quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Herman Lima (Alma Bárbara)


A Leão de Vasconcelos

Pois foi assim, meu amo. Nesse tempo, nós andávamos pelo sertão, a serviço do coronel Feitosa, do Iço, por via de uns negócios de política. O Pedro, o patrão deve estar lembrado dele. Negro famanaz, vivedor como trinta, baixo e grosso como um toro de aroeira, com uns beiços revirados, e umas ventas rombudas, como amassadas de murro. Contador de quantos casos de amor e de briga ouvi neste mundo, toda cabocla ele dizia que podia possuir, não achava homem que o fizesse voltar atrás. E, a propósito, deixe contar-lhe.

Uma noite de lua, num forró de casamento, lá na Barreira Preta, no Aracati, quando ainda era, a bem dizer, meninote, o Pedro, encontrando a Ritinha da Venância, uma morena de papoco, falou pra cabeça dela, e foram os dois passear de bote, escondidos, no lagamar confronte. No princípio, o negro ainda se lembrou dos remos, e remou até o meio do rio. O rio estava uma prata. No brejal escuro das margens, berrava a saparia do inverno, assim, zôôôm... Só de longe em longe, um vulto de pescador aparecia, tarrafeando nos baixios. E a cabocla, na proa, olhando o lume do luar tremer nas águas, cantava como uma sereia encantada, dessas que tentam os marinheiros no alto mar. Depois, o negro pegou a se queixar dos braços, descansou os remos atravessados na beirada do barco, e foi sentar-se mais a moça. E tantas coisas fez e achou, meu amo, que quando sentiu foram as pancadas do mar no casco da canoa. Num pulo, deixando a morena quase desmaiada no fundo do bote, o Pedro atirou-se para os remos. Mas, qual. Logo que o barco entrou nas ondas, os remos tinham rolado na água. De forma que o preto botou as mãos na cabeça, assuntando, porque o caso estava mesmo feio. Mirando o céu, ele viu, pelo Cruzeiro grande, que havia de ser meia-noite, pelo menos. Nessa hora, naquelas alturas, só Deus com um gancho lhe podia valer. Assim, não assuntou muito tempo, e tratou de espertar a mulata. Mandou que ela se despisse e fizesse uma trouxa da roupa, que ele amarrou nas costas. E, tomando a pobre nos braços, atirou-se ao mar, nadou até a praia. Como a moça não podia voltar pro baile, por via da distância e das roupas ensopadas de água, o negro achou melhor levá-la pra casa de uma tia, que morava ali perto, no Fortim. No dia seguinte, toda a gente sabia do acontecido. O Pedro mesmo não negou o passeio. E a Ritinha, assim, caiu na boca do mundo. Mas, daí a uns tempos, como a mulata era mesmo um mimozinho deveras, não tardou em acender uma paixão de louco no coração de um cabra fornido, passador de gado nos sertões do Limoeiro, que andava há coisa de três semanas por ali. Quando o Pedro viu o cabra todo derretido pela Ritinha, tratou de ajudar-lhe o xodó, enquanto preparava a pobrezinha, dando de um tudo a ela. Até umas bichas de ouro, em forma de meia lua, ele deu.

Mas, aí, como sempre, não faltou um malvado, que foi contar o passeio do rio ao boiadeiro. Mas o cabra, que estava mesmo de beiço pela morena, desprezou a conversa, ainda disse o diabo ao intrigante. Pra encurtar a história, o homem casou sempre com a Ritinha. Pois o Pedro, um dia, meteu na cabeça que devia contar-lhe tudo, e contou.

– E ele?

– Pra lhe falar verdade, meu amo, eu não acreditei muito no que o negro me disse a respeito. Mas ele jurou pela fé em Deus, fazendo cruz na boca, que o outro não fez coisíssima nenhuma. O certo é que uma feita, conversando muito distraído, o preto me falou numa sentença sofrida na cadeia do Aracati; e, num domingo, quando nos banhávamos no açude do João Lopes, na Fortaleza, descobri, lá nele, aqui, embaixo da pá, um risco de faca de dois palmos. Quando lhe mostrei aquilo, o Pedro fechou a cara, disse de mau modo que não era nada, tinha sido uma chifrada de marruá, no tempo dele menino. Deus me perdoe, patrão, mas ó me parece que ali andava obra do cabra da Ritinha, e ninguém me tira da idéia que o Pedro tenha feito alguma a ele.

Mas, bom. Como ia dizendo, o caso foi assim. Nós tínhamos chegado no Crato, numa quinta-feira, devendo voltar na outra semana. Quando foi no domingo, como não tivesse serviço, arreamos os cavalos de manhãzinha e nos atiramos no mundo, cada qual no seu rumo. Eu tombei pra venda do Zé Bacurau, onde fiquei até a boca da noite, mais uns freteiros de folga, numa partida de – vinte-e-um, que me limpou os cobres. Na volta, chegando em casa, já com a lua de fora, encontrei o Pedro estirado na tipóia, com uma ponta de mata-rato no queixo. Quando me viu, o preto fez ar de alegria, foi logo dizendo que tinha uma história pra contar. Aí, eu fui coar um gole de café com rapadura, e bebi pelo pires, soprando, danado, pra ouvir o negro. Porque o diabo do homem, patrão, sabia mesmo enrabichar a gente com as falas. Com pouco, eu estava outra vez junto dele, na minha rede, mascando minha felpa de mapinguim. E, metido na tipóia, com um pé no chão pra dar o balanço, o Pedro contou que tinha ido pras bandas do Salgado, chegando num ponto em que foi preciso romper o mato, pra alcançar o rio. A manhã estava bonita, não havia hora melhor para um banho. E já ele tinha desapeado, quando avistou, mais pra cima um pedaço, uma cabocla novinha, nuazinha, trepada numa pedra, mirando-se na água serena que passava. Vendo que a mulatinha não tinha dado por ele, o negro, muito de manso, prendeu o cavalo num buritizeiro, e foi rastejando, rastejando, pelo mato, num piso de sussuarana, até que topou com as roupas da moça escondidas numas moitas. O preto logo assentou um plano. Mais que depressa, agarrou nos vestidos e de repente apareceu à morena. A pobrezinha, como se tivesse visto o Maligno, soltou um grito tamanho, e mergulhou como pecapara assustada. O rio aí já era de nado. Com pouco mais, adiante, ela botou a cabecinha de fora, olhando muito agoniada, sem saber o que fazer. Enquanto o Pedro, muito bem sentado na ribanceira, mostrava-lhe as roupas, rindo para ela, e chamando-lhe quantos nomes de amor sabia. E disse que não tivesse medo, viesse buscar os paninhos, que ele não lhe fazia mal, queria só um beijo dela dado assim nua como estava. Isso ele dizia, meu amo, mas só dos dentes pra fora. Deus me perdoe. Pois alguém acredita que o negro não tivesse má tenção, armando aquele mundéu à coitadinha? No mais, o patrão faça de contas que era ele numa hora dessas, e veja lá se tinha coragem de resistir... Pois a verdade é que a mulatinha pareceu adivinhar os desejos do preto, e desatou a chorar, disposta a morrer, mais antes do que se apresentar despida a ele. Nessa idéia, fez o pelo-sinal, e se soltou no rio. Aí, o Pedro mediu toda a ruindade da ação que estava praticando, e sentiu os olhos cheios de água, com pena e dó da criança. Atirando as roupas no chão, despiu a camisa, e jogou-se na correnteza. A moça, nesse tempo, já ia longe, enrolada nos cabelos, arrastada pelo rio. O negro mergulhou, e nadando por baixo da água, como um peixe, foi tomar fôlego já nos calcanhares da cabocla. Com duas braçadas mais, emparelhou com ela, e, agarrando-a pela cintura, nadou com força pra terra, como tinha feito com a outra, lá no Aracati.

Garanto, meu amo, que o negro, me contando isso, ficava ainda com os olhos afogados de pranto, como quem atravessa a fumaça de um incêndio... Coisas do coração, moço, mas não é? Pois, quando vinha trazendo a moça pro seco, apertando contra o peito aquele corpinho novo, macio e cheiroso, que nem uma fruta do mato, o preto me disse que só sentia uma bondade tão grande, uma pena tão esquisita, como se fosse Nossa Senhora que ele tivesse salvado das águas. Acredite se quiser, meu patrão, mas o negro botou a caboclinha na beira do rio, com o mesmo amor de uma mãe, deitando o filhinho na rede. Quando viu que ele não lhe fazia maldade, a mulata descruzou os braços que escondiam o peito tentador, e num jeito de onça enrolou-se toda nas roupas. Aí, o Pedro enfiou a camisa, e foi-s’embora, sem mesmo olhar pra trás.

No fim da semana, estávamos de viagem. Tínhamos deixado o Crato de madrugada, no segundo canto do galo. Os cavalos eram bons, bralhadores famosos, de forma que às onze horas tínhamos tirado oito léguas. Aí, fizemos uma parada, pro almoço, na sombra de uma oiticica verde, que ficava mesmo cobrindo a picada. Os animais ali por perto babujavam o capinzinho da vereda. Acabando de comer meu bocado de paçoca e rapadura, fiz da carona travesseiro, e me deitei no chão, disposto a dormir um minutozinho. A mata, nessa hora, estava quieta, que nem capela vazia. Só se ouvia o chio-chio de uma cigarra cantadeira nas folhas e um ou outro sopro de venta dos cavalos cansados, roendo a erva. Ainda me lembro que estava dorme-não-dorme, quando o Pedro, que também tinha acabado de almoçar, levantou-se bocejando e se afastou pela estrada. Não sei dizer se tive tempo de dormir um cochilo, quando de repente um berro medonho encheu todo o mato. Num instante, me vi de pé, correndo como um doido, no rastro do negro, que fui achar pouco adiante, agarrado com um cabra moço e entroncado, como um mourão. Pelos modos, meu camarada tinha sido atacado de surpresa, nem teve tempo de se defender. E, antes de sair de meu assombro, o curiboca recuou num pulo, com os olhos relampeando, como uma onça acuada, e uma faca que era isto, encarnada de sangue, no punho. O Pedro se bambeou, com as mãos na barriga, como quem sofria uma grande dor. Aí, acudi com meu punhal desembainhado, e avistei uma coisa, patrão, que me tirou o sono muitas noites. O negro tinha levado uma estocada no vão do umbigo, que era mesmo uma barbaridade, as tripas tinham espocado, pois assim mesmo, quase de cócoras, procurando agüentar os bofes que escorriam para o chão, o preto arrancou a garrucha do quarto, e – ah! negro bom mesmo na hora! – levou um pé adiante, fazendo mira no assassino. Quando viu a arma alumiando, o cabra atirou-se pra cima dele, batendo o queixo que nem caititu furioso, mas já o tiro tinha estrondado por aquele sertão a fora. Aí, o homem deu um salto para o ar, como cabrito assustado, e caiu de bruços na estrada, sem bulir. Vendo-o derrubado, corri para o Pedro, que também tinha rolado na areia. Tomei a cabeça dele nas mãos, quis ver se ainda o levantava. Mas o pobre pegou a revirar os olhos, gemendo como doente de “puxado” no inverno. Só teve tempo de chegar a boca no meu ouvido, e disse, apontando o outro: – “É o irmão daquela diaba!”. – A cabeça pendeu pra trás, o corpo amoleceu nos meus braços. Estava morto, meu patrão!

Por causa disto, tive de andar no mato, fugido como cangaceiro, dois anos e tanto. Hoje, ninguém fala mais no caso, posso estar por aqui, sem medo. Mas, pra acabar a história direito, voltando uma vez no Crato, todo barbado e diferente, pra não me conhecerem, soube que o assassino do Pedro era um irmão da mulatinha do rio. Um comboieiro tinha encontrado os dois corpos na estrada, galopou como um doido até a cidade, e tudo se descobriu.

Já vê, meu amo, que não serviu de nada a boa ação do preto, não tocando num cabelo da morena. Se ele tivesse feito mal a ela, talvez que nem a descarada contasse o caso aos parentes. Como o pobre a tratou como uma santa do altar, achou bom vingar-se.

Mulheres?!... Pode crer, patrão. Uma tira pelas outras. E é tudo uma pouca vergonha.

(Extraído de Tigipió, 7ª ed. Rio de Janeiro, J. Olympio, 1976)

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: d’a Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza: Imprence, 2008.

Herman Lima (1897 – 1981)



Herman Lima nasceu no dia 11 de maio de 1897, na cidade de Fortaleza (CE). Autodidata, fez apenas o curso primário. Ainda jovem interessa-se pelo desenho, tendo alguns deles publicados em “O Malho” e na revista “Fon-Fon”, e, também, três caricaturas em capas de “O Tico-Tico”.

Em 1915, começa a escrever contos, sendo que alguns foram publicados na citada “Fon-Fon” e na Revista do Brasil, em São Paulo.

Trabalhou na Fotografia 01 – sem, em Fortaleza, sendo mais tarde auxiliar da estrada de rodagem de Aracati a Morada Nova. De volta à capital do Estado, foi escriturário da Delegacia Fiscal, transferindo-se, em 1922, para repartição congênere em Salvador, Bahia, onde se diplomaria em Medicina.

Em 1924, publica “Tigipió”, de contos regionais do Ceará, tendo sido agraciado com o Prêmio Academia Brasileira de Letras.

Forma-se em medicina e vai clinicar no interior da Bahia, na região de Lavras Diamantinas, em Lençóis.

Vai morar no Rio de Janeiro, em 1931, e no ano seguinte publica o romance “Garimpos”, que posteriormente (1939) foi traduzido para o espanhol por Benjamin de Garay. Casa-se com Annette Cathalá Loureiro, com quem tem sete filhos, em 1933.

É nomeado auxiliar de gabinete do Presidente Getúlio Vargas, ocupando-se de sua correspondência particular. De 1933 a 37 foi auxiliar da Presidência da República.

Muda-se para Londres, Inglaterra, em 1937, após ter sido designado para a Delegacia do Tesouro Brasileiro, naquela cidade.

Em 1940, retorna ao Rio de Janeiro e, no ano seguinte, publica “Na Ilha de John Bull”, com impressões sobre aquele país.

“Outros céus, outros mares” é publicado em 1942, também ganhador do Prêmio Academia Brasileira de Letras.

Faz traduções de diversos textos de autores estrangeiros. Durante sua permanência na Europa voltara a se interessar pelas artes plásticas e, principalmente, pela caricatura, ao tomar contato com as revistas especializadas francesas e inglesas.

Voltando para o Brasil, em 1945 começa e estudar e pesquisar o desenho satírico no nosso país, publicando então inúmeros trabalhos sobre este assunto em jornais e revistas e três álbuns ilustrados: “Rui e a caricatura” (1949), “J. Carlos” (1950) e “Roteiro da Bahia” (1953).

Trabalha na Biblioteca Nacional, em 1954, na Divisão de Obras Raras, onde conhece o precioso acervo dos periódicos brasileiros ilustrados.

Em 1961, publica “Domingos Olímpio.

Em 1963, após 20 anos de trabalho exaustivo de pesquisa, publica “História da Caricatura no Brasil”, em 4 volumes, tendo recebido os prêmios Fernando Chinaglia (melhor livro do ano), Centro Cultural Brasil-Israel de S. Paulo (melhor ensaio do triênio 1960-1963), Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro (melhor ensaio do ano).

Nos anos seguintes publica: “Poeira do Tempo” (1967); “Olegário Mariano” (1968), e “Afonso Arinos” (1970). É agraciado com a Medalha de Ouro José de Alencar, do Governo do Ceará, em 1974.

No ano seguinte, recebe o Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto da obra.

Morre, no Rio de Janeiro, no dia 21 de junho de 1981.

Fonte:
http://contosbrasileiros.blogspot.com/
– “Outros céus, outros mares - Exposição comemorativa do centenário de Herman Lima”, RJ: Edições Casa de Rui Barbosa / Ministério da Cultura, 1997. (folheto),

Siomara Reis Teixeira (Album dos Poetas del Mundo)


QUANDO O POETA NASCE

Sentir-se só!
Momento derradeiro
Em que o dom grita primeiro
E a alma do poeta nasce!
Inspiração!
Papel, tinta, caneta na mão.
Nada é o que parece,
Senta-se e pouco a pouco
Ela surge, a idéia cresce!
Encorpa-se, se faz lírica, lúdica.
É como entoar uma prece
E enfim, um belo poema, aparece.

INSANIDADE

E retraio em mim a chama acessa
Na obscuridade da imensidão,
Sou tua sim, sou tua presa
Gostando assim desta paixão!

E enlaço teu abraço no cansaço,
Buscando a paz neste remanso
E neste amor de vida e morte me desfaço,
Sorrio ao infinito e não me canso.

Voando ao vento difuso da saudade,
Insanamente sofre o coração
O amargor de nossa insanidade.

Somente um solitário na aflição
Enlouquece pelas horas da maldade,
Querendo transformar a dor, numa canção!

POETA...

Que sonha, que ama, que clama
E com letras que aos poucos trama
Transforma palavras em versos
E com primazia, os chama, poesia...

IDILIO

Teu abraço no abraço que aperta e aperta
Transportando bruscamente
Com teu corpo que se esvai continuamente
Elegendo meu corpo como porta aberta.

E abre a boca com a boca que se abre,
Com a língua para a língua que se suga
E no romper do esplendor e nessa fuga,
Os dois corpos no idílio como um sabre.

Embriaga com perfume esse amor
E carrega para a dança e se dança,
Num frêmito ciciante com imenso ardor,
Nessa valsa longa e que nunca cansa.

E o momento de beatitude surge,
No ondular tresmalhado
Do espasmo manso,
Ao florir do sorriso que ressurge
E transcende no langor infindo, o remanso.

QUISERA EU SER ASSIM

Quisera eu ser assim,
Com a espiritualidade em mim...
E na grandiosidade d’alma
Desprezar os prazeres terrenos,
Soerguer toda esta vida com calma,
Esquecer todo o profano
Lembrando somente do Ser Humano!
Quisera eu ser assim,
O doar-me sem pensar tanto em mim
E lembrar que aqui do meu lado,
No flagelo, no desamor,
Pessoas vivem com dissabor...
Quisera eu ser assim,
Receber o chamado Crístico
Aqui dentro do coração
E desempenhar um trabalho,
Que não seja somente um atalho,
Mas que sendo vigoroso, forte e pungente,
Traga a alegria a muita gente!
E nesta jornada plena de emoção
De entrega e satisfação,
Sem que haja a menor intenção,
Que seja pura, inteira, amiga, altaneira
E dar minhas mãos aos meus irmãos,
Nesta necessidade emergente
Que brota de dentro do meu coração!

AMO ESTE POVO

Amo este povo
Sou terra, sou chão.
Sobre mim exercem
Fascinação!
É o canto dos pássaros
Em mensagens de paz.
É a vida que passa,
Homem branco voraz.
Invasores em festa!
Chora, Pacha Mama
Muito pouco lhes resta...
Os verdadeiros donos,
Destas lindas florestas.
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Siomara Reis Teixeira (1965)


Siomara de Cássia Reis Teixeira nasceu em União da Vitória - PR, em 9 de abril de 1965.

Cresceu e foi educada em Porto União - SC, as chamadas cidades Gêmeas do Iguaçu, rio que banha a cidade, em formato de ferradura, em vista aérea. Como sua família materna é oriunda do Rio Grande do Sul, costuma dizer, com orgulho, que tem um pé nos três estados do Sul. Possui várias descendências, entre elas o negro, o índio, o ucraniano, o italiano e o português. E fala em conversas divertidas, que faz parte do verdadeiro povo brasileiro.

Vinda de uma família culturalmente privilegiada, com histórico de poetas, escritores e artistas plásticos, começou sua carreira literária muito jovem, com apenas 11 anos de idade. Nesta época já compunha fábulas no colégio onde estudava, o Colégio São José, em Porto União e, seu professor de português, Professor Juck, relutava em acreditar que uma menina tão jovem tivesse tanta capacidade na escrita, no vocabulário, na dissertação, na concordância, na regência verbal e acima de tudo, na imaginação.

Sempre com sua veia artística latente, cantou no coral da sra. Djanira Pasqualin, coral este, de crianças entre 10 a 15 anos, expressivo e famoso na época em todo o estado do Paraná e Santa Catarina. Com sua voz de contralto, ganhou várias medalhas e apresentou-se em canais de televisão. Teve aulas de piano durante quatro anos e fez cursos de desenho e pintura.

Domina a língua inglesa e é apaixonada por fotografia, tendo cursos de especialização na área. Mas foi na poesia, inerente em seu ser sonhador, apaixonado, romântico e profundamente social e humano, que encontrou sua verdadeira identidade.

Siomara costuma dizer que o poeta nasce poeta. Ele não se faz poeta. É dom, maldição e acima de tudo, missão. Este é seu principal jargão, tal a necessidade que tem em escrever, 'É como o respirar, mesmo sem o desejar', como escreveu em uma de suas poesias. Suas poesias...Suas filhas, costuma ressaltar.

Cronista, revela em seus textos, um profundo sentido humanitário e social. Procura despertar em seus leitores a real necessidade da fraternidade, da doação, da mudança lenta e gradual do sistema financeiro e especulativo do mundo materialista. É uma função, uma obrigação de quem tem o dom da expressão, através da arte e consegue atingir várias camadas sociais, enfatiza.

Siomara também descreve com primazia o universo feminino, suas aflições, seu cotidiano, sonhos, desejos, amores, segredos, conflitos. Tem três filhos, os quais diz serem suas pérolas preciosas, suas Reais Poesias. Xamanista por convicção, vive hoje em Curitiba, onde é Empresária, Fisioterapeuta, Cronista, Educadora nas disciplinas de Biologia, Química e Física. Mas acima de tudo e por tudo, Siomara é Poeta, pois nasceu assim.

Fonte:
Poetas del Mundo
http://www.poetasdelmundo.com/paises_america.asp?IDPaises=128

Olga Fonseca (Album de Poetas Del Mundo)

O AQUÁRIO

Que a vida seja
como no aquário
ou no oceano...
O espaço que se ocupa
pouco importa...
Liberdade é questão interior...

Que seja então,
Sempre límpido
E sempre claro...
no oceano ou no aquário!

ALTERNATIVA

Alter ego
Ego alto
Vasto Ego
Ego Visto
nativa do lugar
ou lugar de seu nativo
Alterno-me
no jogo de criar
Vários jeitos de viver
E assim poder pensar
pra poder amar
E amar como ser pensante!

Alternar
Palavra já diz...
Sou sempre dois pólos
Pode se assim dizer:
Pode ser assim
Mas também pode ser assado...
Talvez seja um sim
mas cabe bem o não...
Vou me intercalando
Nos personagens
que me dei...
Alternativa é a chance
que fazer sempre diferente
as coisas que quero repetir...
Tendo a chance de mudar
Ou quem sabe não!
Depende de escolha...

É a dúvida
entre o meu certo e
meu errado...
É o limite da minha realidade
e fantasia do meu ser...
É diferença entre o ser e o estar
Entre o colocar e o tirar...
Entre o dar e receber...
É a razoável dúvida
entre a loucura e
a sanidade.
Jamais ponte do meio,
logo que os extremos
são tão excitantes...
Sendo que ambas se conjugam
e se completam por estarem...
Interna Ativas
Inteira Ativas
Impera Ativas
Diz[ss]er Ativas
Lider Ativas
E se nunca baseia em ser
Somente uma simples
Alternativa!

BRUXA

Na supremacia de ser,
o que nem sempre sou...
Te fiz crer
Que te encanto,
quando quero
e o quanto desejo...
Tal qual uma bruxa,
Que de poção em poção,
Sustenta um coração!
E com isso
Me esgoto,
Me abalo,
Me irrito...
E calo no peito,
Um tanto sem rumo,
Um tanto sem jeito...
Os desejos de te fazer
Um dia quem sabe
Me amar!

COMPLEMENTO

Mas seja lá o que bem define,
Mais correto ou mais certeiro,
mas o certo,
é que busco
em ti tal complemento,
Na vida teu retoque sem igual...
Me faz sentir inteira e por inteiro...
No auge da loucura,
Vem espantosa lucidez
Com teu toque de ternura...
E no ato de amar,
faz sintonia com energia de raiz
Renovando o conceito que
meu corpo teme sempre
de em seus braços se 'acabar',
derreter ou desmanchar!

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Olga Fonseca

Sou uma pessoa comum, nascida e criada em Londrina/PR [sou pé-vermelho, com muito orgulho] onde moro até hoje... Tenho 52 anos e posso dizer que bem vividos e talvez sofridos... e este sofrimento que me faz às vezes, me dar ao luxo de me sentir poeta...

Sou na verdade professora, é o que realmente me realiza, é o ensinar, é a parte de mim que se doa a cada instante que me coloco como educadora aprendiz, e é onde posso divulgar um pouco esta minha veia poética... Levando aos pequenos que tanto amo, um pouco de poesia através de livros, poetas e poetisas, e através das páginas do site do Grupo Luna & Amigos e do site pessoal da minha grande amiga Delasnieve Daspet.

De vez em quando a inspiração vem e eu escrevo como em meus poemas que aqui estão…

Fonte:
Poetas del Mundo
http://www.poetasdelmundo.com/paises_america.asp?IDPaises=128

Jean-Pierre Bayard (História das Lendas) Parte XXII



CAPÍTULO VII

ALGUNS CONTOS DE PERRAULT


I — Introdução

Perrault, depois do êxito de Pele de Burro, pensou em transcrever Les contes de la mère l’Oye; suas fontes nos são desconhecidas mas os motivos existem numa literatura coletiva, talvez criada pelo produto inconsciente da imaginação proveniente de fontes multo antigas.

Se o texto age por encantamento, descobre também um sentido que ultrapassa a simples moralidade devida a Perrault, que aliás se desinteressou pelas fontes iniciais. Bacon escreve: “Confesso simplesmente que desde sua origem as fábulas antigas foram alegóricas e encerravam lições importantes”.

1. — Valor do conto

Ora, encontramos de novo o mesmo repertório de contos — com seus temas iniciais semelhantes — em cada país e em cada latitude; essa migração prova um ritual unicamente acessível aos iniciados. Mas essas palavras de encantamento, forma de uma magia vinda até nos Evangelhos, não são apenas simbólicas. Além das cerimônias iniciáticas, o conto interpreta a vida e as tradições regionais. Por suas virtudes místicas, o encanto dessas ficções não pode ser nem pueril nem grotesco. E é preciso abandonar nossa atitude racional de homens que querem ser instruídos e inteligentes para desfrutar o sabor desses contos que nos lembram a alvorada de nossa infância.

2. — Tese solarista

Despertou grande interesse a tese solarista de B. Busson. Barba-Azul é uma alegoria do sol que mata cada dia a Aurora, sua nova esposa. A Aurora é curiosa; ela penetra por toda parte. Mas no aposento proibido estará encerrado o trovão; a Aurora é libertada por dois cavaleiros, os Açvins do Rig-Veda, os dois crepúsculos. O Pequeno Polegar relacionar-se-ia com os sete raios do alvorecer. André Lefevre, Frédéric Dillaye compartilham essa opinião. Na mitologia antiga podemos encontrar o sol com o seu emblema de chaves.

Porém, Barba-Azul pode ser Saturno em luta com o novo ano, sua nova esposa; contudo as pesquisas para justificar a significação do número 7 conduzem a outras interpretações cujo caráter esotérico não poderia nos escapar.

3. — Valor do algarismo 7

Se as sete esposas de Barba-Azul, ou os sete irmãos do Pequeno Polegar, as sete fadas da Bela Adormecida no Bosque, as sete filhas do papão, as sete mulheres do gigante podem se assemelhar aos sete dias da semana, o valor desse número é extraordinário. Encontramos as sete solenidades do Judaísmo, os sete ramos do Castiçal de ouro, os sete filhos de Macabeu, enquanto que Tóbis é o sétimo esposo de Sara. O Espírito Santo tem sete dons, a Virgem, sete dores, o evangelho sete demônios e sete anjos planetários. Temos ainda os sete sacramentos, os sete diáconos, os sete selos do Apocalipse, os sete pecados mortais, as sete virtudes, as sete cores do raio luminoso, as sete notas musicais, as sete maravilhas do mundo. Para Anne Osmont cada um dos sete planetas do Pater se aplica a um dos planetas que compõem a antiga astrologia enquanto que para os hindus a terra se dividia em sete planetas.

Sete seria o símbolo da vida eterna, da ação e da evolução; a própria iniciação tem sete graus. Esse algarismo, que se liga a três e onze, é ainda encontrado numerosas vezes.

4. — Simbolismo

O conto — que se reúne à lenda pela transformação do seu tema — reflete, no que concerne sua interpretação, a moda intelectual do dia. Os heróis podem personificar fenômenos naturais, mitos meteorológicos, usos cotidianos de todos os povos. O internacionalismo desses contos nos conduz a pensar numa transmissão oral. Os presentes das fadas podem constituir ritos de aniversários e Pele de Burro torna-se uma rainha de carnaval. Se voltarmos às nossas origens poderemos encontrar novamente o frescor da nossa alma de criança, e assim, num mundo deformado, evoluem esses heróis dotados pela natureza; mesmo sendo os personagens minúsculos, podem realizar grandes feitos pela sua coragem e pelos benefícios da iniciação. Os animais são bons e os próprios objetos tornam-se atributos do poder; o boné torna invisível, o bastão invencível e a sandália é o signo da velocidade.

Este simbolismo dos objetos é discernível na água de Juvência, nas beberagens de imortalidade e o herói, para alcançar um estado superior, põe-se à busca de um objeto que pode ser um objeto mágico, um tesouro, uma noiva. Na história de Gata Borralheira o herói busca a luz e os três vestidos cósmicos (céu, lua e sol) participam da vida universal.

O conto representa um mundo sobrenatural no estado de pureza; não mais se ocupa do sentido literal e chega até o absurdo para se preocupar apenas com um simbolismo bastante aparente. O ouro torna-se o emblema da energia solar e os cabelos, símbolos da vida, são de ouro. A Bela Helena, assim como Pele de Burro assemelham-se a Aquiles- e Ménégal.

Os contos, apólogos religiosos, ensinam, a moderação de nossos desejos na aceitação da nossa condição. (Les souhaits ridicules, Griselidis) (Os desejos ridículos), mas são também uma evasão. Em vista da credulidade popular receber mal o desaparecimento do herói e criar uma lenda que o faz reviver desde o dia da sua morte, alguns desses personagens imaginários podem reviver; da mesma forma como nunca se admitiu a morte de Joana d’Arc, de Napoleão ou de Hitler, não se pode admitir a morte de heróis dotados de qualidades excepcionais.

É por isso que os contos divertem e instruem ao mesmo tempo.

5. — Os predecessores de Perrault

Esses contos de tradições antigas, “memórias coletivas”, como diz Guenon, foram compilados por vários autores.

Antes da publicação dos contos de Perrault (1697), outras compilações já existiam. Citaremos apenas as mais importantes, sendo as variantes particulares anotadas no seguinte estudo esquemático. Antes de tudo é a engenhosa reunião de contos que parecem engendrar uns e outros: o livro de Mil e uma noites.

Antes dos Contes du Perroquet (Contos do Papagaio), os Contes du Vampire (Contos do Vampiro), o compêndio mais antigo é o Pantchatantra que se havia multiplicado na forma ocidental do Roman des sept sages (Romance dos sete sábios) e na forma árabe no Le livre de Kabile et Dimna.

Entre os que tomaram a dianteira de Perrault notemos o Decameron de Bocáccio, Les nuits de Straparole e o Pentameron de Basile. Perrault e em seguida Mme d’Aulnoy, adaptaram essas ficções ao gosto do público francês. Walter Scott fez o mesmo na Inglaterra, os irmãos Grimm na Alemanha, Afanasieff na Rússia e Asblörnsen na Noruega.
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continua...

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Fonte:
BAYARD, Jean-Pierre. História das Lendas. (Tradução: Jeanne Marillier). Ed. Ridendo Castigat Mores

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Flávia Vasconcelos (Jornalismo Literário)


O que é Jornalismo Literário

As chamadas grandes reportagens mesclam características da narrativa literária, da história e do texto jornalístico. Elas fazem parte do jornalismo literário. Livros como Rota 66, de Caco Barcellos, filmes como Todos os homens do presidente e especiais televisivos como Globo Repórter, inserem o público em um mundo muitas vezes desconhecido, temido ou distante; contam a história de maneira romanceada, quase lúdica em alguns casos, prendendo a atenção e distanciando-se dos padrões de jornalismo aos quais estamos acostumados.

Em 1960 os Estados Unidos observaram o surgimento de uma nova maneira de fazer jornalismo. Cansados das matérias desinteressantes e factuais, os jornalistas decidem sair de suas redações e inovar, apurar a fundo um fato, fazer muitas entrevistas, pesquisar em arquivos, percorrer grandes distâncias, levantar dados, “imergir” na história e narrá-la com o uso de recursos e ferramentas da ficção. A grande reportagem pode explicitar em seu conteúdo as impressões de quem a fez e da mesma forma que fazemos ao relatar para amigos como foi à última viagem que fizemos; ou seja, quais foram nossas impressões sobre as pessoas e o lugar visitado, o que lá aconteceu, etc.

Também no Brasil tivemos repórteres dispostos a quebrar antigas regras e “mergulhar” em tempo integral em suas matérias. A produção dessa “dualidade” do jornalismo e todos os seus desdobramentos culturais é importante tanto para o dia-a-dia quanto para o futuro, uma vez que denunciam ou tornam públicos acontecimentos contemporâneos, como é o caso das reportagens sobre as drogas feitas por Tim Lopes, que foi assassinado de maneira brutal por traficantes em 2002, ou como uma descrição detalhada de acontecimentos relevantes da nossa história.

Nos dias de hoje, principalmente no Brasil, esse ramo do jornalismo vem se minguando e, quando respira, restringe-se à mídia televisiva. Essas matérias ocupam muito espaço, um espaço redacional cada vez mais rarefeito em todos os grandes jornais, e há cada vez menos repórteres dispostos a encarar o desafio de entrar de cabeça num só assunto, esquecer tudo o mais para, no fim, ter o prazer de contar uma boa história.
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Nós fazemos Jornalismo Literário
(por Flávia Vasconcelos)

Leitor, aqui nós fazemos jornalismo literário.

Isso porque nós respeitamos o seu direito de ter acesso a informações de qualidade, sem economia de detalhes sobre o fato.

Fazemos jornalismo literário porque nós não somos jornalistas-robôs, destituídos dos cinco sentidos, sem experiências de vida e, muito menos, sem capacidade de observação do meio que nos cerca.

Nós somos, assim como você, seres humanos e, por isso, compactuamos com a ideia do jornalista Raimundo Pereira, editor da Revista Retratos do Brasil e profissional atuante da imprensa alternativa, quando, em 1981, escreveu no último editorial do saudoso Jornal Movimento que a afirmação sobre o jornalista ser um técnico, se não da neutralidade ao menos da objetividade, não passa de um mito. Nós somos profissionais de carne, osso, sentimento e racionalidade.

Ao contrário do que a “grande massa jornalística” pensa, o jornalismo literário não é utopia, ficção, romantismo e nem é feito por escritores. É feito por jornalistas profissionais e pode sim ser a realidade dos jornais diários, revistas e sites jornalísticos, a exemplo do nosso.

Escrever com estímulo e detalhamento do fato, humanizando os envolvidos, descrevendo características do espaço físico, das pessoas, transportando o leitor para o acontecimento é também jornalismo e é isso que o jornalista literário faz.

Que mal há em enriquecer o texto? Que mal há em misturar literatura com jornalismo? Nenhum. Ao contrário, é uma oportunidade dada ao leitor de se informar melhor e enriquecer-se junto, tanto no vocabulário quanto na formação da opinião sobre o fato.

Leitor, o que você acharia de ler no jornal que você compra todos os dias, uma matéria sobre o jogo de futebol do seu time favorito que, além de informar o placar da partida, descrevesse a torcida, incluísse as paródias musicais inventadas na arquibancada e que fazem o maior sucesso, além dos “gritos de guerra”, com exclamações e tudo mais que fosse necessário para transmitir a empolgação do momento? Que falasse das cores e sons que compuseram o cenário do jogo, escolhesse personagens, tanto da torcida como entre aqueles que estavam lá trabalhando, vendendo churrasquinho e falasse rapidamente de cada um? Descrevesse as expressões dos torcedores, ou do técnico, no momento do gol ou da perda dele? Humanizasse mais os jogadores e falasse um pouco da trajetória daquele que mais se destaca, ou de onde ele veio?

Isso serviria para permitir que aquele que não esteve no estádio, percebesse o que foi vivido lá e também para aquele que esteve, pudesse reviver a experiência. Além de fazer com que você leitor, se reconhecesse no que foi escrito, já que seria um texto de um ser humano para outro e não de um burocrata da notícia para uma vítima dessa “burocracia”. A sua realidade estaria ali descrita e, assim, você poderia se sentir mais em casa e confiante de que o jornal registra o que você vive.

A nossa sociedade, baseada na selvageria da formalidade e do conservadorismo estrangeiro, desvaloriza a sensibilidade, encarando-a como passatempo. Como brincadeira.

Dizem que o jornal diário não tem espaço para o jornalista literário, por conta do tamanho dos textos. Sabe o que dizem mais, leitor? Que você não iria gostar desse tipo de texto completo, original, atrativo, divertido e aprofundado, pois você se contenta com as migalhas da informação, colhidas no texto frio e curto, seja no impresso ou on-line. Eles respondem por você, sem nem lhe oferecer uma oportunidade de experimentação.
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Fontes:
- http://www.coladaweb.com
- http://aqueimaroupa.com.br

Folclore de Portugal – Distrito de Leiria (Lenda do Milagre de Nazaré)


Lenda do Milagre da Nazaré

Esta lenda remonta ao ano de 1180, quando D. Sancho I liderava a reconquista do Alentejo e do Algarve e D. Fuas Roupinho, seu cavaleiro, defrontava os mouros em Porto de Mós, fazendo prisioneiros o rei Gamir e a sua filha. Tempos mais tarde, o rei mouro morreu e a jovem princesa inconsolável quis conhecer melhor o Deus dos cristãos e, sobretudo, a Mãe desse Deus. D. Fuas Roupinho levou-a conhecer a imagem de Nossa Senhora da Nazaré que ele venerava e deixou-a perto da imagem enquanto foi caçar.

Montava D. Fuas Roupinho o seu cavalo quando vê passar um vulto negro e estranho. Pensando ser um veado, perseguiu-o e o animal em desafio passa por ele uma e outra vez, o que desperta mais ainda o seu desejo de o apanhar. A perseguição torna-se feroz até que quando está prestes a apanhá-lo o cavalo pára junto a um precipício, mesmo sobre o mar. O cavalo empina-se desesperado e o veado desfaz-se em fumo. D. Fuas Roupinho clama por Nossa Senhora da Nazaré e cavalo e cavaleiro salvam-se, ficando as patas traseiras gravadas no rochedo, marca essa que ainda hoje existe.

D. Fuas Roupinho corre para junto da Virgem a agradecer a proteção e promete levar a imagem para o local do milagre. Mais tarde, mandou construir a capela da Nossa Senhora da Nazaré nesse mesmo local que ficou a ser conhecido por Memória, em homenagem ao extraordinário milagre que salvou este herói português.

Lenda da Nazaré

A lenda da imagem de Nossa Senhora da Nazaré remonta a tempos antigos quando o monge grego Ciríaco fugiu com ela para Belém de Judá e a entregou a S. Jerónimo, que por sua vez a enviou a Santo Agostinho, que por sua vez a entregou ao Mosteiro de Cauliniana, a doze quilometros de Mérida. Foi aqui que puseram à imagem o nome de Nossa Senhora da Nazaré por ter vindo da cidade Natal da Virgem. Quando os mouros derrotaram os cristãos obrigando o rei Rodrigo a fugir para Mérida, este levou consigo a imagem mas não se sentindo aí seguro fugiu de novo na companhia do abade Frei Romano que possuía uma preciosa caixa de relíquias que tinha pertencido a Santo Agostinho.

Chegaram os dois fugitivos mais mortos do que vivos ao sítio da Pederneira, hoje chamado da Nazaré, na costa do Atlântico, onde decidiram separar-se. Rodrigo instalou-se no monte de S. Bartolomeu e Frei Romano no monte fronteiriço, combinando comunicarem-se por intermédio das fogueiras que acendiam à noite. Uma noite a fogueira de Frei Romano não se acendeu e Rodrigo foi encontrar o seu companheiro morto. Apavorado, foge com a imagem e a caixa de relíquias para ir morrer perto de Viseu. A imagem e a caixa de relíquias foram encontradas por uns pastores em 1179.

Fontes:
http://lendasdeportugal.no.sapo.pt/

Imagem = http://am-oeste.pt

Célia Musilli (Pilha Poética )


LEMBRANÇA QUASE CHINESA

Nos dias felizes, quando eu caminhava com Chofu-sa, as arrobas levadas ao mercado pareciam leves.
Eu pensava:”Com meu amor crio asas”.
Então, Chofu-sa foi embora e descobri que eram pedras as plumas da minha imaginação…

SABEDORIA QUASE CHINESA

se alguém não te alimenta
inventa
uma manhã de sol
fruta fresca
chá de hortelã
pra despertar a alma
com calma
porque o dia apenas começa
e o amor não combina com pressa

SEGUNDO VOO

este silêncio que atravessa o dia
parece uma borboleta muda
as dúvidas são delicadas...

Fonte:
http://sensiveldesafio.zip.ne
t

Ronaldo Correia de Brito (Eufrásia Meneses)


– Sentada estou. É aqui que me vêem todas as tardes e me imaginam a esperar a noite. O que mais esperaria além da passagem da claridade? A hora em que me trancarei no meu quarto à espreita de um visitante que rondará a casa e que nem sei se é real ou se urdido pela minha fatigada solidão? Meu marido é incerto no vir, e todos o sabem. Pressentem que anoiteço e, se passam à minha porta, me perguntam: “Esperando a noitinha, dona Eufrásia?”. Mas o que me trará a noite além de um vento frio e de um silêncio fundo? O cheiro de carne apodrecida do gado morto neste ano de seca, um bater de portas que se fecham, o balido de ovelhas se aconchegando, o fungar das vacas prenhes, o estalar das brasas que se apagam no fogão.

Meu filho dorme ao lado, numa rede alva e cheirosa. Ouço o seu respirar leve e tenho a certeza de que está vivo. Habitamos este universo de ausências: ele dormindo, eu acordada. Atrás de nós, uma casa nos ata ao mundo. É imensa, caiada de branco, com portas e janelas ocupando o cansaço de um dia em abri-las e fechá-las. Fechada, a casa lacra a alegria dos seus antigos donos, seus retratos nas paredes, selas gastas, metais azinhavrados, telhado alto que a pucumã vestiu. Ela julga e condena os nossos atos, pela antiga moral de seus senhores, de quem meu marido é herdeiro. Assim, se penso no casual nome de outro, o estrangeiro que me olhou com mansidão, ela me escuta pensar e depois, nos meus sonhos, grita-me com todas as suas vozes. Sou escrava destas paredes, prisioneira de pessoas mortas há anos que, agora, se nutrem de mim. Abarcada pelo calçadão alto, onde me sento e olho a eterna paisagem: o curral, as lajes do riacho, a curta estrada, a capoeira, os roçados, as casas dos moradores. Envolvendo tudo, um silêncio e um céu azul sem nuvens, que o vento nem toca. E longe, onde não enxergo, a terra de onde vim.

Já é quase noite. Meu marido e seus vaqueiros tangeram o gado até o curral e voltaram a campear reses desgarradas. Trouxeram as ovelhas, com seus chocalhinhos tinindo e uma nuvem mansa de lã e poeira. Os animais estão magros e famintos. Também os homens. O sol queima e requeima as doze horas do dia e, à noite, um vento morno e cortante bebe a última gota d’água do nosso corpo. Já somos garranchos secos, quebradiços, inflamáveis. Basta que nos olhem para ardermos numa chama brilhante e fugaz, que logo é cinza.

Minhas veias guardam um resto de vida, alimento do meu marido. Ele deita sobre mim, funga, rosna, machuca-me sem me olhar no rosto. Depois cai para o lado. Contemplo o telhado e toco, com as pontas dos dedos, o sêmen morno que molha o lençol.

Não sei como escapar. São tantos os anos e há este filho doce, que repousa na rede. De tardezinha, nos debruçamos na janela e vemos o gado que chega. As vacas mugem, os touros andam lentos. O sol se avermelha, morrendo. É tudo tão triste que choramos, eu e ele. Ensino-lhe o pranto e a saudade. O pai ensina-lhe a dureza e a coragem. Quero este filho só para mim. Fazê-lo ao meu modo é a maior vingança contra meu marido, que me trouxe para cá, terras de Sulidão, onde o galo só canta uma vez a cada madrugada.

É verdade que vim com as minhas pernas, que não fui forçada. Deixei o verde Paraí da minha mãe, onde meu pai descansa morto. Se fecho os olhos agora, vejo os canaviais ondulando e sinto o cheiro da rapadura. Nem sei como os meus pés despregaram de lá. Não consigo recompor o passo, na ligeireza que foi tudo. Um tio me levou para ser professora no Cameçá, a dez léguas de onde nasci. Ficaria por uns tempos na casa dos Meneses, que antes habitavam o Sulidão. Chegados há pouco na nova propriedade, o contato de pessoas civilizadas tinha-lhes imposto a necessidade de conhecer as letras. Meus alunos seriam os filhos: cinco mulheres e nove homens. Os velhos não se dariam a tais vexames.

Uma revoada de aves de arribação me acorda das lembranças. A África acolherá esses pássaros que abandonam o sertão. Se ficam aqui, morrem de fome e de sede. Voam num comprido manto, estendido no céu. Nós ficaremos, chupando a última gota d’água das pedras, lendo no sol, todos os dias, nossa sentença.

Um vaqueiro passa. Um galho de aroeira rasgou-lhe o couro do gibão e do braço. Vão à procura de mastruço para acalmar a ferida. A fome enerva o gado e os homens não conseguiram juntar os garrotes e os touros. Ouço-o dizer que o meu marido está nervoso e ameaçou de morte um chamado João Menandro, o de outras paragens. Desentendera-se. Meu marido, afeito ao mando, quer passar por cima de quem lhe esbarra na frente. Ou terá pressentido o que nenhum gesto meu jamais revelou? Tremo e mostro ao homem um canto do quintal onde poderá achar a sua meizinha. Ele me agradece, parece querer dizer outra coisa, porém cala e me olha com pena. Todos me olham assim. Se passam na minha porta, tiram o chapéu, desejam-me boa-hora e seguem em frente. Apesar dos anos passados, vêem-me como estrangeira. É difícil o caminho que leva aos seus corações. Gostarão de mim, tão silenciosa e distante? Suspeitarão dos meus ocultos sentimentos? Procuro a resposta no vaqueiro e, quando vai embora, se despede num brusco balançar de cabeça.

No começo tentei amar esta terra e sua gente. Trazia a minha fresca alegria, banhada de novo nas fontes do Paraí. Mas aqui o sol queima forte e somos bebidos até a última gota. Seca, deixei de bater às portas e me recolhi ao labirinto da casa, onde continuo esperando. Os homens são o sol abrasante, vistos de dia, ocultos de noite. Na casa dos Meneses, fiquei o tempo de me apaixonar por Davi, meu futuro marido, e de ensinar aos alunos as primeiras letras. Fui tratada a açúcar, enquanto os outros comiam rapadura. Tempo de corredores escuros. Conheci a força dos abraços do meu marido, o ímpeto do seu desejo, e cedi. E aqueci minha alma de mulher e nem perguntei pelo amor. Só ardia. Deixei-lhe a mão solta, o membro sem freios. Cavalgada, retornei à casa da minha mãe e esperei o dia do casamento. Dançamos os três dias de festa, viemos para este seco Sulidão. Esta casa fora abandonada por seus antigos donos, mas aguardava o peso cruel das suas presenças. Coube-nos perpetuar neste sertão uma herança de estirpe, sólida como as pedras do calçadão alto.

Meu filho, mexendo-se na rede, traz-me de volta à casa. Está tudo escuro e terei de acender os candeeiros. Numa noite como esta, passou correndo um lobo-guará. Meu marido deu tiros, mas não o acertou. Falou-se sobre o lobo por muitos dias. São os acontecimentos desta terra. Vivo de silêncio e de lembranças. Às vezes, quando não quero sonhar, penso em nomes de pássaros, retardando a hora em que terei de me trancar a ferrolhos. Procuro esquecer um tropel que ronda a minha janela, todas as noites em que me deito só. É a hora de decidir? Ouço um respirar que não é o meu. A noite é um lençol que cobre a fadiga dos homens. Dominada pelo cansaço, adio mais uma vez a minha escolha. A realidade de uma lâmina de faca, guardada sob o travesseiro, lembra-me o instante em que poderei cortar o sono e cavar a vida.

Um vaqueiro vem me avisar que meu marido não retornará esta noite. Celebram uma festa perto daqui. Vieram músicos e mulheres de longe. Na madrugada, ainda se ouvirão os gritos de prazer e as notas perdidas de uma música que não conseguirei identificar. O homem me oferece a companhia de uma filha sua e eu agradeço. Diz-me que a briga entre meu marido e o que veio de longe deixou no ar uma sentença de morte. A noite poderá trazer surpresas e eu devo me recolher cedo. Estou só. Não há pai, nem há mãe, nem sorriso de irmãos. Só a casa espreita, querendo me tragar.

João Menandro é um nome que se confunde com o meu sonho. Haverá mesmo, lá fora na noite, alguém que me aguarda, ou o meu desejo inventou esse ser? A noite interminável me cansa e penso em apressar o desfecho de tudo. Não há tempo para contemplar passiva o mundo morrendo em volta. A mão se endurece ao toque da lâmina que o travesseiro esconde. Meu marido retornará sonolento. O outro virá até minha janela. Eu me olharei num espelho. Chegará sim, a madrugada. Aquela que poderá ser a última, ou a primeira.

(Extraído de Faca)

Fontes: - MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: d’a Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza: Imprence, 2008. - Imagem = http://rossi.blog.uol.com.br

Ronaldo Correia de Brito (1950)


Ronaldo Correia de Brito (Saboeiro, Ceará, 1950) aos cinco anos mudou-se para o Crato e aos dezoito para Recife, onde estudou medicina. Teatrólogo e ficcionista.

Escreveu teatro para crianças: O Baile do Menino Deus, Bandeira de São João, O Pavão Misterioso e Arlequim; teatro para adultos: O Reino Desejado, Retratos de Mãe, Malassombro, Auto das Portas do Céu e Os Desencantos do Diabo.

Também roteiros de documentários e filmes para televisão e cinema: Lua Cambará (longa metragem para a TV Cultura), Caboclinhos (documentário para a TV Universitária), Brincadeira de Mateus (documentário para a TV Universitária), Cavaleiro Reisado e Brincadeira de Reisado (documentários para cinema), Maracatus (documentário para a TV BBC); além dos livros de contos: Três Histórias na Noite (Prêmio Governo do Estado de Pernambuco de 1989), As Noites e os Dias (Recife: Ed. Bagaço, 1996), Faca (São Paulo: Ed. Cosac & Naif, 2003) e O Livro dos Homens (São Paulo: Ed. Cosac & Naif, 2005).

Fonte:
http://contosbrasileiros.blogspot.com/

Tércia Montenegro (O Vendedor de Judas)


A cidade era outra. Pequena, habitantes escassos. Uma igrejinha só. Duas praças, a lagoa sinuosa e o casarão dos políticos. Não havia cadeia, que o povo era manso. Briga de desonra se resolvia entre famílias; com o boato fervilhando, tudo se ajeitava de pronto. Os crimes de faca nunca aconteciam antes da Serra Branca, fronteira a mais de légua.

Ele chegou; apeou-se. Janelas abriram-se, curiosas, a ver quem surgia de onde e para quê neste fim de mundo. As informações saíam lentas, cheias de reticências, com gosto de pergunta:

- Olhe... hotel aqui... O senhor só acha a pensão da Malvina. Naquela esquina, sabe? Pode ir que tem vaga. Quase ninguém aparece visitando este canto... Sabe?

Ele saiu no rumo indicado. Admiravam-lhe o cavalo de pêlo marrom. Algumas mocinhas vieram à calçada, desfazendo tranças.

De manhã, D. Malvina a custo conseguiu atravessar a rua. A cidade inteira parecia rodeá-la, com vozes atabalhoadas de anseio. Quase gritou:

- Mas já disse que não sei de nada! O homem veio, trancou-se no quarto, jantou por lá mesmo. E acorda agorinha, se vocês não me param com esta zoeira!

Um mulato arriscou, por detrás de umas senhoras:

- E a mala? Um malão daquele tamanho! Ele disse o que tem dentro?

D. Malvina ia aborrecer-se; hesitou. A multidão eriçava com a pergunta. Mais um pouco e os ânimos subiriam à rebeldia.

- Disse que era coisa para vender. – E completou rapidamente: - Não faço idéia do que seja.

Alguns se dispersaram, satisfeitos com a dúvida. A maioria ainda quis acompanhar por uns metros a dona da pensão. O prefeito apareceu, voz grossa sob o farto bigode. Ordem geral: todos para seus afazeres e ele próprio para casa, indagar da esposa se ela adivinhava os detalhes do que já se fazia mistério.

O desconhecido continuou a provocar assunto, suscitar apostas. A hora do almoço no bar do Rufino era o momento mais esperado, tanto pelos homens, que lá iam tentar o fio da prosa com o forasteiro, como pelas jovens casadoiras, que arrastavam olhares e vestidos do lado de fora.

Ao fim de três dias, a notícia, dada pelo dito-cujo, ele mesmo, frente a várias testemunhas:

- Sou vendedor. Fabrico judas. É trabalho de ano inteiro. Antes de chegar a Páscoa, saio vendendo o estoque por esse interior. Cada boneco, uma cidade.

Decepção. Aquilo já era conhecido: a festa da queima do apóstolo traidor. Há décadas o velho Aníbal costurava uns espantalhos forrados de palha e os doava, simplesmente, para serem amarrados nas árvores. Agora teriam de comprar judas? Melhor não haver festa; Judas nunca valeu tostão furado.

O desconhecido parecia esperar aquela reação. Pediu que o acompanhassem ao hotel (assim ele chamava a pensão) para mostrar o produto de seus dons artísticos; obra-prima sempre destruída, no final das contas.

Maravilharam-se. O boneco era perfeito, de feições nítidas, esculpidas na madeira clara. Olhos e sobrancelhas eram pintados; o cabelo vinha em peruca, sem falha ou emenda. O judas se vestia com um paletozinho cáqui muito jeitoso, flor de plástico na lapela. Até sapatos tinha.

Daquele jeito, haveria de custar fortuna. O forasteiro explicou que fazia os bonecos em série – e mostrou outros dois, igualmente trabalhados –, o que barateava a compra de matéria-prima. Além disso, utilizava madeira oca e freqüentemente apodrecida, com revestimento de pano. Tudo na aparência belo, mas, em verdade, feito para acabar numa só noite.

E mais um tanto de palavreado. O quarto sufocante; uma dúzia de homens. Quando o preço foi mencionado, não causou grande espanto. Pediriam fundos à prefeitura; afinal, era uma festa popular, para todo mundo. Devia ser bem comemorada.

O Sábado de Aleluia amanheceu em alvoroço. Grupos de mulheres congestionavam a praça, examinando o judas dependurado no cajueiro. Os homens repetiam as explicações do vendedor, gesticulando muito. Apareceu o velho Aníbal, cara fechada, acompanhando o prefeito. Deu umas apalpadelas no ventre do boneco. Comentou, na estranheza:

- Não está certo.

O prefeito assentiu, nariz torcido sobre o bigode.

- Também acho. Desperdício comprar um troço desses, tão bem-feito, justo para a fogueira.

Aníbal nem escutou. Cheirava a roupa do judas, batia-lhe com os nós dos dedos no corpo de madeira clara. Sacudiu o boneco; o galho ameaçou se quebrar. Alguns protestaram:

- Ó velho, cuidado! Desse jeito estraga o serviço.

Não adiantou tentar explicações. Em pouco tempo, todos levantaram a voz ao antigo vendedor, que este ano guardara os judas, rejeitados, de palha. Praticamente o expulsaram da praça:

- Vá, seu despeitado!

Aníbal desertou, olhos baixos. Ruminava para si, para seus pés cobertos de poeira:

- Não está certo... Não.

E, após o Ite missa est, quando todos corriam de tochas acesas, o velho foi o único a ver, perto da Serra Branca, a minúscula figura do homem montado num cavalo marrom. Ia embora, à procura de outra cidade, que esta – ouvia-se pelo estrondo – explodia em nuvens de pólvora, guardadas no ventre de um boneco traidor.

Fonte:
MACIEL, Nilto. In Literatura sem fronteiras.

Tércia Montenegro (1976)


TÉRCIA MONTENEGRO nasceu em Fortaleza, Ceará, em 1976. Tem graduação em Letras, mestrado em Literatura Brasileira e doutorado em Lingüística pela Universidade Federal do Ceará.

Publicou os livros de contos O Vendedor de Judas (Fortaleza: Edições UFC, 1998; 2 ed, Fortaleza: Demócrito Rocha, 2003), que recebeu o prêmio Funarte, e Linha Férrea (São Paulo: Lemos Editorial, 2001), que recebeu a Bolsa para Escritores Brasileiros da Biblioteca Nacional e venceu o Prêmio Redescoberta da Literatura Brasileira, promovido pela Revista Cult, em 2000.

Escreveu ainda o ensaio biográfico Oliveira Paiva (Fortaleza: Demócrito Rocha, 2003) e participou das antologias 25 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira (Rio de Janeiro: Record, 2004), Contos Cruéis (São Paulo: Geração Editorial, 2006) e Quartas Histórias – contos baseados em narrativas de Guimarães Rosa (São Paulo: Garamond, 2006).

Seu livro de contos O resto de teu corpo no aquário (Fortaleza: Secult, 2005), recebeu o Prêmio Secretaria da Cultura do Estado do Ceará em 2004.

Em 2005, recebeu os prêmios Osmundo Pontes e Fran Martins, pela Academia Cearense de Letras. Tem dois livros infantis, Um pequeno gesto (Fortaleza: Demócrito Rocha/ APDMCE, 2006) e O gosto dos nomes (Fortaleza: Seduc, 2006).

Fonte:
http://contosbrasileiros.blogspot.com/

Jerônimo Mendes (História da Poesia Universal – Breve Relato ) Parte II


Quase todas essas tragédias foram primeiro apresentadas como trilogias, as quais eram seguidas por peças de sátiros – selvagens pantominas em homenagem a Dioniso – no Teatro de Dioniso Eleutério, junto à Acrópole Ateniense.

Os Persas, escrito por Ésquilo e apresentado em 472 a.C. com o jovem Péricles como líder do coro, inovou ao tratar de um tema contemporâneo. A peça descreve a derrota de Xerxes (antigo imperador Persa) frente aos gregos. No poema, Ésquilo descreve a batalha naval de Salamina com detalhes muito mais vividos do que os encontrados nos relatos históricos. A maioria dos seus temas posteriores foi extraída da mitologia e das lendas - épicos sombrios e taciturnos, repletos de paixão e de sangue, nos quais os feitos desastrados dos mortais são mostrados em flagrante contraste à majestade e ao poder dos deuses e deusas do Olimpo.

Das setenta peças que escreveu, apenas sete sobreviveram. A Orestéia, a grande trilogia de Ésquilo, conta a antiquíssima história da casa de Atreu em dois registros : o da intimidade do amor e do ódio humanos, e o da história em seu sentido mais amplo. Atreu, rei de Micenas (ou Argos), matou os filhos de seu irmão Tiestes; apenas um deles, Egisto, sobreviveu. Mais tarde, os filhos de Atreu, Agamenon e Menelau, casam-se com as irmãs Clitemnestra e Helena. Quando esta abandona Menelau por causa de Páris, de Tróia, os irmãos montam uma expedição que dá início à guerra de Tróia, tendo Agamênon sacrificado a própria filha para que os bons ventos facilitassem a travessia marítima.

Em Agamênon, a primeira das peças, o rei retorna vitorioso de Tróia. Em sua ausência, Clitemnestra tomara Egisto com amante e, juntos, eles governam Micenas; para vingar a filha e se manter no poder, ele mata Agamênon.

A riqueza da linguagem e a concentração metonímico-metafórica é de causar alegria e espanto aos olhos de um bom amante da literatura. Veja abaixo uma parte do poema :

AGAMÊNON

( . . . ) foi Helena
levar a Tróia lágrimas e sangue.
Mas aqui, em seu lar abandonado,
lamentações se ouviam, relembrando
a ingrata que partira. Seu marido,
sem comer, sem dormir, qual um fantasma
percorre os aposentos do palácio,
com o pensamento posto além dos mares,
chorando de saudade, e não de ódio.
Um fantasma rondando pela casa,
que um túmulo parece, e não palácio.
O corpo escultural de sua amada
não lhe sai da memória um só momento.
Tem impressão de vê-la: corre em frente
esperando abraça-la . . . Em vão, em vão.
Desfaz-se logo o sonho. Em vão, em vão . . .

Em As Coéforas, Orestes, filho de Agamênon e Clitemnestra, retorna de seu esconderijo e, para vingar o pai, mata tanto a mãe quanto Egisto. Deusas selvagens, as Eumênides, ou Fúrias, o perseguem, exigindo que paguem com seu sangue pela morte de Clitemnestra.

Na peça final, As Eumênides, deusas mais jovens, lideradas por Atena, julgam Orestes perante um júri de mortais e decidem que a vingança foi redimida. Eles aceitam as Eumênides na hierarquia dos novos deuses, como protetoras de Atenas.

Explorando essa trama de relacionamento, Ésquilo discute questões mais abrangentes. Quando atos privados orientaram decisões governamentais, o resultado foi morte e destruição, canta o coro, referindo-se a Helena, no trecho de Agamênon destacado anteriormente. A exigência de vingança aprisiona as nações por gerações; um coro de prisioneiros de guerra lamenta o fato na passagem de As Coéforas. No entanto, em uma nova fase da civilização, esses costumes podem ser alterados e As Eumênides terminam com uma suave canção de paz, conforme podemos apreciar no texto que segue :

Marchai para o vosso lar, grandes amantes da honra,
Filhas da Noite Ancestral, vossa paz foi alcançada.
(E toda palavra é santa).
Nas profundezas da terra, na imemorial caverna,
honradas com sacrifício, com reverência e temor.
(E toda palavra é santa).
Temidas e amigas deusas, que amam e guardam a nossa
terra; e embora devorem chamas, abrem um caminho de
luz, que repousem satisfeitas, todas as vezes
proclamem o triunfo da alegria !
Derramai de novo o vinho em sacrifício incruento,
e o onisciente Zeus guarde a cidade de Palas.
O Deus e o Destino juntos, todas as vezes proclamem
o triunfo da alegria !

Ésquilo procurou no trágico destino de seus personagens confirmar a justiça da ordem divina. “Zeus, que orienta os pensamentos dos homens”, escreveu ele, “estabeleceu que só se alcança a sabedoria através do sofrimento”.

Sófocles, aristocrata, general e amigo de Péricles, considerado muito culto e jovial na época, nasceu por volta de 497 a. C., combateu sob Péricles na guerra contra Samos, conforme dito anteriormente.

Adotou uma visão mais equilibrada do relacionamento entre os homens e os deuses. Sua principal preocupação era o caráter e o modo pelo qual qualquer excesso - de orgulho, por exemplo - podia transformar o equilíbrio natural e levar à ruína.

Extremamente produtivo, elaborou seus dramas com graça e nobreza impecáveis. Também foi um inovador, ampliando os recursos e a flexibilidade de forma trágica - por exemplo, acrescentando um terceiro ator, como citamos no início do capítulo. Sete de suas 130 peças foram preservadas.

A trilogia tebana de Sófocles é um estudo da ambigüidade. Ele mostra que uma pessoa pode ser, ao mesmo tempo, inocente e culpada, praticando o mal com as melhores intenções. A coragem e a aceitação parecem ser as únicas reações frente a um universo racional.

A primeira peça, Rei Édipo (Rei de Tebas, famoso por solucionar o enigma da Esfinge), revela uma história de horror. tão sábio que solucionou o enigma da Esfinge, casou-se com a rainha de Tebas e passa a governar essa cidade. No início da peça, Tebas está amaldiçoada : ela abriga um parricida (Pessoa que matou pai, mãe ou qualquer dos ascendentes ) que desposou a própria mãe, afrontando os deuses. Édipo é esse homem.

Desconhecendo seu parentesco, Édipo havia matado um homem, seu pai, e se casado com uma mulher que era sua mãe. Pouco a pouco ele se aproxima da verdade; nessa fala, Tirésias, o adivinho cego, começa a esclarece-lo. Quando compreende o que ocorreu, Édipo fura os próprios olhos e se exila. Toda grandeza do poema pode ser avaliada no pequeno trecho que segue :

REI ÉDIPO

Se tu possuis o régio poder, ó Édipo,
eu posso falar-te de igual para igual !
Tenho esse direito ! Não sou teu subordinado,
mas sim de Apolo; tampouco jamais seria
um cliente de Creonte. Digo-te, pois,
já que ofendeste minha cegueira,
que tu tens os olhos abertos à luz,
mas não enxergas teus males, ignorando
quem és, o lugar onde estás, e quem é aquela
com quem vives. Sabes tu, por acaso,
de quem és filho ?
Sabes que és o maior inimigo
dos teus, não só dos que há se encontram no Hades,
como dos que ainda vivem na terra ? Um dia virá,
em que serás expulso desta cidade pelas maldições
maternas e paternas. Vês agora tudo claramente;
mas em breve cairá sobre ti a noite eterna.
E agora . . . podes lançar toda a infâmia sobre mim,
e sobre Creonte, porque nenhum mortal, mais do que tu,
sucumbirá ao peso de tamanhas desgraças !

No poema Édipo em Colona, o rei, abandonado por todos, com exceção de sua filha Antígona, acaba seus dias em uma colina fora de Atenas. Seu destino - e o da humanidade - é lamentado pelo coro nos versos mostrados abaixo :

ÉDIPO EM COLONA

Embora tendo vivido uma vida plena,
por vezes um homem ainda deseja o mundo.
Juro que nisso não vejo sabedoria.
As horas intermináveis trazem apenas sofrimento
que aumenta a cada dia; e, quanto ao prazer,
se alguém se curva sob o peso da idade excessiva
não encontra em parte alguma seu prazer.
A derradeira acompanhante é a mesma para todos,
jovens e velhos, pois à sua chegada se revela
a herança do outro mundo que cabe a cada um
cessam para sempre o epitalâmio 1 ,
a música e a dança. A morte é o desfecho . . .

(Nota: epitalâmio: 1. Canto ou poema com que se celebram núpcias, depois de realizadas; a celebração antecipada faz o protalâmio.)

No entanto, o amaldiçoado Édipo também é abençoado: a terra se abre em Colona para levá-lo à morte e libertá-lo, tornando sagrado o local em que ele perece.

Antígona, produzida em 441 a.C. por Sófocles, relata o trágico destino da filha de Édipo, de Tebas, condenada por enterrar o cadáver de seu irmão rebelde. Antígona também mostra um homem que, imaginando agir corretamente, faz o mal.

Creonte, tio e sogro de Antígona, salvou Tebas de revolucionários, dentre os quais o agora morto irmão de Antígona. Para servir de exemplo, Creonte proíbe que o corpo deste seja enterrado. Antígona não pode permitir o sacrilégio, embora seu ato de desafio implique morte. Ela sepulta o corpo do irmão, admitindo o que fez. Como punição, ela é enterrada viva. Creonte percebe sua injustiça tarde demais e também é punido: Antígona se enforca em sua sepultura e o filho de Creonte também se suicida.

Na peça, o coro lamenta por Antígona, referindo-se a mitos trágicos familiares aos gregos: o de Dânae, mencionado anteriormente; o de Licurgo, que se enfureceu contra o deus Dioniso, enlouqueceu e matou seu filho Drias ; o de Fineus, cuja segunda mulher provocou a cegueira dos filhos de seu primeiro casamento com Cleópatra.

Eurípedes, nascido por volta de 480 a.C., era um filósofo austero, recluso e menos idealista do que os outros dois. Das noventa peças que escreveu restam somente dezoito. Escreveu suas peças numa fase tardia da época de Péricles, quando as crenças e os valores tradicionais do mundo helênico estavam sendo questionados. Na sua maioria, as peças refletiam a incerteza, retratando um mundo no qual os deuses estavam perdendo seu poder sobre os gregos, cuja atenção se voltava para as dúvidas e contradições da existência humana. “ Ele retrata os homens como eles são ”, disse Sófocles, que admirava a obra do dramaturgo mais jovem, “ eu retrato os homens como eles deveriam ser ”.

As obras de Eurípedes revelam uma percepção incomparavelmente profunda das paixões e motivações de seus conterrâneos.

As Troianas, encenada em 416 a.C., de Eurípedes, relata o cerco de Tróia e suas conseqüências fascinando a imaginação de todos os gregos, especialmente a dos dramaturgos.

A peça é um longo lamento pelos horrores da guerra - pelos guerreiros que morreram e pelas mulheres levadas cativas. Neste pequeno trecho, Hécuba, a rainha troiana, chora pelo cruel destino que coube a ela e suas crianças :

AS TROIANAS

Ai de mim ! Aqui estou, ao lado das tendas de Agamenon.
Levam-me para a escravidão, uma velha igual a mim, com
a cabeça dilacerada pela afiada lâmina do sofrimento.
É demais ! Lastimosas viúvas dos guerreiros de Tróia e vós,
virgens noivas da violência, Tróia está fumegante,
choremos por Tróia . . .

Eurípedes escreveu também tragédias sobre Ifigênia, a filha de Agamênon; sobre Medéia, a assassina; e também sobre Hipólito, o filho de Teseu, injustamente acusado de tentar seduzir sua madastra. No entanto, sua obra mais brilhante e aterrorizante talvez seja a que tem como tema o próprio deus que era o patrono da arte teatral.

As Bacantes foi escrita no final da vida de Eurípedes, quando o dramaturgo havia deixado a enfraquecida e dilacerada Atenas e vivia na região selvagem da Macedônia.

Dioníso era um espírito primitivo da fertilidade e da criatividade, que deu aos homens o conhecimento do vinho. Era um deus venerado por toda a Grécia com rituais orgiásticos, muitas vezes sangrentos. Aqueles que o aceitavam, diziam os crentes, tornavam-se parte do deus e recebiam a inspiração divina. Aqueles que o recusavam eram levados à loucura. Na peça de Eurípedes, o jovem deus Dioniso surge com seu alegre séquito em Tebas, para ser venerado e provar sua própria divindade : dizia-se que ele era filho de Zeus e uma princesa tebana.

Penteu, o rei de Tebas, um homem inflexível e irritável, repudia o deus e comete o sacrilégio de colocá-lo a ferros. Em seguida, Dioniso enlouquece as mulheres de Tebas e as envia - lideradas pela mãe de Penteu – às montanhas para que festejem como suas seguidoras, as bacantes (Sacerdotisas de Baco, deus do vinho).

Ele também enlouquece Penteu e o atrai para o local onde se encontram as bacantes. Lá, Penteu é morte de maneira terrível por sua mãe enlouquecida, que havia sido levada a um frenesi animalesco. Por decoro, tal cena de violência não aparece na tragédia: um mensageiro descreve o que ocorreu na montanha.

Quase todas as tragédias escritas foram primeiro apresentadas como trilogias, as quais eram seguidas por peças de sátiros - selvagens pantomimas (Arte ou ato de expressão por meio de gestos) em homenagem a Dioniso - no teatro Dioniso Eleutério, junto à Acrópole ateniense.

A enorme concha de pedra do anfiteatro podia receber 15 mil espectadores e apresentava excelente acústica. No interior da concha, havia a orquestra circular ou plataforma de dança, com o altar de Dioniso ao centro e, atrás, a skene, ou cena. Esta era uma plataforma encimada por uma edificação retangular de madeira, cuja fachada ocultava os camarins e os acessórios. Pelas três portas da cena, os atores ou declamadoras faziam suas entradas e saídas. A peça começava quando um ator, usando a máscara de linha e gesso, túnica, capa e coturnos especiais, declamava o prólogo. Em seguida, o coro começava a declamar seus versos. O segundo e o terceiro ator entravam e davam início aos diálogos, os quais se alternavam com comentários do coro, até que a peça chegasse ao final e o coro e os atores cantassem juntos o komoses, lamento final.

Não se conhece a música de acompanhamento das tragédias, mas as palavras dos poetas ainda ressoam com toda a sua força. O importante de tudo que foi relatado neste capítulo é a conclusão lógica e pura de que a poesia dos primeiros tempos exerceu papel importantíssimo na formação cultural dos povos e foi motivo de júbilo para aqueles que dedicaram-se ao desenvolvimento das suas formas diversas e estruturação do pensamento poético, classificadas em odes, elegias, sátiras, epopéias, hinos ou outro gênero.

Os principais poetas eram considerados parte da elite cultural da época e arrastavam multidões, desde simples curiosos e admiradores de rua que se aglomeravam nos locais escolhidos para encenações ao ar livre até os mais afamados filósofos e pensadores da antigüidade, fossem eles críticos ou incentivadores de qualquer modalidade.

A notoriedade da poesia nos primórdios era muito superior à que verificamos na atualidade uma vez que os poemas eram declamados sempre em público e nunca para ouvintes solitários. Toda expectativa dos ouvintes era trabalhada com antecedência pelos poetas e demais pessoas que promoviam os eventos poéticos aliados ao teatro onde os poetas se preparavam ao máximo para não decepcionar a platéia.
––––––––––
Continua
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Fonte:
Monografia feita pelo autor em Curitiba / PR , março de 2001

Casa do Poeta de Canoas (Convocação)


EDITAL DE CONVOCAÇÃO
A Casa do Poeta de Canoas, por intermédio de sua representante legal instituida,
convoca todos seus associados para a Assembléia Geral Extraordinária, que realizar-se-á em:

19/12/2009 - Sábado - 14h

Fundação Cultural de Canoas
Av. Victor Barreto, 2301 - Centro / Canoas

PAUTA:
- Eleição da nova Diretoria para o biênio 2010/2011

Maria Santos Rigo
Presidente da Casa do Poeta de Canoas

Fonte:
Casa do Poeta de Canoas

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Jean-Pierre Bayard (História das Lendas) Parte XXI



CAPÍTULO VI

FORMAÇÃO DE LENDAS RECENTES

CARTOUCHE ET MANDRIN

Dois célebres bandidos de proezas diferentes que souberam cativar a imaginação popular: Cartouche tornou-se assim o bom ladrão enquanto que Mandrin é um salteador temível que socorre os humildes. Desde a morte desses dois personagens, os livros se apoderaram de suas personalidades.

I. — Cartouche

a) Sua vida — Louis Dominique Cartouche, nascido em outubro de 1693 no bairro de La Courtille, em Paris, teve uma educação bastante rudimentar. Aos onze anos foi raptado por um bando de boêmios e aos dezoito já roubava pelos belos olhos de uma pequena roupeira. Recrutador, organizou mais tarde o seu bando de acordo com os principios militares; seus tenentes chamavam-se Duchâtelet, bem como Duplessis d’Entraigues, Louis Marcant, estudante de direito, Pélissier, cirurgião. Como a França estava coberta por uma rede de agentes (teve trezentos e sessenta e seis cúmplices) Pélissier pode atacar o correio de Lião. A audácia desses homens é inacreditável: um pregoeiro proclama a busca de Cartouche, esse se dá a conhecer e apavora a multidão que nada faz para detê-lo. Suas evasões são espetaculares (Fort-l’Evêque).

Apesar de enriquecido pela rua Quincampoix onde François Le Roux despojava os visitantes do banco Law, Cartouche tornou-se receoso — ele próprio foi delator junto a M. d’Argenson. Duchâtelet vende o seu chefe no dia 14 de outubro de 1721; encarcerado no Chatelet e depois na Conciergerie, sua pena de morte foi-lhe comunicada no dia 26 de novembro de 1721. No dia 27, na praça de Greve, já sem esperanças de ser salvo pelos seus, denunciou seus cúmplices, enquanto que no interrogatório, apesar do suplício dos sapatos de ferro, nada confessou.

b) Sua popularidade — Esse bandido sanguinário, supliciado na roda aos vinte e oito anos, foi exposto em casa do ajudante do carrasco: cada curioso pagava um soldo. A Confraria dos Barbeiros-Cirurgiões trouxe o corpo para seu hotel e durante três dias os parisienses puderam desfilar para vê-lo. O molde de sua máscara é conservado na biblioteca de Saint-Germain; outra figura no Museu do Homem.

Sua biografia aparece em 1721, L’Histoire de la vie et du procès du fameux Louis-Dominique Cartouche (História da vida e do processo do famoso Louis-Dominique Cartouche), mas Legrand e Quinault já havia atualizado sua peça quando vieram ver Cartouche na prisão; os italianos seguiram o teatro francês e representaram-no como Arlequim. Uma multidão se formou para assistir essas peças. A aristocracia velo para ver o bandido prisioneiro, o próprio regente saiu das suas comodidades; os gravadores venderam seu retrato, os poetas, entre eles Racot de Grandvai (1725), glorificaram sua coragem, sua inteligência, seu gênio de comando:

Ainsi finit Cartouche, et la Fleur des Guerriers
Laisse sur l’Echafaud sa vie et ses lauriers.
(Assim morre Cartouche, e a Flor dos Guerreiros.
No cadafalso deixa sua vida e seus louros.)

II — Mandrin

a) Sua vida — Nascido em Saint-Etienne-de-Saint-Geoirs em Dauphiné, no dia 11 de fevereiro de 1725, Louis Mandrin é um contrabandista popular com poses de gentil-homem. Em Chambéry é recebido pela nobreza. Mandrin organiza um bando disciplinado e promove verdadeiras campanhas contra os Fermiers généraux. Sua sexta campanha foi sangrenta. Mandrin não ataca os particulares mas obriga os administradores oficiais e intermediários a comprarem os seus produtos contrabandeados; fornece recibos regulares. Mandrin é o gerente de um estabelecimento comercial; escrupuloso quanto aos pesos, as quantidades, insurge-se todavia contra os impostos descontados por quarenta mil empregados detestados. Malesherbes, primeiro presidente da Corte de Apelação, havia também condenado esse abuso.

Mandrin retoma as façanhas de Puymoreau que em 1548, com um bando organizado de seis mil homens lutou contra o imposto da gabela e tomou Saintes, Cognac, Bordéus, libertando os contrabandistas arrestados.

Audacioso, afugenta as tropas de Luís XV que se lhe opõem, ataca cidades inteiras: Autun, Bourg-en-Bresse — (5 de outubro de 1754), Beaune (dezembro de 1754). Liberta os prisioneiros, menos os assassinos e os ladrões; assina libertações e endereça cartas corteses, porém firmes, às mais altas autoridades.

Depois de uma batalha decisiva contra os hussardos da legião de Fitscher, refugia-se na Savóia. Seis regimentos de infantaria e dois de cavalaria foram mobilizados. Mas na noite de 10 para 11 de maio de 1755, raptado por soldados de La Morliêre, do castelo de Rochefort, em território Sardo, os Fermiers généraux instauram imediatamente um processo. A Corte de Turim manifesta-se contra essa violação de direitos e de seu território, mas, no dia 26 de maio de 1755 era executado em Valença. Em seguida, a França humilhou-se perante a Casa de Sardenha e libertou dois companheiros de Mandrin injustamente aprisionados. Mandrin não denunciou nenhum de seus companheiros, fez supor que não era responsável por nenhuma morte; aos trinta e um anos sua morte foi edificante.

b) Sua popularidade — Suas aventuras galantes, suas fugas, suas façanhas audaciosas, seu papel de benfeitor para com a população à qual vendia produtos de excelente qualidade a preços muito acessíveis, fizeram com que o nomeassem “capitão geral dos contrabandistas da França”. Seus irmãos Antônio, Francisco e Cláudio, bem como sua irmã Mariana, ficaram incumbidos de continuar a organização do irmão.

Entre 1755 e 1760, vinte e cinco contrabandistas foram supliciados à roda ou esquartejados e cinco foram enforcados. O povo chorou a morte de Mandrin. O abade Regley criou para os Fermiers généraux uma Histoire de Louis Mandrin (1755) com “detalhes das suas crueldades, dos seus assaltos e do seu suplício”; o que nada mais é do que uma rede de calúnias encontradas em algumas “madrinades”. Os Fermiers généraux pretendiam assim desviar a opinião geral: Mandrin nada mais era do que um salteador. Foi confundido com Cartouche. De fato, a Revolução francesa ia realizar a obra sonhada por esse contrabandista.

Conclusão — Esses homens, com sua coragem audaciosa, tomaram proporções sobrenaturais. Com os louvores desses homens criou-se a lenda. O mecanismo dessa miragem da imaginação popular é assim bem evidenciado. Mais recentemente lembramo-nos de Bonnot cujas façanhas foram multas vezes comentadas, ou do bandido siciliano Giuliano glorificado nas telas cinematográficas. Mas essas lendas ainda novas já não deixam lugar ao simbolismo, somente ao maravilhoso. A lenda de Santa Teresa de Lisieux poderia ser considerada sob esse prisma.
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continua...
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Fonte:
BAYARD, Jean-Pierre. História das Lendas. (Tradução: Jeanne Marillier). Ed. Ridendo Castigat Mores

domingo, 13 de dezembro de 2009

Jean-Pierre Bayard (História das Lendas) Parte XX



IV. — Pierre de Provence

Obra moralizadora é a narrativa de um amor fiel; sua singeleza transmite-lhe uma graça e uma suavidade bem características dos Romans courtois (Romances corteses) nos quais tudo é encantamento e prodígio.

1. — O tema

Pierre de Provence rapta Maguelone, filha do rei de Nápoles. Mas durante a viagem, Pierre, ao perseguir um pássaro que se apoderou de uma jóia, extravia-se. Muito tempo separados, os dois amantes se encontram finalmente e formam o par mais unido.

2. — As fontes

a) Literárias — Romance anônimo conhece-se o manuscrito de Coburgo e a edição gótica de Lião, atribuída a Barthélémy Buyer em, aproximadamente, 1477. Parece que esse texto foi escrito nas regiões do sul da França em, aproximadamente, 1442. As edições Le Roy, em Lião (1485) inspiraram-se no mesmo tema muito popular na Idade Média.

Conforme Gariel (Idée de Montpellier, 1665), o assunto teria sido estudado por Petrarca segundo um texto de Bernard de Tréviez. Esta hipótese é posta em dúvida por Ancona (1889), rebatida por Gaston Paris (Romania, t. XVIII, l889,pág. 511). Parece mais certo ser Tréviez o escultor que ornou o lintel da porta da catedral de Maguelone.

b) Histórico — Vêm-nos ao pensamento a ilha de Maguelone, perto de Montpellier e nos condes de Toulouse; supôs-se ser o bom rei René o conde de Provença (1435-1480). Mas com mais certeza pensou-se em Pierre de Melgueil que ofereceu o seu condado ao papa Gregório VII, no dia 27 de abril de 1085. Sua esposa era Almodis. Esse generoso conde, glorificado pela Igreja de Roma, tornou-se uma figura popular (estudo de A. Germain, 1854).

3. — A sucessão literária

Duas vezes Cervantes citou Pierre de Provence em D. Quixote. As poesias de Tieck, com a música de Brahms, foram editadas em Berlim, em 1911. Mistral trata de Maguelone (Trésor du Félibrige, II, 244) (Tesouro do Felibrige) Esse tema popular inspira numerosos artistas e um sarcófago de mármore existe na catedral de Maguelone.

Os elementos desse romance se encontram nas Mil e uma noites (história do príncipe Camaralzanam e da princesa Badur), no poema italiano Ottinello e Giulia, no romance francês L’Escoufle. O furto de jóias por um pássaro é um caso comum na literatura.

O romance persa Histoire des amours de Cofroès (História dos amores de Cofroès) lembra ainda a narrativa francesa.

4. — Paris e Vienne

Esse romance terminado em 1443 (conforme Biedermann, em 1427), compara-se a Pierre de Provence.

É a história de um invencível cavaleiro que cativa o amor de Vienne, filha do Delfim do Vienense. Paris, como Pierre, é aprisionado no Oriente, na Síria e na Alexandria. Finalmente desposa Vienne.

Esse texto é conservado na biblioteca de Carpentras (n.o 172). Podemos ainda pensar no amor de Flora que corre para o palácio do Sultão na Babilônia a fim de lá arrancar Brancaflor. Aucassin et Nicolette retoma o tema e Aucassin, depois de aventuras cômicas, consegue desposar a filha de Garin de Beaucaire que se opunha aos seus amores.

5. — Conclusão

Paris e Vienne dão um lugar importante aos feitos da cavalaria, mas os dois textos são histórias de amor edificantes nas quais a constância dos amantes triunfa. Pierre de Provence continua sendo uma obra mais humana e mais elegante; o estilo é simples, direto. A clareza e a uniformidade dessa narrativa muito sóbria foram a razão do seu êxito.
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continua...
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Fonte:
BAYARD, Jean-Pierre. História das Lendas. (Tradução: Jeanne Marillier). Ed. Ridendo Castigat Mores