quarta-feira, 13 de julho de 2011

Afonso Félix de Sousa (Rondó de Porto Alegre)


No te pongas melancólico,
amigo. Voemos sorrindo.
Quem nos deu a melhor arte
não deu o mal de quem parte
como prêmio por ter vindo.
Ao ar! Ao ar! – Evaporam-se
as lembranças, formas de éter,
e entre as nuvens onde estamos
nossas almas, em suéter,
se nutrem do que deixamos.

No te pongas melancólico,
Se por seis dias dormiste
no que fora alegre porto,
não seja agora um sol morto
que acorde em ti quem foi triste.
Se em águas sem sal nem lágrimas
aportaste em noites frias,
não sentes já que não mais
hão de secar, se as bebias
em meio a ventos carnais?

No te pongas melancólico,
meu velho. Se já não clamam
anos mais anos de sede
prostrados junto à parede
da fonte aberta aos que amam,
seja o amor tapete mágico
a levar-te entre dois braços,
já que preso te libertas,
e é mais alto que os espaços
o teu mundo em descobertas.

Fonte:
SOUSA, Afonso Felix de. Chamados e Escolhidos. RJ: Record, 2001.
Imagem = Johnson Tour http://www.johnsontour.com/portoalegre.html

Carolina Ramos (Triângulo)


Carnaval. Noite de sábado - aquele apêndice agregado ao calendário, ampliador dos três dias programados para a folia.

Zulma, Carlão e Zico - trio escolhido para representar a tríade mais famosa das folias de Momo - Colombina, Pierrô e Arlequim. Noite quente, sem chuva. Ar parado. Noite de fevereiro, autêntica, prenunciadora das águas de março, próximas.

A moça acordara cedo. Banhada e perfumada, desenrolava os bóbes, soltando as mechas de cabelos negros. A fantasia de Colombina, estendida na cama, descansava, por antecipação, da refrega que teria de enfrentar, logo adiante.

- Tira a mão daí, menina. Vai vestir a tua borboleta azul.

E a caçula voou, sem asas, em busca das asas embrionárias, dobradas, ainda, na gaveta-crisálida.

Carlão e Zico. Um dilema a ser resolvido. Por ironia, os dois pretendentes ao coração da moça assumiam figuras polêmicas que mais confundiam seus sentimentos, a impedir que chegasse a uma decisão, na vida real.

Zico ou Carlão - Arlequim ou Pierrô?

Carlão - romântico, tímido, sem muita iniciativa, música de fundo, suave e transparente como bola de cristal. Pierrô autêntico, carente de carinho, despertando ternura e amor.

Zico, o oposto. Auto-suficiente, algo arrogante, narciso, dominador, Autêntico Arlequim, volúvel e imediatista, arrastando à paixão.

Perfeitos! Carlão nunca poderia ser um Arlequim, Zico, jamais um Pierrô!

Zulma sorriu para o espelho, enquanto pingava no canto direito da face, uma pinta negra, que lhe emprestava a coqueteria indispensável à figura que encarnava.

Quando a Escola adentrou a av. Tiradentes, e o ritmo das baterias sacudiu as almas, Colombina estremeceu no alto da plataforma, apoiando-se nas duas bengalas prateadas, fincadas como arrimo às suas evoluções. Delas dependiam, pelo menos, noventa por cento da sua segurança. Grande responsabilidade! Acarinhou-as com respeito.

Lá em baixo, um Pierrô de cara branca e triste, vestido de cetim azul celeste, com sua gola entiotada, abraçando o alaúde estilizado, propositadamente alongado e enfeitado de fitas. Uma lágrima de prata, brilhando na cara branca.

Do outro lado, exuberante Arlequim, exibindo o colante de losangos coloridos, máscara negra, sensual e misteriosa, e um sorriso amplo, absolutamente confiante de que sua presença agradava, sem exceções.

O eterno triângulo, vezes se conta, repetido dentro e fora do Carnaval!

Às tantas, não se sabe como, nem se sabe por quê, a frágil Colombina despencou do alto da plataforma, candidata a múltiplas fraturas e mesmo, quem sabe, a sucumbir face a qualquer delas!

A surpresa amarrou a todos. Estupefação! Nem mesmo a decantada auto-suficiência do Zico conseguiu vencer o estupor geral.

Surpresa maior foi, no entanto, a providencial e prestativa atitude de um Pierrô apaixonado, conseguindo aparar nos braços, com força imprevista, o corpo da bela Colombina, aparentemente desacordada.

Ao abrir os olhos, Zulma encontrou outros dois olhos, ansiosos, iluminando uma cara branca. A lágrima de prata brilhava mais ainda, autenticada por outras que abriam sulcos na face alvaiade.

Carlão virou herói! E o coração de Zulma deixou de balançar, indeciso. Pendeu, definitivamente, para o lado certo!

Pela primeira vez, quem sabe, na turbulenta história do Carnaval, um Arlequim, fascinante e extrovertido, perdeu, fragorosamente, para um tímido e sonhador Pierrô!

Fontes:
RAMOS, Carolina. Interlúdio: contos. Edição: Cláudio de Cápua, abril de 1993.
Imagem = http://coisinhas-interessantes.blogspot.com

Aníbal Lopes (Amar)

Beijo Mágico (de Manuela Alvarez)
Só quem gosta e ama
Sabe como queima a chama
De um forte sentimento.
Sentir o coração saltar
Temendo que possa parar
A todo e qualquer momento.

Uma vontade incessante
Que aumenta a cada instante
E nos rouba a razão.
Dizem que arde sem se ver
Vá lá a gente perceber
As coisas do coração.

É um perder de juízo
Achar que não é preciso
Ter qualquer contenção.
É nunca ver defeitos
Estar contra os preconceitos
E viver apenas a paixão.

É fazer versos de amor
Procurar com ardor
Até encontrara rima certa
Como para uma cantiga
E sentir essa coisa tão antiga
Que o amor nos desperta.

O amor é sentimento ancestral
Receita que cura todo o mal,
Poção mágica, sem preço
Ao alcance de toda a gente
E como não sou diferente
Tal remédio, também mereço.

Julho/2011

Fontes:
Enviado por Lino Mendes, de Praça da Poesia
Pintura = Artgeist.com

Ana Carolina Rocha (A Gravata e o Peixe)


Decidiu enforcar-se com uma gravata.

Chegara em casa cansado e tinha largado o trabalho. Trabalho tão infindo e injusto na indecência do escritório, que não havia outro jeito:

Sairia daquela vida sem nexo, sem poesia, sem sentido. Nada prestava.

Sairia pela gravata que botava todo dia no pescoço para viver. Agora era ela que faria justiça. Sabia da hierarquia da sociedade, logo chegaria o mal da idade, sabia que era um alerta de início da tempestade. A velhice já lhe doía, sem ao menos senti-la de fato. Seria melhor acabar com tudo de uma vez.

Examinou sua gravata, como um agente examinando sua arma. Suas listras eram hipócritas e estúpidas. Era tão tosca que se fosse arma, seria arma de brinquedo.

Enforcado morreria. Mas parecia que seus sonhos já estavam enforcados em conjuntos de elevadores, seqüência de humores artificiais, risadinhas, piadas prontas, misturados à contas e baixa renda.

Seu lar: um apartamento mal mobiliado artificialmente e sem vida. A única vida presente, não era nem a sua, mas a e de um peixinho dourado que ganhara em uma festa infantil do filho de um colega de trabalho. Estava lá, onipresente, largado no canto da sala como móvel que não se usa.

Naquele fatídico dia, largou as chaves em um canto e atirou-se no sofá, afrouxando aquele acessório que no tão próximo instante, seria sua arma. Com o corpo inclinado no canto, observou aquele pingo de vida, deixado no canto. Um aquário de vidro redondo. Por quanto tempo aquele peixe vivia ali com ele? Ele que sentia-se tão sozinho. Como tinha deixado passar tanto tempo sem ao menos tê-lo notado. Ficara ainda mais triste: a água estava turva, mal podia ver que tinha algum ser vivo ali:

— Ei !

Uma voz o chamou. Estava mais louco que imaginava, olhou para o lado, suspeitando ser impressões:

— É...você mesmo!

Agora, verdadeiramente assustado, levantou-se num sobressalto. Esfregando os olhos e ficando sentando, em postura alerta, suava:

— Olá! Tem alguém aí ?

Era fato: estava louco. Lembrou-se de um cara na firma que de tanto fazer cópias quis copiar a própria cara, as outras partes e as partes do chefe. Até a ambulância tinha sido chamado para o pobre coitado.

— Sim —- respondeu hesitante e já quase a sair correndo.

— Poxa até que enfim... Será que você tem um minutinho?

— Mas quem está falando?- perguntou indignado, já levantado com a gravata na mão, em punho. Poderia usá-la como arma para salvar a vida.

— Sou eu...seu peixinho!

Agora sim. O mal estava feito, ia para cova ou direto para manicômio. Não mais a gravata, mas a camisa de força o esperava. Calou-se por um momento, rogando para que só tivesse sido um relance de tontura, alguma voz de seu interior, alguém dizendo para não se enforcar...Já ouvira falar de tanta gente que ouvia vozes, a maioria já trabalhando em terreiros mediúnicos ou largadas em hospícios, falando com árvores.

— Olha...eu não fiz nada! Sou uma pessoa normal, pago contas, tenho carro, tenho apartamento. Só estou numa fase ruim . Diga-me que não estou louco!

O peixinho, que até agora tinha uma fina voz, riu o que parecia seu borbulhar:

— Não precisa ter medo. Não sou a voz da consciência. Sou seu peixinho. Ando meio solitário também. Queria que alguém trocasse minha água.

— Trocar minha água...mas o que? — respirou fundo — Olha...Eu sei que estou louco. Estou conversando com meu peixe...mas...

— Você não está louco! Eu existo! Sou um peixe! Preciso falar com você...Agora! Queria que trocasse minha água...não consigo enxergar...Está tudo verde...você é verde ?

O rapaz, com cara mais assustada, estava verde sim, mas de doença. Suava tanto que chegava até a molhar o chão:

— Devo estar sonhando...— dando as costas.

— Veja esta gravata listrada...Ela é azul..porque devia ser azul.

— Ok. Isso é alguma tentativa divina e barata de salvação? Olha, eu não leio livro de auto-ajudas exatamente por isso. Você quer me convencer que tudo tem que ser assim por um poder divino? Esqueça, estou vacinado contra baboseiras.... Aliás...peixinho...nem falarei com você – de um jeito insosso e incrédulo deu as costas para o peixe.

— Mas eu preciso de você!

Adotando uma postura enérgica, gritou:

— PARE! PARE! Não vê que eu quero acabar com minha vida? E você desperdiçando o meu tempo precioso, com papo de cores. Você não precisa de mim! ACABOU! E ainda falo com um peixe no aquário? É mais que sinal de loucura: é evidência.

— Eu só preciso que troque minha água...depois disso..faça o que quiser...Eu até ofereço meu aquário se você desejar se afogar nele...Você não gostaria de se afogar em condições melhores?

O homem, exausto e com olheiras, sucumbiu ao nervosismo e olhou para o aquário.

Dava apenas para ver os olhinhos esbugalhados de clemência do peixinho. A água estava tão turva. Pelo menos, se fosse morrer, que não deixasse o peixinho em condição desmazelada.

— Então...Você vai trocar? - perguntou o peie.

Olhou a gravata, olhou o aquário e decidiu ajudar o animalzinho. Pelo menos, se fosse dar um fim em sua vida, que mostrasse que deixou tudo ajeitado. Já imaginava a vizinha comentando:

- Ele nem se dignou a trocar a água do aquário, imagina se ele ia pagar o aluguel.

- Trocarei. Mas você terá que ficar CALADO, combinado? Não quero escutar animaizinhos me dando conselhos. Eu não estou na Disney.

— Sim. Combinado.

Enquanto o peixinho, morria de vontade de conversar e tentava sobreviver na pia, arfando de lado. O rapaz foi limpando o aquário e aquela trabalheira de tirar a água, limpar o vidro, tirar o lodo, e colocá-la em posição foi se dissipando aquela intenção de suicídio. Como se fosse jogado no ralo. Tirou o excesso de sujeira que acumulado pelo tempo e puro esquecimento. Como ia se matar? O peixinho, olhando com olhos arregalados, suspirava, tentando obter o máximo de vida daquele ambiente...

Do jeito que alcoólicos e viciados tem momentos de clareza, compreendeu. Tirou uma lição de ambiente, de ajuda e obviamente da própria loucura.

. O peixe voltou pro aquário. Agradeceu a gentileza:

— Obrigado!

— Peixes não agradecem.

— Gravatas não são armas! Peixes não são terapeutas. – replicou.

Depois de ter dito isso, o peixinho se calou e voltou, o rapaz deixou a gravata em cima da mesa, dando um nó no aquário. E pela vida, acho que o rapaz decidiu ser pescador.

Fontes:
http://www.releituras.com/ne_acrocha_gravata.asp
Imagem = Montagem com imagens obtidas em http://lugardoleitor.blogspot.com e http://www.toymagazine.com.br (peixe)

Pedro Ornellas (Setilhas “Na Roça tem…”) Parte 4

Pintura a óleo de Angela Kelly Topan
(Foto: José Feldman)
Tem muro de cemitério
que esconde um certo mistério,
pé-de-moleque, cocada,
que agradam à garotada;
tem brincadeira de roda
(que essa nunca sai de moda)...
A roça é boa... a danada!
(SELINA KYLE)

Tem máquina de costura
com tudo que se procura:
dedal, botões, linha, agulha...
Tem pomba-rola que arrulha
porco gordo no chiqueiro
cavalo manso e ligeiro
e arroz guardado na tulha!
(PEDRO ORNELLAS)

Lá tem duença deferente!
Si u muleque fica duente
pode sê que teja aguado
o das bicha discunfiado.
Quem num tem berne na bunda
véve cum dor na cacunda,
morre de bucho virado...
(PAULO TARCIZIO)

Tudo é divinação,
fica aberto o coração
lá na roça, no meu lar.
No fogão a crepitar
junto à lenha e o fogaréu
vejo naquele escarcéu
meu amor esbrasear.
(PALAS ATHENA)

Lá tem paiol, tem picada,
tem gado bom na invernada,
tem galinha no terrero
e eu que tomém fui rocero
tarde aprendi na cidade
que a tar da felicidade
não se compra cum dinhero!
(PEDRO ORNELLAS)

Lá na roça é diferente,
eu me sinto tão ardente.
Dos meus sonhos na ciranda,
numa rede na varanda
onde eu possa divagar
com os beijos sem cessar
deste amor que em mim comanda.
(PALAS ATHENA)

Lá no galho da paineira
bem pertinho da cocheira,
dorme o galo cantador
com garganta de tenor
pra Maria ele acordar,
a rabinha vai esquentar,
é café pro seu senhor.
(DÁGUIMA VERÔNICA)

Tem espinhela caída,
muita noite mal-dormida
tem até ventre-virado
deixando o pobre coitado
a procurar “benzedeira”
pra se livrar da canseira
deixa-lo, inteiro, curado.
(MARILU MOREIRA)

Pro sertanejo é chacina
dia de tomar vacina,
não tem medo de serpente,
mas, na agulha ele sente,
aquela dor tão profunda
quando tem que mostrar bunda
pra macho bem diferente.
(DÁGUIMA VERÔNICA)

Lá que tem Seu Zé quejero
que trabáia sem vaquero,
só ele e a Dona Carminha.
Levanta madrugadinha,
tira o leite da vacada
depois vem, ca costa arcada,
tomá café na cozinha.
(PAULO TARCIZIO)

Lá tem capim amargoso,
que é ruim de carpi, tinhoso,
chega faz calo na mão...
lá num tem moleza não...
pra cabocro bom de enxada
lá tem roça praguejada
de carrapicho e picão!
(PEDRO ORNELLAS)

Tem a cabrinha de um dia
que nasce e já faz folia
cabeceando a galinhada
que sai tudo em debandada
- menos a galinha choca,
que os seus pintinhos convoca,
se arrepia e dá bicada.
(PAULO TARCIZIO)

Tem um menino bobinho
que se envergonha todinho
quando encontra ca Rosinha.
Esta sim, é espertinha,
vê que o menino tá ganho
mas dá riso de arreganho
pra quem passa na estradinha.
(PAULO TARCIZIO)

Feijoada de mocotó
é tão boa que dá dó
ver escorrer no pescoço
aquele “cardo” tão grosso,
a mãe, de testa franzida,
vê, a moça na “lambida”,
“zoiando” “praquele” moço
(DÁGUIMA VERÔNICA)

Tem a colcha de retalho
tem ranger do assoalho
tem toalha de crochê
Cozinha com fumacê
tem cebola e muito alho,
na roça tem espantalho
para o milho não "cumê"
(MARILU MOREIRA)

Na roça, em minha cabana,
tem facão de cortar cana,
tem lenha no fogo e até
tem sempre bolo e café;
tem lamparina de azeite,
tem muita flor como enfeite...
Vem aqui pra ver como é!
(SELINA KYLE)

Lá tem jacá de taquara,
é feito de fina vara
tirada do bambuzal
bem perto do milharal,
lugar de preparar ceva
pra onde o perigo leva
a caça, bicho animal
(DÁGUIMA VERÔNICA)

Tive lá Pedro, e gostei!
Que belezura essas moda...
É que nem quando na roça
lá no galpão se acomoda
todo o povo do retiro
que chega a solta suspiro
pros violeiro em meio à roda...
(SÔNIA TARASSIUK)

Água se guarda no pote
pra roça vai no corote,
na moringa ou na cabaça...
lá na mina tem de graça
pagamento não precisa
pra quem encharca a camisa
enfrentando uma quiçaça!
(PEDRO ORNELLAS)

Muita festança e rojão,
canelinha e quentão...
Tem uma "baita" quadrilha,
"camaradage" e partilha
não só de pão mas, de par
que as vezes chega no altar
formando bela família!
(VÂNYA DULCE)

Lá tem, de manhã bem cedo,
requeijão de leite azedo
deixado pelo leiteiro
que, preso num atoleiro,
amanheceu lá no brejo
por causar o maior frejo:
chamou de sogro o vaqueiro.
(DÁGUIMA VERÔNICA)

Morta a bezerra de um dia
afogada na água fria
na cachoeira do poção.
Prende o leite, de paixão,
a boa vaca leiteira.
Mergulha a Rosa vaqueira:
volta com o bicho na mão.
(PAULO TARCIZIO)

Tem cipó pra gangorrar
e ribeirão pra nadar,
tem muito capim-gordura
e canavial com fartura
pra fazer muita cachaça,
o melado sai de graça
e só vende a rapadura.
(DÁGUIMA VERÔNICA)

Tem mato pra se esconder
brincadeira de correr,
roubar fruta do vizinho,
depois fugir de mansinho...
Tem doce feito no tacho,
bicho na goiaba... eu acho.
Como é bom esse cantinho!
(SELINA KYLE)

Lá tem moda sertaneja,
bule quente na bandeja,
disco em cesto de por milho
embrulhado em coxinilho,
pra sentar tem um pelego,
num banco perto do rego...
na vitrola um Estribilho .
(DÁGUIMA VERÔNICA)

Noite de lua encantada
tem viola enluarada
tem canção de seresteiro
tem cavalo de vaqueiro
leva a moça garupa
e fazendo upa, upa,
vai bancando o cavaleiro.
(ILNEA MIRANDA)

Amendoim saboroso
-isso é viagra pra idoso,
também plantação de trigo
e pra fazer doce, o figo,
limão, laranja e banana...
Sutiã de barbatana
pra evitar qualquer perigo.
(DÁGUIMA VERÔNICA)

Fonte:
Setilhas enviadas por Pedro Ornellas

Monteiro Lobato (Viagem ao Céu) IX - Tia Nastácia


Enquanto conversavam, Tia Nastácia, sempre à distância, rezava, e volta e meia fazia um pelo-sinal.

— Como deram com ela aqui? — perguntou São Jorge, pondo os olhos na pobre negra.

Foi Emília quem respondeu.

— Ah, santo, Tia Nastácia é a rainha das bobas. Veio conosco enganada. Cheirou o pirlimpimpim pensando que era rapé...

São Jorge quis saber o que era rapé e pirlimpimpim, e muito se admirou das prodigiosas virtudes do pó mágico. Depois fez sinal à Tia Nastácia para que se aproximasse.

— Venha, boba! — animou Emília. -— Ele não espeta você com lança. É um santo.

Tia Nastácia fez três pelo-sinais todos errados, e foi se aproximando, trêmula e ressabiada. Estava ainda completamente tonta de tantas coisas maravilhosas que vinham acontecendo. O dragão, o sumiço que levaram o Visconde e o burro, aquele prodigioso santo vestido de armadura de ferro, com capacete na cabeça, escudo no braço e “espeto” em punho — e lá no céu aquela enorme “lua” quatro vezes do tamanho do Sol — tudo isso era mais que bastante para transtornar a sua cabeça pelo resto da vida.

Mesmo assim veio toda a tremer, com os beiços pálidos como de defunto.

— Não tenha medo — disse-lhe Narizinho. — São Jorge não come gente. É um grande amigo nosso e muito boa pessoa.

Tia Nastácia afinal chegou-se — mas embaraçadíssima. Tinha as mãos cruzadas no peito e os olhos baixos, sem coragem de erguê-los para o santo. Estar diante dum santo daqueles, tão majestoso na sua armadura de ferro, era coisa que a punha fora de si.

— Não tenha medo de mim — disse São Jorge sorrindo. — Diga-me: está gostando deste passeio à Lua?

O tom bondoso da pergunta fez que a pobre negra se animasse a falar.

— São Jorge me perdoe — disse ela com a voz atrapalhada. — Sou uma pobre negra que nunca fez outra coisa na vida senão trabalhar na cozinha para Dona Benta e estes seus netos, que são as crianças mais reinadeiras do mundo. Eles me enganaram com uma história de rapé do Coronel Teodorico, o compadre lá de Sinhá Benta, e me fizeram cheirar um pó que mais parece arte do canhoto. Agora a pobre de mim está aqui nesta Lua tão perigosa, sem saber o que fazer nem o que pensar. Minha cabeça está que nem roda de moinho, virando, virando. Por isso rogo a São Jorge que me perdoe se minhas humildes respostas não forem da competência e da fisolustria dum santo da corte celeste de tanta prepotência...

Todos riram-se. A pobre preta achava que diante dos poderosos era de bom-tom “falar difícil”, e sempre que queria falar difícil vinha com aquelas três palavras, “competência”, “prepotência” e “fisolustria”. Ela ignorava o significado dessas coisas, mas considerava-as uns enfeites obrigatórios na “linguagem difícil”, como a cartola e as luvas de pelica que os homens importantes usam em certas solenidades.

— Fale simples, como se você estivesse na cozinha lá de casa — disse Narizinho. — Do contrário encrenca, e São Jorge até pode pensar que você lhe está dizendo desaforos...

— Credo, sinhazinha! — exclamou Tia Nastácia benzendo-se com a mão esquerda. — Quem é a pobre de mim para dizer algum desaforo a um ente da corte celeste? Até de pensar nisso meu coração já esfria...

São Jorge teve dó dela. Viu que se tratava duma criatura excelente, mas muito ignorante — e deu-lhe umas palmadinhas no ombro.

— Sossegue, minha boa velha. Não se constranja comigo. Vejo que sua profissão na vida tem sido uma só — cuidar do estômago de sua patroa e dos netos dela. Quer ficar aqui na Lua cozinhando para mim?

Aquela inesperada proposta atrapalhou completamente a pobre negra. Ficar na Lua ela não queria por coisa nenhuma do mundo, não só de medo do dragão como de dó de Dona Benta, que não sabia comer comidas feitas por outra cozinheira. Mas recusar um convite feito por um santo ela não podia, porque onde se viu uma simples negra velha recusar um convite feito por um ente da corte celeste? E Tia Nastácia gaguejou na resposta.

Vendo aquela atrapalhação, Narizinho respondeu em seu nome.

— Tia Nastácia fica, São Jorge — mas só por uns tempos. Nosso plano não é passear apenas na Lua. A viagem vai ser também pelas outras terras do céu. Queremos conhecer alguns planetas, como Marte, Vênus, Netuno, Saturno, Júpiter, e também dar um pulo à Via-láctea. Em vista disso, acho que podemos fazer uma combinação. Tia Nastácia fica cozinhando para o senhor enquanto durar a nossa viagem. Quando tivermos de voltar para a Terra, portaremos de novo aqui e a levaremos. Não fica bem assim?

— Ótimo! — exclamou o santo. — Está tudo assentado. Durante o passeio que vocês pretendem fazer, Tia Nastácia ficará sob minha guarda, cozinhando para mim. Quanto ao dragão, ela que descanse. O meu dragão está muito velho e inofensivo. Lá na Terra comia até filhas de reis — mas aqui vive só de brisas. Não haverá perigo de nada.

Depois de tudo bem assentado, São Jorge foi mostrar à pobre preta onde era a cozinha, deixando-a lá com as panelas. E foi desse modo que à medrosa Tia Nastácia aconteceu a aventura mais prodigiosa do mundo: ficar como cozinheira dum grande santo, lá no fundo duma cratera da Lua...
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Continua … X – Mais Vistas da Terra
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Fonte:
LOBATO, Monteiro. Viagem ao Céu & O Saci. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. II. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

terça-feira, 12 de julho de 2011

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 271)


Uma Trova Nacional

Enquanto o teu ventre sofre,
menino de muitas fomes,
teu patrão guarda no cofre
o lucro do que não comes.
–THALMA TAVARES/SP–

Uma Trova Potiguar


Todo homem que anda “perdendo”,
e mulher que “acha” demais,
é moral se corrompendo,
é honra que se desfaz.
–JOSÉ AMARAL/RN–

Uma Trova Premiada


2004 - Nova Friburgo/RJ
Tema: REFÚGIO - M/E


Se este mundo tão bisonho
te nega paz e guarida,
usa o refúgio do sonho,
onde o amor sustenta a vida!
–JOSÉ LUCAS DE BARROS/RN–

Uma Trova de Ademar


Tem homens aqui na terra
com um “ser” tão negativo...
Por nada, promovem guerra
sem razões e sem motivo!
–ADEMAR MACEDO/RN–

...E Suas Trovas Ficaram


Diz ser amarga a fatia
do pão que come, e nem vê
que do seu pão, cada dia,
quem faz a massa é você.
–ALICE ALVES NUNES/DF–

Simplesmente Poesia

–AYDA BOCHI BRUM/RS–
Glosando Ademar Macedo.


MOTE:
Ao me tornar Trovador
eu pus dentro do meu ser,
lenitivos para a dor
e mais razões pra viver!

GLOSA:
Ao me tornar Trovador
encontrei a minha essência:
a alegria extingue a dor
num gesto de complacência.

Eu pus dentro de meu ser,
Um fim pra toda amargura.
Doce luz no anoitecer
e amor, pra minha candura.

Lenitivo para a dor,
encontrei fazendo trovas
e um amor abrasador,
prenúncio de boas novas.

E mais razões pra viver,
encontrei na trova, assim,
entre o trovar e o querer
tenho paz dentro de mim.

Estrofe do Dia

Nos lindos carnaubais,
nas manhãzinhas brumosas,
no desabrochar das rosas,
nos bonitos parreirais,
nas frondes dos coqueirais
que tremulam noite e dia,
por dentro da serrania,
por toda gruta e recanto;
se vê o suave encanto
das telas da poesia.
–ZÉ DE CAZUZA/PB–

Soneto do Dia


–AMILTON MACIEL MONTEIRO/SP–

Mistério

A nossa vida em si já é um bom mistério...
Mas até onde meu juízo alcança,
Eu vejo que o sofrer, se é muito sério,
Aumenta sempre em nós a esperança!

Foi Deus que quis assim; não sem critério,
Mas só visando a nossa segurança...
Porque o Criador, mais que cautério,
Aspira a nossa bem-aventurança!

A dor tem sempre a sua utilidade,
Quer para alertar de um mal maior,
Ou tendo em vista a nossa santidade.

Por certo o sofrimento foi criado
Só pra que a gente possa ser melhor
E chegue, assim, ao céu, tão almejado!

Fontes:
Textos enviados pelo autor
Oficina do Gif

Afonso Félix de Sousa (Abecê dos Boiadeiros)


Acolhe a serra entre os lábios
o que o céu colore e abrasa.
Um tropel rola dos longes,
aproxima-se da casa,
e o chão despede em poeira
muitas ânsias de ter asa.

Berrante – quanta amargura!
(Que perdeu? O que reclama?)
Como a chorar já sem lágrimas
nas quebradas se derrama ...
A serra engole, de um trago,
natas de cinzas e flamas.

Chega a noite. Os brejos cantam.
O escuro faz tudo em nada.
Os golpes de mil galopes
cessam – e gritam da estrada:
- Ô de casa! abra a porteira,
que já ê-vem a boiada.

Disparar de bois que avançam
contra o curral já aberto,
na fúria das trovoadas
que pisam o céu deserto.
Mas logo calam-se os cascos.
Tudo é silêncio por perto.

Eis o fogo ... eis que a fogueira
acende o escuro e a quietude.
Em volta seis sombras falam.
Choram seis mágoas no açude.
E eis que crepitam lembranças
e sobem na fala rude.

- Foi minha culpa, foi culpa
de ter deixado o meu povo.
Já me cansava da vida
em casa, e um dia resolvo
bater pernas, correr mundo,
atrás do que fosse novo.

Gastando tudo o que tinha
dois anos vivi à-toa,
sem pensar em coisa alguma
que não fosse coisa boa ...
Mas, não sei como, uma noite
no escuro um grito ressoa.

Hora amarga! Nem sei como
à casa fui tão ligeiro.
Toda ao chão ... Meus pais e irmãos
enterrei-os no terreiro.
Sem ninguém, sem ter mais nada,
me ajustei de boiadeiro.

- Inda agora me alembrava
de quando era um rapagote
Instrução nunca me deram.
De amores eu tinha um lote.
Mais que de tudo gostava
de lidar com um bom garrote.

Já nem sei se me arrependo,
se me dá tristeza e dor
lembrar o dia em que disse
a meu patrão: - meu senhor,
quando for tirar boiada
quero ser seu laçador.

Levar a vida que levo.
Nunca ter onde parar.
Sempre a ir, uma só mágoa
me espera em cada lugar:
daí eu vou pra adiante,
daí não posso voltar.

- Me alembro: as terras lá longe ...
lá perto de Mato Grosso.
Era o bamba nos pagodes.
Montado, eu era um colosso.
Me alembro: as moças gostavam.
Ah, meu tempo de mais moço!

Não fosse bolir, não fosse,
com uma dona até que feia.
Por cismar com seus galeios,
minha vida – esperdicei-a.
Sangrei o cujo, mas outro
era eu depois da cadeia.

- O meu caso? De tão triste,
eu nem não vou contar não
Ah! talvez se alguém me ouvisse
menor seria a aflição.
Mas quem não ri quando escuta
histórias de ingratidão?

Parece até que é pecado
gostar de quem não nos queira.
Seria ela ou a fazenda?
Ao fim de muita canseira
da fazenda eu fiz um brinco
... e me quis a fazendeira?

- Quando fico a cismar coisas
é porque não tem mais jeito.
Também cresci feito os moços
que têm o mundo no peito.
Agora a vida lembrada
lembra um mel que não foi feito.

Razão forçosa, isso tenho
de clamar por todo canto.
Onde vou, está a moça
que, vai ver, botou quebranto
em mim, me deixando mole
como casca de pau-santo.

Sei lá porque fui deixá-la,
se era dela que eu gostava?
Voltei ... Voltando meu peito
ia que nem vaca brava.
Mas no mesmo dia a moça
com um pau-rodado casava.

- Também se penso na vida
logo me sinto logrado.
Não tinha nem vinte anos,
fui no exército alistado.
Por dois anos roí osso.
Dura sorte, a do soldado.

Um dia volto homem feito.
Já não encontro meus pais.
Sem eles, sem uma ajuda,
eu vim por esses gerais.
Agora toco boiada.
Já nem sei se volto mais.

Vai-se fazendo a fogueira
em cinzas e despedidas.
De um aboio sobe aos ventos
a mágoa de seis feridas,
até que o sono despeje
o esquecimento em seis vidas.

Xô-xô galinhas! o milho ...
Vacas põem mudos os galos.
Mais alta, a voz do berrante
do sono vai arrancá-los,
aos boiadeiros, que mudos
arreiam os seus cavalos.

Zona tão triste, a que a serra
empresta o sono de idades ...
A boiada come aos poucos
longes de azul e alvaiade.
Sobe poeira e o berrante
sopra ao ar mais seis saudades.

Fontes:
SOUSA, Afonso Felix de. Chamados e escolhidos. RJ: Record, 2001
Imagem - http://boiadeirorei.wordpress.com

Cantando ao Som das Setilhas (Debate pela Internet) Parte 4


43 – ZÉ LUCAS
Quem mata um pezinho de erva
que prometia uma flor,
suja o rio ou cala a voz
de um canário cantador,
pratica um ato covarde
e algum dia, cedo ou tarde,
paga, seja como for!

44 – GISLAINE CANALES
Com muito amor, muito amor,
devemos tudo cuidar:
árvores, rios e matas,
e com paixão escutar
a música que inebria
e que encanta o nosso dia
com cascatas a cantar!

45 – PROF. GARCIA
Quem nunca ouviu o trinar
de uma orquestra matutina,
de manhã cedo, bem, cedo,
ao raiar da luz divina;
nunca estudou serenata,
nem os arpejos da mata
enfeitiçando a campina!

46 – DELCY CANALLES
Esta orquestração divina,
que ouvimos na madrugada,
quando acordamos cedinho
pra contemplar a alvorada,
mostra a sensibilidade,
que explode em qualquer idade
na pessoa enamorada!

47 – A. A. DE ASSIS
Por obra de Deus, moçada,
a natureza é teimosa:
vem trazendo a primavera
novamente e esplendorosa.
Com gripe ou seja o que for,
no fim vencerá o amor
e o trono será da rosa.

48 – ARLINDO TADEU HAGEN
Estação maravilhosa
que a gente espera, contente,
Primavera vem chegando.
Mas, de fato, realmente,
o que importa, mais que a esperança
é sentir a Primavera
dentro do peito da gente!

49 – THALMA TAVARES
Feliz é o poeta que sente
as forças da Natureza,
que tira do peito os versos
para cantar a grandeza
do amor que nela se encerra,
que vem do ventre da Terra;
fonte de vida e beleza.

50 – ZÉ LUCAS
Existe uma estrela acesa,
sempre linda e radiante,
inspirando nossos versos
que descem do céu distante,
para que o mundo tristonho,
órfão de poesia e sonho,
um dia se alegre e cante.

51 – GISLAINE CANALES
Escrever é apaixonante,
vibra em nós grande emoção,
sentimos bater mais forte
este nosso coração,
que em cada nova viagem
aumenta a sua bagagem
cumprindo a sua missão!

52 – PROF. GARCIA
Hoje eu tive a sensação,
que tem um grande adivinho:
que a musa dormiu distante
e eu dormi triste e sozinho;
mas ao despertar tristonho
fiz o verso do meu sonho
na solidão do meu ninho!

53 – DELCY CANALLES
Eu sou um ente sozinho,
que, num grande apartamento,
passa as noites, passa os dias,
com este entretenimento:
a TV que jamais cala;
ela, às vezes, me ouve e fala
e entende o meu sentimento!

54 - A. A. DE ASSIS
Celebrei, por um momento,
a volta do arzinho quente;
porém, sem nem mais nem menos,
vira o tempo de repente,
e eis que outra onda de frio
vem tal qual um desafio
retrancar em casa a gente.

55 - ARLINDO TADEU HAGEN
Um programa diferente
porém de sabor profundo
é ficar quietinho em casa:
no meu quarto, lá no fundo,
no jardim ou no quintal.
Casa da gente, afinal,
é o melhor lugar do mundo!

56 - THALMA TAVARES
Quando o frio ataca fundo,
penetrando a alma da gente,
a melhor coisa na hora
é um vinho competente,
juntinho à cara-metade,
tomado em meio à saudade
do nosso Nordeste quente.
------------
continua…
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Fonte:
José Lucas e parceiros. Cantando ao som das setilhas. Natal/RN: 2011.

Bruno Camargo Manenti (Resenha do livro de Miguel Sanches Neto, “Então Você Quer Ser Escritor?”)


Miguel Sanches Neto é considerado um dos autores nacionais de maior destaque dos últimos anos, com a publicação de mais de dez livros, dois deles traduzidos para o espanhol. Em "Então você quer ser escritor?", (Record, 2011, 222 páginas), o novo livro de Sanches Neto, é possível entender o porquê . São 16 contos, alguns inéditos, outros já publicados com títulos diferentes em coletâneas, revistas ou jornais.

As histórias são, de um modo geral, uma busca por algo que falta ou que se perdeu: um amor, um mentor, uma inocência. O filho que perde o pai e tenta entender por que ele não voltará; a esposa que procura um motivo para continuar cozinhando lasanha de frango no almoço como sempre fez durante anos de casamento; o pretenso escritor que quer conhecer seu ídolo; o professor que busca nos alunos o nascimento de um grande autor, sem sucesso.

Grande parte das narrativas do livro se passa em cidades interioranas ou tem uma passagem em local parecido, com acontecimentos que serão marcantes para o que acontece na cidade grande. A representação do interior do estado, do interior de cada um, que espera encontrar na capital um motivo a mais para viver, sem perceber que é no interior que moram todos os motivos.

"Então você quer ser escritor?" traz personagens belamente criados para serem fracos, sentirem ao longo da narrativa a necessidade de mudança e buscarem seus ápices (durante o texto ou ainda que continuem a jornada depois do ponto final). Lembram de tempos melhores ou de acontecimentos que foram marcantes e decisivos, com reflexos em suas vidas até o momento presente da narrativa.

As falas não são indicadas em nenhum momento com travessões ou aspas, deixando no ar um suspense: será que o personagem disse isso realmente? Ou é apenas fluxo de pensamento extravasado? São as atitudes que demonstram quão reais são os diálogos, alguns que talvez devessem se manter em silêncio, caso do professor do conto que dá nome ao livro. Fala sozinho em uma livraria, citando Ernest Hemingway: "A maioria dos escritores vivos não existe", fazendo uma jovem ao seu lado rir com desprezo. A riqueza dos personagens pouco reconhecida pelos seus companheiros é destacada por Sanches Neto, para o prazer do leitor.

Pequenos detalhes fazem a diferença nas histórias. Às vezes, um conto começa por um fato e termina com outro bem diferente, não-linear como de costume. O que importa aqui são as miudezas, um olhar, um sapato, um pé de manga. Em "Vestindo meu avô", por exemplo, há uma frase que se repete, e ela é o elo de todo o texto e peça-chave para o entendimento da narrativa, o que a deixa muito emocionante, bela.

A forma de narrar de Miguel Sanches Neto é bem particular, mostrando os detalhes mais importantes logo no início do texto, muitas vezes, mas de forma tão sutil que só percebemos a sua importância quando chegamos ao fim. Embarcamos na busca de um conhecimento que sempre tivemos, mas precisávamos da busca para compreender a totalidade de cada elo dos contos. O caminho dos personagens através de suas histórias se confunde com o do leitor pelas palavras. Um toque leve e preciso que Sanches Neto desenvolve com maestria.

Fonte:
Croni-Médias, de Isabel Furini.