quarta-feira, 6 de abril de 2011

Monteiro Lobato (Histórias de Tia Nastácia) IV – A Princesa Ladrona

Havia um pai com três filhos; um plantou um pé de laranjeira, outro plantou um pé de limeira e outro plantou um pé de limoeiro. Certo dia o mais velho foi ter com o pai e disse:

— Meu pai, já estou homem feito e quero sair pelo mundo.

O pai achou que era ainda cedo, mas o moço tanto insistiu que ele teve de concordar. E então disse:

— Pois saia, mas antes deve resolver se quer levar minha bênção com pouco dinheiro ou minha maldição com muito dinheiro.

O moço quis maldição com muito dinheiro — e o pai o amaldiçoou, depois de dar-lhe um saco de dinheiro. Antes de partir, esse moço disse aos irmãos que quando a sua laranjeira começasse a murchar isso era sinal de que se achava em grandes apuros — e eles que fossem socorrê-lo.

Combinado esse ponto, o moço partiu. Andou, andou, andou, e por fim, já muito cansado, viu uma fumaça ao longe. Encaminhou-se para lá. Era um palácio. A dona do palácio era uma princesa que o recebeu com grandes amabilidades. Jantou com ele e depois convidou-o a um passeio pela horta. Ao atravessar um riacho, a princesa ladrona ergueu o vestido de modo a mostrar o pé, e depois que voltaram à sala perguntou ao moço que é que havia visto de mais lindo na horta.

— As couves — respondeu o moço.

A princesa mordeu os lábios e convidou-o para um joguinho — e num instante ganhou todo o dinheiro que ele trazia. Depois disso mandou que seus criados o prendessem e só lhe dessem couve para comer.

Logo que isso aconteceu, lá em casa do pai do moço a laranjeira começou a murchar. O irmão do meio, vendo aquilo, foi ter com o pai e disse:

— Meu irmão está em grandes apuros e eu vou correr mundo para socorrê-lo.

O pai concordou e perguntou o que ele queria, bênção com pouco dinheiro ou maldição com muito dinheiro. Esse moço também preferiu maldição com muito dinheiro — e o pai o amaldiçoou, depois de lhe dar um saco de dinheiro — e ele lá se foi.

Andou, andou, andou até sentir-se exausto, e nesse momento viu ao longe uma fumaça. Encaminhou-se para lá. Era o palácio da princesa ladrona. A princesa recebeu-o com as amabilidades de sempre, e depois do jantar levou-o a passeio pela horta. Ao atravessar o riozinho mostrou o pé, e ao voltarem à sala fez-lhe a mesma pergunta.

— Então, que mais apreciou na minha horta?
— As alfaces — respondeu o moço.

A princesa pensou consigo que aquele era igualzinho ao outro; convidou-o para jogar, ganhou-lhe todo o dinheiro e o mandou prender, com ordem de só lhe darem alface.

Assim que isso aconteceu, lá na casa do pai do moço a limeira começou a murchar. O terceiro filho foi ter com o pai.

— Meu pai, quero sair pelo mundo em socorro dos meus irmãos; a laranjeira e a limeira estão dando sinal do grande perigo que eles correm.
— Pois vá — respondeu o pai — mas antes terá de decidir se quer minha bênção com pouco dinheiro ou minha maldição com muito dinheiro.
— Meu pai — respondeu o moço — quero sua bênção com pouco dinheiro.

O pai abençoou-o e ele partiu. Bem longe dali encontrou uma velhinha, que era Nossa Senhora disfarçada.

— Para onde vai, meu filho?
— Vou pelo mundo ganhar a vida e procurar meus irmãos — respondeu o moço.

A velhinha deu-lhe uma toalha, dizendo:
— Quando tiver fome meu filho, pegue esta toalha e diga: "Põe a mesa, toalha!" — e um banquete aparecerá.

Deu-lhe também uma bolsa, dizendo: "Esta bolsa faz o mesmo que a tolha." E deu-lhe ainda uma violinha dizendo' "Se perder a toalha e a bolsa, basta tocar nesta violinha que não sentirá fome, nem privação de nada."

O moço agradeceu os presentes e lá se foi pela estrada afora. Chegou afinal ao palácio da princesa ladrona, onde bateu e foi recebido com grandes amabilidades. Depois do jantar houve o tal passeio à horta, tudo exatinho como havia acontecido com os seus dois irmãos. De volta do passeio a princesa perguntou o que mais ele tinha apreciado.

— O lindo pé da senhora princesa — respondeu o moço gentilmente.

À princesa sorriu, como quem diz: Este me serve. Em seguida convidou-o para jogar e no jogo limpou-o do pouco dinheiro que ele trazia. E também mandou que o prendessem junto com os demais.

Lá pela tarde chegou a hora de dar comida aos presos, e uma preta apareceu diante das grades com um prato de couves.

— Muito obrigado — disse o moço. — Diga à sua senhora que não preciso de nada disso. — E estendendo a toalha teve o gosto de ver surgir um verdadeiro banquete.

A prisão estava cheia de prisioneiros, todos quase mortos de fome, de modo que o regalo foi grande. A negra, que trouxera a comida, abriu a boca, assombrada.

— Minha senhora — foi correndo dizer à princesa — aquele preso de ontem tem uma toalha mágica, que basta abrir para virar num banquete.

A princesa ficou logo desejosa de possuir tal toalha, e mandou a preta saber do moço se queria vendê-la. O moço respondeu que teria muito gosto em dá-la de presente, com a condição de dormir uma noite na porta do quarto da princesa do lado de fora. A princesa danou com a resposta, que lhe pareceu um grande desaforo, mas por fim concordou.

No dia seguinte, quando a negra foi levar a couve aos presos, o moço recusou de novo, e abrindo a bolsa fez aparecer um banquete mágico, de que todos comeram até não poder mais. A negra foi correndo dizer à princesa: "Minha senhora, ele tem uma bolsa ainda mais mágica que a toalha. Aquilo é que é uma bolsa de princesa."

A princesa mandou propor a compra da bolsa, e o moço disse que lhe dava a bolsa de presente, com a condição de dormir na porta do seu quarto, mas do lado de dentro. A princesa danou, mas a negra achou que ela devia aceitar, pois que dormiria na cama e ele no chão duro. Fez-se o negócio e o moço dormiu no quarto da princesa do lado de dentro, perto da porta.

No dia seguinte a negra foi de novo levar a couve aos presos e viu o moço pegar na violinha e começar a tocar. E todos os presos puseram-se a dançar como se não tivessem fome nenhuma. E até a negra pegou fogo e pôs-se a dançar também. A festa durou tanto tempo que a princesa mandou chamar a negra.

— Ah, minha senhora, o tal moço tem uma violinha que é mesmo a maior das maravilhas. Aquilo é que é viola de princesa!
— Pois vá saber dele se quer me vender a tal viola.

A negra foi e o moço respondeu que só daria a viola se a princesa se casasse com ele.

A princesa a princípio danou, mas depois resolveu aceitar a proposta e casou-se. Então todos os presos foram soltos e houve grandes festas.
**********
E tia Nastácia rematou a história repetindo o mesmo finzinho de sempre: "E eu lá estive e trouxe um prato de doces, que caiu na ladeira."

Entrou por uma porta
saiu por um canivete;
manda o rei meu senhor
que me conte sete.

— Que história de contar sete é essa? — perguntou Emília quando a negra chegou ao fim. — Não estou entendendo nada.

— Mas isto não é para entender, Emília — respondeu a negra. — É da história. Foi assim que minha mãe Tiaga me contou o caso da princesa ladrona, que eu passo para diante do jeito que recebi.

— E esta! — exclamou Emília olhando para dona Benta. — As tais histórias populares andam tão atrapalhadas que as contadeiras contam até o que não entendem. Esses versinhos do fim são a maior bobagem que ainda vi. Ah, meu Deus do céu! Viva Andersen! Viva Carroll!

— Sim — disse dona Benta. — Nós não podemos exigir do povo o apuro artístico dos grandes escritores. O povo... Que é o povo? São essas pobres tias velhas, como Nastácia, sem cultura nenhuma, que nem ler sabem e que outra coisa não fazem senão ouvir as histórias de outras criaturas igualmente ignorantes, e passá-las para outros ouvidos, mais adulteradas ainda.

— Outra coisa que noto nessas histórias, vovó — observou Narizinho — é que não dispensam reis e rainhas e príncipes e princesas encantadas. Por que é assim?

— Essas histórias, minha filha, vieram de Portugal, e são dum tempo em que em todos os países do mundo só havia reis. Isso de presidentes de república é coisa moderna. São histórias dos tempos dos reis. E para a imaginação do povo os reis, as rainhas e os príncipes eram a coisa mais maravilhosa que havia. Hoje tudo está mudado. Cada vez há menos reis, a não ser nos baralhos. E já não há aquele "cão", que quando via um rosário rebentava num grande estouro e fedia enxofre. O povo é muito conservador, de modo que as histórias que de pais a filhos a gente do povo conta são corocas, vêm do tempo da Idade Média, quando não existiam jornais nem livros.

— Pois cá comigo — disse Emília — só aturo essas histórias como estudos da ignorância e burrice do povo. Prazer não sinto nenhum. Não são engraçadas, não têm humorismo. Parecem-me muito grosseiras e bárbaras — coisa mesmo de negra beiçuda, como tia Nastácia. Não gosto, não gosto e não gosto...
–––––––––- Continua…V – O Pássaro Preto __________
Fonte:
LOBATO, Monteiro. Histórias de Tia Nastácia. SP: Brasiliense, 1995.
Este livro foi digitalizado e distribuído GRATUITAMENTE pela equipe Digital Source

Epopéias da Índia Antiga (O Mahabharata) VI – A Restauração e a Abdicação


A vitória de Kurukshetra assegurou a Yudhisthira a volta ao trono de seu pai.

Bhisma, o sábio e venerando guerreiro que caiu gravemente ferido no décimo dia da batalha, deu em seu leito de morte instruções a Yudhisthira a respeito dos deveres do rei, das quatro castas, das quatro etapas da vida humana, das leis do matrimônio, da concessão de favores etc., baseado nos ensinamentos dos antigos sábios. Explicou-lhe também as filosofias sankhya e yoga, relatando-lhe numerosas tradições referentes aos deuses, aos santos e aos reis.

Esses ensinamentos ocupam cerca da quarta parte da epopéia e são um verdadeiro arsenal de leis, costumes e códigos de moral da Índia antiga.

Pouco tempo depois, efetuou-se a coroação de Yudhisthira, em cujo coração pesava o sentimento do sangue derramado e a morte de tantos amigos, mestres e parentes. Por causa disso, aconselhado por Nyasa, celebrou o sacrifício de Ashvameda.

Após a batalha, Dhritarâshtra viveu no palácio real, durante quinze anos, honrado e obedecido por seus sobrinhos, os cinco Pândavas; ao cabo daquele tempo, sentindo-se velho e adoentado, retirou-se para o deserto com sua abnegada esposa e Kunti, a mãe dos Pândavas, para terminar seus dias no ascetismo.

Transcorrido trinta e seis anos, depois da restauração de Yudhisthira no. trono, chegou aos seus ouvidos a notícia de que Krishna, o sábio, seu amigo, profeta e conselheiro, havia morrido.

Arjuna apressou-se em ir a Devârahâ e voltou com a confirmação da notícia de que, realmente, Krishna e os Yadavas haviam morrido.

O rei e seus irmãos ficaram muito consternados e declararam que também a hora de sua partida havia chegado. Por essa razão Yudhisthira abdicou a coroa a favor de Parikshit, primogênito de Arjuna e, aconselhado pelos sábios, empreendeu a viagem chamada Mahâprasthana, uma modalidade de ascetismo ou sannyasa.

Em obediência à lei existente naquele tempo, quando um homem chegava à decrepitude, costumava renunciar a todas as coisas do mundo e empreender uma viagem a pé até os Himalaias, completamente em jejum e pensando sempre em Deus, de sorte que morria de inanição.

Essa era a viagem ao céu, porque segundo a antiga mitologia indiana, para ir ao céu era necessário atravessar os altos píncaros dos Himalaias, além dos quais se ergue o monte Meru, em cujo cume está o céu, morada dos deuses.

Os reis seguiam o mesmo costume que os outros homens e por isso Yudhisthira recebeu naturalidade o aviso para se dirigir ao céu.

Em virtude desse fato, os cinco irmãos e sua mulher Draupadi vestiram roupas simples e empreenderam a marcha sem a menor provisão de alimentos, pois deles não necessitavam naquela. viagem para a morte.

A caminho, notaram que um cão os acompanhava. Continuaram a marcha para os Himalaias, palmilharam a neve de seus cumes e avistara em sua frente o monte Meru, quando a rainha Draupadi caiu desfalecida para nunca mais levantar-se.

Yudhisthira, que ia abrindo caminho, não notou o acidente. Seu irmão Bhima, que havia assistido o fato, avisou-o dizendo:

- Ó rei a rainha nossa esposa morreu Yudhisthira chorou, sem volver o olhar e disse: - Vamos ao encontro de Krishna e não temos tempo de olhar para traz. Sigamos para frente.

Ao fim de algum tempo, Bhima exclamou:

- Acaba de morrer nosso irmão Sahadeva.

O rei, sem se deter, chorou e disse:

- Sigamos avante.

Assim, foram caindo mortos pela neve os quatro irmãos; entretanto, embora sozinho, o rei prosseguiu impávido a sua marcha. O cão o acompanhava fielmente. Ambos caminhavam pela neve e pelo gelo, subindo encostas, através de vales, de cume em cume, até chegarem às fraldas do monte, Meru, onde o rei ouviu celestes harmonias e foi agraciado por copiosa chuva de flores que os deuses derramaram sobre ele.

Então desceu do céu a carruagem dos deuses e Indra disse a Yudhisthira:

– Sobe nesta carruagem, õ tu que és o mais excelso mortal. Somente a ti é concedido entrar de corpo e alma no céu.

Yudhisthira respondeu:

- Não quero entrar no céu sem meus irmãos e nossa esposa.
- Já se encontram no céu teus irmãos e vossa esposa.

Yudhisthira, então, fez sinal ao cão para que subisse também na carruagem; Indra, porém, assombrado, exclamou:

- Como? Um cão? Afasta-o daqui! Os cães não podem ir ao céu. Que vais fazer, ó grande rei? Acaso enlouqueceste; tu que és o mais virtuoso da raça humana e a quem foi concedido o excepcional privilegio de entrar no céu de corpo e alma?

Em resposta, disse Yudhisthira:

- Este cão foi meu fiel companheiro, através do gelo e da neve. Ele não me abandonou, quando a rainha e meus irmãos morreram. Como poderei abandoná-lo agora?

Indra replicou:

- No céu não há lugar para homens acompanhados de cães. Deves abandoná-lo, sem receio de fazer-lhe injustiça.

Yudhisthira respondeu:

- Sem o cão não irei para o céu. Nunca abandonarei aquele que a mim se aliou e comigo estará enquanto eu viver. Jamais me afastarei da retidão, nem pelas delicias do céu, nem pelas insinuações de um Deus!

Disse Indra:

- Então, somente com uma condição o cão entrará no céu. Tu tens sido o mais virtuoso dos mortais e o cão tem sido um devorador da carne dos outros animais. Ele está cheio de pecados por haver destruído outras vidas. Renuncia tu ao céu e entre ele em teu lugar.

Yudhisthira disse:

- Aceito! Que o cão vá para o céu em meu lugar!

A cena transfigurou-se imediatamente. Ao ouvir as nobres palavras de Yudhisthira, o cão transformou-se no Deus Yama, o senhor do Dharma, da Justiça e da Morte. Este, que se havia disfarçado sob aquela aparência,
disse a Yudhisthira:

- Ó rei, jamais houve homem tão abnegado como tu, que quiseste renunciar ao céu e anular tuas virtudes embenefício de um cão, condenando-te ao inferno ao carregares seus pecados. És nobilíssimo, ó rei dos reis! Tens compaixão de toda criatura, ó digno representante dos Bhâratas! Desde já são tuas as regiões da felicidade permanente. Tu as conquistaste e o céu é teu!

Yudhisthira, Indra, Yama e outros deuses que haviam se aproximado para presenciar a cena, dirigiram-se para o céu na divina carruagem.

Lá, Yudhisthira passa pelas provas iniciáticas, banha-se no Ganges do Esvarga e adquire um corpo celestial. Encontra Draupadi e seus irmãos e gozam eterna felicidade.

Assim termina o Mahâbhârata.

Fontes: Vivekananda, Swami. Epopéias da Índia Antiga. Imagem = http://meumestreinterior.blogspot.com

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 177)


Uma Trova Nacional

Não faça mal a ninguém,
mesmo sendo seu rival.
Está na força do bem
toda a fraqueza do mal!
–LUIZ CARLOS CORREA/SP–

Uma Trova Potiguar

Meu "barco" vai navegando,
levando, à frente, esperanças;
e, para trás, vai deixando
saudade e muitas lembranças.
–TARCÍSIO LOPES FERNANDES/RN–

Uma Trova Premiada

1994 : Niterói/RJ
Tema: PERFIL ; M/H

Assim banhada de lua,
em um silêncio encantado,
a velha matriz da rua
guarda o perfil do passado!...
–DOMITILLA BORGES BELTRAME/SP–

...E Suas Trovas Ficaram

A morte é o triste momento
de uma dívida assumida.
É o dia do vencimento
das quatro letras da VIDA!
–LAMARTINE BABO/RJ–

Simplesmente Poesia

–LUIZ DUTRA/RN–
"A Morte de Isabela"

Pela janela da vida
deixou a vida Isabela;
entrou na porta do céu,
virou estrela tão bela,
que lá a mais bela estrela,
ficou com ciúme ao vê-la
brilhando mais do que ela!!!

Da janela arremessada
ela subiu, não baixou
Isabela não morreu,
ela apenas se encantou;
jogada de uma janela
a bela e meiga Isabela
virou um anjo e voou!!!

Arremessada pra morte,
por aquele que a gerou;
pois o pai que deu-lhe a vida
foi o mesmo que a matou;
pra o pai da terra morreu,
para o pai do céu nasceu,
e uma estrela o céu ganhou!!!

Estrofe do Dia

Um galo canta afinado,
o guiné diz que ta fraco,
o peba cava o buraco
sem precisar de arado,
corre um tejo envenenado
bebe o leite do pinhão,
o burro com exatidão
dá a hora logo cedo;
a natureza em segredo
mostra a sua perfeição.
HÉLIO CRISANTO/RN–

Soneto do Dia

–MARIA NASCIMENTO CARVALHO/RJ–
Despedida

Longos anos passamos lado a lado,
vivendo tanto a dor quanto a ventura,
mas, apesar do tempo ultrapassado,
havia entre nós dois certa amargura...

O amor menos calor e mais ternura
gritava dentro, em nós, desesperado,
que tínhamos, no excesso de candura,
muitos momentos bons, desperdiçado...

E, um dia, quando em nossas despedidas,
sentimos separadas nossas vidas
e o sonho de ventura irrealizado,

nossos olhos banhados pelo pranto,
disseram tudo aquilo que, no entanto,
nossos lábios jamais tinham falado…

Fonte:
Colaboração de Ademar Macedo

terça-feira, 5 de abril de 2011

Mia Couto (A Fogueira)


A velha estava sentada na esteira, parada na espera do homem sadio no mato. As pernas sofriam o cansaço de duas vezes: dos caminhos idosos e dos tempos caminhados.

A fortuna dela estava espalhada pelo chão: tigelas, cestas, pilão. Em volta era o nada, mesmo o vento estava sozinho.

O velho foi chegando, vagaroso como era seu costume. Pastoreava suas tristezas desde que os filhos mais novos foram na estrada sem regresso.

“Meu marido está diminuir”, pensou ela. “É uma sombra”.

Sombra, sim. Mas só da alma porque o corpo quase que não tinha. O velho chegou mais perto e arrumou a sua magreza na esteira vizinha. Levantou o rosto e, sem olhar a mulher, disse:

- Estou a pensar.
- E o quê, marido?
- Se tu morres como que eu, sozinho, doente e sem as foras, como que eu vou-lhe enterrar?

Passou os dedos magros pela palha do assento e continuou:

- Somos pobres, só temos nadas. Nem ninguém não temos. E melhor começar já a abrir a tua cova, mulher.

A mulher, comovida, sorriu:

- Como és bom marido! Tive sorte no homem da minha vida.

O velho ficou calado, pensativo. Só mais tarde a sua boca teve ocasião:

- Vou ver se encontro uma pá.
- Onde podes levar uma pá?
- Vou ver na cantina.
- Vais daqui até na cantina? É uma distância.
- Hei-de vir da parte da noite.

Todo o silêncio ficou calado para ela escutar o regresso do marido. Farrapos de poeira demoravam o último sol, quando ele voltou.

- Então, marido?
- Foi muito caríssima - e levantou a pá para melhor a acusar.
- Amanhã de manhã começo o serviço de covar.

E deitaram-se, afastados. Ela, com suavidade, interrompeu-lhe o adormecer:

- Mas, marido...
- Diz lá.
- Eu nem estou doente.
- Deve ser que estás. Você és muito velha.
- Pode ser - concordou ela. E adormeceram.

Ao outro dia, de manhã, ele olhava-a intensamente.

- Estou a medir o seu tamanho. Afinal, você é maior que eu pensava.
- Nada, sou pequena.

Ela foi lenha e arrancou alguns toros.

- A lenha está para acabar, marido. Vou no mato levar mais.
- Vai, mulher. Eu vou ficar covar seu cemitério.

Ela já se afastava quando um gesto a prendeu à capulana e, assim como estava, de costas para ele, disse:

- Olha, velho. Estou pedir uma coisa...
- Queres o quê?
- Cova pouco fundo. Quero ficar em cima, perto do chão, tocar a vida quase um bocadinho.
- Está certo. Não lhe vou pisar com muita terra.

Durante duas semanas o velho dedicou-se ao buraco. Quanto mais perto do fim mais se demorava. Foi de repente, vieram as chuvas. A campa ficou cheia de água, parecia um charco sem respeito. O velho amaldiçoou as nuvens e os céus que as trouxeram.

- Não fala asneiras, vai ser dado o castigo - aconselhou ela. Choveram mais dias e as paredes da cova ruíram. O velho atravessou o seu chão e olhou o estrago. Ali mesmo decidiu continuar. Molhado, sob o rio da chuva, o velho descia e subia, levantando cada vez mais gemidos e menos terra.
- Sai da chuva, marido. Você não aguenta, assim.
- Não barulha, mulher - ordenou o velho. De quando em quando parava para olhar o cinzento do céu. Queria saber quem teria mais serviço, se ele se a chuva.

No dia seguinte, o velho foi acordado pelos seus próprios ossos que o puxavam para dentro do corpo dorido.

- Estou a doer-me, mulher. Já não aguento levantar.

A mulher virou-se para ele e limpou-lhe o suor do rosto.

- Você está cheio com a febre. Foi a chuva que apanhaste.
- Não mulher. Foi que dormi perto da fogueira.
- Qual fogueira?

Ele respondeu um gemido. A velha assustou-se: qual o fogo que o homem vira? Se nenhum não haviam acendido?

Levantou-se para lhe chegar a tigela com a papa de milho. Quando se virou já ele estava de pé, procurando a pá. Pegou nela e arrastou-se para fora de casa. De dois em dois passos parava para se apoiar.

- Marido, não vai assim. Come primeiro.

Ele acenou um gesto bêbado. A velha insistiu:
- Você está esquerdear, direitar. Descansa lá um bocado.

Ele estava já dentro do buraco e preparava-se para retomar a obra. A febre castigava-lhe a teimosia, as tonturas danando com os lados do mundo. De repente, gritou-se num desespero:

- Mulher, ajuda-me.

Caiu como um ramo cortado, uma nuvem rasgada. A velha acorreu para o socorrer.

- Estás muito doente.

Puxando-o pelos braos ela trouxe-o para a esteira. Ele ficou deitado a respirar. A vida dele estava toda ali, repartida nas costelas que subiam e desciam. Neste deserto solitário, a morte um simples deslizar, um recolher de asas. Não um rasgão violento como nos lugares onde a vida brilha.

- Mulher - disse ele com voz desaparecida. - Não lhe posso deixar assim.
- Estás a pensar o quê?
- Não posso deixar aquela campa sem proveito. Tenho que matar-te.
- É verdade, marido. Você teve tanto trabalho para fazer aquele buraco. E uma pena ficar assim.
- Sim, hei-de matar você; hoje no, falta-me o corpo.

Ela ajudou-o a erguer-se e serviu-lhe uma chávena de chá.

- Bebe, homem. Bebe para ficar bom, amanhã precisas da força.

O velho adormeceu, a mulher sentou-se porta. Na sombra do seu descanso viu o sol vazar, lento rei das luzes. Pensou no dia e riu-se dos contrários: ela, cujo nascimento faltara nas datas, tinha já o seu fim marcado. Quando a lua começou a acender as árvores do mato ela inclinou-se e adormeceu. Sonhou dali para muito longe: vieram os filhos, os mortos e os vivos, a machamba encheu-se de produtos, os olhos a escorregarem no verde. O velho estava no centro, gravatado, contando as histórias, mentira quase todas. Estavam ali os todos, os filhos e os netos. Estava ali a vida a continuar-se, grávida de promessas. Naquela roda feliz, todos acreditavam na verdade dos velhos, todos tinham sempre razão, nenhuma mãe abria a sua carne para a morte. Os ruídos da manhã foram-na chamando para fora de si, ela negando abandonar aquele sonho. Pediu à noite que ficasse para demorar o sonho, pediu com tanta devoção como pedira vida que não lhe roubasse os filhos.

Procurou na penumbra o braço do marido para acrescentar fora naquela tremura que sentia. Quando a sua mão encontrou o corpo do companheiro viu que ele estava frio, tão frio que parecia que, desta vez, ele adormecera longe dessa fogueira que ninguém nunca acendera.

Fontes:
- COUTO, Mia. Vozes Anoitecidas. Lisboa: Editorial Caminho, 1992.
Esta obra foi digitalizada e revisada pelo grupo Digital Source
- Imagem = http://www.simplesmente.poeta.nom.br/

Anibal Lopes (Ode à Minha Maneira)

Quando falava da natureza
e afirmava com certeza
Que havia um lugar diferente
todo o mundo perguntava
de que Eden eu falava
e se existia tal gente.

Terra de amor e paixão
de gente de paz e searas de pão
terra que o trovador cantava
terra de urze e pinhal silvestre
que de sons e odores se reveste
era dela que eu falava.

Terra de laranjas maduras
águas cristalinas e puras
que refrescam a face cansada
quando falo deste povo de valor
quando falo do vento e do calor
falo dessa terra abençoada.

Terra de amores vadios
sentimentos e despertares tardios
terra de largos espaços
terra de festas e romarias
de muitos Manéis e Marias
falo de uma terra de abraços.

Terra de gente com suor no rosto
terra que vive e trabalha de gosto
terra que saúda com alegria
terra de cal e ocre vestida
terra de escolas crianças e vida
terra de S.Ildefonso e S.Maria.

Terra de vales e montes
albufeiras e muitas fontes
terra de muitos sabores
terra de alecrim e rosmaninho
onde cada um constrói o seu ninho
falo de Montargil, meus senhores.

Montargil/Portugal

Fontes:
- Colaboração de Lino Mendes
- Imagem = http://www.montargilforum.com/fotografia/details.php?image_id=101

Denilza Munhoz (O Dia Final)


Natalia não entendia o porque daquela repentina mudança no céu, cuja beleza azul turquesa mudara de um instante a outro, como se os Deuses tivessem resolvido que a natureza deveria entrar em luto sem aviso prévio. As nuvens passavam rapidamente de norte a sul, dançando entre si num jogo de vestimentas sensualmente assustadoras deixando os habitantes daquela cidade num inconstante vai-e-vem de emoções; talvez pelas figuras fantasmagóricas que se formavam acima do horizonte. Horas eram monstros de olhos esbugalhantes e segundos depois as bruxas tomavam o cenário com seus chapéus num negro mais negro que o Ébano.

O vento urrava forte, gritando como pirata inglês para seus marujos, e tudo ao redor parecia atender àquela interpelação, pois as árvores jogavam-se umas às outras como se pedissem socorro diante daquela autoridade tão injusta, tão maldosa !

A rua inconsolava-se com a presença do vento que empurrava tudo para cima e para a frente transformando aquele lugar numa verdadeira passarela de desfiles. Os jornais traziam noticias das bolsas com suas variações, as folhas de oficios surgiam com declarações as mais estranhas, típicas dos seres humanos com seus pensamentos inconstantes; "eu te amo Almeida"- registrava uma. "Diga para Celma que passo hoje aí - mostrava outro. Latas batiam de encontro às calçadas, seguindo em carreira pelo asfalto , soltando bramidos como prostitutas, em seus gritos frenéticos na disputa por seu clientes. Feixes suaves passavam, leves como espuma sobre as águas, mal tocavam o solo e se erguiam pelos ares, quiçá para onde ?! . Caminhões de plástico, carros de madeira nas cores azul, verde, vermelho, esquecidos nos jardins ou quintais também desciam rua abaixo, desfilavam sem vontade e certamente trariam choro aos seus donos depois daquela
amaldiçoada tempestade. As roupas não poderiam deixar de marcar presença por sua composição leve; elas vinham sempre em pé, talvez porque os humanos tem essa tendência de erguer o nariz em forma de auto-afirmação para registrar sua superioridade animal e estas por estarem sempre coladas aos corpos aprenderam; elas também passavam deixando sua fragrância floral, para amenizar a ferocidade do vento intempestuoso que a cada segundo tornava-se mais irracional.

Natalia olhava, olhava...passando os braços ao redor de seus filhos, Marcos, Julia e André.

Natalia contava já com idade de trinta e seis anos e possuia maturidade para compreender as mudanças repentinas do planeta Terra. A meteorologia não indicava aquela tempestade e além do mais era verão !

Não, aquela tempestade não estava prevista, era estranha , muito estranha !

"Por que a senhora está olhando com essa cara séria, mamãe?" - perguntou André ? O pequeno André não possuia a maturidade da mãe e pulava de alegria por sentir a mudança de tempo. Os raios lhe traziam curiosidade, assim como trazem para muitas crianças quando ainda olham a natureza com olhos de pureza e de simples investigadores.

"Estou preocupada com essa chuva, por que estamos no verão, André. Só isto" - respondeu Natalia, com um ar sério, como se aquela chuva não fosse apenas chuva.

Natalia chamou Andre, Julia e Marcos para junto de si novamente, pois eles insistiam em ir para seus quartos. Puseram-se da janela da sala de onde podiam observar toda a ladeira abaixo, com suas avenidas, seus elegantes bangalôs, sua mansões, suas lâmpadas francesas, suas montanhas, suas lojas de sourvenirs e seus dois bancos.

A familia , calada, observou que o céu vestira-se completamente de preto. Não havia mais luz do lado de fora e nem do lado de dentro porque de um segundo a outro a eletricidade da cidade havia desaparecido, como ladrão após obter seu desejado infortúnio!

Natalia então, levada por pelo lado maternal, passou a mão sobre a cabeça dos três filhos, abençoou-os de pensamento apenas, abraçou-os um a um, dando um aperto especial e naquela cena ficou a contemplar o céu, com suas formas e apresentações. "Há momentos em que o homem é apenas homem e está preso a sua limitação" - pensou Natalia, e nada mais fez e a não ser voltar no tempo da sua infância...

O dia era ensolarado e ela em saias de tecido leve com flores em vermelho, azul e amarelo, como girassóis, corria atrás do pequeno Jaquie, pelos gramados que circundavam a casa onde vivera toda sua infância. Pensou na mãe, dona Antonia, com seu pulso firme, forte que de sempre em sempre gritava -"Natalia, deixe o cachorro em paz. Que menina danada !". Sim, dona Antonia era forte e sempre a casa andava em ordem por causa da presença constante dela.

Pensou no seu pai, Carlos, com sua natureza quieta, paciente, tranquila e amorosa!. Ela o vira naquele mesmo dia, pela tarde pela última vez, pois um infarto nefasto o levaria para sempre de sua vida.

Pensou na adolescência, quando conheceu Miguel, atual pai dos seus três filhos. Aquele moreno de olhos cor de mel, de sensibilidade tal como a dela, de pensamentos positivos, de mãoõs delicadas e pronto sempre a satisfazer as inquietudes de Natalia e dos futuros filhos. Lembrou do primeiro beijo de sua vida, atrás dos muros da faculdade de medicina e sentiu novamente o calor que envolveu-a dos pés à cabeça ! Sim, o primeiro beijo, aquele beijo que jamais esqueceria !. Enxergou também, pelo pensamento, o primeiro momento de ternura com Miguel, vividos já na casa pequena a beira do lado Prima, e no quanto cada instante vivido significa ainda até o presente ! Ela o amava profundamente, e este amor regado dia-a-dia tornava o lar equilibrado, forte contra as intempéries dos ensinamentos da vida.

Os pensamentos voaram no tempo e foram parar em Julia e no primeiro olhar trocado entre elas na maternidade. Julia estava de vestidinho cor de rosa, e olhou-a com a face também em cor de rosa, como a dizer "quem é você que me recebe ?". "Quem é você que agora me olha ?". "Quem é você que demonstra me amar ?". Julia, a bela Julia. Muitos foram os momentos de alegria vividos com ela, desde a infância até o momento de adolescência, ou melhor de aborrecência, quando tudo parece desmoronar e somente o amor pode resistir e sustentar.

Lembrou de Marcos, e na diferença de olhar. Marcos tinha um olhar firme, racional, um olhar de mestre do oriente!. Dificil encará-lo olho no olho...mas Natalia o encarava ! Natalia o vira desde pequeno e o sentia mais que qualquer outra pessoa. Natalia o viera chorar muitas vezes quando pequeno daí compreende-lo em cada fase. Com ela Marcos se abria, deixava-se tocar, deixava-se conhecer dia-a-dia.

Viajou no tempo e foi até o pequeno André de quatro anos, com sua ternura e sorriso. Ele havia sorrido pela primeira vez quando ainda contava poucas horas de vida. Natalia não podia identificar se havia sido realmente um sorriso ou apenas um gesto angelical dos bebês quando dormem, mas não importava, para ela havia sido o primeiro sorriso. Aquele André sempre a tocava pelo sorriso. André tinha a capacidade de sorrir e fazer sorrir aos demais, não importando a situação. Ele trazia dentro de si a capacidade de ser feliz só por ser feliz.

Sim, Natalia tinha em casa quatro criaturas, quatro personalidades, quatro maneiras diferentes de encarar a vida, de lutar pela vida.

Mas Natalia teve que voltar a si por causa do barulho insistente do vento forte de encontro a sua casa. Eram como socos de lutador de sumô; fortes e constantes. O telhado era novo, mas não aguentou e saiu voando. Em seguida, logo em seguida, foi a vez dos vidros que se rachavam como doentes terminais; alguns calados, outros bradando, se lamentando, agonizando. E o vento sufocante penetrou no lar, sem piedade, sem dor, sem cor, destruindo tudo que Natalia e sua família havia construído com zelo: foi levando a pia de mármore, a cama de jacarandá, a mesa em laca, a tv de 35 polegadas, o rádio de estimação de Julia, o sofá revestido com cetim, o tapete persa, o pequeno jacinto (periquito papo amarelo), e Natalia e as crianças nada podiam fazer.

O vento uirrava, derrubava tudo, furioso, incontrolável e espatifava de encontro ao piso os perfumes franceses, os xampus naturais, as fotografias das crianças, a fotografia de casamento, a fotografia dos pais de Natalia, as taças de primeiro lugar de natação de Marcos e Natalia nada podia fazer. Estava recolhida a um canto junto com as crianças que se entreolhavam assustadas, agonizantes.

E de um momento para o outro o pequeno André se soltou da mão de Natalia, que começou a gritar desesperada. André não pode ser contido pela mãe, pelos irmãos e bateu de encontro a quina do batente da porta e num grito apenas deu adeus a Natalia.

Veio o tumulto, as dores, as lágrimas, pois o pequeno André que tanto ria deu adeus com um grito. Natalia não conseguiu conter a emoção da partida, mas também nada podia fazer, porque diante da natureza o homem é como um grão de areia no mar, impotente ao seu destino.

De um instante para o outro o vento se foi, levantou asas e saiu dali, como um diabo que recém saido do inferno volta ao seu recôndito cheio de graças por espalhar a desgraça. O vento levou consigo a alma de André, mas não para o inferno, pois o lugar dos anjos é no céu e André havia sido um anjo na vida de Natalia, Miguel, Marcos e Julia. André havia passado rápido na vida terrena mas certamente não deixaria só a lembrança da sua partida repentina...

André e seu belo corpinho jaziam pendentes no batente da escada, pálidos como melão recém saído da horta, contudo, dos olhos, brilhava a luz daqueles que saem da vida sem culpa, e dos lábios, um sorriso para Natalia.

Fontes:
- Oceano de Letras.
- Imagem = http://fimdosdiasnaterra.blogspot.com/2010_05_01_archive.html

O Senhor dos Anéis: Mitos e Realidades


"Se não é alegoria, então seus trabalhos são recheados com personagens e fatos paralelos a este mundo". A complexidade da trama de causa e efeito que Tolkien tece, as interações de motivos e vontades, natural ou sobrenatural são extraordinários, e sem contar o lado fantasioso é profundamente realístico ". Em O Senhor dos Anéis, eu estive pesquisando as similaridades entre os eventos acontecidos na história, religião e em outros trabalhos de Tolkien. A trilogia "O Senhor dos Anéis" é baseada em fatos históricos, religiosos, e em pessoas e outros trabalhos pessoas do autor.

Na trilogia do anel, J.R.R. Tolkien tem uma guerra entre o Oeste e o Leste. Em ambas as Guerras Mundiais esse foi o caso. Alemanha ou Prússia foram os poderes do Leste e América e a pátria de Tolkien, Inglaterra, foram o Oeste. Muitas pessoas comparam a guerra no Senhor dos Anéis à Primeira Guerra Mundial. Como C.S. Lewis diz em "Tolkien e os Críticos":

Essa guerra tem aquela qualidade de guerra que minha geração conheceu. Tem tudo lá: o interminável, o movimento sem sentido, o silêncio sinistro do front quando enfim tudo está pronto. Os civis fugindo, as grandes e vívidas amizades, o pano de fundo de algo como desespero e a frente uma disfarçada alegria e um pouco de tabaco a mando divino salvo das ruínas... ".

Tolkien foi ele próprio afetado pela Primeira Guerra Mundial. Ele serviu num regimento "country regiment" na guerra, com 23 anos na época, e como toda a sua geração de ingleses, jovens leões sob o mando do burro, foram para o abatedouro... Tolkien serviu no papel de soldado de infantaria nos Fuzileiros de Landcashire, um dos bons regimentos, "good country regiments" que inevitavelmente sofreu grandes perdas, diz William Ready em "A relação Tolkien: um inquérito pessoal, The Tolkien Relation: a Personal Inquiry". De fato, alguns críticos afirmam que Mordor é uma imagem das linhas de frente da Primeira Guerra Mundial pela visão de J.R.R. Tolkien. Como diz Manlove em "Fantasia Moderna: cinco estudos Modern Fantasy: Five Studies".

Quando os hobbits adentravam mais em Mordor, já passado o escabroso acampamento militar dos orcs e através das planícies de Gorgoroth "cheias de crateras, como se, quando ainda era apenas um deserto de lama mole, foi crivado com uma chuva de pedras", rastejando de cratera em cratera, nós começamos a perceber o que pode haver atrás do poder com a qual esta paisagem foi apresentada. A própria experiência de Tolkien da destruição gradual da vida e saúde como que se aproximando do Front Oeste na guerra de 1914-18, e o deserto de trincheiras que marcavam o fim daquela jornada; e da intensidade deste relato pode-se perceber que este tipo de paisagem deixou marcas mais profundas que qualquer outra. Alguns críticos dizem que a Guerra teve um papel fundamental na sua carreira como escritor. Seu serviço na infantaria e o fim da guerra faziam parte de uma única força que o uniu consigo mesmo e iria levá-lo ao destino que ele queria e que o surpreendeu na fama que veio mais tarde. Uma outra grande referência de sua vida pessoal veio de sua experiência de guerra nas trincheiras em Somme. Seus relatos detalhados das preparações para a guerra, a estratégia, o ritmo diário que faz parte do tempo de guerra, são muito fiéis e precisos, como se esperaria de um antigo soldado. É mencionado que ele chegou mesmo a usar um almanaque para calcular até aonde soldados a pé poderiam se mover dado um certo período.

Tolkien foi afetado pela guerra e pode até ter usado seus escritos para escapar da dor sofrida durante e depois da guerra, como diz Ready em "The Tolkien Relation: A Personal Inquiry". Por tudo isso a guerra jogou uma sombra sobre Tolkien; ele era um fuzileiro, e é preciso estar pessoalmente sob a sombra da guerra para sentir sua opressão... lá por 1918, todos os seus amigos, com a exceção de um, estavam mortos" (148). Finalmente Tolkien afirma que um conto de fadas, pelo uso da fantasia, fornece um meio de escape e consolo...".

No Senhor dos Anéis, os personagens de Tolkien percebem a guerra contra Sauron da mesma maneira que os povos europeus faziam depois da Primeira Guerra Mundial. "O público em geral via a Primeira Guerra Mundial como a guerra para acabar com todas as guerras, assim pensavam os sobreviventes da Guerra do Anel. Entretanto, Gandalf avisa que enquanto houver o mal, sempre haverá a guerra. Se for banido de alguma forma, aparecerá de outra".

No Senhor dos Anéis, uma conversa entre Gandalf e Denethor parece ter saído diretamente de uma das Guerras Mundiais. Como Kocher repete em "A ficção de J.R.R. Tolkien: O mestre da Terra-média, The Fiction of J.R.R. Tolkien: Master of Middle-earth": A resposta de Gandalf a Denethor afirmando que ele também é um regente, aceita a possibilidade que Sauron conquistará o Oeste… a manhã virá e o bem florescerá por mais completa que a destruição causada pelo mal pareça".

Alguns compararam o Anel com a bomba de hidrogênio e Mordor com a Rússia, como C.S. Lewis diz em "Tolkien and the Critics", e Fuller diz em "Tolkien and the Critics": Uma analogia natural aparece entre a bomba de hidrogênio e o Anel do Poder que por sua natureza não poderia ser usada para conseguir nada de bom". Na Segunda Guerra Mundial, Hitler experimentou uma grande variedade de experimentos genéticos para melhorar a raça ariana, e foi relativamente bem sucedido nas suas tentativas. No Senhor dos Anéis, Saruman também trabalha com genética... ele produz um novo tipo de orc que é melhor lutador e se adapta ao sol melhor que os orcs normais, e são maiores. Em "The Fiction of J.R.R. Tolkien: Master of Middle-earth", Kocher diz "Saruman está continuando estas experiências e produzindo uma nova variação (não uma nova espécie) de orcs da Mão Branca, maiores e melhores guerreiros…".

Hitler, durante a Segunda Guerra Mundial, empregou centenas de espiões. Seu serviço era coletar informação relacionada à guerra. No Senhor dos Anéis, Sauron emprega uma rede vasta de agentes inimigos que estão comprometidos em achar o Um Anel. Como Fuller diz em "Tolkien and the Critics": com tantas desvantagens, contra um adversário tão formidável, um fator significante provê um elemento de esperança na desagradável rede de agentes do Sauron que estão atrás do anel... esse fator é a pequenez e fragilidade de Frodo."

Quando o infindável bombardeio pelos alemães caía, o povo inglês nunca perdia as esperanças ou a coragem de lutar, e como Gimli diz no Senhor dos Anéis, "Há boa rocha aqui; esta terra tem ossos fortes". No Senhor dos Anéis, há várias alusões a eventos que aconteceram na história antiga. Muitos países diferentes de muitas diferentes direções atacaram a Inglaterra em sua historia. Os Romanos, tribos Germânicas, e muitos outros.

Também a Europa lutou desde antigamente contra Árabes e Persas do sul, Mongois, Turcos do leste. Similarmente Gondor resiste aos povos do leste e do sul, que pressionavam contra suas fronteiras por milênios, e se transformaram em aliados naturais contra Sauron. Os Haradrim do Sul lembram mesmo os Sarracenos com sua tez escura armas e armaduras, e sugerem outros exércitos não-europeus no uso de ancestrais de elefantes, enquanto os Wain riders do leste vêm em vagões como aqueles das hordas de Tártaros. Os homens de Gondor vivem e lutam num estilo legendário Arturiano, proto-medieval, e os Rohirrim se diferenciam dos antigos Anglo-Saxões primariamente por viverem em função dos cavalos como os Cossacos.

Na história da Inglaterra, houve várias diferentes migrações. Acontece o mesmo no Senhor dos Anéis. Kocher diz o seguinte sobre isso em "The Fiction of J.R.R. Tolkien: Master of Middle Earth": percebo nas páginas anteriores há várias partes na obra de Tolkien que ganham credibilidade por introduzir episódios de vários tipos que nos tentam com sua semelhança com episódios que nós sabemos ter acontecido realmente em nosso passado não muito distante… como a Terra tem visto ondas e ondas de migrações tribais na Europa de leste e norte, assim também na Terra-média os Elfos, os Edain, os Rohirrim, e os Hobbits, vagaram para oeste em vários períodos das mesmas direções.

No Senhor dos Anéis, o conflito também se encaixaria na descrição das batalhas religiosas durante a Segunda Grande Guerra Mundial. Como Fuller diz em ""Tolkien and the Critics"": O Senhor dos Anéis foi para mim uma revelação alegórica do conflito entre a cristandade ocidental contra as forças englobadas sucessivamente, mas entrelaçadas do nazismo e comunismo. O trabalho foi concebido e continuado quando a sombra mais negra da história foi lançada sobre o Oeste e, por um tempo crucial, sobre a Inglaterra em particular.

O Senhor dos Anéis foi escrito durante a Segunda Grande Guerra Mundial. A batalha em Mordor e o Anel sendo destruído e, portanto finalizado a guerra lembra-me dos últimos estágios da Segunda Grande Guerra Mundial quando os EUA derrubaram a bomba atômica em Hiroshima. Fuller diz em "Tolkien and the Critics" o seguinte:

Em algum momento nos estágios finais de seu desenvolvimento, uma visão ampliada da trilogia veio a ele (Tolkien), e o aumento da escuridão e desesperança sobre o resto do Ocidente na Terceira Era da Terra-média cresceu da escuridão e ameaças pendentes sobre a Cristandade ocidental nos anos 30's quando O Hobbit foi escrito. A Trilogia foi produzida durante e depois da Segunda Grande Guerra Mundial…

O Senhor dos Anéis também tem muitas referências a Bíblia e religião. Essas são as referências a Adão e Eva e a queda do homem. Em "The Fiction of J.R.R. Tolkien: Master of Middle-earth", Kocher diz: a idéias que Durin (um dos pais dos anões) foi o primeiro nascido sem companhia e saiu dando nomes às coisas lembra Adão e Eva." No O Senhor dos Anéis, não há menção de Deus, mas nomes como O Ser Supremo, o Um, e outros vagos, mas claras alusões a Deus. Tolkien disse, numa entrevista que "Gandalf era um anjo", e em uma entrevista a rádio em 1971 revelou que Ilúvatar era Deus.

Há várias outras referências a Cristo. Frodo e/ou Gandalf poderiam ser "antecipações parciais de Cristo". Cristo, antes de ser crucificado rezou para que "o cálice fosse afastado dele". Frodo faz a mesma coisa quando ele pergunta se outra pessoa poderia fazê-lo. Gandalf também se assemelha a Cristo. Ele passa por uma ressurreição e tentação quando Frodo lhe oferece o Anel.

Com Frodo, muito singelo e comovente, está no seu desejo vão de que o cálice seja tirado dele, e que já que isso não é possível, ele vai a sua longa, dolorosa jornada como O Portador do Anel -um tipo de carregador da cruz a vir. Mais misticamente com Gandalf, indicativo de uma operação de um poder não explícito atrás dos acontecimentos, o sábio passa por uma experiência similar a morte, descendo ao inferno, e ressurgindo dos mortos. Também ele vivência algo da tentação na selva na sua recusa do Anel que ele tem poder suficiente para manipular.

No Senhor dos Anéis há boas criaturas e más. As boas criaturas são tipicamente cristãs e as criaturas más são satânicas e demoníacas. "O Mundo de Tolkien tem uma variedade de criaturas malévolas. No centro há os poderes demoníacos, o maior de todos é Sauron, que certamente é uma figura satânica, que provavelmente é nada menos que um anjo caído, cujo nome sugere a serpente."

No Senhor dos Anéis também há várias referências à ressurreição. Na religião cristã, isso é uma parte da maior importância. O tom predominante é muito Cristão. As boas pessoas do Senhor dos Anéis agem como pessoas cristãs e crêem da mesma maneira. Como diz Kocher em "The Fiction of J.R.R. Tolkien: Master of Middle-earth": todas as raças mortais especulam com algum tipo de vida após a morte em algum lugar não específico, e a expectativa de acordar depois da morte é tradicional entre os anões".

A terra chamada de Condado lembra muita a parte rural da Inglaterra. Os hobbits na história habitam uma região tranqüila que tem muita semelhança com Cotswold Country. Tolkien se certifica que em pequena escala seu terreno local, clima, flora, e fauna dominante são bem como nós os conhecemos hoje em dia. No O Senhor dos Anéis, Tolkien descreve estrelas e constelações; as mesmas que nós vemos hoje. Para aumentar a visibilidade, e para também contra balançar a topografia estranha da Europa da Terra-média, Tolkien ilumina o céu noturno com planetas e constelações que conhecemos, entretanto com nomes diversos. Orion é vista pelos hobbits e elfos se encontrando nas florestas do Condado "lá alinhado, enquanto ele sobe pela borda do mundo, O Espadachim do Céu, Mendelvagor com seu cinturão brilhante". Olhando pela janela da estalagem de Bri, "Frodo viu que a noite estava clara. A Foice brilhava por sobre os ombros de Breehill". Tolkien continua dizendo que "a Foice" é o nome que os Hobbit davam ao Arado ou o Grande Urso. Brilhando qual jóia de fogo "Borgil vermelho pareceria ser Marte. A estrela de Eärendil é certamente Vênus, porque Bilbo descreve-a como brilhando logo após o sol se por ("atrás do sol e a luz da lua") e logo antes do nascer do sol ("uma chama distante antes do sol, uma maravilha na aurora…").

Na Europa, a maior parte das línguas são línguas de romance, todas exceto Alemão. Alemão é muito diferente de qualquer outra língua Européia. Como Kocher diz em The Fiction of J.R.R. Tolkien: Master of Middle-earth, "A rivalidade entre Westron e a língua negra de Sauron, falado pelos seus servidores, tipifica a inimizade entre as duas culturas…". Isto poderia muito bem estar descrevendo alemão ou mesmo russo no sentido citado na sentença anterior.

Sauron também "detestava qualquer outra liberdade que não a sua…" A Alemanha nazista também detestava liberdade e democracia durante a Segunda Grande Guerra Mundial. Durante a guerra, Hitler governava num regime totalitário e fascista. Eles controlavam tudo, e conquistavam os países que não acreditavam no que eles acreditavam. No O Senhor dos Anéis, a "forma mais comum de governo é uma monarquia benigna, mas o Condado dos Hobbits é uma pequena vila democrática e o reino de Sauron, Mordor, é claro uma ditadura totalitária e escravagista".

O Senhor dos Anéis tem semelhanças com outras obras literárias. Já foi comparado a obras como King Arthur. A "terra mágica" fica no misterioso oeste, depois do mar, e alguns personagens velejam para lá numa imagem parecida a passagem de Arthur em Avalon. O Senhor dos Anéis parece se baseado numa ópera de Wagner. A estrutura é a mesma e várias similaridades aparecem entre ambas. Como Fuller diz em "Tolkien and the Critics";

A estrutura em quatro partes da obra é análoga ao Anel do Nibelungo de Wagner. Uma estória mais curta e mais infantil (Das Rheingold e O Hobbit respectivamente) em cada caso introduz uma trilogia grande. È estranho e interessante que um Anel do poder é central em ambas as estórias e dá o seu nome aos títulos, e que dragões e uma espada quebrada para ser reforjada por um guerreiro ocorre em cada.

Se "fantasia é baseada em fatos reais" então O Senhor dos Anéis é completamente baseado em eventos históricos, terras, religião, governos, e outros trabalhos de diferentes autores. Citando autores diversos, mostrei que é impossível não ser perseguido por paralelos entre nosso aqui e agora". Eu também descobri que dá para ter diversas interpretações do Senhor dos Anéis, e diferentes sentidos podem ser extraídos das mesmas cenas. Mas de todo modo, O Senhor dos Anéis foi baseado em várias coisas combinadas para formar uma das maiores obras literária que o mundo já viu".

Fonte: TAGGE, Michael. O Senhor dos Anéis: Mitos e Realidades na Trilogia de Tolkien.

Monteiro Lobato (Histórias de Tia Nastácia) III - O Sargento Verde


Naquele mesmo serão tia Nastácia teve de contar mais uma. E contou a história de

JustificarIII O Sargento Verde

Era uma vez um homem muito rico, que tinha uma filha, linda, linda. Um dia apareceu um moço, também muito lindo, que quis casar com ela. Foi combinado o casamento, mas Nossa Senhora, que era madrinha de batismo da moça, apareceu-lhe num sonho e disse:

— Minha filha, toma cuidado, porque vais casar com o "cão". Depois do casamento teu marido há de querer levar-te para a casa dele, e o que tens de fazer é o seguinte: irás montada no cavalo mais magro que houver; quando chegares a um ponto do caminho, onde há uma encruzilhada, teu marido quererá tomar pela esquerda; tu tomaras pela direita e nesse momento lhe mostrarás um rosário. Ele então estoura e vai para o inferno.

Afinal chegou o dia do casamento e houve grandes festas, mas desde a noite do sonho a moça andava numa grande tristeza. As palavras de Nossa Senhora não lhe saíam da imaginação.

Na hora da partida trouxeram-lhe um lindo cavalo. Ela recordou-se do sonho e não quis montar nele; pediu outro — o mais magro e feio que houvesse. O pai estranhou aquela esquisitice, mas a moça tanto insistiu que ele teve de ceder — e lá se foi ela no cavalo mais magro e feio que havia.

Quando chegaram à encruzilhada, o "cão" quis que a moça tomasse pelo lado esquerdo, dizendo ser esse o caminho que levava à sua casa.

— Vá o senhor na frente — respondeu a moça — eu sigo atrás. — E assim que ele enveredou pela esquerda, ela tomou pela direita e sacudiu no ar o rosário.

Mal fez isso, ouviu-se um estouro e o ar se encheu de fedor de enxofre. É que o "'cão" havia rebentado e ido para o inferno.

A moça continuou a galope por aquele caminho da direita, até que bem lá adiante teve a idéia de mudar de figura. Apeou, cortou os cabelos e vestiu-se de homem — uma roupa verde. E, verdinha assim, chegou a um reino onde se ofereceu para entrar no exército do rei como sargento.

O rei gostou muito daquele sargento, a ponto de convidá-lo a passear com ele pelos jardins do palácio. É tantos passeios houve que a rainha ficou apaixonada pelo sargento e lhe declarou o seu amor. Mas o sargento respondeu: "Senhora, eu jamais trairei meu rei."

A rainha, furiosa da vida, levantou um falso contra ele, dizendo ao marido o seguinte:

— Saiba Vossa Majestade que o Sargento Verde anda se gabando de que é capaz de subir a cavalo as escadarias do palácio, jogando para o ar três laranjas e aparando-as no mesmo copo.

Admirado daquilo, o rei mandou chamar o Sargento Verde e contou-lhe o caso. O Sargento Verde respondeu:

— Saiba Vossa Majestade que eu não disse isso; mas como a rainha minha senhora afirma que eu disse, estou pronto para subir a cavalo as escadarias e jogar as três laranjas.

Disse aquilo por dizer e, muito triste da vida, foi conversar com o seu cavalo magro, ao qual contou tudo. O cavalo aconselhou-a a que não se amofinasse e que no dia marcado tudo fizesse como a rainha queria.

No dia marcado o Sargento Verde se apresentou para a grande prova, e de fato subiu e desceu várias vezes as escadarias, montado em seu cavalo magro; e lançou para o ar as três laranjas, que aparou di-reitinho no copo, sem errar uma só.

Teve os maiores aplausos de todos, menos da rainha, que mordeu os lábios de ódio.

Dias depois, num dos seus passeios pelos jardins do palácio, a rainha achou jeito de novamente lhe declarar amor — e pela segunda vez o sargento respondeu que jamais trairia o seu bom rei. A rainha, então, mais danada ainda, inventou que o Sargento Verde andava dizendo que era capaz de plantar uma bananeira à hora do almoço e ter bananas maduras à hora do jantar.

O rei mandou chamar o Sargento Verde e indagou dele se era verdade aquilo. O sargento respondeu que nada havia dito, mas como não queria desmentir a rainha, estava pronto para plantar a bananeira.

Disse isso e foi, muito triste, conversar com o cavalo magro, o qual lhe falou que plantasse a bananeira e deixasse o resto por sua conta.

No outro dia, lá pela hora do almoço, o Sargento Verde foi e plantou uma muda de bananeira no pátio do palácio, e a planta começou logo a crescer e a deitar cacho, de modo que quando o jantar foi posto na mesa já havia bananas maduras.

Todos abriram a boca de admiração, mas a rainha mordeu os lábios até verter sangue. Apesar disso, tentou mais uma vez o Sargento Verde, declarando-se apaixonada por ele, e o sargento pela terceira vez respondeu que jamais enganaria o seu bom rei. A malvada rainha então foi dizer ao marido que o Sargento Verde andava se gabando de ser capaz de passear a cavalo sobre ovos, sem quebrar um só. - -

O rei mandou chamá-lo e perguntou se era verdade. O Sargento Verde respondeu que não era, mas como não queria desmentir a rainha, estava pronto para andar a cavalo em cima dos ovos. E andou. Passeou montado no cavalo magro por cima de dúzias de ovos sem quebrar um só.

A rainha inventou contra ele uma quarta perversidade, e foi que ele andava dizendo ser capaz de ir ao fundo do oceano em busca da irmã do rei, que fora aprisionada por um monstro.

O rei chamou o Sargento Verde e indagou se era verdade. Ele disse que não, mas que estava pronto para ir ao fundo do mar em busca da princesa encarcerada. Disse isso e foi conversar com o cavalo magro, ao qual contou tudo.

— Não se amofine — murmurou o cavalo — arranje uma garrafa de azeite, um saquinho de sal e um papel de alfinetes; depois monte em mim e vá para a praia; lá puxe a espada e corte o mar em cruz: as águas se abrirão; entre pela abertura e vá até onde estiver a moça; agarre-a e ponha-a na garupa e toque para trás. Mas muito cuidado com o monstro que guarda a princesa; ele vai persegui-la, e o meio de evitar isso é derramar o saquinho de sal e depois soltar os alfinetes. Durante a corrida a moça pronunciará três palavras. Tome muito sentido nessas palavras.

O Sargento Verde prestou a maior atenção a tudo; arranjou o azeite, o sal, os alfinetes e partiu para a praia do mar. Lá puxou a espada e cortou as águas em cruz. Imediatamente as águas se abriram e ele entrou, e foi até onde estava a princesa encarcerada. Agarrou-a, botou-a à garupa e voltou correndo para a praia. Assim que saiu do mar, a moça disse: "Já!" Ele tomou nota da palavra e viu que o monstro vinha correndo atrás deles.

Lembrando-se da recomendação do cavalo, derramou o saquinho de sal. Imediatamente formou-se uma cerração que atrapalhou o monstro a ponto de fazê-lo parar, sem saber para onde dirigir-se. Enquanto isso, o moço continuava no galope, com a moça à garupa. Logo adiante ela murmurou "Bela!" O Sargento Verde tomou nota da palavra e viu que o monstro havia rompido o nevoeiro e vinha vindo na disparada. Então soltou no ar os alfinetes. Imediatamente se formou uma cerradíssima floresta de espinheiros, que o monstro não pôde atravessar.

Logo depois a princesa, avistando o palácio, murmurou "Tudo!" — e o Sargento Verde tomou nota. Chegaram, houve grandes festas e a rainha ficou ainda mais apaixonada pelo Sargento Verde.

Mas a princesa trazida do fundo do mar não falava. Além das três palavras ditas durante a viagem não pronunciou nem mais uma só. Todos se convenceram de que era muda — e a rainha se aproveitou do fato para lançar outra falsidade contra o Sargento Verde. "Ele anda dizendo — cochichou ao ouvido do rei — que é capaz de fazer a princesa muda falar."

O rei indagou do Sargento Verde se era verdade e ele respondeu como das outras vezes; depois foi perguntar ao cavalo o que devia fazer.

— Não tenha medo de nada — respondeu o cavalo. — Na hora do almoço, dê com uma corda na princesa até que ela conte qual foi a primeira palavra que pronunciou logo ao sair do mar; e na hora do jantar dê-lhe outra sova até que ela conte qual foi a segunda palavra; e na hora da ceia, outra sova até que diga a terceira palavra. Faça isso que a princesa ficará falando.

O Sargento Verde assim fez. Na hora do almoço passou mão numa corda e gritou: "Conte, moça, qual foi a palavra que me disse logo que saímos do mar!" E como ela se conservasse de boca fechada, êle, lepte! lepte! e tanto deu que ela falou: "Já!" "E que quer dizer isso?" Com mais algumas lambadas a moça respondeu que queria dizer: "Já estou livre de muitos trabalhos."

No jantar repetiu-se a cena, e tantas lambadas levou a princesa que repetiu a segunda palavra, "Bela!" e explicou que aquilo queria dizer: "Somos duas donzelas, eu e o Sargento Verde, cujo verdadeiro nome é Lucinda."

Na ceia, a corda fez que a moça repetisse a terceira palavra, "Tudo!" isto é, que se Lucinda fosse homem há muito tempo que a rainha já teria fugido com ele.

Esses acontecimentos assombraram menos ao rei e à corte do que verem Lucinda aparecer vestida de mulher, com o seu cavalo magro virado num lindo príncipe, que logo se casou com a princesa trazida do fundo do mar. O rei não perdoou a traição da rainha. Mandou que a soltassem pelos campos amarrada a dois burros bravos, e casou-se com a boa Lucinda, no meio de grandes festas. E acabou-se a história.
–––
Emília ficou a olhar a cara de Narizinho.

— Esta história — disse ela — ainda está mais boba que a outra. Tudo sem pé, nem cabeça. Sabe o que me parece? Parece uma história que era dum jeito e foi se alterando de um contador para outro, cada vez mais atrapalhada, isto é, foi perdendo pelo caminho o pé e a cabeça.

— Você tem razão, Emília — disse dona Benta. — As histórias que andam na boca do povo não são como as escritas. As histórias escritas conservam-se sempre as mesmas, porque a escrita fixa a maneira pela qual o autor a compôs. Mas as histórias que correm na boca do povo vão se adulterando com o tempo. Cada pessoa que conta muda uma coisa ou outra, e por fim elas ficam muito diferentes do que eram no começo.

— Quem conta um conto aumenta um ponto — lembrou Pedrinho.

— Sim, aumenta um ponto e introduz qualquer modificação. Ninguém que ouça uma história é capaz de contá-la para diante sem alteração de alguma coisa, de modo que no fim a história aparece horrivelmente modificada. Todas as histórias do folclore são assim. Há sábios que pegam nessas histórias e as estudam, e vão indo até encontrarem o seu ponto de. partida. E mostram as mudanças que o povo fez.

— Mudanças que as deixam sem pé nem cabeça — insistiu Emília. — Essa do Sargento Verde, por exemplo. É tão idiota que um sábio que quiser estudá-la acabará também idiota. Eu, francamente, passo essas tais histórias populares. Gosto mas é das de Andersen, das do autor do Peter Pan e das do tal Carroll, que escreveu Alice no Pais das Maravilhas. Sendo coisas do povo, eu passo...
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Continua… IV – A Princesa Ladrona
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Fonte: LOBATO, Monteiro. Histórias de Tia Nastácia. SP: Brasiliense, 1995. Este livro foi digitalizado e distribuído GRATUITAMENTE pela equipe Digital Source

Epopéias da Índia Antiga (O Mahabharata) V – A Batalha


Ao expirar o ano suplementar de desterro, sem que ninguém tivesse escoberto os Pândavas, Yudhisthíra mandou um mensageiro a Dhritarâshtra intimando-o a que cumprindo o estipulado, lhe devolvesse a metade do reino.

Duryodhana, porém, odiava seus primos e não quis aceder a tão legítimo pedido e muito menos àquele que, em vista dessa negativa lhe fizeram os Pândavas de que ao menos se lhes concedesse a soberania de cinco cidades do reino.

O teimoso e obstinado Duryodhana declarou que a não ser pela força das armas não cederia nem sequer o pedaço de terra que se pudesse sustentar na ponta de agulha.

Dhritarâshtra bateu-se continuamente pela paz, mas tudo foi em vão. Krishna também interveio com o intuito evitar a guerra iminente, com a morte provável de guerreiros do mesmo sangue, e embora fizessem o mesmo os antigos magnatas da corte, fracassou toda negociação no sentido de uma pacifica partilha do reino.

Em vista disso, ambos os grupos se prepararam para a guerra e todos os reinos belicosos tomaram parte no conflito, de acordo com os antigos costumes dos Kshatriyas.

Duryodhana e Yudhisthira. chefiaram seus respectivos exércitos. Este último apressou-se em enviar mensagens aos reis vizinhos, solicitando sua aliança, pois desse chefe honrado atenderiam o primeiro pedido de auxílio que recebessem.

Duryodhana também lançou mão de idêntico recurso e, por isso alguns reis se aliaram aos Pândavas e outros aos Kuravas, segundo a precedência do pedido de auxílio. Disso resultou que cada exército tinha parentes, amigos, mestres, discípulos, pais, irmãos ou filhos, no exército oposto

Segundo o estranho código militar vigente naqueles tempos, só se combatia durante o dia, ou melhor, de sol a sol; ao anoitecer as hostilidades eram suspensas, por uma espécie de armistício noturno, durante o qual confraternizavam-se ambos os exércitos, visitando uns as tendas dos outros, até que, ao amanhecer, cada qual voltava a seu campo para reiniciar o combate.

Além disso, um soldado de cavalaria não podia ferir um de infantaria, não era lícito envenenar as flechas, não se devia combater e vencer um, inimigo notoriamente inferior em número; era proibido levar vantagem contra o adversário, valer-se de ciladas ou estratagemas. Seria desprezado e degradado quem infringisse qualquer uma dessas regras, que formavam a parte principal da educação militar dos Kshatriyas, cuja única função era combater numa guerra de justa causa.

O código também prescrevia que jamais os Kshatriyas empreendessem guerras de conquista e nem se apoderassem de países estrangeiros, mas que vencer os invasores fossem estes repatriados com todas as honras devidas à categoria e posição de cada qual. Por isso jamais despojaram nenhum país vizinho de suas
terras.

Naquela época a arte militar não se limitava ao hábil manejo do arco, mas ampliava-se em uma disciplina pela qual o guerreiro exercitava a balística mágica e mental, em que intervinham principalmente os mantrans, a concentração e os exercícios mentais de magia divina, que davam poder para lutar contra milhões de inimigos e desbaratá-los.

Embora os ocidentais se atribuam a invenção da pólvora, esta já era conhecida e empregada pelos antigos chineses e hindus por meio de canhões de ferro; muitos acreditavam que os chineses, por arte mágica, colocavam um demônio dentro de um tubo de ferro e que ao aplicarem o fogo suma extremidade do tubo, o demônio saía pela outra extremidade, com tremendo estampido e matava muitos inimigos. Não obstante, a artilharia era muito embrionária.

Os antigos hindus tinham sua organização especial e sua tática militar. Havia tropas de infantaria, a que denominavam pada; à cavalaria chamavam turagci. Possuíam também numerosos contingentes de guerreiros
que montados em elefantes atacavam impetuosamente as fileiras inimigas. Havia também em cada exército uma divisão de carros armados, ocupados pelos generais e que hoje chamamos de estado maior.

Ambos os exércitos procuravam obter a aliança de Krishna, o qual não quis tomar parte ativa na contenda, mas ofereceu-se para conduzir o carro de Arjuna e servir de amistoso conselheiro aos Pândavas, enquanto
cedia a Duryodhana todos os guerreiros que estavam sob suas ordens.

Travou-se a batalha na vasta planície de Kurukshatra e nela pereceram Bhishma, Drora, Karna, Duryodhana com todos os seus irmãos e milhares de guerreiros de ambas as partes.

O combate prolongou-se por dezoito dias, terminando com a morte de Duryodhana e a vitoria dos Pândavas.
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Continua… VI – A Restauração e a Abdicação
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Fontes: Vivekananda, Swami. Epopéias da Índia Antiga.
Imagem = http://www.forumembuguacu.com.br/viewtopic.php?f=18&t=682

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 176)


Uma Trova Nacional

Para afastar a amargura
do coração sofredor,
eu me desmancho em ternura
nos braços do meu amor.
–ANA NASCIMENTO/CE–

Uma Trova Potiguar

O sol, eterno andarilho,
nas rotas do movimento,
abre as cortinas com brilho
no escuro do firmamento.
–HÉLIO ALEXANDRE/RN–

Uma Trova Premiada

2008 > Bandeirantes/PR Tema > VIDA > M/E

A vida, em sua beleza,
deu-me tantas emoções,
que, mesmo ao sentir tristeza,
há doces recordações.
–VANDA ALVES DA SILVA/PR–

...E Suas Trovas Ficaram

A tristeza me persegue
todo instante, todo dia,
mas, coitada, não consegue
dizimar minha alegria.
–ALYDIO C. SILVA /MG–

Simplesmente Poesia

MOTE: Vou beber pra ver se mato. a dor que está me matando.

GLOSA:
Tem algo mesmo de fato
que vive me consumindo,
mas isto que estou sentindo
vou beber pra ver se mato.
Bem sutil vou como um gato,
devagar se aproximando,
a virada está chegando
e não vai ao fim do mês;
vou liquidar de uma vez
a dor que está me matando.
–LUIZ XAVIER/RN–

Estrofe do Dia

Usei todos os atalhos
que encontrei pelo caminho,
fiz de quando em quando um ninho,
fiz de estrelas agasalhos,
os meus cabelos grisalhos
tingidos pelo luar,
retratam bem meu andar
embora um tanto tardonho;
cada passo é mais um sonho
ao longo do caminhar.
–FRANCISCO JOSÉ PESSOA/CE–

Soneto do Dia

– FRANCISCO MACEDO/RN – Paladino da Poesia

A insensatez humana que remonta,
a séculos e séculos... Diria,
mais e mais se agiganta e toma conta
deste nosso habitat da poesia.

“Coivara” de palavras é poesia
nos saberes de um grande faz-de-conta
em cima uma da outra - anarquia -
que aos sensíveis, por certo desaponta.

O ignaro bate palmas e eu lamento
por essa morte da arte/sentimento
e de ver florescer tanto cinismo.

Vou resistir, lutar, vou escrever,
tentar conscientizar... Eu quero ser
paladino do nosso romantismo!...

Fonte: Colaboração de Ademar Macedo

segunda-feira, 4 de abril de 2011

Ana Vieira Pereira (Do Intraduzível)


Traduzir tem variadas utilidades. Mesmo que às vezes seja possível ligar uma espécie de piloto automático, na maioria é indispensável parar, absorver, ler de novo, apoiar-se quem sabe no dicionário de sinônimos abandonado na prateleira lá de cima. Nem sempre é fácil encontrar a palavra certa, a tradução exata. Quando o texto é técnico, vá lá, mas quando tende ao literário, ao fazer-se arte através da palavra, fica difícil passar adiante.

Há textos em que se aprendem coisas novas. As descobertas por vezes ocupam tanto espaço que é fácil esquecer o que era mesmo que se fazia - tentar ganhar a vida traduzindo. Usa-se o tempo para divagações sem fim, técnica da qual este texto é um bom exemplo, indiferente aos arquivos que se acumulam na caixa de “a traduzir”.

Alguns (muitos) anos atrás, fiz algumas traduções para a revista Casa & Jardim. Alguns artigos sobre paisagismo, algo sobre reciclagem já naquela época, linguagem coloquial fluente, fácil de entender e de traduzir. Numa das matérias, sobre flores (estava a primavera por perto), apareceu-me um “pensée sauvage” pela frente, que eu demorei um tempo a desenvolver dentro de mim. Digo desenvolver, porque algumas palavras desenvolvem-se, desenovelam-se, criam algo parecido com uma raiz dentro de nós antes de se lançarem na língua para a qual se pretendem traduzidas. Essa foi uma delas – gostei da sonoridade, da ideia de “pensamento selvagem” que com certeza não seria a tradução correta para os futuros leitores jardineiros... Fui à procura de quem entendia. Cheguei ao nosso “amor perfeito”, que é a tal flor, nomeada na nossa língua. Essa descoberta tomou-me é claro ainda mais tempo - fiquei encantada com a possibilidade de que o que para nós é um amor perfeito para um francês seja um pensamento selvagem. Pensem um segundo – é de ficar muito tempo pensando!

Há ainda aqueles textos em que as palavras são completamente e de fato intraduzíveis. Quando isso acontece, há duas possibilidades: ou o autor não soube mesmo se expressar direito (e você que dê seus pulos para entender o que ele mesmo parece não ter entendido que queria dizer), ou soube expressar-se tão bem que chega a se materializar ao seu lado e você imobilizado pelo terrível que soa qualquer escolha – querendo ou não, sempre se perde.

No fundo, no fundo, não há grandes diferenças entre traduzir e sentir. Há os sentimentos que entram no automático: não se pensa muito neles, fazem parte, aí estão. Há os que nos dão um susto – e ainda ocupam tempo, espaço, energia, dão-nos voltas e voltas e demoram a sair de nós com autonomia. São pensamentos selvagens vestidos com as roupas dos amores perfeitos.

E há os intraduzíveis, divididos também naquelas duas possibilidades: aqueles que não se explicaram e aqueles que, por meios incomuns, se explicaram tão bem que nos imobilizam. Esses, palpitam ao nosso lado, às vezes com força, outras apenas insistentemente. Somente roçam a nossa pele e deslizam os olhos pelos contornos da nossa sombra. Ainda não encontrei outra solução a não ser respirar e entrar num outro estado. Metros acima deste nosso, caracterizado pela força da gravidade, vibram com a leveza de um arco, entram e saem de nós sem portas e sem travessas, fluem por entre as nossas células como vento que nos atravessasse sem criar cadáveres. A esses intraduzíveis sentimentos, como com as palavras, imagino um dia encontrar-lhes a tradução perfeita, o espaço exato, e por isso esforço-me em guardá-los onde nada em mim os atinja, para que, quando possam, me atravessem com a simplicidade de um pássaro liberto.
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Sobre a Autora
Ana Vieira Pereira tem 45 anos, é portuguesa e vive há 25 anos no Brasil. Doutora em Literatura Comparada pela USP, é professora de literatura do Ensino Médio e coordena o espaço QuintAventura - oficina de processos criativos, na cidade paulista de Botucatu. Entre os títulos publicados estão "Mistache malabona - as crônicas do alobairrodemétria" e "O que sobrevive" (poesia).

Fontes:
Projeto Releituras.
Imagem = http://acertodecontas.blog.br/economia/mais-uma-dvida-sobre-financiamento-imobilirio/

Pedro Salgueiro (Eram Três Amigos)

Tres Amigos (pintor: Antonio Abellán)
Eram três amigos.

Eram três amigos inseparáveis.

Ficaram unidos desde a primeira vez que se viram (gostavam de se pabular disso).

Eram carne e unha desde as primeiras brincadeiras de bila, bola e arraia. Moravam em ruas separadas, mas não distantes. Nunca houve briga, mancha alguma que os separasse.

Cresceram juntos, apaixonaram-se pelas quase mesmas meninas. Dois torciam pelo São Vicente e o outro pelo Unidos do Petróleo.

Cresceram, irremediavelmente.

Um ficou pelo ginásio e ajudava o pai na bodega. Outro foi para o seminário em Sobral. E o terceiro perambulou de festa em festa.

Fatalmente um deles seria próspero comerciante. Outro, dedicado padre. E o último, professor e poeta.

Porém um deles suicidou-se por causa de um amor não correspondido. O outro foi assassinado ao separar uma briga de casais. E o derradeiro pulou da ponte da linha férrea e espatifou a coluna.

Eram três amigos.

Eram três.

Eram.

Fontes: Literatura Sem Fronteiras.
Imagem = Torre da História Ibérica

Nilto Maciel (Meus Cães, Minhas Diabinhas)


Acordei tarde, num apetite danado. Passei a noite diante da televisão, a ver mulatas na Sapucaí. Fui à cozinha, fucei a geladeira, voltei à copa. Imaginei mordidas numa pera exposta na pequena fruteira sobre a mesa. Não, melhor me conter e aguardar o bife acebolado e quente do restaurante. Para enganar a fome, rasguei o envelope encontrado na caixinha do correio. Espantei-me: uma revista de capa colorida e meu nome em grandes letras, ao lado de um Peter, de um Otto, de uma Annette. Quase não acreditei no que via. Como fora meu nome parar na parte exterior daquela publicação germânica? Sim, o magazine vinha da Alemanha: Welt der Buchstaben. Embasbacado, ouvi o grito da sirene. Quem seria? Corri ao portão, meti a cara na folha metálica e me assustei: três diabinhas a pular na calçada. Só de uma lembrei-me: Carla Pimentel, a Carlinha da semana passada. Abri o portão, com pressa de celerado. As três saltaram ao meu pescoço e quase me levaram ao chão. Não façam isso! Olhem o povo! Vestiam-se como diabretes, rabos empinados e a balouçar, rostos pintados, toquinhas de variadas cores, saiotes curtos. É carnaval, poeta, é carnaval! Vamos dançar. E se balançavam na direção da porta, arrastando-me feito boneco de Olinda. Por que vieram sem me avisar? Precisa avisar? Quem são suas amigas? Esta é Fabíola, mas pode chamar de Fabi. Abracei-a, beijei-a, de olho na terceira. E você quem é? Eu sou Gabriela, a Gabi. Convidei-as a se meterem na casa: Introibo ad altare Niltei. Carla se apimentou mais: Diabo é isso, meu?

A tremer de inanição, ofereci-lhes o cálice frio dos mortais: tem cerveja na geladeira. Bebam, enquanto vejo uma... Sem olhar para elas, balbuciei: Carla, você pode traduzir isto? Chegaram à sala, latinhas suadas. Fabi se estirou por trás de minha orelha murcha e eu senti seu coração pagão machucar meu ombro decaído: Você está nela? Arrancaram os lacres das latinhas. Vejam meu nome na capa. Conto ou poema? Não sei ainda. E me pus a revirar as folhas. As tentações deixaram de saltitar e se aquietaram no sofá. Passei por Peter Kunze, Otto Uhse, Annette Loerke e fui me impacientando. Você deve estar ao lado de Thomas Mann e Günter Grass – brincou a diabólica Carla Pimentel. (Teria sido ela a autora da façanha de me traduzir para a língua de Goethe e providenciar a publicação do conto?)

Sôfrego, li o título: “Die Sprache Des Hunde”. O que significa isto, Carlinha? Deve ser “A fala dos cães”. As outras enfiaram os olhos na amiga. Tentei ler. Não é assim, Nilto. Então leia. Será mesmo meu? Sim, seu nome está aqui, junto ao título. E há uma nota no pé da página. Agora quero beber. Corri à geladeira, instigado pela sede. Vejam se há mais brasileiros aí. Elas passavam as folhas, com sofreguidão, quase a rasgá-las. Cuidado, isto é uma relíquia, minhas filhas.

Carla Pimentel estuda alemão, viveu em Berlim durante um ano e adora o que escrevo. Eu não estudo nada, só saí do Brasil uma vez (Cuba, 2000) e adoro os seios das raparigas em flor. Nunca a imaginei vestida de anjo caído (mesmo no carnaval), a bailar feito macaca, rabinho para lá e para cá. Eu a imaginava metida nos livros, a ler Rilke, Elias Canetti e Kafka. Pois vive a me falar deles. Você precisa ler as histórias de Hoffmann. Ora, eu li, quando jovem. É verdade, poeta? Lembro muito de “O homem de areia”.

Naquela manhã de faminto, porém, perdi por completo o respeito pelo ser humano. Como pode uma menina, de tantas leituras, se transformar numa tinhosa qualquer, que visita, em dia de carnaval, um homem há muito afastado da pândega e dedicado, dia e noite, a ler e escrever? Corri ao banheiro, para me santificar ou me purificar. Aquilo deveria ser sonho. A água benta me acalmou. Aranquei a toalha do cabide, pu-la aos ombros, e saí à sala a cantarolar: Com que roupa eu vou pro samba que você me convidou. Que alegria é essa, seu Nilto? Pensei não me defrontar com ninguém na sala. Aquelas mocinhas teriam sido criadas por descuido do criador. Eu queria folhear Welt der Buchstaben, deliciar-me com “A fala dos cães” em alemão, me sentir ao lado de Goethe, Schiller e Novalis. No entanto, as meninas, as diabinhas não queriam saber de letras. Queriam foliar em minha sala. Ou transformar minha vida numa folia. Fazer de mim bonequinho que fala pela boca dos outros. E, às vezes, escreve versinhos brincalhões: “Talvez pudesse ser padeiro – pães –, / tecer mortalhas – panos – doutras lãs, / porém domar nem sei meus próprios cães”.

Fortaleza, 8 de março de 2011

Fonte: Literatura Sem Fronteiras
Imagem =
Pagina Pandora

Caravelas da Poesia I


MARIA CLARA SEGOBIA
Janela do futuro


Tento não pensar no amanhã
nem me culpar pelo passado
em suas consequências.
Tento viver o hoje
mas o medo
de não abrir a janela do futuro
ver o sol nascer
as vozes amigas
o canto dos pássaros.
A certeza de que um dia
o hoje acaba sem futuro.
Tento não sentir medo
na coragem que finjo ter.

WILSON DE JESUS COSTA
Verso Triste


Quando rolam lágrimas em meu rosto
São como gotas de orvalho a cair das flores;
Enquanto as gotas se esparramam pelo chão
Lágrimas encharcam minh’alma... e o coração
Quando a madrugada fria me maltrata o corpo
Eis aí uma chuva invernal a me envolver a vida.
Quando a saudade em meu peito aperta
Enxugo as lágrimas, disfarço, sorrio e apenas canto
Mas se minha casa está vazia, e a saudade açoita
É por falta dos gritos das crianças,
……. que hoje não mais são crianças!
Então sento e abro o livro com estórias do passado
Estórias tão presentes no meu triste presente e,
……. no entanto, eis o futuro!

Quando rolam lágrimas em meu rosto
São como gotas de orvalho a cair das flores
Olho decidido para esse meu futuro
…… e parto sem medo em sua direção.
E vou vivendo a vida como deve ser vivida
Na fantasia do tudo vai bem, nada vai mal
Aí eu vejo como passou o tempo, e as horas voaram
Sinto um vazio, meu verso fica triste, tudo é silêncio
Mas eu canto, embora cante um melancólico canto
E me sinto mais isolado desse meu triste mundo,
…… e é indolente esse meu novo canto
No ver cair nas flores as gotas do orvalho
E enquanto mais saudades sinto, mais saudades canto
Canto no meu verso triste o antes, o agora e o depois

Enquanto lágrimas rolam em meu rosto
Enxugo as lágrimas, disfarço a tristeza
Ao sentir a dor cruel e sinistra de cruel saudade
…. Enquanto...

MARISA CAJADO
Versos na Madrugada


Há pouco foste embora...
Pouco tempo pra tanta demora
Em te encontrar novamente.
Deixastes impregnado levemente
Teu cheiro, tua lembrança
No quarto, na cama, no travesseiro
Na gama da química do amor.

Deitei-me no leito de forro marinho
E cobri-me com o lençol branco
O mesmo que nos cobriu e se fez ninho
Nestes dias de amar aberto e franco.
E tenho que calar no peito este afeto
Que teima em explodir, enquanto calas
O que por certo, não quer dizer teu ser inquieto.

E eu diria: _ Por que não falas?
Por que o silêncio que te distancia
Mais que os quilômetros que nos separam?
Dúvidas, anseios, que no ser resvalam
Em meio as recordações que já passaram
Tiram-me o sono, em nascente de poesia.
Pelas doces impressões que aqui ficaram

Como entender a química do sentimento
Que se expressa de modo tão diverso
Deixando adverso o pensamento
Sem resposta na tônica do meu verso?
Talvez o inverso deste verso que componho
Seja o teu verso, o teu testemunho
Deste querer que não trazes imerso,
Por não ser eu, a musa do teu sonho.

ERON FREITAS
Garimpando Versos


a imaginação... garimpando versos ao luar,
sinto a brisa a chorar enquanto acaricio
teus cabelos revoltos, sedosos, macios,
sem me preocupar com o que vou rimar!

Deita no meu peito ao luar do sertão,
fecha os olhos e escuta quieta, embevecida,
o som mágico que dá força à vida,
extraído com firmeza do meu violão!

Voa... voa... montada no teu pensamento,
livre, leve e solta singrando o firmamento
como uma pena levada por um furacão...

Depois... retorna à vida bem energizada,
acordando com a batida forte e ritmada
de meu carente e solitário coração!

PLÍNIO DRÁUSIO
Cavaleiro errante


Serei seu amigo nas dimensões que ela quiser.
Nos sonhos, nas quimeras, nos anseios...
Em pálidos outonos — em viçosas primaveras.

Serei relento, rebento — serei abrigo.
Trarei alimento — cevada e trigo — pão e vinho.
Serei casto e servil, a cortejarei com minha fama de varão!
Sem detrimento da inocência de um pequeno infante.... pueril...

Amigo — digo amante — cujo destino reserva cetro de rei,
ou espada de cavaleiro andante, errado, errante — adelante!
Breve empreenderei jornada, na mira do rastro excrucitante
da dulce nobre princesa plebéia.

Ei de encontrá-la numa torre, numa corte ou na taberna.
Ora Sigo.
Eia! Rocinante.

SONIA CANCINE
Narciso, a flor que me atraiu


Como se fosse ave precursora da primavera
Ofuscando lágrimas da chuva que me inunda
Conduzo-me aos jardins do Sol
Esquadrinhando regozijo e vigor.

Fecho os olhos e deixo-me abduzir
Pelos acordes suaves dos sons ao longe...

(que se transformam em sonhos multicores).

Colhia flores de raríssima beleza e sensualidade
Colhia narcisos e de repente abriu-se uma cortina
A natureza florida por inteiro me sorria e
- Tornei-me a vigilante das almas vencidas –

Era um deleite vê-las além do mundo dos prantos
Agraciavam as vivas nuances e o encanto da fina flor
Reluzia o rosicler d'aurora no murmurinho da chuva
Num mundo entre céus, mares e montanhas.

Tão distante deste mundo atuante encantava-me fenecer.

Após a primavera fez-se o inverno

(desapareciam-se as flores).

E o verde da natureza brotava vivo da terra...
Símbolos de fertilidade: romã, o grão, o milho
- E ainda, o narciso, a flor que me atraiu.

Em devaneios ao abrir os olhos...
Acordei assustada a luz do alvorecer.

ROLDÃO AIRES
Coincidência


Sinto a tua ausência,
Aperta-me, a saudade.
Não sei se te mando
Rosas,para veres
Que meu amor,é verdade.
Quando, a estes versos
Escrevia,
Ouço baterem à porta.
Levantei-me para abri-lá
Eras tu com um ramalhete.
Pensastes como eu pensei,
Sentistes a mesma dor,
Que só quem ama sente.
Viestes com rosas.
Prá mim bastava,
Só um bilhete.

EDSON C CONTAR
Náufrago


sou náufrago....
naveguei pelo mar da desilusão...
perdido,
eu vaguei no oceano da ingratidão...
ferido...
busquei forças nas velas do acreditar ,
vencido...
naufraguei na ilusão do oceano amar....

Sou naufrago,
que não quer o resgate pelo perdão,
prefiro,
meu retiro distante, na solidão

esqueça....
sou ilha flutuante, distante do amar...
mesmo que tempestades me levem de volta,
no teu cais, coração, não vou mais atracar.

AMANDA LEMOS
Ida Sem Volta


Ele a viu, mesmo não querendo ver.
Ele a sentiu, como se lembrasse do primeiro beijo selado dos dois.
Ele sentiu seu aroma, como se houvesse entrado em meio a um campo sublime de rosas.
Ele viu, mesmo parecendo não crer.

Ele se lembrou da melodia inspirada em Mozart que se fez compor e soar para ela,
Ele se viu em um espelho como se não houvesse nada,
Ele mastigou-se dentro de si, como quem se petrifica.
Ele se foi, mesmo com um sorriso torto de quem fica.

Ele lhe acariciou como se fosse a primeira vez dos dois,
Ele lhe sussurrou aos ouvidos as mais belas melodias e versos feitos as pressas,
Ele lhe tocou como ninguém à havia tocado daquela maneira,
Eles se deleitaram como quem não espera o futuro, o depois.

O que resta dele agora Meu senhor ?

Apenas às sombras de quem se decepciona,
Apenas as lágrimas de quem não chora,
Apenas os sorrisos cativantes de que não sorri,
Apenas o singelo Adeus de quem lhe diz por mero desdém.
Lhe restou a alma, se é que não a levaram também.

Ele se apaixonou, mesmo se forçando a seguir a razão.
Ele se queixa pela falta de explicação.
Ele ainda não sabe o que é amar,
Mas ele se foi, como quem vai, para nunca mais voltar.,

ROBSON AMANO
Moça Rendeira


Moça rendeira quando vi ocê rendá
Eu nao sabia se isso era renda inglesa,
se era filé ou qualquer coisa que há.

Quando te vi sentada naquele banquinho
O açaizeiro com sua sombra a protegia
O vento forte soprava em seus cabelos
e o seu cheiro vinha com a maresia

Linda morena do vestidinho rodado
Seu rebolado tem o balanço da canoa
Quando ocê passa eu tropeço em seu gingado
Enfeitiçado com teu corpo de leoa.

Com teus carinhos oce me afaga o ego
Teu doce beijo tem melaço de caju
Em sua rede do sertão eu me despeço
das carapaças, casacas de couro cru.

Moça rendeira vou perder-me em seus rendados
Embaraçado nas teias do teu amor
Ocê é o remédio deste corpo judiado
Que é viciado no teu gosto e seu calor.

Moça rendeira quando vi ocê rendá
Eu nao sabia se isso era renda inglesa,
se era filé ou qualquer coisa que há.

Fontes: Colaboração de Poetas del Mundo
http://www.bardoescritor.net/

http://www.fanzineepisodiocultural.blogspot.com/