e rever o sol, julgo necessário dizer-vos algumas palavras. Em sã consciência e diante de Deus, que me vê, eu vos declaro que desprezo a liberdade, a vida, a saúde, e tudo aquilo que nos vossos livros é chamado de bens da vida.

“Durante quinze anos estudei atentamente a vida terrena. É verdade que eu não via a terra e os homens, mas, nos vossos livros, sorvia vinhos aromáticos, entoava canções, caçava nos bosques cervos e porcos selvagens, amava mulheres... Beldades, leves como nuvens, criadas pela magia dos vossos poetas geniais, visitavam-me de noite e me sussurravam contos encantados que embriagavam a minha mente. Nos vossos livros, eu escalava cumes do Elbruz e do monte Branco e via de lá como nascia o sol de madrugada e, ao anoitecer, como ele inundava o firmamento, o oceano e os cumes das montanhas de ouro rubro; eu via de lá os relâmpagos fendendo as nuvens por cima da minha cabeça; eu via os campos verdejantes, os rios, os lagos, as cidades, ouvia o canto das sereias e a música das flautas dos pastores, sentia as asas de formosos demônios que vinham conversar comigo a respeito de Deus... Nos vossos livros, eu mergulhava em abismos sem fundo, fazia milagres, matava, queimava cidades, pregava novas religiões, conquistava reinos inteiros...

“Os vossos livros deram-me sabedoria. Tudo aquilo que a infatigável mente humana criou durante séculos está comprimido no meu cérebro num pequeno novelo. Eu sei que sou mais sábio do que todos vós. E eu desprezo os vossos livros, desprezo todos os bens terrenos e a sabedoria. Tudo é mesquinho, perecível, espectral e ilusório, como a miragem. Podeis ser orgulhosos, sábios e belos, mas a morte vos apagará da face da terra, assim como às ratazanas, e a vossa descendência, a vossa história, a imortalidade dos vossos heróis serão congelados ou queimados junto com o globo terrestre.

“Vós enlouquecestes e tomastes o caminho errado. Tomais a mentira pela verdade e a deformidade pela beleza. Vós ficaríeis admirados se, em conseqüência de circunstâncias imprevistas, nascessem, nas macieiras e laranjeiras, em vez de maçãs e laranjas, sapos e lagartixas, ou se as rosas de repente começassem a exalar odores de cavalo suado. Assim eu me admiro de vós, que trocastes o céu pela terra. Não vos quero compreender.

“Para demonstrar-vos na prática o meu desprezo para com tudo o que é a vossa vida, renuncio aos dois milhões com os quais sonhei em outros tempos como se fossem o paraíso que hoje eu desdenho. Para me privar do direito a eles, sairei daqui cinco horas antes do prazo combinado e, desse modo, quebrarei o trato...”

Tendo lido isso, o banqueiro repôs a folha na mesa, beijou a cabeça do estranho homem e, chorando, saiu da ala. Nunca antes, em tempo algum, mesmo após uma perda pesada na Bolsa, ele sentira por si mesmo um desprezo tamanho, como naquele momento. Chegando em casa, ele se deitou na cama, mas a emoção e as lágrimas não o deixaram adormecer...

No dia seguinte de manhã os guardas vieram correndo, pálidos, e lhe comunicaram que tinham visto o homem que vivia na ala se esgueirar pela janela para o jardim, dirigir-se para o portão e desaparecer. O banqueiro dirigiu-se imediatamente para a ala e, diante dos criados, constatou a fuga do seu prisioneiro. Para não dar azo a comentários supérfluos, tirou da mesa o papel com a renúncia e, voltando para o seu gabinete, trancou-o no cofre-forte.

Fontes:
- TCHEKHOV, Anton. O malfeitor e outros contos da Velha Rússia. RJ: Ediouro.

Lygia Fagundes Telles (Seminário dos Ratos)



Seminário dos ratos, é um conto de Lygia Fagundes Telles, e está também presente no livro de mesmo nome. Neste conto a autora também rompe com a realidade e com a lógica racional.

Enredo

Conto em terceira pessoa que apresenta uma alegoria de nossas estruturas político-burocráticas. Trata-se de ratos, pequenos e temerosos roedores, numa treva dura de músculos, guinchos e centenas de olhos luzindo negríssimos, que invadem e destróem uma casa recém restaurada localizada longe da cidade. Ali aconteceria um evento denominado VII Seminário dos Roedores, uma reunião de burocratas, sob a coordenação do Secretário do Bem-Estar Público e Privado, tendo como assessor o Chefe de Relações Públicas. O país fictício encontra-se atravancado pela burocracia, invertendo-se a proporção dos roedores em relação ao número de homens: cem por um.

O conto aparece em livro homônimo, no ano de 1977, época em que o Brasil se encontrava em um momento histórico de repressão política. No trabalho gráfico da capa da primeira edição do livro Seminário dos ratos, aparecem dois ratos empunhando estandartes com bandeiras à frente de uma figura estilizada – uma espécie de monstro com coroa, um rei no trono, a ser destronado pelos animais?

O próprio nome do conto "Seminário dos ratos" já causa uma inquietação. Um seminário evoca atividade intelectual, local de encontro de estudos, possuindo etimologicamente mesma raiz de semente/sementeira – local para germinar novas idéias. Também traz uma ambigüidade: seminário no qual se discutirá a problemática dos ratos, ou seminário no qual os ratos serão participantes? Essa questão ficará em aberto ao final do conto. A narrativa é introduzida através de uma epígrafe – versos finais do poema "Edifício Esplendor" de Carlos Drummond de Andrade (1955) - da qual já emana um clima de terror, em que os ratos falam, humanizados pelo poeta: Que século, meu Deus! – exclamaram os ratos e começaram a roer o edifício. A imagem evocada por este verso já traz um efeito em si, remetendo à história de homens sem alma e a construções sem sentido, que não vale a pena conservar, condensando uma perplexidade frente a situações paradoxais daquele século surpreendente. O nome "esplendor" no título do poema é uma ironia, visto que o edifício descrito pelo poeta é pura decadência.

O espaço privilegiado no relato é um casarão do governo, espécie de casa de campo afastada da cidade, recém-reconstruída especialmente para a realização do evento. Portanto, o seminário aconteceria em uma casa de ambiente acolhedor, longe de temidos inimigos como insetos ou pequenos roedores, equipada com todo o conforto moderno: piscina de água quente, aeroporto para jatinhos, aparelhos eletrônicos de comunicação, além de outras comodidades e luxos. A narrativa fantástica transcorre neste cenário insólito com protagonistas ambivalentes que carecem de nomes próprios. Até mesmo os acontecimentos e seus indícios nesta representação espacial transmitem uma sensação ameaçadora ao leitor. A intenção política fica atestada nesta escolha da mansão restaurada no campo, evidenciando um plano físico/espacial expandido ao psicológico: distante, porém íntimo para quem lá está. Embora o processo psicologizante seja lento, a total e inevitável destruição ao final é completamente bem-sucedida.

A primeira personagem apresentada no conto é o Chefe das Relações Públicas, um jovem de baixa estatura, atarracado, sorriso e olhos extremamente brilhantes, que se ruboriza facilmente e possui má audição. Ele pede permissão, através de batidas leves na porta para entrar na sala do Secretário do Bem Estar Público e Privado, a quem chama de Excelência – homem descorado e flácido, de calva úmida e mãos acetinadas [...] voz branda, com um leve acento lamurioso. O jovem chefe encontra o secretário com o pé direito calçado, e o outro em chinelo de lã, apoiado em uma almofada, e bebendo um copo de leite. Curiosamente, a personagem do jovem chefe é a única que sobreviverá ao ataque dos ratos, restando ao final da história para contá-la.

As personagens desse conto são nomeadas através de suas ocupações profissionais e cargos hierárquicos, havendo portanto uma focalização proposital nos papéis sociais. Também nesse primeiro momento, há descrição pormenorizada do físico das personagens já apresentadas, que levam a inferências sobre aspectos psicológicos, que permitem conhecer a interioridade.

No caso destas duas personagens, parece que ambos não têm contato com seus selves, nem com o inconsciente. Elas não se apoderam de si mesmas: não está em contato consigo mesma, mas com sua imagem refletida. As individualidades do chefe e do secretário encontram-se completamente confundidas com o cargo ocupado, resultando num estado de inflação, num papel social representado, longe da essência de seus núcleos humanos e de suas sensibilidades. A ênfase dada à ocupação e ao cargo da primeira personagem mostra que se trata do responsável pela coordenação dos assuntos que dizem respeito ao relacionamento com o público em geral. Em outras palavras, sua função está ligada aos tópicos referentes à mídia, à comunicação com o coletivo.

Esta primeira cena do conto já remete a uma dualidade que acentua oposições: embora seja o responsável pelo bem-estar coletivo, o secretário sofre de um mal-estar individual, pois tem uma enfermidade que ataca seu pé - a gota - em cujas crises seu sentido da audição também se aguça. Cria-se uma figura contraditória: um secretário do bem-estar que se encontra mal.

A narrativa apresenta a divisão da unicidade física e psíquica desta personagem, que já vem nomeada com esta cisão de forças antagônicas: o público e o privado. Este índice já pertence ao duplo – um pé esquerdo doente – que desvela a cisão em que se encontra o secretário. Embora aparentemente restrita ao nível físico, há uma divisão da unidade psíquica também. No outro dia ele calçará os sapatos, para aparecer "uno" diante do mundo externo. Através do discurso, revela-se uma bivocalização, uma relação de alteridade, uma interação da voz de um eu com a voz de um outro. Este diálogo que se estabelece entre os dois acontece com um pano de fundo: a crise de artrite que acomete o secretário. A partir deste momento, estabelece-se uma ênfase acentuada nesta parte-sustentáculo do corpo humano, enfermo na personagem. Ao receber em chinelos seu subordinado – que, também detém um cargo de chefia – ele revela sua intimidade, denunciando sua deficiência física e tornando-se vulnerável. Confessa que fará o sacrifício de calçar sapatos, porque não deseja apresentar-se assim aos demais convidados. Dessa forma, o secretário encontra-se destituído de um dos símbolos de sua autoridade: os sapatos.

No conto, o fato de o secretário estar com a saúde do pé abalada, e não poder se locomover (a não ser de chinelos) nem calçar sapatos, parece significar justamente não poder gozar de sua plena autoridade. É uma pessoa fragilizada, com limitações expostas, cuja "persona" não está sintonizada com o exigido, além de beber leite, alimento relacionado com a infância.

Na continuação da conversa, o secretário solicita notícias sobre o coquetel que ocorrera à tarde, ao que o Chefe das Relações Públicas responde ter sido bem-sucedido, pois havia poucas pessoas, só a cúpula, ficou uma reunião assim aconchegante, íntima, mas muito agradável. Continua informando em que alas e suítes estão instalados os convidados: o Assessor da Presidência da RATESP na ala norte, o Diretor das Classes Conservadoras Armadas e Desarmadas na suíte cinzenta, a Delegação Americana na ala azul. Complementa dizendo que o crepúsculo está deslumbrante, dando indícios do tempo cronológico do conto, que transcorre entre um entardecer e um alvorecer: o ciclo de uma noite completa. A conversa inicia quase às seis horas, indicando um momento de passagem, de transição entre a luz/claridade e a noite, quando a consciência vai pouco a pouco dando lugar ao mundo da escuridão, do inconsciente. Como bem assinala Franz: ...a hora do poente pode ser interpretada como dormir, o apagar-se da consciência.

O secretário solicita explicações sobre a cor cinzenta escolhida na suíte do diretor das classes, por sua vez representando também uma síntese de contrários, e o jovem Relações Públicas explica os motivos de suas escolhas para distribuir os participantes. Depois indaga se o secretário por acaso não gosta da cor cinza, ao que ele responde com uma associação, lembrando tratar-se da cor deles. Rattus alexandrius.

O secretário os chama pelo nome latino, o que sugere um artifício para minimizar a gravidade da situação. Aqui é trazida uma perspectiva polarizada: norte-sul. Entre as duas, uma zona cinzenta. É interessante perceber que o ocupante desta área tem uma responsabilidade contraditória de defender as classes conservadoras com as forças armadas e com as forças desarmadas. No conto, a cor da suíte que lhe é destinada – cinzenta - remete a algo que não é preto nem branco, mas à mescla destas duas cores, como se faltasse uma definição na cor e nas forças que utiliza.

No prosseguimento da conversa entre ambos, o secretário confessa ter sido contrário à indicação do americano, argumentando que, se os ratos são pertencentes ao país, as soluções devem ser caseiras, ao que o chefe objeta ser o delegado um técnico em ratos. Fica evidente a posição política contrária à intervenção americana no país, principalmente porque na época havia suspeitas de que agentes americanos especializados em repressão política vinham ao Brasil treinar torturadores. O secretário aproveita para indicar ao jovem chefe (que está sendo orientado, pois é um candidato em potencial) uma postura de positividade diante dos estrangeiros, devendo esconder o lado negativo dos fatos: mostrar só o lado positivo, só o que pode nos enaltecer. Esconder nossos chinelos. Aqui a personagem expõe sua visão de mundo, suas relações consigo mesmo e com o mundo externo - aspectos que são motivo de orgulho e envaidecimento devem ser mostrados, porém aspectos da psique individual e coletiva que envergonhem e representam dificuldades não. Em outras palavras: o mundo da sombra deve ser escondido.

No discurso sobre as aparências, a personagem relaciona os ratos com os pés inchados e com os chinelos. O aspecto que estes três elementos têm em comum é que são todos indesejáveis para a personagem: o rato, pela ameaça da invasão, epidemia e destruição (além de prejudicarem sua gestão e pôr em dúvida sua competência de zelar pelo bem-estar coletivo), o pé enfermo por denunciar sua deficiência física, e os chinelos, finalmente, por revelarem um status inferior, uma espécie de destituição de seu poder. Também não agrada ao secretário saber que o americano é um especialista em jornalismo eletrônico, solicitando ser informado sobre todas as notícias veiculadas a esse respeito na imprensa a partir dali. Já se encontram no sétimo seminário e ainda não solucionaram o problema dos roedores, porém não desejam ajuda estrangeira. O jovem Relações Públicas conta que a primeira crítica levantada fora a própria escolha do local para o seminário – uma casa de campo isolada -, e a segunda questão se referia aos gastos demasiados para torná-la habitável: tem tanto edifício em disponibilidade, que as implosões até já se multiplicam para corrigir o excesso. E nós gastando milhões para restaurar esta ruína....

O chefe continua relatando sobre um repórter que criticou a medida do governo e este torna-se alvo do ataque dos dois homens: estou apostando como é da esquerda, estou apostando. Ou, então, amigo dos ratos, diz o secretário. Franz sublinha que a sombra, o que é inaceitável para a consciência, é projetada num oponente, enquanto a pessoa se identifica com uma auto-imagem fictícia e com o quadro abstrato do mundo oferecido pelo racionalismo científico, algo que provoca uma perda constantemente maior do instinto e, em especial, uma perda do amor ao próximo, tão necessário ao mundo contemporâneo.

Entretanto, o jovem chefe salienta a cobrança de resultados por parte da mídia. Acentua que, na favela, as ratazanas é que andam de lata d’água na cabeça e reafirma ser uma boa idéia a reunião se realizar na solidão e ar puro da natureza no campo. Nesta primeira afirmação, percebe-se uma total falta de sensibilidade, empatia, solidariedade e humanidade para com os favelados: tanto faz que sejam as Marias ou as ratazanas que precisem carregar latas d’água na cabeça. Esta parte do conto é reforçada pela citação supracitada. Neste momento, o secretário ouve um barulho tão esquisito, como se viesse do fundo da terra, subiu depois para o teto... Não ouviu mesmo?, porém o jovem relações públicas nada ouve. O secretário encontra-se tão paranóico com a questão dos ratos e do seminário, que desconfia da possibilidade de um gravador estar instalado veladamente, talvez da parte do delegado americano. O relações públicas conta ainda que o assessor de imprensa sofrera um pequeno acidente de trânsito, estando com o braço engessado.

No prosseguimento da conversa, um ato falho do secretário faz confundir braço com perna quebrada. Franz faz ver que os braços são em geral os órgãos de ação e as pernas nossa postura na realidade. O jovem chefe diz que o assessor de imprensa dará as informações pouco a pouco por telefone, mas que virão todos ao final, para o que ele denomina "uma apoteose". A tradução do texto latino Finis coronat opus, ou seja, "o fim coroa a obra", evidencia que para ele não importam os meios. Denuncia-se desse modo a falta de princípios éticos das personagens. O secretário confessa se preocupar com a incomunicabilidade, preferindo que os jornalistas ficassem mais perto, ao que o jovem assessor contra-argumenta que a distância e o mistério valorizam mais a situação. A preocupação da personagem é com o mundo externo, com os meios de comunicação, com as boas notícias, mesmo que inverídicas. Entretanto, permanece incomunicável com seu mundo interno, não lhe dando atenção.

O secretário pede inclusive para seu assessor inventar que os ratos já estão estrategicamente controlados. Fica evidenciada no diálogo a manipulação da informação, principalmente na vocalização do chefe: [...] os ratos já se encontram sob controle. Sem detalhes, enfatize apenas isto, que os ratos já estão sob inteiro controle. Além disso, aqui são visíveis os mecanismos da luta pelo poder: o binômio mandante/poder – executor/submissão representa parte de um sistema sócio-político explorador e falso, prevalecendo a atitude de ludibriar.

Novamente, o secretário chama a atenção para o barulho que aumenta e diminui. Olha aí, em ondas, como um mar... Agora parece um vulcão respirando, aqui perto e ao mesmo tempo tão longe! Está fugindo, olha aí..., mas o chefe das relações públicas continua a não escutar. A comparação com forças poderosas e potencialmente destrutivas da natureza mostram o quanto ele estava apreensivo. O barulho desconhecido e esquisito que persegue o secretário aparece como uma ameaça severa, como se algo já existente em potencial estivesse por acontecer.

O secretário afirma que escuta demais, devo ter um ouvido suplementar. Tão fino. e que é o primeiro a ter premonições quando coisas anormais acontecem, evocando sua experiência na revolução de 32 e no golpe de 64. Esta verbalização aponta indícios de que a sede do sétimo seminário é o Brasil, ao menos como inspirador do país ficcional do texto. No entanto, o cenário é ampliado para a América do Sul, com o uso repetido do termo "bueno" pelo jovem assessor, em várias de suas vocalizações, e o nome da safra do vinho, mais adiante analisado. Respira-se uma atmosfera latina em função disto. Em geral há um tom de tragédia, típico da simbologia isomorfa das trevas.

O jovem assessor lança um olhar suspeitoso sobre uma imagem de bronze: aqui aparece, sob a forma de uma estatueta – da justiça – uma figura feminina no conto: tem os olhos vendados, empunha a espada e a balança. Desta, um dos pratos está empoeirado, novamente numa alusão à situação de injustiças em que vive o país. A balança é o elemento mais evidenciado da imagem, como se estivesse em primeiro plano. Através dessa alegoria, há como um convite para refletir sobre as diferentes polaridades que se evidenciam, já que se trata de um instrumento que serve para medir e pesar o equilíbrio de duas forças que se colocam em pratos opostos: bem estar x mal estar, pé sadio x doente, ratos x governo, mansão x ruína.

Os dualismos apontados acabam por sintetizar uma confrontação simbólica entre homens e animais, entre racionalidade e irracionalidade. A espada é o símbolo por excelência do regime diurno e das estruturas esquizomorfas. A arma pode representar a reparação e o equilíbrio entre o bem e o mal. No tecido do conto, a imagem da espada nas mãos da justiça adquire sentido de separação do mal. Neste conto, a correspondência das situações e personagens apresentadas corrobora uma significação dualista, através do uso de antíteses pela escritora.

Somente então o secretário faz menção ao pé enfermo, usando o termo "gota" pela primeira vez na narrativa.

E o jovem assessor de imediato canta Pode ser a gota d’água! Pode ser a gota d’água!, estribilho da canção popular do compositor Chico Buarque de Holanda, na época um crítico dos fatos políticos do país. A associação musical do chefe parece não agradar ao secretário. O jovem chefe defende-se, dizendo ser uma música cantada pelo povo, ao que o secretário aproveita a deixa para declarar que só se fala em povo e no entanto o povo não passa de uma abstração [...] que se transforma em realidade quando os ratos começam a expulsar os favelados de suas casas. Ou roer os pés das crianças da periferia. O secretário complementa que quando a "imprensa marrom" começa a explorar o fato, aí "o povo passa a existir".

Na afirmação de que o povo não existe enquanto realidade, o secretário parece ser um secretário mais para privado do que para público, porém é forçado a reconhecer o povo quando suas mazelas e infortúnios aparecem nos jornais, expostos em manchetes, o que muito abomina.

Na rede de intertextualidade do Seminário dos ratos, a alusão à canção "Gota d’água" completa uma série de referências presentes no conto a poetas brasileiros: Carlos Drummond de Andrade, Chico Buarque de Holanda, Vinícius de Moraes, presentes no texto. Poderíamos contar ainda com a presença da letra de "Lata d’água", música de carnaval tipicamente brasileira. É como se a narrativa quisesse enfatizar as coisas boas do país, em contraponto com a situação política vigente.

Outra teia intertextual possível é o conto de fadas O flautista de Hamelin: a personagem-título livra a população da peste dos ratos apenas com sua música. A condução/expulsão dos ratos para longe é um contraponto ao texto de Lygia, que, por sua vez, trata da chegada de ratos.

O secretário lembra também que no Egito Antigo, resolveram esse problema aumentando o número de gatos, ao que o assessor responde que aqui o povo já comera todos os gatos, ouvi dizer que dava um ótimo cozido!, em uma resposta claramente irônica, aludindo ao fato de que o povo estaria esfaimado a ponto de comer carne de gato.

Com o escurecer, o jovem relações públicas recorda que o jantar será às oito horas, e a mesa estará decorada com a cor local: orquídeas, frutas, abacaxi, lagostas, vinho chileno. O preparo cuidadoso e aparência requintada do alimento não o afastará de ao final tornar-se comida dos animais. Aqui aparece outro fio intertextual – com a política de outro país da América do Sul, o Chile - pois na narração o nome da safra do vinho é Pinochet, referência explícita ao ditador na época da publicação do conto, recentemente julgado por seus atos.

O ruído retorna de forma bem mais forte: agora o relações públicas identifica-o, levantando-se de um salto. Aparece a satisfação do secretário ao ver confirmadas suas intuições, porém ele mal imagina que esta satisfação logo irá também por sua vez inverter-se, pois é a confirmação de um barulho prenunciador da catástrofe que logo a seguir se abaterá sobre o casarão, o ruído surdo da invasão dos ratos que se articula. Novamente compara com vulcão ou bomba, e o jovem assessor sai apavorado murmurando: Não se preocupe, não há de ser nada, com licença, volto logo. Meu Deus, zona vulcânica?!....

No corredor, ele encontra-se com Miss Glória, secretária da delegação americana, a única personagem feminina do conto, com quem conversa rapidamente em inglês, praticando seu aprendizado de idiomas. Parece haver uma ironia também no nome, pois contrariamente à glória esperada, o seminário parece fadado ao fracasso. Ela tem um papel secundário no seminário, que aparece como um evento de poder eminentemente masculino. O chefe encontra-se em seguida com o diretor das classes conservadoras armadas e desarmadas, vestido com um roupão de veludo verde e encolheu-se para lhe dar passagem, fez uma mesura, ‘Excelência’ e quis prosseguir mas teve a passagem barrada pela montanha veludosa, e ainda lhe admoesta sobre o ruído e o cheiro. Informa-lhe que os telefones estão mudos (no país os meios de comunicação estavam sob censura), o que o surpreende. A comparação que a escritora faz com uma montanha veludosa, em correspondência ao chambre de veludo verde, neste contexto, alude à cor do conservadorismo e do poder. Trata-se de cor muito utilizada pela escritora, já referido em outros contos. O uso desta cor na obra da escritora é tão notável, que mereceu análise de Fábio Lucas no ensaio Mistério e magia: contos de Lygia Fagundes Telles.

Neste momento surge a personagem do cozinheiro-chefe, que anuncia a rebelião dos animais, aparece correndo pelo saguão – sem gorro e de avental rasgado – com mãos sujas de suco de tomate que limpa no peito, a cor vermelha em clara alusão a sangue, revolução, esquerda – dizendo aos gritos que acontecera algo horrível: Pela alma de minha mãe, quase morri de susto quando entrou aquela nuvem pela porta, pela janela, pelo teto, só faltou me levar e mais a Euclides! - os ratos haviam comido tudo, só se salvara a geladeira. Relata, como o secretário, que o barulho fora percebido antes, feito um veio d’água subterrâneo. Depois havia sido um apavoramento, um espanto com aquela invasão desproposital e aterrorizante em meio aos preparativos para o seminário. O estranhamento que causa a invasão dos ratos dentro desta atmosfera é abrupta, apesar dos indícios, pois não existe uma explicação lógica da desmesura dos ataques. A violência do ocorrido, de uma certa forma, reflete aspectos "monstruosos" dentro do homem, e que também dá a medida de como a sociedade se constitui. Aqui, o fato fantástico instala-se no âmago do real, confundindo os parâmetros racionais e provocando uma ruptura da ordem do cotidiano. A não resolução da narrativa e o sistema metafórico fazem da narração, um drama e da leitura, um exercício conflitual.

No conto, a comparação com nuvem traz uma alusão ao coletivo de gafanhotos, pois os ratos do conto agiram feito uma nuvem destes insetos, praga que tudo destrói. O cozinheiro-chefe conta que ao tentar defender a comida um rato ficou de pé na pata traseira e me enfrentou feito um homem. Pela alma de minha mãe, doutor, me representou um homem vestido de rato!. O vínculo entre o terror e o duplo aparece de modo exemplar aqui, pois há convergência de ambos na figura do animal. A narração promove inversões características de narrativas fantásticas, no sentido de humanizar os ratos. Trata-se do relato de um atributo humano de intimidação, ameaça, arrogância e enfrentamento. E também busca animalizar as personagens, através do uso expressivo de verbos, como farejar e rosnar, para assim conferir atributos animais, relacionados com a postura de pessoas.

Homens com atitudes de ratos e ratos com posturas de homens: a animalidade associada à irracionalidade humana. Às vezes o duplo vinga-se ele próprio. Considera-se essa idéia aplicável a esse duplo corporificado pelos animais (sobrenatural, espectral) que se vinga dos homens destruindo o próprio seminário. Nesse caso do conto, os "outros" eram os ratos, incluindo o fato de que davam uma impressão de humanizados. A trama do conto é bastante óbvia, por suas implicações sócio-políticas, mas nem por isto perde o caráter sobrenatural. Não há dúvidas sobre a existência e o caráter antropomórfico dos ratos, também considerando o alegorismo desse conto. A presença da alegoria, por considerar significados externos ao texto, impediria a reação de hesitação do leitor, que para ele é a característica principal do texto fantástico. Acredita-se que a alegoria de cunho político não prejudica nem descaracteriza o sobrenatural nesse conto.

O jovem assessor preocupa-se com as aparências, pedindo que o cozinheiro-chefe fale baixo, não faça alarde sobre os acontecimentos. A cozinha é, no conto, o local por onde inicia a invasão dos roedores.

Como é sugerido desde o título do conto, os agentes instauradores da estranheza são os ratos, símbolos teriomorfos, uma vez que se constituem responsáveis pela invasão, tomando conta do espaço físico conhecido, e pela destruição do local. Convertem-se no centro das preocupações das personagens e, depois, no ponto deflagrador do pânico. Os atributos desses animais significam o poder destruidor do tempo, possuindo uma grande resistência ao extermínio. Ratos são considerados animais esfomeados, prolíficos e noturnos, aparecendo como criaturas temíveis, até infernal. No conto, os ratos são totalmente subversivos, no sentido de corroerem a ordem e estabelecerem o caos e o terror.

Na seqüência do conto, o jovem chefe tenta que o cozinheiro volte à cozinha, porém este mostra que a gravidade da situação não está sendo compreendida pelo jovem: nenhum carro está funcionando [...] Os fios foram comidos, comeram também os fios, ir embora só se for a pé, doutor. Foram retirados todos os símbolos que remetem à acessibilidade e à comunicação com o mundo exterior, e agora, sem subterfúgios externos para se salvarem, somente restam suas próprias forças e recursos. Os ratos devastaram toda a infra-estrutura do VII Seminário de Roedores. O relações públicas com olhar silencioso foi acompanhando um chinelo de debrum de pelúcia que passou a alguns passos do avental embolado no tapete: o chinelo deslizava, a sola voltada para cima, rápido como se tivesse rodinhas ou fosse puxado por algum fio invisível.

Esta imagem é dúbia, não se sabe se o secretário está sendo arrastado junto com o chinelo ou se o chinelo é o que resta do corpo devorado; voltemos à sua premonição: o pé fora roído por ratos como o das crianças pobres? De qualquer forma, o destaque é dado para o chinelo, justamente aquilo que fora desprezado pela personagem: era tudo o que restara de si.

Nesse momento a casa é sacudida em seus alicerces por algo que parece uma avalanche e as luzes se apagam. Invasão total. O texto compara a irrupção dos animais aos milhares, brotando do nada e de todos os lugares, a uma erupção vulcânica, incontrolável. A própria narrativa vai avisando que foi a última coisa que viu, porque nesse instante a casa foi sacudida nos seus alicerces. As luzes se apagaram. Então deu-se a invasão, espessa como se um saco de pedras borrachosas tivesse sido despejado em cima do telhado e agora saltasse por todos os lados numa treva dura de músculos, guinchos e centenas de olhos luzindo negríssimos.

Do ataque rapidíssimo dos roedores, salva-se somente o chefe das relações públicas, que se refugia entrincheirando-se na geladeira: arrancou as prateleiras que foi encontrando na escuridão, jogou a lataria para o ar, esgrimou com uma garrafa contra dois olhinhos que já corriam no vasilhame de verduras, expulsou-os e, num salto, pulou lá dentro, mantendo-a aberta com um dedo na porta para respirar, logo em seguida substituindo-o pela ponta da gravata. No início do conto, a gravata representa o status, o prestígio, o mundo das aparências. Já no final, aparece como símbolo de sobrevivência. Há aqui, portanto, uma transformação de um símbolo em função das ameaças e do perigo que se apresentaram à personagem, modificando o contexto. E ainda pode-se apontar mais uma inversão: as pessoas fogem espavoridas enquanto os ratos se instalam, e o chefe das relações públicas esconde-se na cozinha (depósito de mantimentos) como se fosse um rato.

Aqui tem-se o início do segundo bloco. Em flashback, avisa-se ao leitor que, após os acontecimentos daquele dia, houve um inquérito – medida obscura que ocorria no panorama do país naquela época. É a única coisa que o narrador conta de concreto após os fatos. O elemento invasor, portanto, conseguiu exterminar o seminário.

A estada do jovem chefe no interior da geladeira parece ter se constituído em um ritual de passagem, até mesmo um cerimonial, pois de um certo modo ele não renasceu? Afinal, somente ele sobreviveu e regressou ao social para relatar, tendo ficado privado de seus sentidos, que ficaram enregelados durante um tempo. A personagem, buscando refúgio na geladeira, tenta sobreviver e se salvar.

Aqui o narrador suspende a história. Este final é ambíguo, talvez em uma alusão aos ratos se reunindo para realizar o VII Seminário dos Roedores, deliberando e decidindo o destino do país em lugar dos homens dizimados... Após a iluminação do casarão, inicia-se uma nova era, governada pelo mundo das sombras, com os ratos assumindo o poder.

Todo o conto é filtrado por indicativos do fantástico, tendo seus limites no alegórico. Predomina a inversão e os animais corporificam o duplo. O clima permanente é o medo apavorante de algo que se desconhece – e principalmente, que não se controla. E sob esta capa do fantástico, Lygia compôs um conto denunciador da situação não menos terrificante em que vivia o país, abordando uma temática sobre as complexas relações entre o bem e o mal-estar coletivo e pessoal. O atributo sobrenatural – a hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis naturais, face a um acontecimento aparentemente sobrenatural, aparece neste conto, fazendo o leitor hesitar ao realizar a interpretação.

Esta narrativa de Lygia é outro exemplo da literatura como duplo, ou seja, o próprio conto como um todo é uma duplicidade de uma situação real. Uma situação política de um país, as forças militares que nele operavam, praticamente toda sua doença social personificadas nas personagens que se desdobram, os ratos como imagem de um povo faminto de liberdade e justiça que refletem (se duplicam) no conto literário. O epílogo do conto prova a existência do povo, sob forma de ratos rebelados, que mostra sua revolta e vingança, ao contrário da crença do secretário, de que ele não existiria. Neste conto, na luta entre os homens do poder e os ratos (os duplos - representantes do fantasmático), os vencedores são aparentemente estes últimos, que conseguem aniquilar com o VII Seminário. Porém, o final ambíguo (com a iluminação da mansão) e a sobrevivência do Chefe das Relações Públicas podem encaminhar a outras possibilidades de interpretação. Porém, a dúvida se instala: se os ratos haviam roído a instalação elétrica, de onde provinha a iluminação? Mais um enigma proposto pelo fantástico.

Este conto, por se tratar de uma temática social, distingue-se dos demais e traz um diferencial. Uma praga sobrenatural de ratos: eis a fantasia de Lygia Fagundes Telles para dizer de sua indignação com a situação do país e com a censura instalada. Os ratos aqui aparecem como elementos que subvertem a ordem estabelecida. A ironia, o humor negro e o sentido crítico perpassam as linhas dessa história satírica, sem abandonar o sentido de uma invasão sobrenatural dos animais. A inversão de papéis realizada entre os animais e os homens apresenta-se como a principal característica do fantástico e do duplo nesse tenso universo representado no conto.

Fonte:
http://www.passeiweb.com

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Reforma Ortográfica 3

(Clique sobre a imagem para ampliar)
Fonte:
Blog do Orlandeli

I Bienal do Livro de Curitiba (Lançamento de livros)


Imagens de Inocência
Autora: Maivillis Amaro
Dia: 28 de agosto de 2009
Horário: 16:00 horas

Tudo é Poesia
Autor: Paulo Gomes
Dia: 29. de agosto de 2009
Horário: das 14:00 às 16:00hs

Sonhos Pluviais
Autor :Ralf Gunter Rotstein, o Poeta da Chuva

Dia 29 de agosto de 2009
Horário: das 14:00 às 16:00hs

Antologia Blablablogue e Jornal Memai
Autores: Marília Kubota e Outros
Dia: 29 de agosto às 19:00hs

Todos os lançamentos ocorrerão na Expo Unimed Curitiba - Espaço de lançamentos
Rua Prof. Pedro Viriato Parigot de Souza, 5300
Campo Comprido - Curitiba - PR - CEP 81280-330
Tel.: (41) 3340-4300 Fax: (41) 3340-4343

Fonte:
Andrea Motta

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Reforma Ortográfica 2

Fonte:
Blog do Orlandeli

Camila Giangrossi Meleke (A Poetisa e sua Poesia)



LEMBRANÇAS

Infância,
Doce, serena…
Lembranças saudosas…
Criança manhosa,
Infância…
Brincadeiras…
Casinha, bola, boneca…
Peão, corrida, peteca…
Realidade imitada, inventada…
Sou mamãe, sou professora, empregada…
Realidade imitada…
Tenho isso ou aquilo, vou onde precisar…
Deixo minha imaginação voar…
Sou poeta, escritora, dona do meu destino…
Faço e aconteço…
Imagino,
Deixo a infância me levar…
Brincadeiras…
Realidade imitada…
Pouco a pouco…
A infância se acaba…
O real se concretiza,
E as lembranças tão saudosas…
Fazem-se pelas mãos da poetisa!
–––––––––––––––

AMORES, AMIGOS, AMANTES…

Amores, amigos, amantes…
Pensamentos enlouquentes, distantes…
Amores,
Proibidos, secretos, platônicos, surreais …
Amigos,
Sinceros, sucintos, leais…
Amantes
Dementes, insanos, carnais…
–––––––––––––––––––––

RECOMEÇO

Chuva,
Escorrendo suave sobre a vidraça…
Olhos fixos no horizonte,
Chuva espessa, caindo sem cessar…
Olhos miúdos, serenos, cansados,
Noite em claro,
Olhos fixos, concentrados…
A espera de um sinal,
Qualquer resquício…
Qualquer esboço,
De um mísero ponto…
No horizonte a brilhar…
Uma esperança!
Por entre as nuvens,
O esboço toma forma, a luz…
Após tamanha relutância,
Desponta, desfila, reacende a esperança…
De mais um dia esplendoroso recomeçar…
Pouco a pouco, vencendo a timidez…
Lá está ele…
No quarto a adentrar, brilhando como nunca…
Expectativas renovadas,
Não há mágoa, não há nada,
E os olhos ralos d’água, já extinguiram o chorar…
Pois o tempo é agora,
E a chuva que outrora…
Deixava-me em agonia…
Já não podes mais molhar…
–––––––––––––-

O IDEAL NÃO MORRE

Sou mais um em meio à multidão…
Sou um grão no meio da porção…
Sou um solitário no descampado…
Estou desacordado…
O lírio miúdo, defronte ao vendaval…
Sou o passista, logo a diante o carnaval.
Sou isso ou aquilo,
O que sei, já não importa…
O que importa já não sei…
A vida está lá fora, que outrora desdenhei,
Ontem, hoje…
Amanhã…
Já não importa…
Estou desacordado,
Agora, sofro calado.
São lembranças, restos, ruídos…
Passado,
A odisséia chegou ao fim…
A idéia se propaga…
Findo é a pequenez…
O ideal não morre, é infinito…
Contudo, estou desacordado…
Já não há sofrimento, lamento ou tormento…
O ideal é infinito…
É imortal.
–––––––––––––––––-
Fonte:
http://camilacg.wordpress.com/
Montagem da imagem = José Feldman