segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Machado de Assis (Análise dos Contos de “Várias Histórias”: 2. Entre Santos)


analise realizada pelo Prof. Bartolomeu Amâncio da Silva. Bacharelado em Letras, pela USP , professor de literatura da rede Objetivo (colégios e cursos pré-vestibular).
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O conto Entre Santos, de Machado de Assis, trata-se de uma narrativa dentro de outra narrativa, que em determinado momento dá caminho para mais outra. Um discreto narrador em terceira pessoa abre, já no primeiro parágrafo, espaço para um narrador em primeira pessoa, testemunha de um acontecimento surpreendente.

Enquanto era capelão na igreja de São Francisco de Paula, pôde surpreender, numa noite, o diálogo entre santos que durante o dia eram estátuas no templo. Discutiam o caráter humano, deslindado nas pessoas que vinham rezar diante deles. S. João Batista e S. Francisco de Paula eram os autores dos comentários mais ácidos em relação ao gênero humano. Um deles faz questão de lembrar uma adúltera que vinha pedir ajuda para se afastar de tal relacionamento, mas que, enquanto orava, rememorava momentos ardorosos, o que diminuía a fé a ponto de fazê-la abandonar o recinto sem nem mesmo completar seu pedido. Tudo isso se contrapõe aos comentários de São Francisco de Sales.

Para reforçar a sua teoria de que não se deve perder a esperança no ser humano, conta a história de um avaro que cai no desespero quando sua esposa desenvolve erisipela (doença que se manifesta pela inflamação da pele). Apesar de o pensamento corrente de que a sua agonia seria provocada pelo receio de despesas funerárias, na verdade é movido por amor. E para conseguir a graça da salvação, pede a intermediação do narrador divino, oferecendo em troca uma perna de cera. No entanto, seu raciocínio rápido se transfere para a idéia da moeda que iria custar tal artefato. Passa então a pensar em pagar em espécie mesmo. Mas, sovina como era, tal contribuição seria por demais custosa. Apesar disso, é uma opinião que não chega a formular por completo, deixando-a no limbo de sua mente. Até que salta para um postulado um tanto cômodo: acredita, iludindo-se convenientemente, que o espiritual é mais importante do que o material, por isso se propõe a, no lugar da moeda, rezar 300 padres-nossos. Nesse ponto, o seu caráter materialista entranha-se com o espiritualista, pois imagina ser muito mais lucrativo rezar 300 padres-nossos e 300 ave-marias. De 300 passa para 1000, mas, ao invés de expressar e, portanto, efetuar sua promessa, perde-se, maravilhado, diante de cifra tão alta.

Note nesse conto o esquema da narrativa. Um narrador lembra uma história que foi contada por um padre e que acaba relatando a história narrada por um santo. Essa trama dentro de trama lembra um outro tipo de texto que também usava esse mesmo procedimento e que também apresentava histórias mirabolantes: As Mil e Uma Noites.

Repare também a postura dos santos, que se assemelha à de Machado de Assis, na medida em que são devassadores da alma humana. Tal atividade inspira ou o descrédito próximo da impaciência diante de nossas fraquezas, assim como uma atitude de tolerância misturada com esperança. Pode-se acreditar que Machado tenha, em sua carreira, assumido um pouco das duas. Finalmente, observe como o conto consegue apresentar o caráter dilemático da mente humana pela maneira como o avaro lida com sua promessa. Mostra extremo materialismo ao entregar-se ao fervor espiritualista, conseguindo, talvez cínica, talvez inconscientemente, conciliar esses opostos.
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Continua… análise do conto "Uns Braços"
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Fonte:
http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/analises_completas/v/varias_historias

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n.105)

Trova em Sala de Aula
Uma Trova Nacional

Ao perder-se um grande amor
o coração dá um brado:
– Por favor, tire essa dor!
Oh, pranto! Fique calado!!!
(JOSÉ FELDMAN/PR)

Uma Trova Potiguar

Palhaço, visão querida,
dos meus tempos de criança...
velha saudade escondida,
no meu baú de lembrança!
(HELVÉCIO BARROS/RN)

Uma Trova Premiada

2009 > Cantagalo/RJ
Tema > SERTÃO > Vencedora

É na choupana esquecida
num cafundó no sertão,
que, em meio à terra batida,
também bate a solidão...
(EDMAR JAPIASSÚ MAIA/RJ)

Simplesmente Poesia

– Graça Graúna/RN –
ESCRITURA FERIDA

(à Florbela Espanca)

Atiram mil pedras
na charneca em flor.

Ossos do ofício:
no mais fundo do poço
retirar o poema
encharcado de mágoas.

Uma Trova de Ademar

Em dois países dei fé...
Cinco tesouros num só!
São: Maradona e Pelé,
lambada, tango e forró!...
(ADEMAR MACEDO/RN)

...E Suas Trovas Ficaram

Amargando a longa ausência,
a saudade aperta assim,
que a saudade é reticência
de um amor que não tem fim.
(ELTON CARVALHO/RJ)

Estrofe do Dia

Coisa tão simples... Deus cria,
dá de graça a qualquer pobre,
mas nenhum gênio descobre
os mistérios da poesia;
filha da noite e do dia,
tem luz de estrela e luar;
percorre os caminhos do ar
e nos bafeja; entretanto,
poesia vem de algum canto
que eu nunca soube explicar.
(JOSÉ LUCAS DE BARROS/RN)

Soneto do Dia

– Otávio Venturelli/RJ –
NOITES DE FRIO.

Nos dias gelados do inverno na serra
o frio recita o Poema da geada,
a grama se veste de branco, enfeitada,
e o vento da noite segredos encerra.

A lua, pisando de leve na terra,
Invade a janela de vidros fechada,
a conta das horas de insônia não erra,
e as dores mantêm a minha alma acordada.

Imagens passeiam em minha memória,
são mágoas retidas ao curso da história,
vividas, sofridas e amadas em vão...

Então me levanto, e afastando a tristeza
acendo o meu quarto, e essa lâmpada acesa
apaga a saudade no meu coração!

Fonte:
Ademar Macedo

domingo, 23 de janeiro de 2011

Lendas Indígenas



O guaraná para o homem civilizado significa apenas uma simples bebida. Muitos o chamam até de boke-moko. Mas para os índios do vale dos rios Andirá e Maués (AM), tinha valor de um precioso tesouro. Servia de alimento e remédio. Como o bago do guaraná é parecido com o olho humano, surgiu a lenda que correu de boca em boca por toda a região amazônica.

Outrora, vivia na selva um casal de índios muito estimado pela tribo. Apesar da felicidade que o unia, faltava-lhe um filho para ser completamente feliz. Tupã (Deus supremo) com pena, deu ao casal um menino que logo passou a ser adorado pelos indígenas.

Um dia, Jurupari, o invejoso gênio do mal, ao ver o indiozinho brincando com os animais, ficou furioso, transformando-se numa grande cobra. Os animais, quando o notaram, fugiram apavorados. O garoto continuou na floresta sem perceber a presença do invisível Jurupari que mordeu o menino, matando-o imediatamente.

A tribo ficou aos prantos. De repente, um raio interrompeu as lágrimas. Em seguida, fez-se silêncio. Só a mãe do pequeno entendera o sinal:

— Tupã deseja que plantemos os olhos do meu filho. Deles brotarão uma planta milagrosa que dará muitos frutos e nos farão felizes para sempre!

Os índios enterraram os olhos da criança. Pouco depois, surgia o guaraná. Guará, na língua indígena significa o que tem vida, gente; e ná, igual, semelhante. A palavra guaraná, assim traduzida, quer dizer bagos iguais a olho de gente.

Fenômenos da natureza sempre atraíram a atenção dos indígenas que procuraram dar, a seu modo, as mais diversas interpretações, surgindo, assim, inúmeras lendas.

Os índios Cauaiua-Parintins, do Vale do Rio Madeira, contam uma história ingênua sobre o aparecimento da noite, mostrando o alto grau imaginativo do silvícola brasileiro.

Um velho querendo dormir perguntou à coruja:

— Como é que a gente dorme?

A coruja respondeu-lhe que só ela conhecia a noite e se ele a quisesse teria de arranjar-lhe milho preto.

O velho trouxe o milho preto, colocou-o numa cabaça e levou à coruja.

Esta, ao recebê-la, tratou de tapar a boca da vasilha com barro e cantou:

Nós andamos a noite toda, caçando
E de dia dormimos
Tu já viste coruja de dia?
Mas tu dormirás durante a noite
Acordarás de madrugada
E trabalharás todo o dia.

Quando acabou de cantar a cabaça partiu e a noite apareceu.

Cinco Cauaiua-Parintins foram viajar por terras desconhecidas. Iam munidos de arco e flechas, um atrás do outro.

Ao chegarem à beira de um lago, pararam para descansar. Um deles resolveu separar-se do grupo para ver como era a noite. Armou a rede e dormiu profundamente. No dia seguinte, os companheiros foram chamá-lo e lá estava ele morto no fundo da rede.

Os companheiros falaram:

— Bem feito. E continuaram a viagem.

Mais adiante viram uma árvore alta e ouviram vozes de mulheres banhando-se no porto e o toque-toque de pica-pau, mordendo o tronco de uma árvore.

Um dos companheiros disse:

— Ninguém deve espiar as mulheres e os pica-paus. Vamos de cabeça baixa, em fila.

Um deles quis espiar o pica-pau e as mulheres. Os outros continuaram andando. De repente, a árvore grande caiu em cima do curioso.

Os companheiros ouviram os gritos, entendendo o que acontecera.

— Bem feito, comentaram.

E continuaram a viagem. Mais à frente, ouviram o inhambu cantar. Um deles falou:

— Ninguém deve espiar o inhambu cantar.

O homem foi espiar e acabou ficando doido. Andava desnorteado de um lado para o outro até que morreu. O corpo dele ficou seco e de baixo da pele lhe saía um pó esbranquiçado, como o que tem a pele do inhambu.

— Bem feito, concluíram os outros.

A essa altura só havia dois Cauaiua-Parintins. Eles andavam sem parar, durante todo o dia.

À tardinha um disse:

Vamos buscar bastante lenha para fazer uma boa fogueira para espantar os bichos que este lugar deve ter. Foram para o mato. Mas apenas um trouxe paus para a fogueira. O outro só apanhou ramos e gravetos. Não queria fogueira grande porque fazia muito calor e ele queria ver como eram os morcegos do local.

O outro deitou-se sozinho, bem perto de uma grande fogueira.

Mais tarde vieram muitos morcegos-grandes. Apagaram o fogo e chuparam o sangue do pescoço do curioso.

No dia seguinte, bem cedo, o companheiro foi chamar o amigo, encontrando-o morto. Então, voltou sozinho para sua maloca.

Para esses índios, os curiosos deveriam morrer.

Havia três irmãos: dois solteiros e um casado, contam os índios makuchys, do território de Rio Branco, atual Roraima. Daqueles dois, um era feio e o outro, bonito. O casado e o bonito não gostavam do feio, sendo que o segundo procurava a todo custo matar o irmão feio. Em determinada ocasião, aguçou um pau, apontou-o bem e depois de preparar um plano, chamou o feio.

— Meu mano, vamos apanhar urucu (substância de tinta) para pintar nosso corpo?

— Vamos, respondeu o outro.

Eles foram ao urucueiro e o bonito falou:

— Sobe para apanhar urucu para nós.

O feio subiu e o irmão matou-o com o pau. Cortou as pernas, deixou o cadáver e foi embora.

Logo depois chegava a cunhada.

— Como estás, meu cunhado?

— Como hei de estar? Bem.

— Como está o outro meu cunhado?

— Está lá fora, passeando.

— Ah! Pode ser.

A cunhada indo passear atrás da casa, achou o corpo com as pernas cortadas e separadas.

Em seguida, apareceu o irmão bonito.

— Para que me servem estas pernas cortadas? Para nada. Agora só estão boas para os peixes comerem.

O irmão pegou as pernas e as colocou no rio. Elas viraram surubim (peixe). O corpo ficou na terra, mas a alma subiu ao céu. Chegando lá transformou-se em estrela. O corpo ficou no centro e as pernas postas uma de cada lado. O irmão assassino, por sua vez, transformou-se na estrela Caiuanon (Vênus) e o irmão casa na estrela Itenha (Sírius). Ficaram os dois fronteiros ao irmão morto por castigo, a fim de serem obrigados a olharem sempre o irmão.

Assim nasceu Vênus e Sírius.

Segundo os índios Tucuna e Uitoto (AM), antigamente havia um moço forte e bonito naquela região. Sua tia preparava o urucu para pintar os tucunas nos dias de festa de Moça-Nova.

O sobrinho partia a lenha para a fogueira, onde a velha punha a panela para ferver urucu.

A velha estava sempre aborrecida, pedindo ao sobrinho cada vez mais lenha. Um dia o rapaz trouxe muita muirapiranga (madeira parecida com o pau-brasil) e para acabar com aquele trabalho pediu a tia que o deixasse beber todo o urucu.

A velha pensando que ele morreria disse:

— Bebe, bebe logo.

O rapaz bebeu e foi ficando vermelho como o urucu e a muirapiranga. Depois subiu ao céu, meteu-se entre as nuvens, transformando-se no Sol, o índio vermelho.

Fonte:
Quatro séculos de lendas. Revista Petrobras, Rio de Janeiro, setembro/outubro de 1972.
Disponível em Jangada Brasil. Revista Almanaque. Abril 2010 - Ano XII - nº 135.

Fernando Sabino (A Mulher Vestida)



Eu estava num centro comercial de Copacabana e era sábado, pouco depois do meio-dia. Às tantas, comecei a ouvir uma martelação de ensurdecer. O dono de uma lojinha de sapatos para senhoras chegou-se à porta, assustado:

- Que será isso?

E saiu pelo corredor a investigar. Caminhávamos na mesma direção e logo descobrimos que o ruído vinha de uma sala fechada, um curso de ginástica. Batiam desesperadamente na porta, lá dentro - com um haltere, no mínimo.

- Que está acontecendo? - o sapateiro gritou do lado de cá.

Uma voz chorosa de mulher explicou que a porta estava trancada, que ela não podia sair.

- Quede a chave? - berrou o homem.

- O professor levou - respondeu a voz.

- Que professor?

- O professor de ginástica.

- Espere que eu vou buscar o zelador- arrematou o homem, solícito.

E se voltou para mim :

- O senhor podia fazer o favor de procurar o zelador para soltar a mulher? Não posso abandonar a minha loja sem ninguém.

Não tive outro jeito senão sair à procura do zelador.

Era delicado e solícito, mas infelizmente não podia fazer nada: não tinha a chave da sala.

Voltei ao corredor, vencendo a tentação de cair fora de uma vez, deixar que a mulher se arranjasse. A bateção recomeçara, ela parecia disposta a botar a porta abaixo:

- Abre essa porta! Pelo amor de Deus!

- Calma, minha senhora - berrei do lado de cá: - Vamos ver se a gente dá um jeito.

No corredor ia-se juntando gente, e várias sugestões eram aventadas: abrir um buraco na parede, chamar o Corpo de Bombeiros, retirá-la pela janela.

- Deve ser uma mulher forte.

- Eu se fosse ela aproveitava e quebrava tudo lá dentro.

Pensei em transferir a alguém mais a tarefa que o sapateiro me confiara, não encontrei ninguém que parecesse disposto a aceitar a responsabilidade: todos se limitavam a fazer comentários jocosos, estavam é se divertindo com o incidente. De súbito me ocorreu perguntar à mulher o número de telefone do professor. Foi um custo fazê-la cantar de lá a resposta, algarismo por algarismo.

Saí para a rua à procura de um telefone - tive de andar um quarteirão inteiro até uma farmácia, onde fiquei aguardando na fila. Chegou afinal a minha vez. Atendeu-me uma voz de criança, certamente filha do professor. Que ainda não havia chegado em casa, pelo que pude entender:

- Escuta, meu benzinho, diga para o papai que tem uma mulher trancada na sala lá do curso dele, está me entendendo? Repete comigo : uma mulher trancada...

Não havendo mais nada a fazer, resolvi tomar o caminho de casa - mas a curiosidade me arrastou mais uma vez até ao centro comercial.

O interesse conquistara todo o andar, espalhava-se aos demais, ganhava a rua : gente se acotovelava diante do prédio, agora era uma multidão de verdade que acompanhava os acontecimentos :

- Por que não arrombam a porta de uma vez?

- O que a mulher está fazendo lá dentro?

- Dizem que ela está nua.

A palavra mágica correu logo entre a multidão : nua, uma mulher nua! E cada vez juntava mais gente, ameaçando interromper o tráfego :

- Mulher nua! Mulher nua! - gritavam os moleques.

Dois soldados da polícia militar, passaram correndo, cassetete em riste, sem saber para onde se dirigir. A multidão se abriu, precavidamente. Um homem de ar decidido pedia licença e ia entrando pelo centro comercial adentro, como quem vai resolver o problema. Devia ser algum comissário de polícia.

Era o professor, que comparecia com a chave. Em pouco a porta do curso de ginástica se abriu e a mulher saiu, ressabiada - completamente vestida. Era baixinha e meia gorda, estava mesmo precisando de ginástica.

Fontes:
SABINO, Fernando, Deixa o Alfredo Falar. RJ: Record, 1976.
Imagem = http://www.plinn.com.br/

Carlos Drummond de Andrade (Poema das Sete Faces)


Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.

O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.

Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus,
se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.

Fontes
ANDRADE, Carlos Drummond de. Alguma Poesia. 1930.
Imagem = http://tk.files.storage.msn.com/

Carlos Drummond de Andrade (Análise do Poema das Sete Faces)


Publicado em seu primeiro livro, Alguma poesia, de 1930, no Poema de sete faces, de Carlos Drummond de Andrade, o poeta retoma a passagem bíblica referente à morte de Cristo. Ele fala de vários assuntos: da infância, do desejo sexual desenfreado dos homens, questiona sobre o seu próprio eu e faz uma cobrança a Deus. Ele mostra de modo metafórico uma só realidade, a sua visão desesperançada diante do mundo. Ele se via injustiçado diante do mundo e do abandono de Deus, firmando com isso a fala do anjo: “vai ser gauche na vida”.

As “setes faces” do título são trabalhadas nas sete estrofes que compõem esse primeiro texto, que pode ser lido como um perfil autobiográfico do poeta, como indicia o uso do próprio nome no verso 3. Ou seja, trata do indivíduo desajustado, gauche (palavra em francês; lê-se 'gôx'), em desacerto com o mundo. O EU em conflito com o mundo. No poema são apresentados tanto seu discurso quanto sua gênese, numa estrutura marcada pela ambivalência: a cada estrofe intercalam-se harmonia e desarmonia, ainda que a linguagem pretenda-se impessoal e casual. O tom do poema é o do observador e sua poética nos é apresentada como a do incomunicável.

Nas sete estrofes do poema exibem as sete faces da poesia de Drummond, nos tons e nos temas: a conversa quase prosa, a fala, o ritmo exato, a prece, o retrato falado, a caricatura, o humor, a oralidade. E o indivisível indivíduo que se multiplica fraco e forte, tímido e “voyeur”, irônico e solidário, confidente e mineiramente arredio. Não por acaso, o poema foi escrito no dia de natal, em 1928, o que pode explicar o anjo embora torto e a invocação bíblica da 5ª estrofe. Algumas dessas sete faces podem ser facilmente reconhecidas ao longo de sua obra.

O poeta se via como “gauche”, “torto”, “canhestro”, em face de si e do mundo, ele não consegue se situar em um contexto social. O seu referencial é o seu próprio eu insatisfeito, buscando, desejando, retraindo-se. Por isso ele cobra: “Meu Deus, por que me abandonaste/ se sabias que não era Deus/ se sabias que era fraco”. Ele é esquecido por Deus e termina o poema “comovido como o Diabo”, depois de beber e de relembrar sua triste realidade. No entanto, antes de finalizar ele afirma que apesar de se chamar Raimundo que significa: “protetor, poderoso, sábio, indica uma pessoa que tende a se isolar, pois é muito rigorosa consigo mesma e supervaloriza as virtudes dos outros. Mas, quando se conscientiza da sua própria importância, torna-se capaz de dar apoio e conselhos valiosos a todo mundo”, só serviria para rimar com o mundo, não para solucionar seu problemas.

Dá para entrever Drummond, no que se refere ao momento histórico em que se situa o Poema de Sete Faces, como um poeta conflituado com o mundo, buscando na própria dialética existencial a explicação do sem-sentido da vida. Seu drama começa ao ser lançado nos adversidades do mundo sob as ordens de um “anjo torto”: anjo que representa as desarmonias entre o poeta gauche e o mundo. Para o gauche visualista, o mundo é um espetáculo que passa, assim como o bonde citado no poema, à revelia de qualquer indagação ou explicação. Na oscilação entre o real e o irreal, na busca entre essência e aparência é que a cena se movimenta.

O poeta gauche é um contemplador orgulhoso que se considera maior que o mundo num mesmo momento em que se vê quebrantado pela realidade, pelo dualismo do Eu menor que o Mundo, sente-se fraco e não vacila em apelar: “Meu Deus, porque me abandonaste”.

Fonte:
http://www.passeiweb.com/

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n.104)

Wanda de Paula Mourthé (MG) e Prof. Garcia (RN)
Uma Trova Nacional

Vida – viagem sem pressa
por estradas desiguais
– sabemos onde começa,
mas, quando acaba... jamais!
(CAROLINA RAMOS/SP)

Uma Trova Potiguar

A saudade é a tortura,
que amofina muitas vidas,
escravas das desventuras,
de algumas paixões perdidas.
(PEDRO GRILO/RN)

Uma Trova Premiada

2009 > Belo Horizonte/MG
Tema > DESPREZO > Vencedora

Desprezo eu senti de fato
ao ver em seus escaninhos
“aquele” nosso retrato
rasgado em mil pedacinhos.
(OLYMPIO COUTINHO/MG)

Simplesmente Poesia

DÉCIMA- (REDONDILHA MENOR)

É nossa missão
Fazer o reparte
Zelar nossa arte
Pensar no irmão
Agir com razão
Frear a ruptura
Da forte censura
Soltar as algemas
Vencer os problemas
Saudar a cultura.
(DJALMA MOTA/RN)

Uma Trova de Ademar

Descobri no envelhecer,
em meus momentos tristonhos,
que eu não tive, em meu viver,
nada mais além de sonhos!...
(ADEMAR MACEDO/RN)

...E Suas Trovas Ficaram
.

Meu túmulo, belo ou feio,
será pequeno, suponho,
para guardar tanto anseio,
para enterrar tanto sonho!
(LUIZ OTÁVIO/RJ)

Estrofe do Dia

O poeta é portador
das grandes mágoas da vida,
seu peito é uma ferida
que nunca se acaba a dor.
Sofre por causa de amor,
menosprezo e fingimento,
desgosto no casamento
e ingratidão de colega;
todo poeta carrega
um fardo de sentimento.
(JOSÉ ZILMAR/PB)

Soneto do Dia

– Rogaciano Leite/PE –
IMPOSSÍVEL.

Tudo findo. Deixaste-me e seguiste
o primeiro que veio ao teu caminho;
não pensaste sequer que fiquei triste,
preso à desgraça de viver sozinho!

Dois longos anos!...Nunca mais me viste!
Foram-se as aves, desmanchou-se o ninho!...
Hoje, me escreves: “Meu viver consiste
na mistura de lágrimas e vinho!”

E me imploras: “Perdoa-me e consente
que eu vá viver contigo novamente,
pois só contigo poderei ter paz!”

Eu te perdôo... mas o empecilho é este:
eu amava aquela alma que perdeste...
alma que nunca reconquistarás!...

Fonte:
Ademar Macedo

Enéias Tavares dos Santos (A Briga de Dois Cegos por Causa de uma Esmola)


Eu volto agora à poesia
com a mente aperfeiçoada
contando mais um gracejo
que o povo dar gargalhada...
uma briga de dois cegos
que eu achei muito engraçada.

Aconteceu em Rio Largo
no estado das Alagoas;
esta cena interessante
vista por muitas pessoas
pois eu só conto o passado
não conto coisas atoas!

De Maceió, em um trem
para Rio Largo rumei
quando saltei na estação
para a feira me encaminhei
e lendo livros para o povo
o dia todo passei.

Lá para as tantas da tarde
a feira já terminado
eu então fechei a mala
e fiquei assim, conversando
olhando o que se passava
e algum transporte esperando.

Nisso passaram dois cegos
um na frente o outro atrás
talvez um guiando o outro
por caprichos naturais
pararam assim adiante
junto à banca dum rapaz.

Imploraram uma esmola
ele calado ficou
eles tornaram a pedir
ele atenção não prestou,
os cegos iam saindo
quando o rapaz lhe falou:

— Esperem mais um pouquinho.
Onde vão nessa jornada?
Botem as mãos para cá
Que a banca está recuada
Tomem para vocês dois
Porém a nenhum deu nada.

Passando-se alguns segundos
um encolheu logo a mão
e disse ao seu companheiro:
— Anda para cá seu João,
se ele te deu foi trocado
me dá logo o meu quinhão.

O outro disse: Tá doido!
Já quer me lubridiar?
ele deu foi a você
Vá cuidar logo em trocar
Tire o seu e de cá o meu
para a gente viajar.

O outro um tanto alterado
logo respondeu: seu João;
ele deu foi pra nós dois
não quero tapeação
o senhor já é um cego
além de cego ladrão!

— Ladrão não! gritou o outro
repare bem quem sou eu,
o homem deu a esmola
você foi quem recebeu
agora quer tapear
só para não dá o meu.

Nessa altura os curiosos
Pra perto foram chegando
para ver o resultado;
e os dois cegos se alterando
o rapaz, um ar de riso
fazendo de vez enquando.

Um cego disse: É por isto
que gosto de andar sozinho
tanto que eu tenho rezado
mas meu destino é mesquinho,
só encontro com fantasma
cruzando no meu caminho.

Disse o outro: Essa é que é boa
você sim que é trapaceiro
veja bem que foi você
que encolheu a mão primeiro
então já está bem provado
que recebeu o dinheiro.

Disse o outro: Não senhor
eu só puxei minha mão
porque vi bem que o senhor
tinha melhor condição
de receber, porque estava
mais perto do cidadão!

O outro gritou eufórico:
Eu já sei que estou de azar,
você recebe o dinheiro
agora quer me enganar
ou você me dá o meu
ou o pau vai "trovejar".

— Eu tenho medo de pau?
Diz ele serrando o cenho,
de pau eu não tenho medo
porque pau eu também tenho
hoje aqui vai correr sangue
igualmente a mel de engenho.

Como é que um "cabra" deste
sai pela feira mais eu,
recebe aqui uma esmola
que eu vi quando o rapaz deu,
mete toda no bisaco
e diz que não recebeu!

O outro muito zangado
de raiva estava "cinzento"
Logo levantou o pau
e gritou: ladrão nojento
tome este na cabeça
para não ser avarento.

Perto estava uma mocinha
com uma panela na mão,
olhando a briga dos cegos
com tanta admiração
que chegava até fazer
toda gesticulação.

O cego com toda raiva
quando o cacete baixou
bateu foi a mão na moça
que a panela se quebrou
em mais de vinte pedaços
nisso o povo gargalhou!

A moça logo saiu
correndo pela calçada
foi para casa ligeiro
da feira não levou nada,
ficou com a mão doente
e a panela arrebentada.

Outro cego também
tempo nenhum não perdeu,
levantou logo o bastão
gritando, lá vai o meu...
bateu na testa de um velho
que o sangue logo desceu.

Um gritava: Tome pau
para não ser mais ladrão,
o outro então respondia
aguente lá meu rojão;
nisso rodava o cacete
com toda força da mão.

A meninada gritava
gente pulava e corria,
e os dois cegos danados
fazendo grande arrelia,
metendo o pau adoidado
sem saber em quem batia.

Um menino foi por trás
na calça de um puxou
ele rodou-lhe o cacete,
quando a pancada soou
foi num carro de refresco
todos os litros quebrou.

Os dois cegos enraivados
não escutavam razão,
metia o pau um no outro
como quem tinha visão,
porém sem enxergar nada
toda pancada era em vão.

Uma mulher foi pra perto
pra ver os cegos brigando,
foi na hora que um deles
o cacete ia baixando
bateu-lhe no pé do ouvido
que ela caiu espumando.

Com dez minutos de luta
já tinha banca virada
miudezas pelo chão
lona de corda rasgada
mangalho por toda parte
peça de barro quebrada.

Um cego dizia ao outro:
aguente lá meu "baião"
O homem deu a esmola
você roubou meu quinhão,
agora paga no pau
para não ser mais ladrão.

Aí meteu o cacete
como quem está roçando
foi nas pernas duma velha
que ela caiu lá gritando:
tá doido cego da peste
repare quem vai passando!

O outro cego gritava:
daqui pra noite eu lhe pego
o serviço que lhe faço
quem me perguntar eu nego
para você nunca mais
roubar esmola de cego.

O rapaz da banca viu
que era grande a confusão
chegou pra perto e gritou:
Epa, assim de faca não!
Eles soltaram os dois paus
correram sem direção.

Porém é que nessa altura
um cidadão educado
foi correndo ao distrito
e deu parte ao delegado
ele veio a toda pressa
trazendo mais um soldado.

O delegado chegou
no local da confusão
perguntou logo: quem foi
o autor desta questão
mostraram logo o rapaz
um sujeito brincalhão.

O delegado o prendeu
ele saiu escoltado
e lá dentro do distrito
levou de bolo um bocado
depois indenizou tudo
que os cegos tinham quebrado.

Passou a noite trancado
sem ver o clarão da lua
deitado no chão molhado
lastimando a sorte crua,
de manhã fez a faxina
para então sair para a rua.

Enquanto o mundo for mundo
Não falta "cabra de peia"
É desses que enganam cegos
Ilude a filhinha alheia,
Abusa o povo e no fim
Só vai parar na cadeia.

Fonte:
SANTOS, Enéias Tavares dos. A briga de dois cegos por causa de uma esmola. Aracaju: Gráfica J. Andrade, 1970.

Machado de Assis (Análise dos Contos de “Várias Histórias”: 1. A Cartomante)


Publicado em 1896, Várias Histórias é um exemplo perfeito da maestria com a qual Machado de Assis desenvolveu o conto, produzindo tesouros que estão entre os mais preciosos da Literatura Brasileira. Antes de mergulhar em suas narrativas, portanto, necessário se faz entender um pouco da técnica do autor em tal forma artística.

Machado de Assis notabilizou-se por dominar a análise psicológica, dissecando a alma humana em busca de sua essência, que muitas vezes é dilemática, ou seja, expressa o conflito e muitas vezes a conciliação entre elementos opostos. É muito comum em suas narrativas depararmo-nos com ações que, mesmo tendo uma determinada inspiração, revelam também o seu oposto, como no caso do usurário (pessoa extremamente apegada a bens materiais, a lucro e a dinheiro) de Entre Santos, que, em pleno desespero por causa da possibilidade da perda de sua esposa, faz uma promessa fervorosa que tanto revela seu amor à mulher quanto seu apego à noção de lucro, pois se perde em delírios diante da cifra de orações que se propõe a rezar.

Dessa forma, a complexa visão machadiana sobre o homem vai muito além do que os seus contemporâneos faziam. Reforça essa superioridade a intensidade que imprime ao caráter psicossocial, entendendo a personalidade humana como fruto de forças da sociedade, principalmente aquelas que valorizam o status, o prestígio social. É um elemento ricamente abordado em obras-primas como Memórias Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba e Dom Casmurro.

Assim, os contos de Várias Histórias constituem rico material para um estudo da psicologia do homem e de como ele se comporta no grupo em que vive. Vemos neles a análise das fraquezas humanas, norteadas muitas vezes pela preocupação com a opinião alheia. Em inúmeros casos as personagens fazem o mesmo que nós: mentem, usam máscaras, para não entrar em conflito com o meio em que estão e, portanto, conviver em sociedade. O pior é que levam tão a sério essa máscara que chegam até a enganar a si mesmas, acreditando nela como a personalidade real.

Por causa desses elementos temáticos, notamos uma peculiaridade nos contos machadianos. Esse gênero, graças à sua brevidade, dá, por tradição, forte atenção a elementos narrativos. Não há espaço, pois, para digressões, tudo tendo de ser rápido e econômico. No entanto, no grande autor em questão o mais importante é o psicológico, o que permite caminho para características marcantes do escritor, como intertextualidade, metalinguagem e até a digressão, entre tantas, tornando a leitura muito mais saborosa.

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1. A Cartomante
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Este conto pode ser encontrado na íntegra em http://singrandohorizontes.blogspot.com/2008/08/machado-de-assis-cartomante.html
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O conto A Cartomante, de Machado de Assis, mostra a visão objetiva e pessimista da vida, do mundo e das pessoas (abolição do final feliz). A autor faz uma análise psicológica das contradições humanas na criação de personagens imprevisíveis, jogando com insinuações em que se misturam a ingenuidade e malícia, sinceridade e hipocrisia.

Crítica humorada e irônica das situações humanas, das relações entre os personagens e seus padrões de comportamento. Linguagem sóbria que, entretanto, não despreza os detalhes necessários a uma análise profunda da psicologia humana.

Envolvimento do leitor pela oralidade da linguagem. A historia é repleta de "conversas" que o narrador estabelece freqüentemente com o leitor, transformando-o em cúmplice e participante do enredo (metalinguagem).

Citação de um autor clássico (shakespeare) intertextualidade; reflexão sobre a mesquinhez humana e a precariedade da sorte humana. Os aspectos externos (tempo cronológico, espaço, paisagem) são apenas pontos de referência, sem merecerem maior destaque.

Estilo

A Cartomante é um conto onde podemos observar características marcantes do estilo de Machado de Assis. O uso de metáforas constantes, o comportamento imprevisível dos personagens e seu valor filosófico, o uso de comparações superlativas, bem como a ambigüidade em seus personagens.

O autor usa intertextualizações literárias, e o recurso da narrativa onisciente, para dinamizar o relato da história acentuando os momentos dramáticos do texto. Usa este recurso que eleva e prolonga o suspensa da história, mantendo o leitor atento durante todo o desenrolar do conto.

Sem estes ingredientes, sem dúvida o texto não teria a mesma dinâmica e seu epílogo não teria a mesma ênfase. Sem os pretextos machadianos facilmente saberíamos o desfecho da história ao lermos suas primeiras linhas. O uso destes atributos faz com que a historia gire em torno de seu próprio eixo dramatical sem que percebemos o uso desta técnica literária.

Foco narrativo

A historia é narrada em terceira pessoa. Existe a presença onisciente do autor, que usa desta onisciência na narração e descrição dos fatos. O uso constante de uma voz onisciente é importante para dinamizar o relato da historia acentuando os momentos dramáticos do texto e conflitos internos dos personagens, fortalecendo seu epílogo.

Sem essas características o texto tornar-se-ia monótono, pois a primeira leitura saberíamos de antemão seu desfecho. Também através deste recurso, o autor vai situando o leitor durante o curso da historia, ilustrando fatos e intertextualizando a narrativa.

Personagens

Embora a trama gire em torno de 4 personagens principais Vilela, Camilo, Rita e a cartomante (incógnita), existem outros personagens que não participam diretamente na trama, mas suas participações são determinantes no enredo da história.

A morte da mãe de Vilela, que é uma personagem secundária tem papel fundamental no envolvimento amoroso dos personagens Camilo e Rita. O autor analisa e enfatiza psicologicamente todos os personagens preconizando seus conflitos internos bem como seus temores.

Enredo

Está o tema do triângulo amoroso e do adultério, já presente nas Memórias (Brás Cubas, Virgília, Lobo Neves). Os amigos de infância Camilo e Vilela, depois de longos anos de distância, reencontram-se. Vilela casara-se com Rita, que mais tarde seria apresentada ao amigo. O resto é paixão, traição, adultério.

A situação arriscada leva a jovem a consultar-se com uma cartomante, que lhe prevê toda a sorte de alegrias e bem-aventuranças.

O namorado, embora cético, na iminência de atender a um chamado urgente de seu amigo Vilela, atormentado pala consciência, busca as palavras da mesma cartomante, que também lhe antecipa um futuro sorridente.

Dois tiros à queima-roupa ao lado do cadáver de Rita o esperavam. A vitória do ceticismo coroa o episódio.

Conto que surpreende pela excelente estrutura narrativa, dividida em três partes.

Na primeira, introdutória, fica-se sabendo que Rita, dotada de espírito ingênuo, havia consultado uma cartomante, achando que seu amante, Camilo, deixara de amá-la, já que não visitava mais sua casa. Desfeito o mal-entendido, faz-se um flashback que vai explicar como se montou tal relação. Camilo era amigo, desde longínqua data, de Vilela. Tempos depois, este se casa com Rita. A amizade estreita a intimidade entre Camilo e Rita, ainda mais depois da morte da mãe dele. Quando sente sua atração pela esposa do amigo, tenta evitar, mas, enfim, cai seduzido. Até que recebe uma carta anônima, que deixava clara a relativa notoriedade da sua união com a esposa do seu amigo. Temeroso, resolve, pois, evitar contato com a casa de Vilela, o que deixa Rita preocupada.

Terminada essa recapitulação, vai-se para a parte crucial do conto. Camilo recebe um bilhete de Vilela apenas com a seguinte mensagem: “Vem já, já”. Seu raciocínio lógico já faz desconfiar que o amigo havia descoberto tudo. Parte de imediato, mas seu tílburi (espécie de carruagem de aluguel que equivaleria, hoje, a um táxi) fica preso no tráfego por causa de um acidente. Nota uma estranha coincidência: está parado justamente ao lado da casa da cartomante. Depois de um intenso conflito interior, decide consultá-la. Seu veredicto é dos mais animadores, prometendo felicidade no relacionamento e um futuro maravilhoso. Aliviado, assim como o tráfego, parte para a casa de Vilela. Assim que foi recebido, pôde ver, pela porta que lhe é aberta, além do rosto desfigurado de raiva de Vilela, o corpo de Rita sobre o sofá. Seria, portanto, a próxima vítima do marido traído.

Note neste conto sua estrutura em anticlímax, pois tudo nele (já a partir da citação inicial da famosa frase de Hamlet: “há mais cousas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia”) nos prepara para um final em que o misticismo, o mistério imperaria. No entanto, seu final é o mais realista e lógico, já engendrado no próprio bojo do conto. Reforça esse aspecto o ritmo da narrativa, que é lento em sua maioria, contrastando com seu desfecho, por demais abrupto. E não se esqueça da presença de um quê de ironia nesse contraste entre corpo da narrativa e o seu final.
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continua... Análise do conto "Entre Santos"

sábado, 22 de janeiro de 2011

Cecília Meireles (Antologia Poética)


CANÇÃO

Nunca eu tivera querido
dizer palavra tão louca:
bateu-me o vento na boca,
e depois no teu ouvido.

Levou somente a palavra,
deixou ficar o sentido.

O sentido está guardado
no rosto com que te miro,
neste perdido suspiro
que te segue alucinado,
no meu sorriso suspenso
como um beijo malogrado.

Nunca ninguém viu ninguém
que o amor pusesse tão triste.
Essa tristeza não viste,
e eu sei que ela se vê bem...
Só se aquele mesmo vento
fechou teus olhos, também...
De Viagem (1939)

MOTIVO

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou se desfaço,
— não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno e asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
— mais nada.

De Viagem (1939)

BALADA DAS DEZ BAILARINAS DO CASSINO

Dez bailarinas deslizam
por um chão de espelho.
Têm corpos egípcios com placas douradas,
pálpebras azuis e dedos vermelhos.
Levantam véus brancos, de ingênuos aromas,
e dobram amarelos joelhos.

Andam as dez bailarinas
sem voz, em redor das mesas.
Há mãos sobre facas, dentes sobre flores,
e com os charutos toldam as luzes acesas.
Entre a música e a dança escorre
uma sedosa escada de vileza.

As dez bailarinas avançam
como gafanhotos perdidos.
Avançam, recuam, na sala compacta,
empurrando olhares e arranhando o ruído.
Tão nuas se sentem que já vão cobertas
de imaginários, chorosos vestidos.

As dez bailarinas escondem
nos cílios verdes as pupilas.
Em seus quadris fosforescentes,
passa uma faixa de morte tranqüila.
Como quem leva para a terra um filho morto,
levam seu próprio corpo, que baila e cintila.

Os homens gordos olham com um tédio enorme
as dez bailarinas tão frias.
Pobres serpentes sem luxúria,
que são crianças, durante o dia.
Dez anjos anêmicos, de axilas profundas,
embalsamados de melancolia.

Vão perpassando como dez múmias,
as bailarinas fatigadas.
Ramo de nardos inclinando flores
azuis, brancas, verdes, douradas.
Dez mães chorariam, se vissem
as bailarinas de mãos dadas.

De Retrato Natural (1949)

CANÇÃO

Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
— depois, abri o mar com as mãos,
para meu sonho naufragar.

Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre dos meus dedos
colore as areias desertas.

O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio...

Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.

Depois, tudo estará perfeito:
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e minhas duas mãos quebradas.

De Viagem (1939)

CANÇÃO DE ALTA NOITE

Alta noite, lua quieta,
muros frios, praia rasa.

Andar, andar, que um poeta
não necessita de casa.

Acaba-se a última porta.
O resto é o chão do abandono.

Um poeta, na noite morta,
não necessita de sono.

Andar... Perder o seu passo
na noite, também perdida.

Um poeta, à mercê do espaço,
nem necessita de vida.

Andar... — enquanto consente
Deus que a noite seja andada.

Porque o poeta, indiferente,
anda por andar — somente.
Não necessita de nada.

De Vaga Música (1942)

CANÇÃO DO CAMINHO

Por aqui vou sem programa,
sem rumo,
sem nenhum itinerário.
O destino de quem ama
é vário,
como o trajeto do fumo.

Minha canção vai comigo.
Vai doce.
Tão sereno é seu compasso
que penso em ti, meu amigo.
— Se fosse,
em vez da canção, teu braço!

Ah! mas logo ali adiante
— tão perto! —
acaba-se a terra bela.
Para este pequeno instante,
decerto,
é melhor ir só com ela.

(Isto são coisas que digo,
que invento,
para achar a vida boa...
A canção que vai comigo
é a forma de esquecimento
do sonho sonhado à toa...)

De Vaga Música (1942)

CANÇÃO

No desequilíbrio dos mares,
as proas giraram sozinhas...
Numa das naves que afundaram
é que certamente tu vinhas.

Eu te esperei todos os séculos
sem desespero e sem desgosto,
e morri de infinitas mortes
guardando sempre o mesmo rosto.

Quando as ondas te carregaram,
meu olhos, entre águas e areias,
cegaram como os das estátuas,
a tudo que existe alheias.

Minhas mãos pararam sobre o ar
e endureceram junto ao vento,
e perderam a cor que tinham
e a lembrança do movimento.

E o sorriso que eu te levava
desprendeu-se e caiu de mim:
e só talvez ele ainda viva
dentro dessas águas sem fim.

De Viagem (1939)

GUITARRA

Punhal de prata já eras,
punhal de prata!
Nem foste tu que fizeste
a minha mão insensata.

Vi-te brilhar entre as pedras,
punhal de prata!
— no cabo, flores abertas,
no gume, a medida exata,

a exata, a medida certa,
punhal de prata,
para atravessar-me o peito
com uma letra e uma data.

A maior pena que eu tenho,
punhal de prata,
não é de me ver morrendo,
mas de saber quem me mata.
De Viagem (1939)

SERENATA

Repara na canção tardia
que timidamente se eleva,
num arrulho de noite fria.

O orvalho treme sobre a treva
e o sonho da noite procura
a voz que o vento abraça e leva.

Repara a canção tardia
que oferece a um mundo desfeito
sua flor de melancolia.

É tão triste, mas tão perfeito,
o movimento em que murmura,
como o do coração no peito.

Repara na canção tardia
que por sobre o teu nome, apenas,
desenha a sua melodia.

E nessas letras tão pequenas
o universo inteiro perdura.
E o tempo suspira na altura

por eternidades serenas.

De Viagem (1939)

PÁSSARO

Aquilo que ontem cantava
já não canta.
Morreu de uma flor na boca:
não do espinho na garganta.

Ele amava a água sem sede,
e, em verdade,
tendo asas, fitava o tempo,
livre de necessidade.

Não foi desejo ou imprudência:
não foi nada.
E o dia toca em silêncio
a desventura causada.

Se acaso isso é desventura:
ir-se a vida
sobre uma rosa tão bela,
por uma tênue ferida.

De Retrato Natural (1949)

Fonte:
Meireles, Cecília. Obra Poética. Volume Único. RJ: Nova Aguilar, 1987.

Artur de Azevedo (Uma Aposta)


Se o Simplício Gomes não fosse um rapaz do nosso tempo, se não usasse calças brancas, paletó de alpaca, chapéu de palha e guarda-chuva, daria idéia de um desses quebra-lanças que só se encontram nos romances de cavalaria. De outro qualquer diríamos: "Ele gostava da Dudu"; tratando-se, porém, do Simplício Gomes, empregaremos esta expressão menos familiar: "Ele amava Edviges."

O seu amor tinha, realmente, alguma coisa de puro e de ideal, que não se compadecia com os costumes de hoje. Começava por ser discreto; Dudu adivinhou, ou antes, percebeu que era amada, mas ele nunca lho disse, nunca se atreveu a dizer-lhe, não por timidez ou respeito, mas simplesmente porque não tinha confiança no seu merecimento.

Estava bem empregado, poderia casar-se e viver modestamente em família, mas era tão feio, tão pequenino, tão insignificante e ela tão linda e tão esbelta, que o casamento lhe parecia desproporcionado. Ele não se sentia digno dela, não acreditava que a pudesse fazer feliz, e isso o desgostava profundamente. Ela, por seu lado, não concorria para que a situação se modificasse: fingia ignorar que ele a amava, e atribuía toda aquela solicitude a um afeto desinteressado.

Dudu vivia com a mãe, uma pobre viúva sem outro recurso que não fosse o do meio soldo e montepio deixados pelo marido, brioso oficial do Exército que viveu sempre desprotegido, porque não sabia lisonjear nem pedir; mas o Simplício Gomes, sem fumaças de protetor, e dando a esmola com ares de quem a recebia, achava meios e modos de fazer com que naquela casa faltasse apenas o supérfluo. Como era parente, embora afastado, das duas senhoras, estas consideravam os seus favores simples atenções de família.

O caso é que o Simplício Gomes parecia adivinhar os menores desejos de Dudu e nessas ocasiões recorria ao ardil de uma aposta:

- Aposto que hoje chove!
- Que idéia! o dia está bonito!
- Pois sim, mas o calor é excessivo: temos água com toda certeza!
- Não temos!
- Façamos uma aposta!
- Valeu! se chover eu perco uma caixa de charutos.
- E eu aquela blusa que você viu na vitrina da Notre Dame e cobiçou tanto.
- Quem lhe disse que cobicei?
- Ora, esses olhos não me enganam...

No dia seguinte Dudu recebia a blusa.

A velha costumava dizer com muita ingenuidade:

- Você faz mal em apostar, Simplício! E muito caipora, perde sempre, e então, em se tratando de mudança de tempo, é uma lástima!

Conquanto não se atrevesse a falar em casamento, o pobre rapaz sofria, oprimido pela idéia de que quando menos se pensasse, Dudu teria um namorado... um noivo... um marido e efetivamente, não se passou muito tempo que os seus receios não se realizassem.

Dudu impressionou-se por um cavalheiro muito bem trajado, que começou a rondar-lhe a porta quase todos os dias, cumprimentando-a, depois sorrindo-lhe, e finalmente escrevendo-lhe graças à cumplicidade de um molecote da casa.

Depois de receber três cartas, Dudu contestou, convenceu-se de que as intenções do namorado eram as melhores e mostrou a correspondência à mãe, que imediatamente consultou o Simplício Gomes sem saber o desgosto que lhe causava. Este, que já havia notado as idas e vindas do transeunte suspeito, disfarçou o mais que pôde, os seus sentimentos, limitando-se a dizer que Dudu não deveria casar-se com aquele homem sem ter primeiramente certeza de que ele a amava deveras. A velha, com toda a sua simplicidade, pediu-lhe que se informasse da idoneidade do pretendente, e o mísero logo se transformou de quebra-lanças em quebra-esquinas.

Foram desanimadoras (para ele) as informações que obteve: o rival chamava-se Bandeira, era de boa família, de bons costumes, funcionário público de certa categoria, estimado, e tinha alguma coisa. O seu único defeito era ser um pouco genioso.

O Simplício, que não tinha o altruísmo heróico de Cirano de Bergerac, não avolumou as qualidades do outro, mas foi leal: não as diminuiu. Em suma: o Bandeira pediu a mão de Dudu; e começou a freqüentar a casa.

O coitado não articulou uma queixa, mas começou desde logo a emagrecer a olhos vistos; perdeu o apetite, ficou macambúzio, fúnebre... Dudu, que tudo compreendeu, teve muita pena, teve quase remorsos; mas a velha nem mesmo assim desconfiou que a filha fosse adorada pelo infeliz parente.

Entretanto, o Simplício Gomes começou a ser assíduo em casa de Dudu; o seu desejo oculto era não deixá-la sozinha com o tal Bandeira enquanto não se casassem. O noivo tinha, efetivamente, boas qualidades, mas era não só genioso, mas de uma arrogância, de uma empáfia, de um autoritarismo que começaram a inquietar Dudu.

Uma bela tarde em que se achavam ambos sentados no canapé, e o Simplício Gomes, afastado, num canto da sala, folheava um álbum de retratos, o Bandeira levantou-se dizendo:

- Vou-me embora; tenho ainda que dar umas voltas antes da noite.
- Ora, ainda é cedo; fique mais um instantinho, replicou Dudu, sem se levantar do canapé.
- Já lhe disse que tenho que fazer! Peço-lhe que vá desde já se habituando a não contrariar as minhas vontades! Olhe que depois de casado, hei de sair quantas vezes quiser sem dar satisfações a ninguém!
- Bom; não precisa zangar-se...
- Não me zango, mas contrario-me! Não me escravizei; quero casar-me com a senhora, mas não perder a liberdade!
- Faz bem. Adeus. Até quando?
- Até amanhã ou depois.

O Bandeira apertou a mão de Dudu, despediu-se com um gesto do Simplício Gomes, e saiu batendo passos enérgicos, de dono de casa. Dudu ficou sentada no canapé, olhando para o chão.

O Simplício Gomes aproximou-se de mansinho, e sentou-se ao seu lado. Ficaram dez minutos sem dizer nada um ao outro. Afinal Dudu rompeu o silêncio. Olhou para o céu iluminado por um crepúsculo esplêndido, e murmurou:

- Vamos ter chuva.
- Não diga isso, Dudu: o tempo está seguro!
- Apostemos!
- Pois apostemos! Eu perco uma coisa bonita para o seu enxoval de noiva. E você?
- Eu... perco-me a mim mesma, porque quero ser tua mulher! E Dudu caiu, chorando, nos braços de Simplício Gomes.

Fontes:
Histórias brejeiras, 1962. In AZEVEDO, Artur de. Contos. SP: Editora Escala. s/d
Imagem = Ivan Jerônimo http://www.ivanjeronimo.com.br/

Folclore (Parlendas)


As parlendas são brincadeiras antigas e fazem parte do folclore brasileiro, são formas literárias tradicionais, rimadas com caráter infantil, de ritmo fácil e de forma rápida. Não são cantadas e sim declamadas em forma de texto, estabelecendo-se como base a acentuação verbal. São versos de 5 ou 6 silabas recitadas para entender, acalmar, divertir as crianças, ou mesmo em brincadeiras para escolher quem inicia a brincadeira ou o jogo, ou mesmo aqueles que podem brincar.O motivo de uma Parlenda é apenas o ritmo como ela se desenvolve, o texto verbal é uma série de imagens associadas e obedecendo apenas o senso lúdico, ela pode ser destinada a fixação de números ou idéias primarias, dias da semana, cores, dentre outros assuntos

Atualmente as Parlendas têm sido muito utilizadas pelos educadores de infância em sala de aula, é uma brincadeira que toda criança gosta e se interessa, já que estimula a imaginação de cada um. As parlendas podem ser utilizadas para memorização de números, dias da semana, meses, nomes de cidades e outros temas diversos; o professor pode criar a sua própria parlenda que mais se adeque ao momento educacional da criança.

Parlendas:

Amanhã é domingo, pé de cachimbo.
O cachimbo é de ouro, bate no touro.
O touro é valente, bate na gente.
A gente é fraco, cai no buraco.
O buraco é fundo, acabou-se o mundo.
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-O Papagaio come milho.
periquito leva a fama.
Cantam uns e choram outros
Triste sina de quem ama.
= = = = = = = = = = = =
-Um, dois, feijão com arroz,
Três, quatro, feijão no prato,
Cinco, seis, falar inglês,
Sete, oito, comer biscoito,
Nove, dez, comer pastéis.
= = = = = = = = = = = =
-Eu sou pequena,
Da perna grossa,
Vestido curto,
Papai não gosta
= = = = = = = = = = = =
-Por detrás daquele morro,
Passa boi, passa boiada,
Também passa moreninha,
De cabelo cacheado
= = = = = = = = = = = =
-Tropeiro fala de burro,
Vaqueiro fala de boi,
Jovem fala de namorada,
Velho fala que foi.
= = = = = = = = = = = =
-Era uma bruxa
À meia-noite
Em um castelo mal-assombrado
com uma faca na mão
Passando manteiga no pão
= = = = = = = = = = = =
-A sempre-viva quando nasce,
toma conta do jardim
Eu também quero arranjar
Quem tome conta de mim
= = = = = = = = = = = =
-Batatinha quando nasce,
Se esparrama pelo chão,
Mamãezinha quando dorme,
Põe a mão no coração.
= = = = = = = = = = = =
-Palminha

Palma, palminha,
Palminha de Guiné
Pra quando papai vié,
Mamãe dá a papinha,
Vovó bate cipó,
Na bundinha do nenê.
= = = = = = = = = = = =
- Homem com homem
Mulher com mulher
Faca sem ponta
Galinha sem pé
= = = = = = = = = = = =
- Enganei um bobo
Na casca do ovo!
= = = = = = = = = = = =
- Vá à …
Já fui e já voltei!
Burro que nem você nunca encontrei
= = = = = = = = = = = =
- Zé Capilé!
Tira bicho do pé
Pra tomar com café!
= = = = = = = = = = = =
- Aparecida! (ou Cida!)
Come casca de ferida
Amanhecida!
= = = = = = = = = = = =
- Cala a boca!
Cala a boca já morreu
Quem manda em você sou eu!
= = = = = = = = = = = =
- Coco pelado
Caiu no melado
Quebrou uma perna
Ficou aleijado
= = = = = = = = = = = =
-Uni, duni,tê

Uni, duni, tê,
Salamê, mingüê,
Um sorvete colorê,
O escolhido foi você!
= = = = = = = = = = = =
- O cochicho

Quem cochicha,
O rabo espicha,
Come pão
Com lagartixa
= = = = = = = = = = = =
- Rei Capitão

Rei, capitão,
Soldado, ladrão.
Moça bonita
Do meu coração
= = = = = = = = = = = =
- Fui à feira

Fui à feira comprar uva.
Encontrei uma coruja,
Pisei no rabo dela.
Ela me chamou de cara suja
= = = = = = = = = = = =
-Os dedos

Dedo mindinho,
Seu vizinho,
Pai de todos,
Fura bolo,
Mata piolho..
= = = = = = = = = = = =
- Chuva e sol, casamento
de espanhol.
Sol e chuva, casamento
de viúva.
= = = = = = = = = = = =
- Meio dia

Meio dia,
Panela no fogo,
Barriga vazia.
Macaco torrado,
Que vem da Bahia,
Fazendo careta,
Pra dona Sofia.
= = = = = = = = = = = =
- PAPAGAIO LOURO

Papagaio luoro
Do bico dourado
Leva essa cartinha
Pro meu namorado
Se tiver dormindo
Bate na porta
Se tiver acordado
Deixe o recado.
= = = = = = = = = = = =
-O cemitério

No portão do cemitério,
Tério, tério, tério,
Duas almas se encontraram,
Traram, traram, traram.
Uma disse para a outra,
Outra, outra, outra,
Você é uma vagabunda,
Bunda, bunda, bunda,
Mas que falta de respeito,
Peito, peito, peito
Mas que peito cabeludo,
Ludo, ludo, ludo
= = = = = = = = = = = =
Andando pelo caminho
Fui andando pelo caminho.
Éramos três,
Comigo quatro.
Subimos os três no morro,
Comigo quatro.
Encontramos três burros,
Comigo quatro.
= = = = = = = = = = = =
- Perna de pato
Entrou pela perna do pato,
Saiu pela perna do pinto.
O rei mandou dizer
Que quem quiser
Que conte cinco:
Um, dois, três, quatro, cinco
= = = = = = = = = = = =
-A mulher morreu

Lá na rua vinte e quatro,
a mulher matou o gato,
com a sola do sapato,
o sapato estremeceu
a mulher morreu
o culpado não fui eu.
= = = = = = = = = = = =
-La em cima do piano
tem um copo de veneno
Quem bebeu, morreu
O azar foi seu.
= = = = = = = = = = = =
-Agá, agá
A galinha quer botar
Ijê, Ijê
Minha mãe me deu uma surra
fui parar no Tietê
Alô,Alô
O Galo já cantou
Amarelo, amarelo
Fui parar no cemitério
Roxo, roxo,
Fui parar dentro do cocho
= = = = = = = = = = = =
- Cadê o toucinho que estava aqui?
O Gato comeu
Cadê o gato?
No mato
Cade o mato?
O fogo queimou
Cadê o fogo?
A água apagou
Cadê a água?
O Boi bebeu
Cadê o boi?
Amassando o trigo
Cadê o trigo?
A galinha espalhou
Cadê a galinha?
Botando ovo
Cadê o ovo?
O padre bebeu
Cadê o padre?
Rezando missa
Cadê a missa?
Tá na capela
Cadê a Capela?
Ta aqui.........
= = = = = = = = = = = =
-Bão Balalão

Bão, babalão,
Senhor Capitão,
Espada na cinta,
Ginete na mão.
Em terra de mouro
Morreu seu irmão,
Cozido e assado
No seu caldeirão
= = = = = = = = = = = =
Ou
Bão-balalão!
Senhor capitão!
Em terras de mouro
Morreu meu irmão,
Cozido e assado
Em um caldeirão;
Eu vi uma velha
Com um prato na mão,
= = = = = = = = = = = =
-Quem é?
É o padeiro
E o que quer?
Dinheiro
Pode entrar
que eu vou buscar
O seu dinheiro
Lá embaixo do travesseiro
= = = = = = = = = = = =
-O Macaco foi á feira
Não sabia o que comprar
Comprou uma cadeira
Pra comadre se sentar
A comadre se sentou
A cadeira escorregou
coitada da comadre
foi parar no corredor
= = = = = = = = = = = =
-Batalhão
Batalhão, lhão, lhão,
quem não entrar é um bobão.
Abacaxi, xi, xi
quem não sai é um saci.
Beterraba, aba, aba,
quem errar é uma diaba.
Borboleta, leta, leta
, quem errar é uma capeta.
= = = = = = = = = = = =
-PEDRINHA

Pisei na pedrinha,
A pedrinha rolou
Pisquei pro mocinho,
Mocinho gostou
Contei pra mamãe
Mamãe nem ligou
Contei pro papai,
Chinelo cantou.

Fontes:
http://www.qdivertido.com.br/verfolclore.php?codigo=21
http://www.bigmae.com/o-que-sao-parlendas/
http://www.brasilfolclore.hpg.ig.com.br/parlenda.htm

Carlos Drummond de Andrade (Debaixo da Ponte)


Moravam debaixo da ponte.

Oficialmente, não é lugar onde se more, porém eles moravam. Ninguém lhes cobrava aluguel, imposto predial, taxa de condomínio: a ponte é de todos, na parte de cima; de ninguém, na parte de baixo. Não pagavam conta de luz e gás, porque luz e gás não consumiam. Não reclamavam contra falta dágua, raramente observada por baixo de pontes. Problema de lixo não tinham; podia ser atirado em qualquer parte, embora não conviesse atirá-lo em parte alguma, se dele vinham muitas vezes o vestuário, o alimento, objetos de casa. Viviam debaixo da ponte, podiam dar esse endereço a amigos, recebê-los, fazê-los desfrutar comodidades internas da ponte.

À tarde surgiu precisamente um amigo que morava nem ele mesmo sabia onde, mas certamente morava: nem só a ponte é lugar de moradia para quem não dispõe de outro rancho. Há bancos confortáveis nos jardins, muito disputados; a calçada, um pouco menos propícia; a cavidade na pedra, o mato. Até o ar é uma casa, se soubermos habitá-lo, principalmente o ar da rua. O que morava não se sabe onde vinha visitar os de debaixo da ponte e trazer-lhes uma grande posta de carne.

Nem todos os dias se pega uma posta de carne. Não basta procurá-la; é preciso que ela exista, o que costuma acontecer dentro de certas limitações de espaço e de lei. Aquela vinha até eles, debaixo da ponte, e não estavam sonhando, sentiam a presença física da ponte, o amigo rindo diante deles, a posta bem pegável, comível. Fora encontrada no vazadouro, supermercado para quem sabe freqüentá-lo, e aqueles três o sabiam, de longa e olfativa ciência.
Comê-la crua ou sem tempero não teria o mesmo gosto. Um de debaixo da ponte saiu à caça de sal. E havia sal jogado a um canto de rua, dentro da lata. Também o sal existe sob determinadas regras, mas pode tornar-se acessível conforme as circunstâncias. E a lata foi trazida para debaixo da ponte.

Debaixo da ponte os três prepararam comida. Debaixo da ponte a comeram. Não sendo operação diária, cada um saboreava duas vezes: a carne e a sensação de raridade da carne. E iriam aproveitar o resto do dia dormindo (pois não há coisa melhor, depois de um prazer, do que o prazer complementar do esquecimento), quando começaram a sentir dores.

Dores que foram aumentando, mas podiam ser atribuídas ao espanto de alguma parte do organismo de cada um, vendo-se alimentado sem que lhe houvesse chegado notícia prévia de alimento. Dois morreram logo, o terceiro agoniza no hospital. Dizem uns que morreram da carne, dizem outros que do sal, pois era soda cáustica.

Há duas vagas debaixo da ponte.

Fontes:
ANDRADE, Carlos Drummond de. Obra Completa. RJ: José Aguilar Ed., 1967.
Imagem = www.tvcanal13.com.br/fotos/miseria1.jpg

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n.103)


Uma Trova Nacional

Sofre o carteiro na mata
um arranjo repentino.
Muitas cartas nessa data
não chegou a seu destino...
(ALFREDO VALADARES/MG)

Uma Trova Potiguar

Não é para mim que jogo
pra tirar grandes valores,
faço a mega e a Deus rogo
pensando nos meus credores!
(FRANCISCO MACEDO/RN)

Uma Trova Premiada

2009 > Ribeirão Preto/PR
Tema > EREMITA > Menção Honrosa

Indo armar uma arapuca,
encontrei um eremita
que, me vendo de peruca,
perguntou se eu era Chita...
(RUTH FARAH NACIF/RJ)

Simplesmente Poesia

MOTE:
CARRO VELHO E SUTIÃ,
SÓ COMPRA QUEM É PEITUDO.

GLOSA:
Se existe coisa vã.
tão falsa como aparente,
é, sem dúvida, minha gente,
carro velho e sutiã.
Digo hoje, digo amanhã,
direi também, e não mudo,
usar o bom senso é tudo;
e, lógico é o que eu digo:
essas duas coisas, amigo,
só compra quem é peitudo.
(JOSÉ LEIROS/RN)
.
Uma Trova de Ademar

Por agir sem ter cautela
um grande mico eu paguei,
investi numa donzela
que na verdade era um gay!...
(ADEMAR MACEDO/RN)

...E Suas Trovas Ficaram

São José, figura obreira
e carpinteiro de luz,
fez muita coisa em madeira,
mas nunca fez uma cruz!
(RENÊ BITTENCOURT/RJ)

Estrofe do Dia

Não me podendo atender
não vá ficar irritado,
diga-me um não educado
que eu sei bem compreender,
não pense em se abastecer
de ódio e ignorância,
que sua preponderância
vai cair pela metade
- Respeite minha humilda
deque eu zelo sua arrogância.
(PEDRO ERNESTO FILHO/CE)

Soneto do Dia

– Thalma Tavares/SP –
O CASO DO TONHO.

O Tonho tem um caso na Internet.
Segundo ele, uma mulher fogosa
que usa o codinome de Cossete
e se revela ardente e carinhosa.

O Tonho anda por ela apaixonado...
E se na “virtual” a coisa rende,
ele quer se sentir mais realizado
buscando na “real” o que pretende.

- “Trarei um “C”, disse ela, no meu busto,
vermelho igual ao fogo que hoje, a custo,
você tenta apagar e jamais logra”.

E ele vai, porém volta apavorado
quando descobre, incrédulo, assustado,
que a fogosa Cossete é sua sogra.

Fonte:
Ademar Macedo

Rachel de Queiroz (Os Dois Bonitos e os Dois Feios)


Nunca se sabe direito a razão de um amor. Contudo, a mais frequente é a beleza. Quero dizer, o costume é os feios amarem os belos e os belos se deixarem amar. Mas acontece que às vezes o bonito ama o bonito e o feio o feio, e tudo parece estar certo e segundo a vontade de Deus, mas é um engano. Pois o que se faz num caso é apurar a feiúra e no outro apurar a boniteza, o que não está certo, porque Deus Nosso Senhor não gosta de exageros; se Ele fez tanta variedade de homens e mulheres neste mundo é justamente para haver mistura e dosagem e não se abusar demais em sentido nenhum. Por isso também é pecado apurar muito a raça, branco só querendo branco e gente de cor só querendo os da sua igualha — pois para que Deus os teria feito tão diferentes, se não fora para possibilitar as infinitas variedades das suas combinações?

O caso que vou contar é um exemplo: trata de dois feios e dois bonitos que se amavam cada um com o seu igual. E, se os dois bonitos se estimavam, os feios se amavam muito, quero dizer, o feio adorava a feia, como se ela é que fosse a linda. A feia, embalada com tanto amor, ficava numa ilusão de beleza e quase bela se sentia, porque na verdade a única coisa que nos torna bonitos aos nossos olhos é nos espelharmos nos olhos de quem nos ame.

Vocês já viram um vaqueiro encourado? É um traje extraordinariamente romântico e que, no corpo de um homem e delgado, faz milagres. É a espécie de réplica em couro de uma armadura de cavaleiro.

Dos pés à cabeça protege quem a veste, desde as chinelas de rosto fechado, e as perneiras muito justas ao relevo das pernas e das coxas, o guarda-peito colado ao torso, o gibão amplo que mais acentua a esbelteza do homem e por fim o chapéu que é quase a cópia exata do elmo de Mambrino. Aliás, falei que só assenta roupa de couro em homem magro e disse uma redundância, porque nunca vi vaqueiro gordo. Seria mesmo que um toureiro gordo, o que é impossível. Se o homem não for leve e enxuto de carnes, nunca poderá cortar caatinga atrás de boi, nem haverá cavalo daqui que o carregue.

Os dois heróis da minha história, tanto o feio como o bonito, eram vaqueiros do seu ofício. E as duas moças que eles amavam eram primas uma da outra — e apesar da diferença no grau de beleza, pareciam-se. Sendo que uma não digo que fosse a caricatura da outra, mas era, pelo menos, a sua edição mais grosseira. O rosto de índia, os olhos amendoados, a cor de azeitona rosada da bonita, repetidos na feia, lhe davam uma cara fugidia de bugra; tudo que na primeira era graça arisca na segunda se tornava feiúra sonsa.

De repente, não se sabe como, houve uma alteração. O bonito, inexplicavelmente, mudou. Deixou de procurar a sua bonita. Deu para rondar a casa da outra, a princípio fingindo um recado, depois nem mais esse cuidado ele tinha. Sabe-se lá o que vira. No fundo, talvez obedecesse àquela abençoada tendência que leva os homens bonitos em procura das suas contrárias; benza-os Deus por isso, senão o que seria de nós, as feiosas? Ou talvez fosse porque a bonita, conhecendo que o era, não fizesse força por sustentar o amor de ninguém. Enquanto a pobre da feia todos sabem como é — aquele costume do agrado e, com o uso da simpatia, descontar a ingratidão da natureza. E embora o seu feio fosse amante dedicado, quanto não invejaria a feia a beleza do outro, que a sua prima recebia como coisa tão natural, como o dia ser dia e a noite ser noite. Já a feia queria fazer o dia escuro e a noite clara — e o engraçado é que o conseguiu. Muito pode quem se esforça.

O feio logo sentiu a mudança e entendeu tudo. Passou a vigiar os dois. Se esta história fosse inventada poderia dizer que ele, se vendo traído, virou-se para a bonita e tudo se consertou. Mas na vida mesmo as pessoas não gostam de colaborar com a sorte. Fazem tudo para dificultar a solução dos problemas, que, às vezes, está na cara e elas não querem enxergar. Assim sendo, o feio ficou danado da vida, e nem se lembrou de procurar consolo junto da bonita desprezada; e esta, se sentindo de lado, interessou-se por um rapaz bodegueiro que não era bonito como o vaqueiro enganoso, mas tinha muito de seu e podia casar sem demora e sem condições.

Assim, ficaram em jogo só os três. O feio cada dia mais desesperado. A feia, essa andava nas nuvens, e toda vez que o "primo" (pois se tratavam de primos) lhe botava aqueles olhos verdes — eu falei que além de tudo ele ainda tinha os olhos verdes? — ela pensava que ia entrar de chão adentro, de tanta felicidade.

Mas o pior é que os dois vaqueiros ainda saíam todo o dia juntos para o campo, pois eram campeiros da mesma fazenda e se haviam habituado a trabalhar de parelha, como Cosme e Damião. Seria impossível se separarem sem que um dos dois partisse para longe, e, é claro, nenhum deles pretendia deixar o lugar vago ao outro.

Assim estava a intriga armada, quando a feia, certa noite, ao conversar na janela com o seu bonito que lá viera furtivo, colheu um cravo desabrochado no craveiro plantado numa panela de barro e posto numa forquilha bem encostada à janela (era uma das partes dela, ter todos esses dengues de mulher bonita) e enquanto o moço cheirava o cravo, ela entrefechou os olhos e lhe disse baixinho:

— Você sabe que o outro já lhe jurou de morte?

Falei que o desprezado jurara de matar o traidor. Seria verdade? Quem sabe as coisas que é capaz de inventar uma mulher feia improvisada em bonita pelo amor de dois homens, querendo que o seu amor renda os juros mais altos de paixão?

O belo moço assustou. Gente bonita está habituada a receber da vida tudo a bem dizer de graça, sem luta nem inimizade, como seu direito natural, que os demais devem graciosamente reconhecer. As mulheres o queriam, os homens lhe abriam caminho. E não é só em coisas de amor: de pequenino, o menino bonito se habitua a encontrar facilidades, basta fazer um beiço de choro ou baixar um olho penoso, todo o mundo se comove, pede uni beijo, dá o que ele quer. Já o feio chora sem graça, a gente acha que é manha, mais fácil dar-lhe uns cascudos do que lhe fazer o gosto. Assim é o mundo, e se está errado, quem o fez foi outro que não nos dá satisfações.

Pois o bonito assustou. Deu para olhar o outro de revés, ele que antes vivia tão confiado, como se adiasse que a obrigação do coitado era lhe ceder a menina e ainda tirar o chapéu. Passou a ver mal em tudo. De manhã, ao montar a cavalo, examinava a cilha e os loros, os quatro cascos do animal. Ele, que só usava um canivete quando ia assinar criação, comprou ostensivamente uma faca, afiou-a na beira do açude, e só a tirava do cós para dormir. E quando saía a campo com o companheiro, em vez de irem os dois lado a lado, segundo o costume, marchava atrás, dez braças aquém do cavalo do outro.

O feio não falava nada. Fazia que não enxergava as novidades do colega. Como sempre andara armado, não careceu comprar faca para fazer par com a peixeira nova do rival. E, sendo do seu natural taciturno, continuou calado e fechado consigo.

E o outro — nós mulheres estamos habituadas a pensar que todo homem valente é bonito, mas a recíproca raramente é verdade, e nem todo bonito é valente. Este nosso era medroso. Era medroso mas amava, o que o punha numa situação penosa. Não amasse, ia embora, o mundo é grande, os caminhos correm para lá e para cá. Agora, porém, só lhe restava amar e ter medo. Ou defender-se. Mas como? O rival não fazia nada, ficava só naquela ameaça silenciosa; as juras de morte que fizera — se as fizera — de juras não tinham passado ainda. Meu Deus, e ele não era homem de briga, já não disse? Tinha a certeza de que se provocasse aquele alma fechada, morria.

Bem, as juras eram verdadeiras. O feio jurara de morte o bonito e não só de boca para fora, na presença da amada, mas nas noites de insônia, no escuro do quarto, sozinho no ódio do seu coração. Levava horas pensando em como o mataria — picado de faca, furado de tiro, moído de cacete. Só conseguia dormir quando já estava com o cadáver defronte dos olhos, bonito e branco, ah, bonito não, pois, quando o matava em sonhos, a primeira coisa que fazia era estragar aquela cara de calunga de loiça, pondo-a de tal modo feia que até os bichos da cova tivessem nojo dela. Mas como fazer? Não poderia começar a brigar, matá-lo, sem quê nem mais. Hoje em dia justiça piorou muito, não há patrão que proteja cabra que faz uma morte, nem a fuga é fácil, com tanto telégrafo, avião, automóvel. E de que servia matar, tendo depois que penar na prisão? Assim, quem acabaria pagando o malfeito haveria de ser ele mesmo. O outro talvez fosse para o purgatório, morrendo sem confissão, mas era ele que ficava no inferno, na cadeia. Aí então teve a idéia de uma armadilha. Botar uma espingarda com um cordão no gatilho... quando ele fosse abrindo a porta. Não dava certo, todo o mundo descobriria o autor da espera. Atacá-lo no mato e contar que fora uma onça... Qual, cadê onça que atacasse vaqueiro em pleno dia? E a chifrada de um touro? Difícil, porque teria que apresentar o touro, na hora e no lugar... Lembrou-se então de um caso acontecido muitos anos atrás, quase no pátio da fazenda. O velho Miranda corria atrás de uma novilha, a bicha se meteu por sob um galho baixo de mulungu, o cavalo acompanhou a novilha, e em cima do cavalo ia o vaqueiro: o pau o apanhou bem no meio
da testa, lá nele, e quando o cavalo saiu da sombra do mulungu, o velho já era morto... Poderia preparar uma armadilha semelhante? Como induzir o rival?... Levou quatro dias de pesquisa disfarçada para descobrir um pau a jeito. Afinal achou um cumaru à beira de uma vereda, onde o gado passava para ir beber na lagoa. O cumaru estirava horizontalmente um braço a dois metros do chão, cobrindo a vereda logo depois que ela dava uma curva. A qualquer hora passariam de novo os dois por ali. E como só um passava pela vereda estreita, bastaria ele ficar atrás, apertar de repente o passo, meter o chicote no cavalo da frente; o outro, assustado com o disparo do cavalo, se descuidava do pau — e era um homem morto.


Mas não deu certo. Isto é, deu certo do começo ao fim — só faltou o fim do fim. Pois logo no dia seguinte se encaminharam pela vereda, perseguindo um novilhote. O bonito na frente, o feio atrás, como previsto. Quando chegaram à curva que virava em procura do cumaru, o de trás ergueu o relho, bateu uma tacada terrível na garupa do cavalo da frente, que já era espantado do seu natural, e o animal desembestou. Mas o instinto do vaqueiro salvou-o no último instante. Sentiu um aviso, ergueu os olhos, viu o pau, deitou-se em cima da sela e deixou o cumaru para trás. Logo adiante acabava a caatinga e começava o aceiro da lagoa. O bonito sofreou afinal o cavalo. Podia ser medroso, mas não era burro, e uma raiva tão grande tomou conta dele, que até lhe destruiu o medo no coração. Sem dizer palavra, tirou a corda do laço debaixo da capa da sela, e ficou a girar na mão o relho torcido, como se quisesse laçar o novilho que também parará várias braças além, e ficara a enfrentá-los de longe. O companheiro espantou-se: será que aquele idiota esperava laçar o boi, a tal distância? Claro que não entendera como andara perto da morte... Mas o laço, riscando o ar, cortou-lhe o pensamento: em vez de se dirigir à cabeça do novilho, vinha na sua direção, cobriu-o, apertou-se em redor dele, prendeu-lhe os braços ao corpo e, se retesando num arranco, atirou-o de cavalo abaixo. Num instante o outro já estava por cima dele, com um riso de fera na cara bonita.

— Pensou que me matava, seu cachorro... Açoitou o cavalo de propósito, crente que eu rebentava a cabeça no pau... Um ele nós dois linha de morrer, não era? Pois á assim mesmo... um de nós dois vai morrer. Enquanto falava, arquejando do esforço e da raiva, ia inquirindo na corda o homem aturdido da queda, fazendo dele um novelo de relho. Dai saiu para o mato, demorou-se um instante perdido entre as aves e voltou com o que queria — um galho de imburana da grossura do braço de um homem. Duas vezes malhou com o pau na testa do inimigo. Esperou um pouco para ver se o matara. E como lhe pareceu que o homem ainda tinha um resto de sopro, novamente bateu, sempre no mesmo lugar.

Chegou à fazenda, com o companheiro morto à sela do seu próprio cavalo, ele à garupa, segurando-o com o braço direito, abraçado como um irmão; com a mão esquerda puxava o cavalo sem cavaleiro.

Ninguém duvidou do acidente. Foi gente ao local, examinaram o galho assassino, estirado sobre a vereda como um pau de forca. Fincaram uma cruz no lugar.

E o bonito e a feia acabaram casando, pois o amor deles era sincero. Foram felizes. Ela nunca entendeu o que houvera, e remorso ele nunca teve, pois, como disse ap padre em confissão, matou para não morrer.

E a moral da história? A moral pode ser o velho ditado: faz o feio para o bonito comer. Ou então compõe-se um ditado novo: entre o feio e o bonito, agarre-se ao bonito. Deus traz os bonitos de baixo da Sua Mão.

Fonte:
SANTOS, Joaquim Ferreira (organizador). As cem melhores crônicas brasileiras. RJ: Ed. Objetiva, 2007.

Jandi Fabian Barbosa e Tania M. K. Rosing (A Literatura Infanto-Juvenil: do Acesso ao Livro até a Formação do Leitor)


RESUMO: O presente trabalho – A Literatura Infanto-Juvenil: Do acesso ao livro até a formação do leitor – reúne reflexões acerca de um tema com linha tríplice, ou seja, o estudo de algumas particularidades referentes ao desenvolvimento da literatura infanto-juvenil em sala de aula. Em primeiro plano a abordagem segue a linha que envolve a problematização de acesso a obra literária. Em segundo momento a questão da formação de mediadores de leitura e, a importância desse mediador consolidar-se como um eu - leitor e, assim, construir uma fortuna literária adequada para realizar sua função de formar leitores literários críticos. Assumindo o leitor um papel de pronunciar sua percepção sobre o que encontrou por meio da leitura e e/ou ampliar sua organização intelectual a respeito do contingente social que o cerca.

PALAVRAS - CHAVE: Acesso – mediadores – leitura – leitor.


1- Introdução

O presente trabalho – A Literatura Infanto-Juvenil: Do acesso ao livro até a formação do leitor – reúne reflexões acerca de um tema com linha tríplice, ou seja, o estudo de algumas particularidades referentes ao desenvolvimento da literatura infanto-juvenil em sala de aula. Em primeiro plano a abordagem segue a linha que envolve a problematização de acesso a obra literária, não somente dos livros tradicionais, mas também, a inclusão das novas e mais diversas ferramentas como: Hqs, Dvds, quadrinhos, entre outros que servem como suporte de alto grau de interesse dos jovens estudantes. Em segundo momento a questão da formação de mediadores de leitura e, a importância desse mediador consolidar-se como um eu - leitor e, assim, construir uma fortuna literária adequada para realizar sua função de formar leitores literários críticos.

Por fim o objetivo primordial que alimenta essa proposta cientifica é demonstrar as possibilidades em que o mediador de leitura pode desenvolver o seu trabalho buscando debruçar a ênfase na forma de apresentar a obra literária aos leitores, pois é por meio de seu entusiasmo, de sua paixão e dedicação que essas novas peças do mundo da leitura conseguirão desenvolver a capacidade de conhecer e lidar com as realidades que convivem. Nesse sentido procura-se principalmente em evidenciar os recursos que podem ser retirados da obra escolhida e a forma de aplicação que consiste em uma ferramenta extremamente eficaz no processo de emancipação intelectual e cultural desse individuo.

2- Por onde caminha a literatura infanto-juvenil

É costume de qualquer cidadão manifestar opiniões sobre os mais diversos temas que transitam entre nossa sociedade, informações de um conhecimento empírico que na maioria das vezes não são sistematizados e muito menos críticos. No entanto, quando nos deparamos com professores, responsáveis pela boa formação e informação daqueles que logo formarão os pensamentos da futura sociedade, manifestando opiniões dispersas e sem qualquer embasamento teórico sobre as reais condições da propagação da literatura infanto-juvenil; acabamos por perceber as dificuldades que esse profissional tem de assimilar as realidades e condições que circulam em seu ambiente de trabalho e/ou o próprio descomprometi mento com a função de formar um cidadão capaz, leitor, critico e emancipado das grades da ignorância. O contexto é outro e novas atitudes precisam ser traçadas como mostra o excerto:

A movimentação pela formação de leitores no Brasil identifica uma primeira necessidade: reconhecendo-se, na atualidade, a importância da instituição escola como centro de difusão educacional, cultural e tecnológica, onde deve ocorrer o processo de formação de dados em informações e de informações em conhecimento entre professores e alunos, impõe-se urgentemente a formação de professores leitores no exercício da docência a partir de novos parâmetros. (ROSING, 2009, p.129).

Tânia Rosing afirma no trecho supracitado a necessidade de o professor agregar em sua vida mais uma atividade que na verdade já deveria fazer parte de seu cotidiano, a um bom tempo. Ou seja, a importância do educador ir alem dos limites da sala de aula e configurar-se como um leitor competente, integrado e conhecedor da capacidade de envolver o aluno que recai sobre sua função; assim capacitando-se para dialogar com competência sobre as diversas obras que fazem parte de sua fortuna literária.

Experiências de leitura que provavelmente formarão junto com o entusiasmo do professor e sua vontade de romper barreiras um mecanismo eficiente contra a atual situação em que se encontra a escola e os jovens, esses sem interesse algum pelo conhecimento literário, muito provavelmente originado pelas maneiras arcaicas e pouco interessantes em que à literatura e suas obras são apresentadas em sala de aula.

A criança, o jovem, enfim, o aluno precisa ser cativado, ser conquistado, direcionado para o caminho da leitura, se a pessoa se sente pouco à vontade em

aventurar-se na cultura letrada devido à sua origem social, seu distanciamento dos lugares do saber, a dimensão do encontro com um mediador, das trocas, das palavras “verdadeiras”, é essencial. (PETIT, 2008). Muito provavelmente o ato de despertar para o mundo da leitura, do conhecimento acontece por meio de certo amor, de uma admiração resultante do contato com uma bibliotecária, professor, pai, mãe, amigo que independente do grau de aproximação mostra-se como um cidadão comprometido com o conhecimento letrado e demonstra sua satisfação de tal forma que acaba contagiando muitos daqueles que o cercam. Como evidencia o relado da jovem Bopha em pesquisa realizada por Michele Petit.

Lembro-me muito bem como foi que tomei gosto pela leitura: apresentando um livro a meus colegas de classe (tinha uns onze anos). Escolhi Ratos e homens, de Steinbeck. Era a historia de um retardado mental, a historia da amizade entre dois homens. Esse livro me marcou muito, e a partir dele comecei realmente a ler outras coisas, a ler livros sem figuras, a ler autores. Comecei a freqüentar bibliotecas, acompanhando minha irmã, para ver livros, folhear, olhar. (PETIT, 2008, p. 154).

A criança, o jovem precisa estar em contato com o livro, com as revistas, enfim, com todo acervo de leitura possível e realizar ação desde um simples folhear páginas até as leituras, mas intensas. No entanto, acaba sendo na escola que o leitor deixa de ler ou não desenvolve suas leituras. Nas páginas seguintes essa pesquisadora francesa Michele Petit mostra que a jovem bopha que aos onze anos despertou para leitura quando entrou para o ensino médio devido o acumulo de atividades, de matérias e a obrigatoriedade de leitura de algumas obras que exigiam maior poder de compreensão ela acaba distanciando-se do prazer de ler. Essa informação remonta sobre a necessidade de desenvolver uma urgente reformulação no sistema de ensino nas escolas e também a adesão do professor em agregar com competência a importância de apropriar-se do titulo de professor-leitor; e dessa forma conseguir despertar a criança para leitura e conseguir desenvolver esse gosto e crescimento intelectual por toda sua carreira escolar. Zilberman (2009) já afirmava que a crise da leitura é igualmente uma crise da escola, e vice-versa.

3- O Livro ao alcance do leitor

Mais adiante retomaremos a questão de mediação de leitura, afim de, apresentar maneiras de desenvolver essa prática. Agora outro fator que aparece como grande problema para disseminação da leitura é o acesso que as crianças tem aos materiais, não somente o livro em sua forma tradicional, mas também, as mais novas e modernas tecnologias de acesso à leitura como: Quadrinhos, hqs, dvds, internet, televisão entre outros.

É, contudo, pois, que Regina Zilberman, afirma que o livro didático exclui a interpretação e, com isso, exila o leitor [...] Consequentemente, a proposta de que a leitura seja enfatizada na sala de aula significa o resgate de sua função primordial, buscando, sobretudo a recuperação do contato do aluno com a obra de ficção. O estudo de trechos de obras literárias, o uso da literatura para conhecer a sintaxe, como realiza a maioria os livros didáticos, pouco oferecem para o desenvolvimento da leitura. Limitando-se a atividades de cunho estritamente pragmático. O contato com o livro, em sua integridade, deve ser constante, as estimulações por meio das imagens, a criação de histórias, as comparações com a realidade, à leitura da obra pelo professor, juntamente com o ato de folhear e manusear o livro que conseguirão despertar a curiosidade e instigar o estudante a disseminar o gosto pela leitura. É de suma importância o contato com o objeto, com a obra de ficção, essas devem estar a todo o momento ao alcance dos pequenos leitores, para que assim consigam busca-las sempre que desejarem e acabem como afirma o trecho abaixo realizando uma descoberta:

Com efeito, o recurso à literatura pode desencadear com eficiência um novo pacto entre estudantes e o texto, assim como entre aluno e professor. No primeiro caso, trata-se de estimular uma vivência singular com a obra, visando ao enriquecimento pessoal do leitor, sem finalidades precípuas ou cobranças ulteriores. Já que a leitura é necessariamente uma descoberta de mundo. (ZILBERMAN, 2009, p.36).

A constante aproximação dos alunos com a obra literária como antes evidenciado é imprescindível, mas, se faz necessário nesse novo contexto, de constantes descobertas tecnológicas, da televisão, da internet, em que esta envolvida a escola e a educação apresentar para os alunos as outras ferramentas que hoje facilitam o acesso ao mundo da leitura. Ferramentas essas que muitas vezes proporcionam um envolvimento mais rápido e cativante para os pequenos em processo de apropriação da leitura.

Um grande exemplo dentre as novas mídias que cativam de forma gigantesca os jovens, crianças e o público de forma geral é a televisão, que acaba sendo duramente criticada pela pedagogia devido à qualidade de sua programação e seu poder de deformação de caráter, no entanto, assistir televisão é um grande hábito da sociedade contemporânea. E existem programas diversos que o educador pode levar para sala de aula e juntamente com o livro desenvolver um trabalho pedagógico de ensino-aprendizagem altamente produtivo.

Ocupar um espaço na televisão com um programa educativo infantil também despertou, na equipe responsável pelo Mundo da Leitura (*), o cuidado de não reduplicar e reforçar a cultura de massas, tão fortemente enraizada nessa mídia. Em contraposição a isso, elegeu-se como foco do programa a difusão das produções literárias e artísticas provenientes da cultura erudita e da cultura individual criadora e dos conhecimentos gerados pelas ciências modernas; por outro lado, buscou-se resgatar as manifestações da cultura popular, depositária da sabedoria secular do povo iletrado. (BECKER, 2009, p.261).

(*) Mundo da Leitura é um programa de TV produzido pela Universidade de Passo Fundo e exibido nacionalmente no Canal Futura. As aventuras de Gali-Leu e sua turma são elaboradas por uma equipe interdisciplinar que envolve os cursos de Letras, Artes e Comunicação , Educação, Ciências Exatas, e a UPFTV. De forma lúdica e dinâmica, as diversas linguagens apresentadas - manipulação de bonecos, leitura e encenação de textos infantis, artes gráficas, música, entre outros - servem de incentivo para o desenvolvimento da criatividade, do raciocínio lógico e, principalmente, para a criação do hábito da leitura entre as crianças.

A preocupação dos editores da programação do Mundo da Leitura mostra como essa mídia, a televisão, pode ser extremamente relevante no processo de formação e acesso á leitura dos estudantes. Somente se faz necessário à habilidade do professor em escolher as obras, os programas, as atividades que realmente poderão proporcionar o enriquecimento das aulas e do prazer em conhecer a literatura. Da mesma forma pode o educador utilizar-se das inúmeras páginas na internet que fazem referências as obras infantis, ao despertar da curiosidade, trabalhando as imagens em conjunto com o texto escrito. Transitar pelos quadrinhos, pelas hqs, que por suas diversas cores e formatos despertam intensa curiosidade dos alunos. Ou seja, os materiais disponíveis para facilitar a compreensão da literatura e desenvolver o gosto pela leitura são os mais variados, mas, relembramos a necessidade de estarem absolutamente ao alcance dos alunos, devem fazer parte de seu dia-a-dia na escola e principalmente da mediação realizada pelo professor entre esses materiais e os jovens leitores.

4- Transmitir literatura com amor: Formação de Mediadores de leitura

A escritora Michele Petit em seu livro, Os Jovens e a Leitura – Uma nova perspectiva, afirma que o mediador, ou no termo utilizado pela autora, o iniciador aos livros, é aquele que pode legitimar o desejo de ler. Que ajuda a ultrapassar os umbrais em diferentes momentos, que acompanha o leitor no momento difícil de escolher o livro, aquele que possibilita fazer descobertas por meio de seus conselhos sem pender para uma mediação pedagógica. Ë evidente a importância da atuação continua do mediador, entusiástica, mantendo-se de forma persistente ao lado desse jovem que começa a desenvolver o prazer pela leitura.

No entanto, não é esse profissional que encontramos na grande maioria das escolas brasileiras, é comum encontrar educadores voltados às reclamações sobre má remuneração, carga excessiva de aulas, indisciplina dos alunos, e bitolados as mais arcaicas formas de promover o encontro com o conhecimento. Em sua grande maioria, e não falo somente do professor de língua portuguesa, mas também de matemática. Física, geografia, história, química, biologia, entre outras, que não se configuram como leitores assíduos, em que parece terem abandonado o hábito da leitura juntamente com o final de suas graduações. O professor independente da disciplina que leciona precisa posicionar-se como um cidadão literalmente emancipado em termos de leitura, e todos os tipos de leitura como diz Celso Sisto:

Para se chegar a reconhecer um bom livro, é preciso ter lido maus livros! É preciso ter lido livros mais ou menos. É preciso ter descoberto bons livros. É preciso estar atento ao que esta aí no mercado, freqüentar livrarias, mexer nos livros, fuçar nas estantes das bibliotecas. Seja qual for à experiência de escolha dos livros (a táctil não deveria estar descartada, como em algumas bibliotecas!), o histórico das leituras esta lá, latente, guardado (e grudado!) no leitor, e se põe em movimento cada vez que se começa a ler um livro. (SISTO, 2009, p.123).

É, contudo, pois, ainda utilizando-se dos apontamentos de Sisto que se o leitor alcança o estágio de leitor crítico, ele não deixara, ou seja, não é possível voltar atrás, abandonar a leitura e esquecer sua fortuna literária, mas lembra, existe apenas um caminho para atingir esse ideário, lendo! Reflexões dessa magnitude nos levam a imaginar que os educadores que compõe o quadro de trabalho das escolas de hoje, como não desenvolvem o hábito da leitura e apresentam enorme dificuldade em indicar as obras aos alunos; encaminhá-los por um caminho interessante, recheado de descobertas, de reconhecimento de si e do mundo que o cerca, evidencia que esse profissional nunca chegou a se tornar um leitor.

Procuramos demonstrar a necessidade do educador se converter em uma pessoa leitora, em um cidadão leitor e principalmente em professor leitor. E para atingir esse objetivo considera-se prioritário atentar as seguintes questões:

a) Criar o hábito da leitura diária.

b) Desenvolver o letramento necessário para a leitura das diversas fontes existentes na contemporaneidade.

c) Conhecer as novidades em autores e obras da literatura.

d) Participar de encontros de leitura, mesas redonda, congressos, seminários, entre outros.

e) Trocar experiências e apontamentos com os professores das outras áreas do conhecimento.

f) Favorecer a interatividade entre as matérias.

g) Proporcionar o desenvolvimento de uma biblioteca pessoal

h) Ser freqüentador assíduo de bibliotecas, livrarias e revistarias.

Permitindo-se participar dessa grade de recomendações muito provavelmente o professor alcançara um ritimo de trabalho e de leitura capaz de contagiar inúmeras almas que estão lá nas salas de aulas esperando um mediador, um contador de histórias, alguém que desenvolva um caminho perspicaz em direção a construção do cidadão emancipado, dono de suas ideologias, recheado de argumentos, e que chegara a sua vida adulta já consolidado como um leitor crítico e com uma visão próxima ao que vislumbra Teresa Colomer:

Como quem aprende andar pela selva notando as pistas e sinais que lhe permitirão sobreviver, aprender a ler literatura dá oportunidade de se sensibilizar os indícios da linguagem, de converter-se em alguém que não permanece à mercê do discurso alheio, alguém capaz de analisar e julgar, por exemplo, o que se diz na televisão ou perceber as estratégias de persuasão ocultas em um anúncio. [...] se alude isso com a aquisição de uma capacidade crítica de “desmascaramento” da mentira, um meio para não cair nas armadilhas discursivas da sociedade.(COLOMER, 2007, p. 71).

Esse é o ideal de mediador de leitura que carece nosso Brasil, capaz de reconhecer as grandes estratégias discursivas nos mais diversos meios de comunicação, por isso a importância do letramento, e dessa forma conseguir encantar os estudantes que à medida que conseguem reconhecer a eles próprios entendem a complexidade do contexto social ao qual estão inseridos.

É evidente que o governo poderia propiciar inúmeros projetos para formação de mediadores de leitura, afim de que, os professores conseguissem alcançar os níveis de conhecimento e habilidades até aqui comentados, no entanto, esse capitulo priorizou demonstrar como o educador pode por uma atitude sua, independente tornar-se um mediador competente e, quem sabe, contaminar com sua energia e entusiasmo aqueles que o cercam, e provavelmente quando o sistema político de nosso país acordar para a necessidade de embalar com mais dedicação à leitura e educação, esse mediador já estará preparado para aplicar com gigante eficiência o trabalho de formar leitores, uma vez que já é um professor-leitor, um mediador de leitura.

5- Como e o que explorar no livro

A necessidade de saber “mais” para entender “melhor” é algo próprio a qualquer processo de compreensão, inclusive, é claro, a leitura. No entanto, para crianças menores, o livro se cria em suas mãos. (COLOMER, 2007). É uma afirmação interessante para começarmos a desenvolver reflexões sobre como apresentar e o que explorar nos livros de literatura infanto-juvenil. Como já mencionado no inicio deste trabalho o contato com livro e as outras formas de leitura, o ato de manusear, folhear é imprescindível, a criança precisa desenvolver gradativamente o gosto por esse conhecimento. Inicialmente o reconhecimento das imagens, daquilo que ela possa relacionar com o seu mundo, para depois integrar imagem e texto e futuramente preocupar-se com o nome do autor, características, estilo, crítica e demais especificidades, ou seja, a criança precisa despertar o interesse em saber essas questões, que no momento certo são apresentadas pelo mediador.

Certamente além do contato imediato do aluno com a obra de ficção a contação de histórias, a leitura em voz alta pelo mediador de poemas que vislumbrem situações possíveis de serem reconhecidas pelos pequenos leitores despertam a vontade de continuar escutando e muitas vezes de compartilhas histórias, vejamos um exemplo:

Este pequeno mundo

Sei que o mundo é mais que a casa,
Mais que a rua, mais que a escola,
Mais que a mãe e mais que o pai.
Vão alem do horizonte,

Que eu desenho no caderno
Como linha reta e preta,
Que separa o azul do verde.
Sei que é muito, sei que é grande,

Sei que é cheio, sei que é vasto.
Me disseram que é uma bola
Que flutua pelo espaço,
Atirada pelo chute

De um gigante poderoso;
Vai direto para um gol
Que ninguém sabe onde é.

Mas para mim o que mais conta
É este mundo que eu conheço
E que cabe direitinho
Bem debaixo do meu pé!

(BANDEIRA, Pedro. Cavalgando o arco-íris. São Paulo: Moderna, 2002. )

A riqueza da linguagem literária deve aqui ser ressaltada pelo mediador, fazer o aluno perceber as dessemelhanças entre as falas do cotidiano e apreciar o enriquecimento que a linguagem elaborada acarreta ao texto. Sem necessidade de trabalhar com os clássicos da literatura inicialmente, pois existem inúmeras formas de textos modernos que podem suprir essa necessidade inicial. (ROSING, 2009).

Cada verso do poema de Pedro Bandeira pode ser transfigurado e transformado pelas crianças, no entanto, exige do professor um real comprometimento com o conhecimento, que de ser literalmente dominado, estar integrado com as novas formas de leitura e principalmente comas novas tecnologias que permitem uma interação mais rápida e instigante para os alunos. Essa ampliação dos mecanismos que pode o professor estar utilizando em sala de aula proporciona uma efetiva elaboração de encontros realmente produtivos e, voltados ao comprometimento do texto literário não mais de forma aleatória e sim a utilização do texto integral.

Após ler o poema e analisar com os alunos, sob a orientação do professor, pode esse propor a fim de evidenciar o gosto pelo texto, um pequeno questionário de forma oral mesmo, simplesmente envolvendo todos em uma brincadeira de compreensão utilizando-se das seguintes questões:

a) Como é o mundo que vocês imaginam?

b) Ele é maior que a escola e a casa mesmo?

c) Que coisas fazem parte do mudo?

d) O mundo é igual a uma bola?

e) O que tem debaixo de seu pé?

Ao responderem questionamentos como estes, o aluno aciona seus referentes culturais e seu conhecimento de mundo, que passa a ser compartilhado com os demais colegas e o professor, o qual facilita o processo de compreensão realizando pontes entre o mundo cotidiano e o mundo figurado apresentado pelo poema. Gerando uma atmosfera extremamente interessante para aluno, em que ele conseguira desenvolver habilidades para interar-se com os demais texto que possa encontrar, muitos desses que logicamente serão apresentados pelo professor.

6- Considerações finais

Um bom livro é aquele que agrada, não importando se foi escrito para crianças ou adultos, homens ou mulheres, brasileiros ou estrangeiros. E ao livro que agrada se costuma voltar, lendo-o de novo, no todo ou em parte, retornando de preferência àqueles trechos que provocaram prazer particular." (ZILBERMAN, 2005). Essa definição ressalta a importância da boa formação do mediador de leitura, pois é através de suas indicações que o aluno vai encmainhar-se para o processo de desenvolver o gosto pela leitura. Conseguir reconhecer a riqueza de linguagem que oferece o texto literário.

Enquanto um texto didático procura uma convergência, todos os leitores chegando a uma mesma resposta, apontando para um único ponto, o texto literário procura a divergência. Quanto mais diversificadas as considerações, quanto mais individuais as emoções, mais rico se torna o texto. Digo sempre que o livro é um objeto, e o leitor um sujeito. (QUEIRÓS, 2005, p.171).

Sendo assim o leitor assume o papel de pronunciar sua percepção sobre o que encontrou por meio da leitura, ou seja, não é o que o texto quis dizer e sim aquilo que o leitor, emancipado e crítico, percebeu, conseguiu captar, e dessa forma pode utilizar esse conhecimento apreendido para melhorar e/ou ampliar sua organização intelectual a respeito do contingente social que o cerca.

A formação desse futuro leitor certamente enfrente um contexto de enormes contradições e desafios, em meio a tecnologias e resistências do passado, mas cabe principalmente ao professor conscientizar-se como um cidadão leitor e inserido no mundo literário apresentar as portas do saber e da viagem maravilhosa que representa a leitura na vida de todos.

Referências bibliográficas

BANDEIRA, Pedro. Cavalgando o arco-íris. São Paulo: Moderna, 2002.
COLOMER, Teresa. Andar entre Livros. A leitura literária na escola. 1. ed. São Paulo: Ed. Global, 2009.
PETIT, Michele. Os jovens e a leitura: uma nova perspectiva. São Paulo: Editora 34, 2008.
QUEIRÓS, Bartolomeu Campos de. Leitura, um diálogo subjetivo. In: O que é qualidade em literatura infantil e juvenil?: com a palavra o escritor. São Paulo: DCL, 2005.
ROSING, Tânia M.K. Do currículo por disciplina à era da educação – cultura-tecnologia sintonizadas: processo de formação de mediadores de leitura. In: Mediação de Leitura – discussões e alternativas para a formação de leitores. São Paulo: Global, 2009.
SISTO, Celso. A pretexto de se escrever, publicar e ler bons textos. In: O que é qualidade em literatura infantil e juvenil? Com a palavra o escritor. São Paulo: DCL, 2005.
ZILBERMAN, Regina. A leitura na escola. In: ROSING, M.K. e ZILBERMAN, Regina (Org.). Escola e Leitura: velha crise, novas alternativas. São Paulo: Global, 2009.
ZILBERMAN, Regina. Como e por que ler a literatura infantil brasileira. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005.
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Sobre as autoras
Jandi Fabian Barbosa, Mestrando em Letras – Concentração em Estudos Literários – Universidade de Passo Fundo – UPF – jandibar@hotmail.com

Tania M. K. Rosing, Graduada em Letras (UPF, 1969) e Pedagogia (UPF, 1977), Mestre em Teoria Literária (PUCRS, 1987), Doutora em Teoria da Literatura (PUCRS, 1994). Professora do PPGL e do Curso de Letras, atua na linha de pesquisa “Leitura e formação do leitor”.

Fonte:
II Seminário Nacional em Estudos da Linguagem: Diversidade, Ensino e Linguagem
06 a 08 de outubro de 2010
UNIOESTE - Cascavel / PR