terça-feira, 1 de junho de 2010

A. A. de Assis (A Língua da Gente) Parte 13


12. Rebaixa de fatos de banho

Aproveite: estão liquidando os maiôs. Isso mesmo: em Portugal, rebaixa é liquidação; fato é roupa; e fato de banho é, naturalmente, traje de praia: maiô, biquíni, calção etc.

Quando você for lá, vá sabendo: a língua é (quase) a mesma. Sublinhe o pormenor: quase. Nos jornais de lá você vai logo notar algumas diferenças gráficas. Por exemplo: eles escrevem académico, Amazónia, António, bónus, fémur, fénix, fenómeno, quilómetro, ténis... (com acento agudo, quando aqui marcamos tais palavras com acento circunflexo); eles conservam, mais do que nós, as consoantes chamadas “mudas” (escrevem acto, accionista, adopção, baptismo, correcto, director, excepção, óptimo, optimismo...). Na linguagem oral também será fácil perceber características interessantes: eles “engolem” alguns fonemas: cr’oa, difr’ente, espr’ança...; eles usam habitualmente, no tratamento íntimo, o pronome tu; e no tratamento mais cerimonioso, além de o senhor, a senhora, a senhorita, valorizam muito a fórmula Vossa Excelência.

O que mais chama atenção, entretanto, é o vocabulário. Você, por certo, já ouviu falar que bicha em Portugal é fila, daí resultando frases como estas: “Ontem à noite havia uma bicha enorme na porta do teatro”... “Favor não furar a bicha”... E como baguete (pão) é cacete, não estranhe se ouvir alguém dizer: “Entrei na bicha para apanhar um cacete quentinho”. Outra palavra curiosa é troço (trecho de estrada). Você poderá encontrar placas assim: “Troço escorregadio”... “Longo troço em declive”...

Autocarro é ônibus, berma é acostamento, peão é pedestre, e aparcar é estacionar. Descapotável é conversível, gasolineiro é frentista de posto (hoje raramente encontrável por lá), boleia é carona, e demasia é troco. Romagem é romaria, renda é aluguel, betão é cimento, e piroso é brega, jeca. O avião, quando levanta voo, descola; quando desce, aterra. Canalizador é encanador, casa de banho é banheiro, e banheiro é como se chama o salva-vidas. Retrete é privada, autoclismo é caixa de descarga, defumos é exaustor, e esquentador é aquecedor. Pastilha elástica é chiclete, sandes é sanduíche, e ementa ou preçário ou carta de pratos é o que chamamos cardápio ou menu. Capachinho é peruca, penso é curativo, e casa com recheio é casa com os móveis. Mandato a distância é controle remoto; atendedor automático ou gravador de chamadas é secretária eletrônica, e ficha é tomada. Relvado é campo de futebol, equipa é time, e golo da igualdade é gol de empate. Camião é caminhão, camionista é motorista, e portagem é pedágio. Estomatologista é dentista, peúga é meia para homem, e elétrico é bonde.

Mas nada disso é problema, porque tanto lá como cá amizade é amizade, amor é amor, abraço é abraço. Um abraço enorme, que já dura mais de 500 anos e que a cada dia é mais dengoso.
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Fonte:
A. A. de Assis. A Língua da Gente. Maringá: Edição do Autor, 2010

Davi Martins (O Galo de Barcelos)



Eram tempos de devoção aqueles, em que os cristãos firmavam e consolidavam a sua presença no Reino de Portugal que acabava de se tornar independente do Reino de Castela para, a partir de então, seguir o seu próprio destino.

Ora, isso aconteceu já lá vão quase novecentos anos. Nesses tempos remotos as pessoas não tinham uma idéia de fronteira, clara e nítida, como aquela que nós temos hoje. Esses portugueses, nossos antepassados, veneravam S. Tiago e invocavam a sua proteção, com a mesma fé com que nos nossos tempos veneram Santo António, como se o santo fosse uma espécie de avô simpático e bonachão de quem se lembravam nos momentos difíceis.

As pessoas deslocavam-se a Compostela para pedir uma graça ao Apóstolo, tal como hoje recorrem à ajuda de um amigo influente. Para lá chegarem caminhavam léguas e léguas, dormiam ao relento, comiam por caridade, numa choupana ofereciam-lhes uma tigela de sopa, mais adiante um camponês repartia com eles o seu pão escuro.

Humilde, vestido de estamenha (hábito de frade), um peregrino seguia o seu caminho, a estrada de Santiago, apoiado no seu grosso bordão. Talvez porque não fosse tão pobre como outros, pernoitava nas estalagens.

Na noite em que este homem encontrara abrigo na pequena hospedaria de Barcelos, uma aldeia nos confins de Portugal, já muito próxima da Galiza, nessa noite, dizia eu, quis a pouca sorte que o dono do estabelecimento tivesse dado pela falta de uma bolsa com moedas de ouro que era toda a sua fortuna.

Algumas pessoas tinham passado lá o serão, comendo, bebendo, contando histórias e conversando numa grande algazarra, sentadas diante de uma grande lareira onde ardia um enorme tronco, enquanto esbravejavam com a animação e agitavam canecas de vinho por cima das cabeças. Qualquer deles poderia ter sido o larápio, mas eram todos vizinhos, conhecidos e amigos de longa data, pelo que o estalajadeiro não desconfiou dos seus clientes habituais. Esta razão foi quanto bastou para que as suspeitas recaíssem sobre o nosso peregrino, suspeitas logo seguidas da acusação:

- Ladrão! Foste tu, só podes ter sido tu, que aqui toda a gente se conhece. Não escapas, vais ver! O juiz logo te dirá! Verás o que te espera!

E assim foi. O juiz sentenciou o homem como tendo sido ele o autor do roubo, apesar de as moedas não terem sido encontradas na sua posse, e logo ali o condenou a morrer na forca.

Quando o carrasco o conduzia para o meio da praça onde ia ser executada a pena, o peregrino lembrou-se de pedir:

- Esperem! Levem-me outra vez ao juiz, que eu ainda tenho uma coisa para lhe dizer.

Após alguma hesitação, o homem foi levado à presença do juiz que estava agora sentado à mesa e se preparava para se banquetear com um belo capão (galo) assado
que estava na sua frente, temperado e tostado que fazia crescer água na boca.

- Meu senhor, ouvi mais uma vez que estou inocente do crime de que me acusam. Tomo Nossa Senhora por minha testemunha e aqui mesmo lhe peço que me faça um milagre. Se aquilo que eu digo for verdade, e eu estiver inocente, esse galo que tendes na vossa frente e vos preparais para comer, agora mesmo tornará à vida, se levantará e cantará!

Naquele preciso momento, o galo deu um pulo dentro da assadeira e começou a cantar.

Os presentes ficaram boquiabertos e de olhos esbugalhados. Nunca tal se vira.

O homem tinha conseguido provar a sua inocência e ao juiz apenas restou deixá-lo ir-se embora em paz.

O galo ficou imortalizado através do artesanato em barro produzido na região de Barcelos que a imaginação dos oleiros tem recriado, geração após geração, profusamente colorido.

Fonte:
Davi Martins. Estórias e Lendas de Encantar.
Imagem = http://portukale.com/

Aníbal Machado (Cadernos de João)



Análise da obra

Publicado em 1957, Cadernos de João traz a seguinte nota introdutória: "Estes cadernos encerram, revistos e aumentados pelo autor, o ABC das Catástrofes e Topografia da Insônia (Hipocampo, 1951, edição de 120 exemplares) e Poemas em Prosa (Coleção Maldonor, Editora Civilização Brasileira, 1955, edição de 330 exemplares), sendo que os Poemas não obedecem à ordem primitiva". Além dos citados poemas, de algumas crônicas, está em Cadernos uma variedade caleidoscópica de reflexões, imagens, parágrafos descontínuos em que o humor e o lirismo constituem nota constante.

Além dos citados poemas, de algumas crônicas, está em Cadernos uma variedade caleidoscópica de reflexões, imagens e parágrafos descontínuos em que o humor e o lirismo constituem nota constante.

A relação dialética ali estabelecida entre o escrever e o viver, que mutuamente se fecundam, referendam a auto-classificação da Aníbal Machado como "sobretudo um surrealista", conforme entrevista que concedeu a Jones Rocha.

Cadernos de João é o que se pode considerar uma promessa tardia de Aníbal Machado, pois carrega, em pleno Terceiro Tempo Modernista, forte tempero da Primeira Fase do Modernismo. Tal se explica por seu autor ter participado intensamente da Semana de 22, inclusive alimentando-lhe no campo teórico, mas ter se guardado para o grande público.

Dessa forma, Aníbal Machado consegue casar inovação e maturidade. O primeiro aspecto revela-se pela busca de formas e temáticas novas, pelo toque surrealista de suas construções e pelo tom crepuscular, melancólico dos simbolistas do início do século XX. O segundo justifica-se pelo fato de o escritor ter demorado muito para ser editado, o que ocasionou seu encorpamento (há quem aponte na dilação ou atraso o motivo para uma possível pouca qualidade do escritor, já que, tanto tempo encubado, acabou gorando, tal a impressão de ele não estar apresentando nada de novo. No entanto, existem os que vêem aqui que esse clima de “falta de novidade” foi provocado por Aníbal Machado, seus textos e teorias serem por muito tempo comentados, falados. Quando os publicou, já se conhecia há muito suas capacidades e potencialidades).

Quando se menciona a herança simbolista do autor, é importante notar a principal contribuição que recebeu desse movimento literário: a prosa poética. A obra em questão utiliza pequenos fragmentos em sua imensa maioria em prosa, mas vazados de uma alta elaboração de linguagem e de lirismo, característica mais comum na poesia. Tal forma de composição é a que melhor cabe no escritor, pois lhe dá liberdade para a expressão das inúmeras vozes que povoam o seu imaginário de artista sensível (é interessante notar que essa idéia é semelhante a um dos seus textos, A Insurreição dos Internos, em que o eu-lírico confessa estar dominado por inúmeros eus internos, todos malignos, e que sua única saída seria fazê-los sair).

Temática

Busca do Novo – Perfeitamente encaixado no espírito da fase heróica do Modernismo, Aníbal Machado busca sempre escapar à rotina por meio de uma forma diferente, inusitada de enxergar a realidade. Veja como isso se revela no excerto abaixo:

Espaço

O pássaro agonizante põe pela boca os milhares de quilômetros que devorou pelos ares.

Note que muitas vezes, como acima, a novidade está apenas em enxergar o velho, o rotineiro de forma diferente, bastando uma simples inversão de óptica.

Considerações Filosóficas

Assumindo o posto de grande teórico do Modernismo, o autor derrama reflexões quase que doutrinárias, ou seja, com a preocupação de passar ensinamentos. É como ocorre abaixo:

Parece absurdo mas é compreensível que, no céu falso das vaidades endurecidas, o avanço de certas verdades tenha de ser protegido por um grupo de pequenas mentiras.

O melhor momento da flecha não é o de sua inserção no alvo, mas o da trajetória entre o arco e a chegada – passeio fremente.

Narrações

Alguns textos contam histórias plenas de emotividade, algumas até de dramaticidade. Aproximam-se muitas vezes das crônicas narrativas.

Descrições Poéticas

Ao contrário das descrições típicas, sua preocupação não é apenas caracterizar, tornar único o objeto descrito. Há também a intenção de tornar a linguagem ímpar. É o que se vê a seguir:

A CASA ROUCA

Ficara o galo, sobrevivência da ruína.

Rouco o seu canto. Canto que não parecia mais de galo, senão a própria voz da casa abandonada. Casa rachada ao sol, aluindo-se ao vento de chuva.

Não mais agora figuras humanas entrando; apenas lagartixas e morcegos para recepção às sombras.

Casa rouca submersa no matagal, teu galo ficou. E seu canto perdeu o timbre de sol, já não inaugura os dias. E se fez adequado aos estragos do reboco, à podridão das esquadrias – última secreção de pareces gemidas.

Galo rouco. Casa rouca.

O texto acima possui inúmeros exemplos de elaboração lingüística, mas o mais marcante é o que caminha para o cruzamento entre a idéia de casa e a de galo, a ponto de os dois possuírem o mesmo adjetivo, variando apenas o gênero: rouco / rouca. O silêncio de um equivale ao abandono e decadência da outra.

Retratos de Personagens

Em vários momentos, alguns com o mesmo título, pipocam descrições de figuras humanas. Vale aqui o que se observou em vários momentos desta análise: busca-se sempre o inusitado, o diferente, ou pelo menos um olhar novo sobre o velho.

Lições para a Vida

Vários textos de Cadernos de João passam ensinamentos para um viver melhor que implica a valorização de um estado de simplicidade da existência em contato com os prazeres esquecidos em nosso cotidiano urbano, burguês e pragmático. É o que se pode ver em O Banho das Cinco Esposas ou abaixo:

Consumimos o melhor tempo da vida a apalpar o terreno, reunir dados, instalar sondas, armar os aparelhos, ajuntar material. Tudo para começarmos a viver. Quando se aproxima o dia da prova – que dia? que prova? – nossas armas estão caducas, o celeiro apodrecido. Vem-nos então a revolta contra as extorsões do tempo; depois, a desconfiança de que fomos logrados.

E não nos conformamos em reconhecer que na longa prorrogação com que disfarçamos o nosso medo de viver estava a própria realização de nossa vida.

Viver é o mesmo que preparar-se para viver.

Metalinguagem

É uma constante na obra a análise sobre o ato de escrever, como se o escritor se voltasse sobre si mesmo ou se se enxergasse durante a sagrada ação da escritura. É o que percebemos no trecho a seguir:

Retira do teu poema as estridências do grito, se queres que ele tenha mais alcance e ressonância.

Note que sua postura, muitas vezes, é doutrinária, o que é justificável, já que se consagrou como um dos grandes teóricos do Modernismo.

Imagens Surrealistas

Constante em toda a obra, a técnica de associar caótica e desconexamente idéias e palavras é uma das marcas registradas de Aníbal Machado. O escritor parece estar liberando todo o seu inconsciente, possibilitando imagens que são fruto do delírio, do sonho, do onírico.

Epigramas

Seguindo o seu caráter doutrinário, o autor vaza em alguns momentos textos extremamente curtos, mas densos de reflexão. É o que acontece no exemplo abaixo.

O homem que ri liberta-se. O que faz rir esconde-se.

Teu inimigo de certo modo te pertence: é um dos teus aspectos.

Fonte:
http://www.passeiweb.com

Astolfo Lima Sandy (O Menino Que Desejava Reinventar o Mundo)


As estantes do meu avô materno – velho Mestre de Latim e primo legítimo do notável poeta Gerardo Melo Mourão – eram todas na chave, e somente através do vidro de cada porta eu conseguia visualizar a lombada das belas encadernações francesas de mil oitocentos e antigamente. Postava-me um tempão a escorrer a vista pelas prateleiras, soletrando nomes estrambóticos que eu imaginava pertencerem aos inventores do mundo: Shakespeare, Goethe, Hordellin, Sófocles, Aristóteles e tantos mais. Machado de Assis e José de Alencar seriam apenas amigos do vô, e a esses eu concederia menor importância. Interessavam-me, isto sim, os caras das capas luxuosas aos quais, vez por outra, meu estimado velho se punha a manusear como se estivesse degustando delicioso cálice de vinho. “Formidável” – repetia para si mesmo em voz quase inaudível, olhos fitos em um poema de Banville.

Ficava eu de longe a torcer que vovô esquecesse as chaves em algum lugar, o que dificilmente ocorria, dado que naquele tempo era comum mantê-las sempre em fecho, penduradas no cós das calças, do modo como ele fazia em gesto automático logo que abria ou travava uma fechadura. Apenas uma vez vacilaria, por conta de um filho seu que acabara de chegar de Fortaleza e com quem ficara a bater papo e consultar livros durante horas. No abre e fecha de estantes, terminaram por deixar só encostada a porta da principal, do que me aproveitei para subtrair o livro mais bonito. Fui flagrado, contudo, por meu sábio avô no exato instante em que virava a primeira página da Divina Comédia “Não é um tipo de leitura adequada para sua idade” – diria, recolhendo o tomo do Paraíso, que eu só tentaria desvendar alguns anos mais tarde.

Meu primeiro contato com o universo da literatura, portanto, foi essa coisa meio que transgressora, misto de curiosidade e temor, porém sincera e espontânea a ponto de consolidar em mim profundo respeito pelos verdadeiros astros da boa escrita. Não que eu viesse a me transformar num sujeito seletivo em suas futuras leituras ou mesmo nas eventuais construções literárias que pudesse produzir um dia. Nada disso. Bem ao contrário, vez que até escreveria livros, mas nunca me supondo escritor ao molde como ficou cunhada em mim a imagem de um verdadeiro artista das letras. Seria, quando muito, um escrevinhador autônomo, contido, apenas a perpassar as banalidades do cotidiano, sem ousar nas tentativas vãs, jamais querendo me estender nos assuntos mais relevantes que já haviam sido vasculhados pelos reais construtores da Literatura.

E foi imbuído desse espírito, despojado de ambições menores que adentrei, já maduro, ao cenário onde pontificavam os senhores e senhoras do velho tronco genealógico que controla nosso Estado desde que Martins Soares Moreno por aqui aportou, conforme já relatei na minha Breve História da Literatura Cearense, publicada neste blog. Ou seja: era eu (e ainda sou) figura totalmente indesejável ao meio. Um sujeito sem cargos nas administrações públicas, distante das academias, desprovido de títulos e que, embora originário de uma família que ajudou a desbravar seu amado Ceará, tentava credenciar-se com um nome que, se em Minas Gerais (terra de meu pai) dava título a uma cidade, aqui, para eles, nada representaria. “Quem?” – costumavam indagar, desdenhosos e infames. “Astolfo Lima sandy, já ouviram falar?” – respondiam entre dentes, sem que pudessem disfarçar o risinho não menos cafajeste.

E todo esse falso desassombro, essa empáfia desmedida e esse deliberado boicote ao meu texto, se fizeram mais acentuados depois que redigi um “Abecedário de Autores Cearenses” e joguei na Internet, denunciando logo em seguida algumas farsas que eram bastante comuns por aqui. Por exemplo: se houvesse um Concurso Literário, era quase certo que o vencedor estaria dentre aqueles mais visíveis nas colunas sociais, geralmente um medalhão prenhe de títulos e condecorações, mas com uma escrita questionável. Deles que chegavam ao cúmulo de intimidar os jurados que não fizessem parte da mesma confraria. “Olhem, eu estou participando desse Prêmio, viram bem?!” Certa vez duas instituições muito populares por aqui firmaram parceria na elaboração de um Concurso Literário que oferecia ótima grana em dinheiro e mais uma viagem à Europa. Sabem quem ganhou! Pois é: um deles, que, por acaso, ocupava a vice de uma co-patrocinadora do evento, o que era proibido pelo regulamento. Levou o prêmio no grito, sem que enfrentasse qualquer resistência por parte daqueles que haviam sido logrados. Apenas este que vos fala teve a hombridade de por a boca no trombone, se bem que a partir de então se transformasse em “persona non grata” no mundinho torpe da literatura provinciana.

A mesquinhez chegou a um ponto tal que eu jamais ganharia qualquer prêmio no Ceará, ainda que tivesse os mesmos textos contemplados em vários outros Estados da Federação, inclusive recebendo o Prêmio da Biblioteca Nacional pelo livro “A Grande Fábrica de Brinquedos”, que fora sistematicamente ignorado em todos os concursos em que eu o submetera por aqui. Apenas uma única vez, começo do ano passado e quase uma década depois de haver lançado meu primeiro livro, tive um romance premiado por um órgão oficial da terra, se bem que eu não entenda até o presente momento o motivo de terem demorado mais de um ano para depositarem a primeira parcela correspondente ao mesmo, o que só ocorreu no mês passado, após eu ter ido pelo menos uma dúzia de vezes a tal repartição, sem que me explicassem claramente o porquê de tanta demora. Uma coisa desgastante em que até cogitei de comunicar ao Governador, um político honrado a quem vivo a enaltecer pela excelente administração que está fazendo em nosso Estado, e que muito provavelmente nem tomou conhecimento desses pequenos “entraves burocráticos”.

Em off, da boca ferina de alguns espiroquetas que tiveram suas obras desclassificadas no referido certame, cheguei a escutar que o prêmio seria anulado, muito embora eu já estivesse com o contrato assinado e o resultado devidamente publicado no Diário Oficial. Tudo não mais que guerrinha psicológica – imaginei – ainda que eu não pudesse descartar nada em uma terra onde eles podem simplesmente tudo. A única coisa que me deixou mais tranqüilo foi saber que um dos jurados que selecionaram as obras é gente famosa na literatura nacional. Será que se atreveriam?

Fontes:
Ceará, Terra do Sol. http://cearaterradosol.blogspot.com/

segunda-feira, 31 de maio de 2010

A. A. de Assis (A Língua da Gente) Parte 12



11. Cardio ou corde?

Cardio ou corde, o coração é o mesmo. A diferença é que cardio é grego e corde é latim. A medicina usa preferentemente a forma grega (cardiologia, cardiopatia, eletrocardiograma). Corde (em latim cor, cordis) aparece mais na linguagem figurada, tomando-se coração como símbolo dos sentimentos e da vontade. Daí temos, por exemplo, cordial ( = de coração). A propósito, é bom lembrar que o tradicional “cordialmente”, no fecho das cartas, só se justifica quando de fato existe amizade “de coração” entre o remetente e o destinatário. Com igual sentido, temos ainda os verbos concordar (para indicar que dois corações convergem, isto é, ambos “querem” a mesma coisa) e discordar (para indicar que dois corações divergem, isto é, um “quer” alguma coisa e outro quer algo oposto). Durante muito tempo as pessoas acreditaram também que o coração fosse a sede da inteligência e da memória, daí resultando a expressão saber de cor (ter na memória) e os verbos decorar (memorizar) e recordar (trazer de volta à memória).

Aproveitando o fio da meada, parece oportuno recordar um pouco daqueles adjetivos “chiques” chamados eruditos. Daremos a seguir uma pequena lista, colocando entre parênteses o substantivo a que cada adjetivo se refere: acrídio (gafanhoto); adamantino (diamante); álgico (dor); angelical (anjo); anímico (alma); anserino (ganso, pato); aquilino (águia); argênteo (prata); arietino (carneiro); asinino (burro, jumento); áureo (ouro); auricular (orelha, ouvido); austral (sul); avuncular (tio); axial (eixo); bélico, belicoso (guerra); bubalino (búfalo); canoro (canto); capilar (cabelo); ciático (quadril); cínico (cão); columbino (pombo); consuetudinário (costumes); cúprico (cobre); digital (dedo, número); domiciliar (residência); ebúrneo (marfim); eclesial (igreja); embrionário (embrião, início); êneo (bronze); episcopal (bispo); epistolar (carta); equino (cavalo); etílico (álcool); falimentar (falência); felino (gato); fiducial, fiduciário (confiança); fluminense, fluvial (rio); fraterno (irmão); gástrico (estômago); glacial (frio, gelo); hebdomadário (semana); hepático (fígado); heráldico (brasão); hígido (saúde); hípico (cavalo); ictíico (peixe); ígneo (fogo)...

Laborioso (trabalho); lácteo (leite); lúdico (brinquedo, jogo); matutino (manhã); meridional (sul); mnemônico (memória); monacal, monástico (monge); monetário (moeda); ocidental (oeste); murino (rato); ocular (olho); náutico (barco, navio); nodal (nó); ofídico (cobra); onírico (sonho); oriental (leste); ovino (ovelha); papilonáceo (borboleta); paradisíaco (paraíso); pecuniário (dinheiro); persecutório (perseguição); pétreo (pedra); písceo (peixe); plúmbeo (chumbo); pluvial (chuva); probatório (prova); pueril (criança); radical (raiz); renal (rim); sacarino (açúcar); senil (velho); setentrional (norte); sideral (astros, estrelas); somático (corpo humano); telúrico (terra); uxoriano, uxórico, uxório (esposa); varonil/viril (homem, varão); vascular (vasos sanguíneos); venoso (veia); vesical (bexiga); vespertino (tarde); vulpino (raposa).
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Fonte:
A. A. de Assis. A Língua da Gente. Maringá: Edição do Autor, 2010

domingo, 30 de maio de 2010

Silviah Carvalho (Sonoridade Poética)


VENTO DA MUDANÇA

Sinto o vento da mudança em meu rosto,
uma troca de pele fora de tempo,
sendo o vento a trazer o perfume desconhecido,
tornando as águas dentro de mim em lamento.

Como se eu pudesse controlar as estações,
misturo lugar e tempo, algo que não entendo...
acima do alcance da minha mente, da minha visão
mas que faz pulsar vorazmente meu coração.

Inquietude vã, pois o vento sopra onde quer,
e eu só diminuo a força do lume,
(querendo na verdade extingui-lo), move o meu
ser em discórdia com tempo, não remo contra a maré.

Aceito de bom grado a solidão... Novamente (!)
companheira e amiga da minha fé
dou a carta de alforria ao amor, porém, tristemente.

Peço que vá, é livre! leve seu amor e não lamente,
vives-te em mim o tempo necessário,
para não ser esquecido, infelizmente.

Deixe o frescor deste vento que me muda,
amadurecer dentro de mim a sua ausência,
sem lágrimas nem retorno... E sem clemência.

AS MÃOS E O FRUTO

Como olhar numa tela uma paisagem, ver-se dentro dela,
Fazer dela tua morada, ali tudo poderá acontecer,
Seremos marionetes na sua mão... Até quando!
O fruto maduro caiu da árvore, esmagou-se ao chão,
Quem se importa? O poder te enaltece,
Tens mais que uma vida, a minha. Quantas mais te fartarão?

Era só uma imitação, não era para vê-lo, nem amá-lo,
Nem confundi-lo com um menino? Sua fome era grande,
Quem poderia contê-lo? Alimentou-a, hoje ela vive morta!
As águas passam o rio não! A cor dos olhos não muda,
No lavar de nossas lágrimas. É tempo de recomeçar,
Seguir novo rumo. Simplesmente, muda seu destino.

Não acredite em seus sonhos, melhor mudar de plano,
Assim pusestes um fim. Temor? Talvez, pensava que era
Só um sonho de menina, mais um sonho... Outra menina!
Não era! É amor verdadeiro, Você se entristece ao vê-la de
Novo vivendo sem vida? Não deixe que eu creia no que penso,
Pois penso que tua verdade, não é ponto de partida.

Vem a tempestade, o vento sopra forte,
O Carvalho, porém, aprofunda suas raízes no chão,
Um fato. Tome como lição, tire proveito disto, finca tuas raízes
Na realidade, faz nela morada. Deixe de construir castelos na areia,
Pois, ainda há quem crer em contos de fadas.

Sou um carvalho, mas não tenho a força dele,
Sou só um galho agora preso ao seu coração,
Planta-me, deixe que eu aprofunde minhas raízes,
São raízes de amor sincero que não terminam nunca,
Ainda que caia o tronco, elas ficam numa eterna espera.

Será que as chuvas do amor sobre elas cairão, regando-as
Para que se vistam na primavera? Será que deixará que
Eu morra aos teus pés, será que sua estiagem matará seu coração?
Eu pensei que houvesse sentimento, que houvesse verdade nessa ilusão.
...Mas agora, você é o fruto, eu as mãos.

QUEM DERA...

Ah, alma, pode ser que você chegue às margens do pior
antes de ser libertada e, em uma síncope não voltes mais,
... Quem dera dominar o tempo e as estações!
contar meus dias, mudar de pele, dominar minhas emoções.

Quem dera poder voltar atrás, fazer outras escolhas, consertar
meus erros, eu escolheria não amar mais. Não é o amor que me
assusta e, sim, as conseqüências do amar desesperadamente...
Um amor plenamente possível morre, inconseqüentemente.

Não posso dizer que haja chance, ou que a vida faz sentido,
pois o fardo do sofrimento parece uma pedra pendurada
em meu pescoço, é ela que faz o peso necessário para conservar
no fundo o meu querer...talvez assim nunca mais me faça sofrer.

Na tempestade vi o quanto era frágil minha embarcação,
observei a Águia quando rasgava as alturas e não se inquietava
a respeito de atravessar o rio, enquanto que, o só imaginar, dentro
de mim desfalece o coração... Esvazio-me nesta triste e fria canção.

Descubro que nada é em vão, mas que tudo é propicio a mim,
o sofrimento me põe à parte na vida como um decreto de morte,
ausente de tudo que me faz bem, abatida, me entrego resignada,
esperando as palavras certas para, enfim, ser libertada.

Fonte:
http://www.silviah.net/

A. A. de Assis (A Língua da Gente) Parte 11



10. Um régulo na panturrilha

Não se assuste se ouvir alguém dizer que fulano tem um régulo na panturrilha. Significará apenas que o tal fulano tem um reizinho na barriguinha. Se os diminutivos em português fossem todos marcados por inho ou zinho, seria moleza (barquinho, barzinho). O problema é que muitos deles vieram prontos do latim, mantendo a forma erudita; outros chegaram até nós via espanhol, francês, italiano, e alguns nem parecem diminutivos. Por exemplo: é fácil entender que caixinha é diminutivo de caixa, porém nem todos percebem de imediato que cápsula (do latim capsa = caixa) é a mesma coisa, isto é, uma caixinha.

Assim também acontece com régulo, diminutivo erudito de rei, e com panturrilha, palavra que pedimos emprestada ao espanhol e que em geral é empregada no sentido de barriga da perna (daí que os jogadores de futebol frequentemente se queixam de “contratura na panturrilha”). A palavra tem origem no latim pantex (= barriga), que virou panza em espanhol e pança em português. De pantex temos também os verbos empanturrar e empanzinar.

Pode ser útil anotar outros diminutivos igualmente interessantes: asterisco (diminutivo do lat. aster = astro, estrela – repare que o asterisco [*] é uma estrelinha); botija (do lat. buttis = pote, tonel); caniço (de cana, cano); cassete (do fr. casse = caixa – cassete é a caixinha onde se guarda a fita); castanhola (de castanha); castelo (do lat. castrum = fortaleza); cedilha (diminutivo da letra grega zeta [z] – o sinal que colocamos embaixo da letra ç era originalmente um pequeno z); crepúsculo (do lat. crepus = escuro); cubículo (de cubo); donzela (de dona); edícula (do lat. aedes = casa); espátula (de espada); fascículo (do lat. fascis = feixe – de varas, de folhas de papel etc.); flâmula (do lat. flama = chama); flóculo (de floco); flósculo, florículo (de flor); folíolo (de folha); goela (do lat. gula = esôfago); gorjeta (de gorja = garganta); grânulo (de grão); janela (do lat. janua = entrada, porta); lagartixa (de lagarto); lamparina (de lâmpada); luneta (do lat. luna = lua); maçaneta (de maçã – as maçanetas antigas tinham, quase todas, a forma de uma pequena maçã); mantilha (de manta); moela (provavelmente de mo, moinho); molécula (do lat. moles = massa, corpo); músculo (do lat. mus, muris = rato – observe que o bíceps tem a forma de um ratinho); neblina (do lat. nebula = névoa); nódulo (do lat. nodus = nó); opúsculo (do lat. opus = obra); ósculo = beijo (do lat. os, oris = boca – para beijar a pessoa contrai os lábios, faz uma “boquinha”); palito (do lat. palus = pau); parcela, partícula (de parte); pastilha (de pasta); película (de pele); pipeta (de pipa); radícula (do lat. radix, radicis = raiz); roseta (de rosa); sarjeta (de sarja = escoadouro de águas); Venezuela (de Veneza – o nome foi dado pelos colonizadores ao observarem o grande número de cabanas construídas sobre estacas nas águas do lago Maracaibo, lembrando uma pequena Veneza); versículo (de verso); vesícula (do lat. vesica = bexiga); vírgula (do lat. virga = vara – a vírgula tem a forma de uma varinha).
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Fonte:
A. A. de Assis. A Língua da Gente. Maringá: Edição do Autor, 2010

Lucia Rodrigues (O Ócio e a Palavra)

Lá estava eu ociosa, o físico, porque serviço braçal tinha, e muito, mas quando tem algo me incomodando fico sem ação e o lado direito do cérebro trabalha sem parar, pensando sobre os acontecimentos da semana que se finda. Me vi questionando sobre o conceito de ótimo, bom, regular e ruim, aplicado às pessoas. Por exemplo, um educador só pode ser bom ou ruim. O conceito ótimo e regular não se mede. Afinal, o que é ser ótimo em algo? O ótimo é um bom melhorado, quanto? O regular é o medíocre, pois significa que o nominado não tem capacidade nem para ser ruim, que é o extremo do bom. O bom nos preenche até fisicamente, pois enchemos e esvaziamos nosso pulmão para pronunciar esse adjetivo de qualidade, lembrando que o ruim só existe devido a inveja pelo bom. Portanto, só podemos classificar (?) alguém como bom ou ruim! Outro espaço que ocupou meu ócio foi que pela milionésima vez observei duas pessoas trabalhando com o mesmo assunto, com diferenças de local e platéia, uma recebeu todo aplauso da crítica por ser famosa e a outra ficou na obscuridade ou até no esquecimento, pois alunos nem sempre percebem o jogo de palavras. O que difere uma pessoa da outra sair do anonimato e virar uma celebridade? Seria o destino? Sorte? Iluminada? Por quem? Da mesma maneira, vejo colegas que precisam lutar muito para publicar seus manuscritos ou outra expressão de arte, e nem sempre conseguem patrocínio. Será que tem a ver com nosso país que não valoriza a cultura, ou não é um bom investimento? Realmente o ócio é a oficina do demo, porque bons pensamentos não são fabricados nela, e o que ficaram são perguntas sem respostas. Só me resta a resignação, coisa de santa, o que não sou! Vou à luta agora! Fui!

Fonte:
http://www.osabordamaturidade.com/2010/05/as-palavras.html

Astolfo Lima Sandy (Estante de Livros)



Astolfo Lima Sandy é autor do livro Mão de Martelo e outros contos (Fortaleza: Programas Editoriais Casa de José de Alencar/Coleção Alagadiço Novo – Imprensa Universitária da Universidade Federal do Ceará, 1998). Participou do Almanaque do conto cearense (Recife: Ed. Bagaço, 1997), da Antologia do Conto Nordestino ano 2000 (Recife: Ed. Micro, 2000) e da revista Caos Portátil: um almanaque de contos (Fortaleza: Letra & Música, 2007). Em 2002 recebeu o Prêmio da Biblioteca Nacional para escritores com obra em fase de conclusão, com o livro A Grande Fábrica de Brinquedos, inédito em 2007. Tem contos em suplementos literários e sites na internet. Vencedor de vários prêmios literários. Concluiu em 2007 o romance Exuberante pós-nada (vencedor do Edital de Literatura da Secretaria de Cultura do Estado do Ceará/SECULT, em 2007).

Constituído de 23 narrativas curtas, Mão de Martelo e outros contos apresenta um painel de personagens e situações bastante variados, quase sempre localizados na zona urbana e num tempo histórico indefinido. A maioria das histórias se desenvolve no curto espaço de uma sala, de uma casa pequena. Em outras, o drama deixa estes espaços para alcançar a rua, como em “Bandeira Dois”. O protagonista se desloca de casa, onde promove uma baderna, para a rua, um táxi, e pratica um assalto. Assim, os demais personagens (como num filme) desaparecem do foco narrativo. Nesta linha (de denúncia da miséria, dos problemas sociais) se situa também “Os meninos”. A técnica utilizada neste, no entanto, é diversa daquele: toda a ação se desenrola na rua. Aliás, o conflito é narrado num só parágrafo, como se o narrador portasse uma câmera e focasse os personagens, um grupo de meninos de rua, em tempo restrito a uma ação rápida de assalto. Semelhante a este é “O grande salto”. Mais uma vez a rua como palco. As únicas falas são do protagonista – o palhaço, o contorcionista, sem nome – que tenta ganhar uns trocados dos transeuntes à custa de piruetas, saltos, malabarismos.

Os personagens de Astolfo são quase sempre disformes, tortos, grotescos, como caricaturas. O político descrito pelo narrador em “Tiro Certeiro” é um exemplo disso: “Elemento pernóstico, com seu crânio disforme afinando drasticamente para baixo, e que, de perfil, lembrou-me um cavalo com nariz de Pinóquio.” O mesmo ocorre quando o protagonista de “Mão-de-martelo” se descreve: “silhueta longa, grave inclinação para a esquerda, enquanto enorme nariz emoldura-me a face descorada.” Sandoval Balheiros, de “Teoria do equilibrista”, é descrito como semelhante a um faquir. Os “seios flácidos da índia velha”, da mulher do protagonista de “Bandeira dois”, aparecem algumas vezes, como a pintar a miséria em que viviam os personagens. A pintura distorcida de alguns personagens se mostra também em “O Debate”, no qual “senhores sisudos” debatem assunto da mais alta importância: a Constituição do País. Um, “muito magro, ares de intelectual”; outro, “meio estrábico”; um terceiro, “cara de pouca inteligência”. Além dos debatedores, personagens menores e também sem nome surgem e desaparecem como simples figurantes exóticos: “uma mulher muito loura enfeitada de batom e joias”, “um palhaço tomando coca-cola”, “uma garota sardenta”, “uma senhora gorda”.

O uso contínuo da narração, entremeada de breves diálogos e descrições físicas e psicológicas de personagens, dá vigor à linguagem dos contos de Astolfo. Em “Luz e Sombras” os movimentos narrados apresentam a linguagem do cinema, na visão de um homem paralisado, à espera de um ataque.

O ponto de vista nas narrativas de Astolfo é ora na primeira pessoa, ora na terceira. No conto que dá título ao livro o narrador é o protagonista, que vai se pintando ao longo da história: como adquiriu o codinome, como participa das rodas de samba, como se operou nele a transformação interior (o aperfeiçoamento de “alguns defeitos morais”, como a mentira, a hipocrisia, a inveja, o sadismo). A descrição que faz de si mesmo se mostra nos moldes do monólogo interior. Esta e outras descrições breves se apresentam dentro da narração, ausente de diálogos. Somente uma personagem menor surge de inopino, apenas mencionada – a mãe –, que não passa de simples adereço, complemento necessário à narração. No centro da trama está o narrador, o protagonista perfeito, porque personagem único. O mesmo se dá em “Barriga de Pano”. O personagem fantasiado de Papai Noel narra a sua breve história de aposentado em busca de uns trocados, até furtar um par de tênis e ser conduzido à polícia. Em “Tiro Certeiro” Astolfo alcança ponto mais alto, em relação aos dois primeiros contos, na maneira de narrar. Um homem indignado com a realidade se faz justiceiro em sua própria casa, como se o mundo se resumisse a uma tela de televisão. Ao se servir de expressões como “acionar o gatilho”, “mirar o distintivo prateado”, “atingir indiscriminadamente quem aparecesse à tela”, dá a ideia de uso de arma de fogo. Entretanto, ao correr da história, o leitor perceberá que o jogo verbal do contista conduz a uma leitura mais larga, mais funda, mais vertical. O protagonista “elimina” mentalmente os políticos que aparecem na tela, como num desabafo. Seria um louco, um esquizofrênico a agir e falar, como se os “personagens” da televisão, as figuras em movimento na tela fossem reais. O personagem lembra aqueles que veem nos personagens de novelas televisivas pessoas de carne e osso.

Poucas são as narrativas em que o ponto de vista é de narrador onisciente, como “Pequena História de Velhos”. Acompanham a narração a nomeação de móveis de uma casa: guarda-roupa, gancho da rede, lençóis, cadeiras, móveis do quarto, oratório. E nada de diálogo: “Há algum tempo, o ancião não discute mais. Perdeu o derradeiro fio de voz.” Em outro conto, “Teoria do equilibrista”, o foco narrativo se dá de duas maneiras, na terceira e na primeira pessoa. Naquela, a narração sai da pena ou da boca do escritor/narrador onisciente; nesta, constituída de falas, com travessão, o protagonista (o pai) se dirige a outro personagem (o filho), e este, em falas mais breves, ora contesta as lições do pai, ora lhe faz perguntas. No interior das falas mais longas, aqui e ali o narrador toma a palavra, como para quebrar a monotonia do diálogo. Semelhante a este conto, na forma, é “O Batom”, no qual médico e paciente conversam. A narração de pequenos incidentes é mero complemento da história lida nas falas dos personagens. Em outros contos se dá exatamente o inverso: a narração, mais longa, é intercalada de breves diálogos.

Em “O encontro” tudo gira em torno do tempo ou da psicologia do tempo. A imagem que o leitor vai formando é a de um homem desiludido com o tempo: “Até a comemoração dos meus aniversários esqueci.” Em “A carta”, desde os primeiros momentos o leitor é conduzido a ver na história em desenvolvimento a presença do ciúme: “o (envelope) farejei como se buscasse vestígios de um perfume.” Mais adiante outra pitada de ciúme: “Ela não tardaria em retornar de um tal curso que agora frequenta.” No final, o narrador confessa: “Antes que o demônio do ciúme envenenasse de vez minha alma” (...).

O choque entre personagens nem sempre significa conflito nos contos de Mão de Martelo, embora o leitor se prepare para um desenlace trágico. Leia-se “Escambo”, que pode ser visto como um conto fantástico. O narrador, cidadão urbano, depara um “desses povoados perdidos no meio do sertão” e, para espanto seu, encontra uma sociedade diferente da sua, espécie de sociedade alternativa, onde o escambo substituiu o comércio normal e, por consequência, tudo se transformou: a política, a religião, a segurança pública, a prática da educação e da saúde etc. Constituído de breves narrações e longo diálogo, esse conto pode ser visto como uma sátira. Essa singularidade pode ser encontrada também em “Meu tio Ambrósio e os poetas”, assim como em “Confissão”.

Ao término da leitura de Mão de martelo e outros contos, percebe-se em Astolfo Lima Sandy um contista “sisudo”, embora não lhe falte humor, aliado ao sarcasmo, dedicado a temas fundamentais da tragédia humana e voltado para a elaboração de narrativas em que as mais variadas técnicas se mesclem, dando origem a pequenas histórias simples, porém nada banais, e sem muitas arestas a serem aparadas.

Fontes:
Nilto Maciel. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza: Imprence, 2008. p. 277.
Imagem de Giuseppe Maria Crespi.

Astolfo Lima Sandy (Casinha de Bonecas)



Eu sabia do esconderijo de Bebel, mas fingi que não. Mamãe, logo que recolheu a maninha, trancou-se no quarto com papai e lhe contou tudo. O velho saiu de lá furioso, deu socos na mesa e depois me chamou, para investigar se eu ocultava alguma coisa. Apertou meu pulso, me olhou longamente e exigiu que lhe contasse toda a verdade. Eu disse sem pestanejar que não sabia de nada, puxei meu braço e fugi.

Agi assim para proteger minha irmã. Bebel está na casa dos trinta, porém sua cabecinha é de uma criança. Ultimamente, sempre que o dia amanhece, ela corre com seu passo bambo, se mete no vestido branco de mamãe e fica na janela olhando a rua. Quando sumiu só conseguiram localizar a danadinha tarde da noite. Vinha suja e descabelada. Um vendedor de flores foi quem a viu no casarão abandonado, brincando com bonecas.

Meu pai é violento e não perdoaria se descobrisse meus segredos. Ele ainda não se livrou da mania de julgar que somos todas estúpidas. Eu, por exemplo, tenho doze anos e penso como adulta. Bebel é o contrário, mas nos damos muito bem. Aprendo com ela certas coisas que só mesmo uma pessoa de mais idade pode ensinar, e ela, comigo, tudo aquilo que mamãe não quer que a irmãzinha entenda. Acho que a gente se completa.

Os olhos de Bebel brilham iguais aos meus, quando estamos as duas em frente à TV e assistimos às cenas mais picantes de uma novela. Ela também fica trêmula ao deslizar a mão entre as pernas, deixando escorrer uma baba grossa pelo canto da boca. A única diferença é que sei me controlar: corro para o quarto, apago a luz e permaneço debaixo dos lençóis imaginando sonhos que papai nem desconfia.

Bebel ainda é meio tola em certas coisas. Nem sabe falar direito. Pronuncia apenas uns grunhidos que só eu sou capaz de compreender, porque aprendi a ler em seus olhos os desejos e desenganos; separar no tom desses gemidos os espantos e as alegrias. Ela confia em mim como se eu fosse a sua própria cabeça. Não larga do meu pé. O tempo todo atrás: “Dá, dá, dá...”

Conduzo Bebel diariamente até o sótão, abro o baú que só eu sei onde se esconde a chave e deixo que a mana remexa em tudo. Fico olhando enquanto ela se veste de branco diante do espelho quebrado, passa gel nos cabelos e pinta os lábios de batom. Adoro quando ela abre aquele sorriso inocente e tenta calçar os saltos altos que mamãe não usa mais. Gosto de ver Bebel caminhar com seu passo torto, cair, rolar pelo chão até compreender que precisa usar as próprias pernas. Quem não me conhece é de pensar que eu não presto. Mas se engana. A nossa amizade fica melhor assim. Bebel adora que seja assim. Às vezes ela passa a mão pesada sobre meus cabelos e me beija a face com seus lábios pegajosos.

Acho bárbaro ver Bebel se debruçar na janela, para aguardar que o moço da casa em frente atravesse a rua. Toda vez que isso acontece ela bate palmas com aflição, rosna feito uma gata em cima do telhado e deixa escapar mais saliva pelo canto da boca. Se ele acena para nós, minha irmã fica agitadíssima, coça a cabeça sem parar e repete muitas vezes a mesma lengalenga: “Dá, dá, dá...” Uma vez esse rapaz piscou um olho para nós e ficou na porta de sua casa, acenando. Acho que mamãe percebeu, porque logo nos chamou e repreendeu só a mim. Disse que o moço tinha débitos com a justiça e que era bem provável que usasse drogas; achava melhor não darmos cabimentos a ele. Ah, mamãe, mamãe! Sempre dependente do papai. Até o seu modo de falar, agora, é uma cópia perfeita daquilo que ele costuma dizer. Reparando melhor, até a cara dos dois está parecida. Também não é de se admirar: vivem no maior amasso. Coisa mais ridícula, meu Deus, um casal de velhos namorando! Ela pensa que eu não sei o que fazem quando finjo que vou para o colégio e fico trancada no sótão com Bebel; que não ouço seus gemidos.

Mas, no fundo, penso que mamãe só falou essas coisas todas do nosso vizinho porque não gosta que eu desperte em Bebel aquilo que julga prejudicial para uma mente despreparada. Entende que é perversidade eu alimentar certos delírios da maninha. Faço que escuto, mas ajo mesmo é de acordo com o que penso. É muito legal ver Bebel se sentindo mulher, vestir a calcinha pelo avesso, passar blush nas sobrancelhas, tudo de uma forma muito natural. Vibro ainda mais quando o rapaz de quem já falei olha diretamente para mim e sorri. Acho lindo o seu olhar sonhador, daí que detesto quando teima em colocar aqueles óculos enormes, escuros, sem graça nenhuma. Ele tem mais que a idade de nós duas juntas, mas é um homem muito bom. Há um tempo atrás ele disse que, se fosse do nosso interesse, a gente podia brincar de bonecas em sua casa. Alertou sobre o casarão desabitado, que era muito perigoso, e pediu apenas que eu não comentasse o assunto com mais ninguém.

Topei na hora a proposta porque vi que era ótimo nós termos mais um participante nessas distrações. Meu único medo é de que descubram lá em casa o novo esconderijo e venham brigar com o nosso amigo. Papai – como é de costume, aliás – anda cada vez mais bravo. Ontem caminhava de um lado para outro como se procurasse alguma coisa; cochichou pelos cantos com mamãe e depois o encontrei calibrando a velha espingarda de caça.

Também ando bastante ansiosa nesses últimos dias. Agora, quando as brincadeiras acontecem, eu sou sempre a filha e Bebel é a mãe. Do mesmo jeito que se faz numa casinha de bonecas, com a diferença de que, na nossa, as pessoas se mexem de verdade e todas têm alma. O moço pega Bebel pelo braço e seguem até o quarto dele. Tudo como na vida real. Os dois caem na cama, se cobrem com o lençol, enquanto eu fico na sala vendo um filme na TV e comendo pipocas. Depois ele vem, me põe no colo, acaricia minha nuca e me deixa toda arrepiada. Ele garantiu que hoje iremos trocar os papéis: Bebel será a filha...

Fontes:
Nilto Maciel e Soares Feitosa. Jornal do Conto.