sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Nilto Maciel (Carmélia Aragão e a Transparência dos Seres)


(Pedro Salgueiro, Carmélia, Nilto Maciel,
Aíla Sampaio e Raymundo Netto,
numa festa literária, em Fortaleza)


Achava-me numa praia, sentado na areia. Ninguém à vista, nenhum banhista, nenhum pescador. À esquerda, centenas de pequeninas tartarugas corriam para as águas. Como se aquilo eu visse todo dia, voltava a olhar para o mar. Que fossem cumprir seu destino. Pássaros sobrevoavam as ondas. Aqui e ali, salpicavam luzes na crista agitada do monstro. Ondinas em constante saltitar. Uma delas, porém, me pareceu mais nítida, insistente, como se viva estivesse. E crescia aos meus olhos ou de mim se aproximava. Que seria? Como me fazia falta um binóculo! Não, não precisava disso. O corpo, cada vez mais próximo de onde eu me encontrava, lembrou-me uma sereia. Primeiro vi os cabelos molhados, longos, escuros. Rosto de mulher. Mostraram-se o pescoço, o colo, a veste branca. Não nadava, flutuava. Assustei-me, cocei a cabeça, esfreguei os olhos. Meu Deus, vinha ao meu encontro aquela mulher saída do mar! A sorrir, faceira, pernas à mostra.

Assim se deu minha única aproximação irreal com Carmélia Aragão. Na verdade, nunca a vi em sonho. Conheci-a não sei quando nem onde. Talvez numa livraria, num bar, em minha casa, numa plateia. No bar do Assis, estive com ela uma ou duas vezes. Sempre cercada de escritores jovens. Pedro Salgueiro a dizer-lhe gracinhas, Raymundo Netto a paparicá-la, o Poeta de Meia-Tigela a rir (dela?). Ofereciam-lhe cerveja, petiscos, mimos. Ela arregalava os olhos (vivia de olhos arregalados, como se assustada com tudo e com todos), sorria (parecia sempre feliz), recusava isto e aquilo, alegava pressa em sair dali. Talvez não se sentisse à vontade num boteco daqueles, repleto de homens fedorentos, tagarelas, piadistas, excessivamente obscenos.

Certa noite, no Dragão do Mar, assistimos a um filme ou a uma palestra ou participamos de um debate. À saída, anunciei fome e vontade de beber. Eu a convido para a ceia do senhor. Ela sorriu, cochichou com duas amigas e aceitou o convite. Sentamo-nos ao redor da mesa, ao ar livre. A gente só quer beber uma coca-cola. Por que não bebemos cerveja? Ela me parecia assustada, com medo de se aproximar de mim. Teria me imaginado um velho assanhado, desses que parecem galinhos fogosos quando veem franguinhas? Pouco falamos, por mais que eu tivesse insistido. A gente precisa ir. Amanhã deverei acordar cedo. E eu fiquei a ver saias de longe, cara enfiada no copo amargo de minha solidão.

Carmélia mandava-me contos, de vez em quando, por e-mail. Queria minha leitura e minha opinião. As narradoras me pareciam ser ela. E eu a imaginava solitária, morando numa quitinete pobre, a olhar para as vizinhas, os gatos das vizinhas, o chão dos corredores, a sonhar com narrativas extraídas daquela vidinha de moça que passava o dia a ler, estudava na faculdade, cuidava da moradia, lavava as próprias roupinhas e sonhava com a glória literária.

Visitou-me uma vez, quando eu morava na Parquelândia. Visita anunciada por Pedro, que me fez contratar uma jovem cortesã. Diga que é sua amante. Obedeci. No dia certo, Carmélia chegou com um magote de rapazes e moças, todos bons leitores e escritores em formação. Mandei a dama servir cerveja e refrigerantes. Os homens se entusiasmaram. Quiseram dançar com ela. Carmélia ria, bebia e mal conseguia deixar o sofá. Netto a arrastou para o centro da sala. Vamos dançar forró. E dançaram mesmo. Pedro se interessava por Priscila, franzina e risonha, e lhe passava a mão nas ancas, a rir, safadamente. Ela se mostrava incomodada: Deixa disso, Pedro. Eu molhava o bigode, enciumado. Urik Paiva só faltava morrer de rir. Tércia Montenegro gargalhava dos requebros de Netto e Carmélia.

O primeiro livro de minha pupila, Eu Vou Esquecer Você em Paris, saiu em 2006. Parece ter sido ontem. Como o tempo passa muito lentamente para mim. Rabisquei umas notas, em março do ano seguinte: “Carmélia Aragão: Literatura como paixão”. Não sei se delas gostou. Talvez não tenha gostado, pois nunca mais apareceu em minha casa. Estou brincando: gostou, sim. Pois, se não tivesse gostado, não teria escrito “Nilto Maciel: Próximo da carne”, belíssimo estudo de meu romance Carnavalha.

Depois eu soube de sua transferência para a antiga capital da República, onde iria se doutorar em Letras. E não a vejo desde então. Em razão destas ausências, em meu espírito se veio formando uma imagem fugidia dela, perdida no entrechoque das ondas, neste meu mar sempre revolto, quase tempestuoso.

Fecho os olhos para relembrar o sonho. A imagem da moça de branco se aproximava de mim e eu via que era Carmélia, vinda do mar, saída das ondas. Caminhava pela areia, avizinhava-se de mim, a sorrir. Eu me alegrava, punha-me de pé, pronto a recebê-la. Porém, meus amigos, ela passava por mim como quem se perde na multidão das ruas. Como se eu, sim, fosse transparente, invisível, diáfano. E sumia atrás de mim, no rumo do interior, do sertão, do continente. E eu me ficava líquido, liquidado, pó, poeira, areia, sujeito ao vento, à ventania que tudo carrega, destroça, dilui, dissolve. Castelo de areia.

Fortaleza, 4 de maio de 2011

Fonte:
Literatura Sem Fronteiras

Isabel Sprenger Ribas (Teia de Poesias)


Dedos, Inverno, Outono, Primavera,Verão e Vida!...

Faz o frio mais barulho em mim
do que faria o vento
nas copas das velhas árvores frondosas...

É o Inverno...

Debandam folhas,
deixando nus troncos assexuados e encabulados.
Emigra a beleza. Tomba no chão.
Transformada, é tapete gratuito,
Macio, amarelado,
por poucos, os sensíveis, notado.

É o Outono...

Meus dedos... São eles velhos dedos sem medos!
Mas suas juntas nodosas,
não suportam os invernos.
E nem os outonos, na ausência dos vales e campos floridos...

Meus dedos e minha alma,
clamam por ipês amarelados,
por ondas de mar,
montanhas rochosas,
vagalhões nas pedras, espatifados...
Meus dedos enrijecidos
querem tocar margaridas, colibris,
alguma flor colorida, muito colorida.

Meus dedos desejam com urgência,
de novo, tocar a Primavera, o Verão e a Vida,.

02/11/07. Curitiba

Urbanas Cerejeiras

Ao fundo um som de gente.
E nos olhos uma visão
que domina a alma .

Baila em mim,
saltimbanco e acrobático, um sorriso.
Com calma,
mas cheia de magia, gingado e extraordinária estripulia
nos meus olhos,
uma dança ocorre.

Em algum canto, no cérebro, se agita um guizo...

Sem senões nem agonias,
baila meu coração
nesta dança de euforia.

Unânimes, em ciranda, entrelaçadas,
a alegria
e, do meu viver,
esta momentânea magia olham.

Tanta beleza...

Dizem: Deus, só Ele! Só.
Terá criado tais flores, as da cerejeira,

obra prima eterna da natureza!

Criatividade do Recriar.

Criar...Verbo digno de imitação.

Quase semelhante a editar...
Trás ao Homem a lembrança,
sublime e absoluta, da divina criação.
Certa forma de legado. Uma herança...
Seis dias de labor, um de descanso e oração.
E nestes sete, em exercício permanente,
a todo instante, subjetiva mas premente,
no ser humano,
a necessidade de recriar.

O que Deus, com sua majestosa obra
já nos legou como lição!

Fonte:
Textos enviados pela autora

Isabel Sprenger Ribas


Natural de Paranaguá atualmente reside em Curitiba - PR.

Casada. Três filhos, duas noras, quatro netos.

É Professora, atuou no MEC e é Técnica em Planejamento e Pesquisa do IPEA /Ministério do Planejamento/ Brasília, concursada e aposentada.

Possui diversas publicações, entre as quais: Um Livro, seis idades, três mãos; Quase entre Aspas, Cheio de Reticências; Mulheres de Coragem. Efervescência em Ebulição, O Homem que Ensinou a Amar, dois últimos em fase de revisão.

Durante sua trajetória literária recebeu diversas premiações e homenagens destacam-se entre estes, em 2008 o Troféu Escalada Feminina, oferecido pela Prefeitura Municipal de Curitiba, Conselho Municipal da Condição Feminina e Fundação de Ação Social e em 2010 o Troféu Reconhecimento ao Comprometimento com a Divulgação Soroptimista Internacional.

Pertence a diversas entidades culturais tais como Academia Paranaense Feminina do Paraná; Academia de Cultura de Curitiba; Centro Paranaense Feminino de Cultura e Centro de Letras do Paraná, além de desenvolver atividade como voluntária Soroptimista Internacional como Secretária da Região Brasil, Biênio 2010/2012.

Fonte:
Simultaneidades

Marcelo Spalding (O Gato diz Adeus)


O romance contemporâneo, a grosso modo, tem duas vertentes fundamentais: a conteudista e a formalista. À primeira pertencem aqueles romances nos quais a história contada é o mais importante, com enredos claros e bem elaborados, enquanto que, na segunda, o mais importante é a forma com que se conta, não havendo necessariamente um enredo ou uma "historinha" que leve o leitor adiante. Os grandes romances, porém, são aqueles que encontram um ponto de equilíbrio entre forma e conteúdo, como Dois Irmãos, de Milton Hatoum. Porque, quando a balança pende demais para um lado ou outro, temos o risco de um romance despretensioso, em que a história carrega um texto fraco, ou de um romance estéril, feito para um restrito público de intelectuais preocupados estritamente com as questões técnicas.

Leite derramado, mais recente romance de Chico Buarque, é um bom exemplo de um tipo de literatura que beira o experimentalismo, construindo o romance não em formato linear, mas como uma teia em que os fatos aos poucos vão se ligando e formando o enredo por trás do narrado, sem cair na esterilidade do puramente estético. Há, ali, conflitos e personagens que aos poucos vão surgindo e revelam ao leitor mais atento questões sociais muito além dos problemas particulares do protagonista. Mas não tente resumir a história do romance ou explicar sua temática de forma apressada, pois cada capítulo, cada frase e cada palavra foram construídos dentro de uma lógica maior, cerebral, formal.

Também é assim o quarto livro de Michel Laub, O gato diz adeus (Companhia das Letras, 2009, 80 págs.). Romance conciso, "recupera, com um tom que varia entre a frieza, a ironia e o ódio, a trajetória de dois casamentos ― um que termina, outro que tenta começar ― e suas consequências ― a paternidade, o abandono, os sentimentos de perda e culpa", segundo definição da orelha do próprio livro. Mas não espere encontrar este enredo de forma simples, clara e sequencial no livro, pois a narrativa alterna a voz de quatro personagens: Sérgio, um voyeur, escritor e professor universitário; Márcia, uma atriz casada com Sérgio que depois o deixará para ficar com Roberto; o próprio Roberto, também professor universitário que se verá envolvido na trama de Sérgio; e Andreia, apresentada inicialmente como leitora do livro, estudante de Letras e aluna de Sérgio, mas que se revelerá uma personagem fundamental para o romance.

Como temos quatro narradores distintos, em O gato diz adeus não há um enredo definitivo, uma história com claro começo, meio e fim, ainda que dispersos na forma de teia, como em Leite derramado. Temos, isso sim, quatro versões de uma história, quatro pontos de vista por vezes contraditórios e sempre incompletos. O risco, como bem aponta resenha de Daniel Benevides publicada na Bravo!, é que O gato diz adeus sofra do "mal de Montano, aquela 'doença' diagnosticada pelo espanhol Vila-Matas, cujo sintoma é certa palidez das emoções e a insistente rendição ao exercício estritamente literário".

Para começar, as personagens da própria narrativa são escritores, professores universitários, estudantes, o tipo de leitor a que se destina um romance experimental como o de Laub. Nesse sentido, logo o romance se revela também metalinguístico, pois ficamos sabendo que Sérgio, após seu livro de estreia ― "que teve meia dúzia de resenhas, e foi traduzido para meia dúzia de países, e esgotou a primeira edição em meia dúzia de anos" ―, publicou um romance contando sua história chamado, adivinhe, "O gato diz adeus".

O livro que lemos, então, torna-se personagem da própria história, mas ao livro supostamente escrito por Sérgio, composto pelas partes narradas por ele, soma-se também as intervenções de Roberto, de Márcia e de Andreia, intervenções essas que depois saberemos serem de tempos completamente distintos, numa clara opção pela técnica polifônica em detrimento da verossimilhança dos fatos. Como podemos estar lendo as intervenções de Márcia e Andreia ao mesmo tempo, como se tivessem sido escritas no mesmo momento?, se pergunta o leitor ao final do romance.

Não será essa, é claro, a única pergunta que o leitor irá fazer ao final do livro. Ocorre que o conflito principal, relacionado à paternidade da filha de Márcia, não receberá um desfecho, permanecendo em suspenso e emaranhado nas muitas versões que temos (diferentemente de Dois Irmãos, que narra a tentativa de Nael descobrir seu pai até o momento em que ele desiste da busca, terminando aí o romance, em O gato diz adeus a interrupção é da obra, não da personagem). Dessa forma, sequer a tragédia anunciada nos primeiros capítulos se concretiza para o leitor, à medida que os acontecimentos trágicos estão num tempo fora da história e seus efeitos já parecem sacramentados e, até, perdoados pela única que poderia perdoá-los.

Mas não parece que Michel Laub esteja mesmo preocupado em responder esse tipo de questão tão banal aos leitores. Enredar, surpreender, sugerir, jogar com o leitor parecem preocupações mais condizentes a um escritor que usa como protagonista outro escritor, a um livro que é também parte do próprio livro, a um romance que no final revela obras que o influenciaram.

Ao fim e ao cabo, o que fica do livro são belas imagens e algumas belas passagens que revelam a qualidade do autor por trás do jogo formal, como esta em que uma das narradoras, Andreia, sintetiza com maestria um irônico casamento "feliz", oposto ao narrado por Sérgio e Márcia:

"Eu me pergunto o que ele deixou de fora do livro. Fico imaginando se o casamento era apenas aquelas brigas. Se em algum momento os dois não baixavam a guarda. Duvido que isso não acontecesse, que eles não fossem vez que outra ao cinema ou visitar um amigo, que não andassem de carro pela cidade comentando as vitrines das lojas e as pessoas na calçada, que também não fossem capazes de ficar em casa à noite ocupados cada um com suas coisas, ele no escritório, ela cozinhando, e quando os dois estavam bem ela vinha até ele perguntar alguma coisa sobre o tempero da comida, e depois os dois jantavam e ele dizia algo engraçado e ela contava alguma história e os dois terminavam e ouviam um pouco de música e ficavam até tarde conversando no sofá que os dois tinham escolhido e iam para a cama quando a vizinhança e a cidade inteira já estava em silêncio".

Fonte:
Digestivo Cultural

José Faria Nunes (Poesias Escolhidas)


DESAMOR

Análoga lâmina
Fina
Frio corte
Silente ação
No profundo do aço.

Navalha
Valha noite
Lâmina ferina
Felina
De sequioso corte

Sangra a alma
Corta o sono
O sonho
Assanha
A sanha de fria lápide
Em profundo talho.

Tangidos cartilagem e osso
Dilacerado universo
Entalhe
Do profundo corte.

Detalhe
Negada premissa.

O certo
Prova-se no contexto
Pretexto.
Arrimado parasito
Antítese do amor.

AUSENTE PRESENÇA

Presença ausente no universo
da saudade. Presença
etérea de alma anônima
mesmo sufocada pela multidão.
Solidão não ausência
do ponderável. É ausência
da alma gêmea.
De repente a solidão
esmaga-me na multidão
e se dilui no imponderável.
Ela esvai-se
de mim no instante
em que, mesmo só,
sacia-me o âmago
da alma na interação
de imaginada presença.
O poeta mesmo só
nunca fica á sós.
Acompanha-se-lhe
sempre a presença
do ente sonhado.
O poeta só está só
se perdido na multidão
do inimaginável.
O poeta só está só
se tiver a alma
vazia de sonhos para sonhar.

TRANSCENDÊNCIA

Qual bisturi a extrair o cisto
arranco minhas angústias
e as deposito, amorfas,
em um tubo de ensaio
como um troféu de batalha.
Agora quero rir da tristeza
e dizer que o amor pode mais
que a mágoa secular
cristalizada no peito.
A partir desta hora
a poesia transcenda os limites
da cibernética
seja esta humanitária
e se dilua etérea sobre seres mal-nascidos.
Mesmo que a vida tenha sido negada
e o futuro um sonho precocemente abortado
não maldigo o poema: com meus sentidos despertos
faço caminho no espaço
enlaço o céu num abraço
arranco os olhos do sol
e faço meu firmamento.

POESIA E LIBERDADE

A caneta do poeta
rebela-se
ante a injustiça
do poder.
E faz-se poder
na liberdade
do ato de pensar.
Quando o poder
em seu império de força
impõe-se
sobre a caneta do poeta
então este carece
de ser mais que poeta:
dele se exige
a engenharia dos deuses
na construção mágica
do amor.

Fonte:
Textos enviados pelo Autor

Rafael Castellar (E se...?)


Quando você se pergunta:

“E se o momento não for o certo, ou se as coisas correm mais que o calendário – ou o relógio?!

E se a poeira ainda não baixou, ou se as feridas ainda não fecharam, ou se palavras ainda doerem e as lembranças ainda rondarem?

E se não for a pessoa certa, ou se for o começo de mais um fim, ou se for pior dos infernos que volta a se formar?

E se as coisas saírem do controle, ou se ainda estão sob controle, ou se é loucura?

E se for a coisa certa a se fazer, ou se for tudo o que foi procurado agora batendo à porta, ou metade?

E se for um começo diferente, uma coisa diferente, estranha, ou quem sabe algo predestinado?

Mas se não for isso? E se for o que sempre foi? E se estiver errado? Está errado? Tudo?”

É quando eu lhe pergunto:

“E se o que está por vir for a pior das coisas? O pior dos fins - e não o último?

E se não houver controle? E não houver como e porque controlar?

Mas e se for o fim? O maldito fim que tanto fugiu? Que tanto foi procurado e buscado?
E se for um começo único e último?

E se for tudo o que foi negado? E se for o motivo de tantos calos?

E se amanhã os ‘eu’ não mais o serem? E se amanhã a encontrarmos esperando atrás da porta?

E se amanhã Deus se revelar um tirano sarcástico e der seu basta em uma fúria incontrolável?

E se amanhã eu não puder lhe desejar ao menos bom dia? E se estas forem as últimas palavras?

E se esse amanhã for hoje? Daqui um pouco? Agora? Nem tchau?

E se amanhã não for nada disso e isso tudo se tornar apenas um nada? Ido, passado, quem sabe lembrado ou até desejado, mas ido!

E se, seja lá o que for amanhã, se perguntar ‘e se?’ e a resposta for ‘não sei, quem sabe’?
Ninguém sabe e nem se importará, pois já foi!”

Larga suas pedras! Solta as correntes e liberta seus pensamentos, suas perguntas, suas angústias e deixa-os voar para longe e lhe trazerem sonhos para serem vividos: nesta vida ainda!

E quando assim escolher, olha em volta e me verá, pronto!

Caminhe em minha direção, faça-o a passos largos, de braços abertos, sem sentir as pernas, mas o vento em seu rosto, e sorria ao balanço único deste caminhar. Caminhe com seu todo, seu tudo!

E seus olhos brilharão aos meus, seu sorriso será gargalhada às minhas, e flutuará a mim!

E quando a mim chegar, enxugarei suas lágrimas com meu rosto, limparei seu sangue com meu corpo, fecharei suas feridas com meu toque.

Perca-se em meus braços como me perco nos seus.

E será com o meu mais verdadeiro e mal-intencionado beijo que lhe mostrarei que não estou nem atrás nem a sua frente, mas ao seu lado, sem “e se”; apenas sendo!

São Paulo, 22 de junho de 2009.

Fonte:
Texto enviado pelo autor

Antonio Ozaí da Silva (Saber Acadêmico e Analfabetismo Cultural)


Não é fácil assumir que, de fato, somos analfabetos culturais. É difícil aceitar que o conhecimento enciclopédico e os títulos acadêmicos que porventura temos não são garantia de que sejamos culturalmente alfabetizados. Sabemos ler e escrever, podemos conhecer as teorias, dominar os conceitos filosóficos, políticos, etc., mas isto, longe de nos aproximar do outro e da nossa própria humanidade, pode, paradoxalmente, ter um efeito inverso e perverso: o distanciamento do mundo real, da mísera realidade que nos cerca. Tendemos a tudo racionalizar e nada sentir. O adágio “Penso, logo existo” sugere uma questão: existir para quê? Para além do pensar, que nos dá a certeza do existir, é preciso sentir que existimos.

O especialista tende a separar a palavra do mundo, o conceito da realidade. As palavras dissociam-se da vida real, das contradições, sofrimentos e esperanças dos que vivem no mundo. Se quisermos ir além do saber livresco, do formalismo titulado, enfim, do “balé dos conceitos”[1], precisamos superar os limites da fria racionalidade e assumirmos uma postura diante do mundo.[2] É preciso sentir, indignar-se, comprometer-se. Os que dominam a palavra escrita iludem-se em equivaler conhecimento formal e alfabetização cultural. O ser humano cujas condições sócio-econômicas não lhe permitiu freqüentar os bancos universitários tem o que ensinar. Para compreender este fato singelo é mister desmistificar a noção de cultura, predominante e arraigada em nossos corações e mentes, que confunde cultura com saber acadêmico.

O saber racionalista e eurocêntrico é importante, mas também é fator de colonização das nossas mentes e herança introjetada em nosso ser. Se nos atermos a isto, nos tornamos analfabetos culturais. O resultado é a cegueira da consciência, a anulação da subjetividade e da intersubjetividade. Só superando esta cegueira é que teremos condições de estabelecer o diálogo com o outro. Portanto, o comprometimento intelectual, ou o engajamento, não nos torna necessariamente melhores nem indica que estejamos alfabetizados culturalmente.

A alfabetização cultural é parte da construção da utopia que respeita a subjetividade e estabelece o dialogo entre as diferentes manifestações étnicas, de gênero e de classe. Isto pressupõe uma concepção não elitista da cultura e uma postura pedagógica apoiada na autodeterminação. É preciso, portanto, incorporar uma nova atitude fundada na compreensão de si e no diálogo com o outro, uma atitude que persiga a coerência entre os meios e os fins, entre o discurso e a prática.

Não é fácil, pois os valores dominantes nos envolvem o tempo todo. Mesmo intelectuais críticos e militantes dos movimentos sociais, partidos etc., encontram-se impregnados pela cultura opressiva – muitos querem libertar os oprimidos, mas atuam na mesma perspectiva dos opressores. Muitas vezes, cegos em seu fanatismo, nem percebem. Os valores predominantes da competição, do vigiar e punir fundados em prêmios e castigos, são muito fortes e impõem barreiras à uma nova atitude solidária e dialógica.

A alfabetização cultural exige o reconhecimento das nossas fraquezas, do “bicho”[3] que habita em nós. Resistir é fundamental, mas também é preciso construir barricadas que sustentem a nova atitude. Os que agem como demiurgos da história, missionários da utopia, apóstolos da razão, em geral praticam o oposto. O discurso, mesmo quando crítico e pretensamente democrático, é negado pela prática autoritária. É preciso estimular a reflexão sobre as nossas incoerências e as possibilidades de ser e agir diferente. É necessário esforçar-se continuamente para conhecer-se a si mesmo!
============================
* Versão modificada e inspirada na resenha “Sobre o Analfabetismo Cultural: dialogando com Dan Baron” (BARON, Dan. Alfabetização Cultural: a luta íntima por uma nova humanidade. São Paulo: Alfarrabio Editora, 2004), publicada na REA nº. 37, junho de 2004, disponível em http://www.espacoacademico.com.br/037/37res_baron.htm

[1] Como assinalou Paulo FREIRE: “Em última análise, tornamo-nos excelentes especialistas, num jogo intelectual muito interessante – o jogo dos conceitos! É um “balé de conceitos”. (FREIRE, P e SCHOR, I. Medo e ousadia – O cotidiano do professor. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986, p.131).

[2] Ver “Os intelectuais diante do mundo: engajamento e responsabilidade”, publicado na REA, nº. 29, outubro de 2003, disponível em http://www.espacoacademico.com.br/029/29pol.htm

[3] O mal habita em nós, como o bem. A natureza humana é boa e má, e deve ser analisada em relação com os contextos sociais específicos – os quais modificam inclusive a moral. Maquiavel, Thomas Hobbes, Rousseau e outros se debruçaram sobre este tema. Mas também na literatura encontramos obras que nos ajudam a refletir sobre a natureza humana e a vida em sociedade. É o caso, por exemplo, de O Senhor das Moscas”, escrito por William Golding (São Paulo: Folha, 2003). É inspirado nesta obra que utilizo o termo “bicho”.

Fonte:
Blog do Ozaí

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 315)


Uma Trova Nacional

Uma Trova Potiguar


Eu vejo ó linda criança,
neste teu sorriso lindo,
a mais feliz esperança
das esperanças dormindo!!!
–PROF. GARCIA/RN–

Uma Trova Premiada


2000 - Niterói/RJ
Tema: DELÍRIO - M/E.

Finda a magia da estréia
e o delírio do apogeu,
não sei se o mundo é platéia
ou se a platéia sou eu!
–PEDRO ORNELLAS/SP–

Uma Trova de Ademar

Morre um homem e o seu cão,
amigo por natureza...
entrega-se a solidão,
e morre, em fim... de tristeza!
–ADEMAR MACEDO/RN–

...E Suas Trovas Ficaram

Vivo tanto a tua vida,
na vida do sonho meu,
que até me sinto esquecida
da vida que Deus me deu.
–LILINHA FERNANDES/RJ–

Simplesmente Poesia

Sino da Minha Sina.
–ANTONIO M. A. SARDENBERG/RJ–

Badala o sino sonoro
Tocando no vilarejo.
Em minha prece eu imploro
E rogo num só lampejo
Que a vida traga de volta
O amor que tanto desejo.

Pulsa, sino, em minha sina,
Ensina-me a entender
Por que a saudade bate
Fazendo a gente sofrer.

Sina, sino, sentimento,
Sonoro som a tanger,
Tristeza, dor e lamento...
No meu peito o sino bate
Louquinho por te querer!

Estrofe do Dia

Foge à falta de pão, busca socorro
porque vive sem ter dignidade,
quando troca o sertão pela cidade
é o jeito vender porco e cachorro,
quando chega na rua vai pro morro
com a cara de fome e magricela,
num barraco sem porta e sem janela
sem telha, sem muro e sem portão,
quem escapa da seca do sertão
morre embaixo dos morros da favela.
–EDMILSON FERREIRA/PI–

Soneto do Dia

Seca...
–CAROLINA RAMOS/SP–

O sol delira! Abrasa! A terra, exangue,
abre os lábios sedentos! Sem valia,
os rios secam, veios nus, sem sangue,
sugados pelo solo em agonia!

Pele crestada, passo frouxo e langue,
o retirante segue...tem, por guia,
uma esperança de que o céu se zangue,
lançando sobre a terra a chuva fria!

Chovesse, voltaria ao mesmo beco,
que enfrentar a caatinga é seu destino!
Mas, a chuva não vem... O pranto é seco!

Reza!... O sol, em delírio, mais abrasa!
O céu rubro gargalha! E o nordestino
Parte... deixando a própria alma em casa!

Fonte:
Textos e imagem enviados pelo autor

Maria Nascimento Santos Carvalho (Discurso no Concurso Anual da UBT – Seção São Paulo – 2010)


São Paulo 18, de julho de 2010.

Srs. Membros da Mesa, Autoridades presentes, queridos Irmãos Trovadores, Amigos da Trova, minhas senhoras, meus senhores.

Hoje, é um dia muito especial em minha vida, como tantos outros, que ainda recordo com saudade, guardando no coração o agradecimento que, muitas vezes, as palavras morrem presas na garganta, ou se ditas, não conseguem expressar o nosso sentimento, a nossa emoção.

A UBT e várias outras entidades literárias já me prestaram significativas homenagens, inclusive a UBT São Paulo, quanto foram realizadas duas palestras focalizando o meu modesto trabalho poético, pelas quais renovo os meus agradecimentos aos queridos irmãos Trovadores Maria Bruna e Jayme Silveira da Pina.

Mas, como me reporto em meu novo livro, ainda no prelo, “Alem do Infinito”,

Ontem foi passado... passou... Hoje, é ao mesmo tempo, passado, presente e futuro... Amanhã, é um advérbio de tempo e apenas um expectativa de vida.

Por isso mesmo, tenho muito a agradecer pelos acontecimentos passados e viver intensamente este momento mágico que estou vivenciando, graças à generosidade dos irmãos Trovadores da UBT – São Paulo, lamento profundamente a ausência do querido irmão Trovador Izo Goldeman, almejando o seu feliz retorno ao nosso meio, com bastante saúde, salientando a falta que nos faz a sua presença amiga.

Desde criança, inventei que sabia fazer poesias e numa véspera de São João, com 9 anos, declamei o meu primeiro trabalho que recebeu muitas gargalhadas de deboche e repreensão. – Eu dizia:

Me lembro que certa feita
pertinho de uma fogueira,
desejei uma caneta
só para escrever besteira...

E eu sabia lá o que era certa feita?

No momento das risadas, pensei que havia falado um bruto palavrão, mas não desanimei e continuei produzindo, a meu modo, poesias que só a minha imaginação acreditava que era poesias.

Iniciei no movimento trovadoresco em janeiro de 1963, quando passei a frequentar o Grêmio Brasileiro de Trovadores, dirigido pelo saudoso Trovador Luiz Otávio, de quem recebi o maior incentivo.

Confesso que, apesar de passados quarenta e sete anos, ainda mantenho o mesmo entusiasmo, a mesma vontade de colaborar com a União Brasileira de Trovadores, uma das grandes razões da minha vida, pelos laços de fraternidade que me unem aos Trovadores e à UBT, desde o dia 21 de agosto de 1966, quando foi fundada, vitoriosamente.

Mesmo ficando até 1968 sem ganhar nem uma medalhinha como prêmio de consolação, para me alegrar, continuei concorrendo nos Concursos de Trovas e Jogos Florais.

Parece que eu estava seguindo o exemplo da Trova do saudoso Trovador Élton Carvalho, que diz:

Trovador “cobrão” eu sou,
pois nos concursos passados
reparem que sempre estou
entre os “des... classificados...”

Em 1969 descobri “o caminho das pedras” e felizmente, nunca mais o esqueci, nem por ele fui esquecida.

Por todos esses motivos, ilustre Presidenta Selma Patti Spinelli, esta homenagem é, sem dúvida, o maior prêmio que já recebi em minha vida, não só pelo seu valor, em si, mas pelo amor que devoto a UBT São Paulo, Seção em que fui tantas vezes premiada, pela gratidão inconteste por seus gestos de amizade e pelo respeito com que sempre me distinguiu, razão do meu eterno reconhecimento, bem como pelos seu profículo trabalho em prol da União Brasileira de Trovadores, que tanto amamos.

E eu fui falando... falando,
quase esquecendo o presente...
Mas volto lhes confessando
Tudo que a minha alma sente...

Permitam-me lhes dizer
com infinita humildade
que nem sei como conter
meu grau de felicidade...

Estou realmente encantada
por tudo que me fizerem
e levo na alma guardada
toda a atenção que me deram.

Em meio a tanta afeição
a minha emoção é tanta
que as frases de gratidão
morrem presas na garganta.

E abrindo o meu sentimento
lhes confesso, agradecida,
que este momento é o momento
mais feliz da minha vida.

A UBT, desejo a glória
e trajetória infinita,
para escrever sua história
da maneira mais bonita.

Que toda a Diretoria
que tem sempre ideia nova
como eterna estrela guia
guie os destinos da Trova...

Pela amizade, que fez
maravilhoso o meu dia,
eu partilho com vocês
todo esplendor deste dia.

Caros irmãos Trovadores
num preito de gratidão
lhes trouxe milhões de flores
no jardim do coração.

Findando esta cerimônia
que me deixou encantada,
eu quero ter muita insônia,
para sonhar acordada.

Agradecimento à querida Irmã Trovadora, Selma Patti Spinelli, Presidenta da UBT São Paulo, aos demais membros da Diretoria, aos Sócios, aos amigos de Trova de referida Seção, e todos os presentes que testemunharam a alegria que se reflete no meu semblante e cala em minha alma, finalizando dizendo:

Deus é tão amigo dos poetas que lhes deu inspiração para cantar, em versos, a grandiosidade da Natureza e dotou o “homem comum” de sensibilidade para entender a bendita linguagem do amor e da poesia...

Monteiro Lobato (O Saci) XIII – Novas Discussões; XIV – O Medo


XIII – Novas discussões

Tinham de esperar a meia-noite, porque só a essa hora é que os duendes da floresta saem de suas tocas. Para matar o tempo, o saci começou a explicar a Pedrinho o que era a vida na natureza.

— Você nunca poderá fazer idéia da vida encantada que temos por aqui — disse ele.

— Ora, ora! — exclamou o menino. — Não há o que os homens não saibam. Vovó tem lá uma História natural que conta tudo.

O saci riu-se e tirou uma baforada do pitinho.

— Tudo? Ah, ah, ah!... Livros como esse não contam nem isca do que é, e estão cheios de invenções ou erros. Basta dizer que para cada inseto seria preciso um livro inteiro só para contar alguma coisa da vidinha deles. E quantos insetos existem? Milhões...

— Em todo caso — volveu Pedrinho — nós, homens, pomos o que sabemos nos livros e vocês, sacis, não escrevem coisa nenhuma. Nunca houve livros entre vocês, e quem não escreve obras não pode ensinar aos filhos o que sabe.

— Não temos livros — disse o saci — porque não precisamos de livros. Nosso sistema de saber as coisas é diferente. Nós adivinhamos as coisas. Herdamos a sabedoria de nossos pais, como vocês, homens, herdam propriedades ou dinheiro. Nascer sabendo! Isso é que é o bom. Um pernilongo, por exemplo. Sabe como é a vidinha dele? Nasce na água, saído de um ovinho. Logo que sai do ovinho ainda não é pernilongo — é o que vocês chamam “larva” — uma espécie de peixinho que nada e mergulha muito bem. Um dia essa larva cria asas, pernas compridas e voa. E que faz quando voa?

— Vai cantar a música do fiun e picar as pessoas que estão dormindo em suas camas. É isso o que esses malvadinhos fazem.

— Muito bem! — tornou o saci. — E quem ensina o pernilongo a fazer isso? Os pais? Não, porque depois de soltar os ovos na água os pais dos pernilonguinhos morrem. Os livros? Não, porque eles não têm livros. Pois apesar disso sabem tudo quanto precisam saber. Sabem que no corpo das gentes há sangue, e que o sangue é o alimento deles. Sabem que as gentes moram em casas. Sabem que a melhor hora de sugar o sangue das gentes é de noite, porque estão dormindo. E sem que os pais lhes ensinem coisa nenhuma, ou que as aprendam nos livros, os pernilonguinhos logo que saem da água vão em busca de casas, entram, escondem-se nos escuros, esperam que todos durmam e sossegadamente picam as pessoas e enchem de sangue as suas barriguinhas. Depois escapam pelas janelas e voltam à mata ou outros sítios, em procura de agüinhas paradas onde porem os ovos. E assim eternamente. Sabem tudo direitinho — e ninguém os ensina. Logo, eles têm a ciência de tudo dentro de si mesmos, como vocês têm tripas e estômago e pacuera.

Pedrinho teve de concordar que era assim mesmo. O saci continuou:

— E como fazem os pernilongos, assim também fazem todas as outras vidinhas aqui da floresta. Cada qual nasce sabendo fazer o certo — e não erram. Os grilos nascem sabendo abrir buracos. Há um inseto chamado bombardeiro. Se outro maior o ataca, vira-se de costas e lança-lhe no focinho um líquido que se evapora imediatamente e tonteia o inimigo. Quando este volta a si, o bombardeiro já está longe. Quem o ensina a fazer isso? Ninguém. Nasce sabendo. Certos besouros, quando querem pôr ovos, fazem o seguinte: pegam uma pequena quantidade de estéreo e a vão rolando pelo chão com as patas de trás. Para quê? Para formar uma bola. Quando o estéreo está uma bola bem redondinha, eles a furam e botam lá dentro os ovos. Quem ensina esses besouros a fazer essas bolas tão redondinhas? Os pais? Não! Algum livro? Não! Eles nascem sabendo.

— Sim — disse Pedrinho. — Nascem sabendo e nós temos de aprender com os nossos pais ou nos livros. Isso só prova o nosso valor. Que mérito há em nascer sabendo? Nenhum. Mas há muito mérito em não saber e aprender pelo estudo.

— Perfeitamente — concordou o saci. — Não nego o mérito do esforço dos homens. O que digo é que eles são seres atrasadíssimos — tão atrasados que ainda precisam aprender por si mesmos. E nós somos seres aperfeiçoadíssimos porque já não precisamos aprender coisa nenhuma. Já nascemos sabidos. Que é que você preferia: ter nascido já com toda a ciência da vida lá dentro ou ter de ir aprendendo tudo com o maior esforço e à custa de muitos erros?

O menino foi obrigado a concordar que o mais cômodo seria nascer sabendo.

— Sim, nesse ponto você tem razão, saci. Mas que é que faz todas essas vidinhas viverem? Está aí uma coisa que minha cabeça não compreende.

— Ah, isso e o segredo dos segredos! — respondeu o saci. — Nem nós sabemos. Mas o que acontece é o seguinte: dentro de cada criatura, bichinho ou plantinha, há uma força que a empurra para a frente. Essa força é a Vida. Empurra e diz no ouvido das criaturinhas o que elas devem fazer. A Vida é uma fada invisível. É ela que faz o pernilongo ir picar as pessoas nas casas de noite; e que manda o grilo abrir buraco; e que ensina o bombardeiro a bombardear seus atacantes.

— Mas é invisível até para vocês, sacis, que enxergam mais coisas do que nós, homens? — perguntou Pedrinho.

— Sim. Eu que enxergo tudo nunca pude ver a fada Vida. Só vejo os efeitos dela. Quando um passarinho voa, eu vejo o vôo do passarinho, mas não vejo a fada dentro dele a empurrá-lo.

— Então ela deve ser como a gasolina dos automóveis. Sem gasolina os carros não andam.

— Perfeitamente — concordou o saci — mas com uma diferença: nos automóveis a gente vê e cheira a gasolina, mas a Gasolina-Vida ninguém ainda conseguiu ver nem cheirar.

— E morrer? Que é morrer? A Vida então acaba, como a gasolina do automóvel?

— A Vida muda-se de um ser para outro. Quando o ser já está muito velho e escangalhado, a Vida acha que não vale mais a pena continuar lidando com ele e abandona-o. Vai movimentar um novo ser. A fada invisível diverte-se com isso.

Pedrinho ficou muito impressionado. A fada invisível também morava dentro dele, e o empurrava para a frente. Era quem o fazia ter fome e comer, ter sede e beber, ter sono e dormir, querer coisas e procurá-las. Mas um dia essa boa fada enjoar-se-ia dele. Por quê? Porque ele já estaria de cabelos brancos e sem os dentes naturais, e com reumatismo nas juntas, e catacego e com a pele toda enrugada, e com o coração tão fraco que até subir a escadinha da varanda seria uma proeza. E então a fada torceria o nariz e enjoar-se-ia dele: — “Sabe que mais, Senhor Pedrinho? Você está um caco velho e eu não gosto disso. Vou procurar outro ente” — e abandoná-lo-ia e ele então morreria.

Essa idéia entristeceu Pedrinho, porque a idéia que não entristece ninguém é bem outra: é a idéia de não morrer, nunca, nunca...

Conversou a respeito com o saci.

— Ora, ora! — disse este. — O que morre é o corpo só, a parte que em nós tem menos importância. A grande coisa que há em nós, e nos diferencia das pedras e dos paus podres, que é? A Vida. E essa não morre nunca — muda-se dum ser para outro. Tal qual a eletricidade. Quando a pequena bateria daquela lâmpada elétrica que você tem se descarrega, a bateria morre — mas morreu a eletricidade? Não. Apenas mudou-se. Saiu daquela bateria e foi para outra, ou foi para as nuvens, ou foi para onde quis. Assim como a eletricidade não morre, a Vida também não morre. A Vida é uma espécie de eletricidade.

— Mas eu não queria que fosse assim — lamentou Pedrinho. — Tenho dó do meu corpo. Estas mãos, por exemplo — disse ele abrindo-as. — Estou tão acostumado com elas... Desde pequenininho que estas mãos fazem tudo o que eu quero, e fico triste de lembrar que um dia vão ficar paradas, mortas...

— Pior do que perder as mãos é perder os olhos — disse o saci. — Já reparou como é triste não ter olhos, ou tê-los e não ver nada? Feche os olhos bem fechados.

Pedrinho fechou-os bem fechados. O saci disse:

— Pois quando a fada invisível abandonar o seu corpo, Pedrinho, seus olhos vão ficar assim, cegos — como se não existissem. E nunca mais esses olhos, que hoje vêem tanta coisa, verão coisa nenhuma. Nunca mais, nunca mais...

Pedrinho sentiu uma tristeza tão grande que quase chorou — mas o saci deu uma grande risada.

— Bobo! O que nesses seus olhos enxerga, não são os olhos: é a fada invisível que há dentro de você. A fada é como o astrônomo no telescópio; e os olhos são como o telescópio do astrônomo. Qual é o mais importante: o telescópio ou o astrônomo?

— É o astrônomo — disse Pedrinho.

— Pois então alegre-se, porque o astrônomo não morre nunca. O telescópio é que se desarranja e quebra.

XIV – O medo

Longamente filosofaram os dois, lá debaixo da grande peroba que os abrigava do sereno da noite. A floresta tinha uma vida noturna tão intensa quanto a vida diurna. Entre os homens tudo pára durante certa parte da noite, mas na floresta a vida continua, porque uns seres dormem de dia e vivem de noite e outros dormem de noite e vivem de dia. Assim que os sabiás, sanhaços e tico-ticos se recolhem aos pousos ou ninhos, começam a sair das tocas as corujas e morcegos. E as borboletas e mariposas noturnas vêm substituir as borboletas e mariposas diurnas, que adormecem logo que chega a noite. E as caças medrosas, tão perseguidas pelos homens, saem de noite a pastar e beber água nos rios. E os vaga-lumes, que de dia não deixam os lugares escurinhos, começam a piscar por toda a parte com as suas lanterninhas.

— Esses eu sei — disse o menino. — A vida desses animais eu conheço mais ou menos. O que me interessa agora é a vida dos tais “entes das trevas”, como diz Tia Nastácia — os misteriosos — os que uns dizem que existem e outros juram que não existem.

— Compreendo — disse o saci. — Você refere-se aos chamados “duendes”, “monstros”, “capetas”, “gnomos”, etc....

— Isso mesmo, amigo saci. Ando desconfiado que tudo não passa de sonho. Eu não via nada na garrafa, antes de ter caído naquela modorra. Assim que a modorra chegou, você apareceu na garrafa e começou a falar. Desconfio que estou sonhando... Desconfio que isto é um pesadelo... Nos pesadelos é que aparecem monstros horríveis. Por quê? Por que é que há coisas horríveis?

— Por causa do medo, Pedrinho. Sabe o que é medo?

O menino gabava-se de não ter medo de nada, exceto de vespa e outros bichinhos venenosos. Mas não ter medo é uma coisa e saber que o medo existe é outra. Pedrinho sabia que o medo existe porque diversas vezes o seu coração pulara de medo. E respondeu:

— Sei, sim. O medo vem da incerteza.

— Isso mesmo — disse o saci. — A mãe do medo é a incerteza, e o pai do medo é o escuro. Enquanto houver escuro no mundo, haverá medo. E enquanto houver medo, haverá monstros como os que você vai ver.

— Mas se a gente vê esses monstros, então eles existem.

— Perfeitamente. Existem para quem os vê e não existem para quem não os vê. Por isso digo que os monstros existem e não existem.

— Não entendo — declarou Pedrinho. — Se existem, existem. Se não existem, não existem. Uma coisa não pode ao mesmo tempo existir e não existir.

— Bobinho! — declarou o saci. — Uma coisa existe quando a gente acredita nela; e como uns acreditam em monstros e outros não acreditam, os monstros existem e não existem.

Aquela filosofia do saci já estava dando dor de cabeça no menino, o qual suspirou e disse:

— Basta, amigo saci. Não quero mais saber de filosofias, quero conhecer os segredos da noite na floresta. Mostre-me os filhos do medo que você conhece. Desde que há tanta gente medrosa no mundo, deve haver muitos filhos do medo.

— Se há! — exclamou o saci. — Os medrosos são os maiores criadores das coisas que existem. Não tem conta o que lhes sai da imaginação. As mitologias daqueles velhos povos estão cheias de terríveis criações do medo. Aqui nestas Américas, temos também muitas criações do medo, não só dos índios chamados aborígines, como dos negros que vieram da África.

Pedrinho lembrou-se do Tio Barnabé, que era africano.

— Tio Barnabé, por exemplo — disse ele — é um danado para saber essas coisas. Conhece todos os filhos do medo. Foi ele quem me explicou o caso dos sacis. Conte-me no que é que os índios acreditavam.

— Os índios — começou o saci — não usavam durante a noite aquelas luzes que Dona Benta usa lá no sítio — aqueles lampiões de querosene. Nem usavam a luz elétrica que há nas cidades. Só usavam fogueirinhas de pouca luz e por isso o medo entre os índios era grande. Quanto maior é o escuro, maior o medo; e quanto maior o medo, mais coisas a imaginação vai criando. Já ouviu falar no Jurupari?

— Não...

— Pois é o diabo dos índios, o espírito mau que aparece nos sonhos e transforma os sonhos em pesadelos horríveis. Insônia, mal-estar, inquietação, tudo que é desagradável vem desse Jurupari.

— Mas como é ele?

— Um espírito sem forma. Um espírito mau que se diverte em agarrar os que estão dormindo e causar-lhes todos os horrores dos pesadelos. E parece que segura as vítimas pela garganta, porque elas esperneiam e se debatem, mas não podem gritar.

— Oh, eu já tive um pesadelo assim! — disse o menino. — Lembro-me muito bem. Eu ia caindo num buracão enorme. Quis gritar por vovó, mas foi inútil. A voz não saía...

— Pois era o Jurupari que estava apertando a sua garganta. O divertimento dele é esse. Anda de casa em casa provocando pesadelos horríveis nos que encontra dormindo.

Nesse momento um ruído entre as folhas chamou a atenção de ambos.

— Psit!... — fez o saci. — Atenção... Qualquer coisa vem vindo...

Ficaram os dois imóveis. O coração de Pedrinho batia apressado.

— O Curupira! — sussurrou o saci, quando um vulto apareceu. — Veja... Tem cabelos e pés virados para trás.

— Parece um menino peludo — murmurou Pedrinho.

— E é isso mesmo. É um menino peludo que toma conta da caça nas florestas. Só admite que os caçadores cacem para comer. Aos que matam por matar, de malvadeza, e aos que matam fêmeas com filhotes que ainda não podem viver por si mesmos, o Curupira persegue sem dó.

— Bem feito! Mas como os persegue?

— De mil maneiras. Uma das maneiras é disfarçar-se em caça e ir iludindo o caçador até que ele se perca no mato e morra de fome. Outra maneira é transformar em caça os amigos, os filhos ou a mulher do caçador, de modo que sejam mortos por ele mesmo.

Pedrinho achou que não podia haver nada mais justo. O saci prosseguiu:

— Esse que vai passando está a pé, mas em regra o Curupira anda montado num veado e traz na mão uma vara de japecanga.

— Que é japecanga?

— Uma planta que é remédio para doença do sangue. Também é conhecida como salsaparrilha.

— E por que anda com essa vara de japecanga? Que idéia!

— Não sei. Ele é que sabe. E o Curupira tem um cachorro, de nome Papa-Mel, que não o larga. Assim que avista um caminhante na estrada, começa logo a cantar:

Currupaco, papaco Currupaco, papaco...

— Isso é cantiga de papagaio! — lembrou Pedrinho. — Na casa do Coronel Teodorico há um que só diz isso.

— Pois foi com o Curupira que os papagaios aprenderam o currupaco. Papagaio não inventa palavras, apenas repete as que ouve.

Mas o Curupira, com os seus pés voltados para trás, não se demorou muito por ali. Descobriu um rasto de paca e lá se foi, com certeza para ver como ela ia passando em sua toca.

— Que horas serão? — perguntou o menino.

O saci respondeu que faltava pouco para meia-noite.

— Como sabe?

— Por aquela flor — respondeu o saci, indicando uma flor que não estava de todo aberta. — É o meu relógio aqui. Só abre completamente à meia-noite...
____________
continua... XV - O Boitatá; XVI – O negrinho
--------------
Fonte:
LOBATO, Monteiro. Viagem ao Céu & O Saci. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. II. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Paulo Leminski (Erra uma Vez)


A. A. de Assis (Trovas Ecológicas) - 2


Montagem da trova sobre imagem obtida em Allucard

JB Xavier (A Caneta Mágica)


Era uma vez um menininho muito, muito inteligente chamado Claudinho. Ele era muito sabido. Todos os seus amiguinhos vinham pedir para ele os ajudar a fazer a lição de casa, ou a construir pipas muito bonitas.

Claudinho tinha aprendido a ler muito cedo, bem antes de entrar na escola. Por isso quando ele começou a primeira série, era sempre o primeiro aluno da turma em quase tudo.

A diretora da escola do bairro onde Claudinho estudava resolveu então que ele deveria ir direto para a segunda série, antes mesmo de terminar o ano. Isso deixou Claudinho muito feliz e orgulhoso.

Claudinho sabia que era diferente das outras crianças. Por isso ele não era humilde. Ele queria ser o aluno mais notado em sua classe , no clube que frequentava, na turminha da rua onde morava e em todos os outros lugares.

Os pais de Claudinho tinham um orgulho enorme do filho, mas tinham também uma pequenina tristeza. Um dia, enquanto jantavam, disse o pai dele para sua mãe:

- Você não acha que o Claudinho está sendo mimado demais? Ele está começando a achar que é o menino mais inteligente do mundo, o mais capaz, o mais...

- Ah! Deixe o Claudinho em paz! - Respondeu a mãe – você não sente orgulho dele?

O pai ia responder quando eles ouviram Claudinho ao telefone, dar uma bronca danada num dos seus amiguinhos. Ele batia o pé, de raiva, enquanto xingava o amiguinho.

- Seu burro! Você não leu nosso trabalho antes de entregar ele para a professora? Vai ver não foi nem você que digitou! Agora tiramos só nota 5! E tudo por sua culpa! Droga! Como você é burro!!

O pai de Claudinho olhou para a mãe e disse:

- Se ele continuar assim, em pouco tempo não vai sobrar nenhum amiguinho... Não se esqueça de que no último aniversário dele fizemos uma força danada para trazer alguns meninos para festa...e a cada mês ele tem menos amigos...

Uma lágrima brilhou nos olhos da mãe de Claudinho...Ela sabia disso tudo, mas o que poderia fazer? Ele parecia ser o filho que todos os pais gostariam de ter...por isso não conseguia nem pensar em ralhar com ele.

O pai levantou-se e disse:

- Vou tentar falar com ele...

Mas, quando o pai tentou dizer ao Claudinho que ele não devia tratar os outros daquela maneira, ele ficou zangado e resmungou:

- Eu devia ter feito o trabalho sozinho! Eu ia tirar dez! O que posso fazer se eles são tão burros?

O pai abraçou Claudinho e disse:

- Vocês formaram uma equipe de trabalho, não formaram? Pois numa equipe ninguém pode querer ser mais importante do que ninguém! Você precisa respeitar os limites dos outros...e depois, ter amigos que gostam de você é mais importante do que tirar sempre dez! De que adianta você tirar sempre dez e não ter com quem comemorar essas vitórias? Você já pensou nisso?

Claudinho ficou quieto, com cara de quem não concordava. O pai passou a mão na sua cabeça e disse, enquanto se afastava:

- Um dia você vai ter que aprender que ter amigos é a coisa mais importante do mundo...espero que não demore muito...

A mãe de Claudinho que estava ainda sentada à mesa, fechou os olhos e em silêncio pediu a Deus que fizesse dele um bom homem, que não permitisse que o orgulho viesse morar em seu coração...

No domingo seguinte, o pai de Claudinho deu de presente a ele um novo jogo de computador. Claudinho ficou jogando até tarde da noite, desobedecendo a mãe.

No dia seguinte ele teve que ser acordado para ir `a escola. Entrou na sala de aula com muito sono ainda, mas logo teve que sair junto com a turma, porque iriam fazer uma pesquisa na biblioteca central da cidade.

Era a primeira vez que ele ia à Biblioteca Central. Era um prédio enorme! As fileiras de livros pareciam não ter fim, e iam do chão ao teto!

A professora que conduzia a turma, levou todo mundo para um canto de um grande salão onde havia várias mesas e cadeiras. Toda a turma sentou e cada um começou a escrever em seus cadernos. De vez em quando um deles levantava-se e ia procurar um livro nas grandes estantes.

Claudinho apoiou os cotovelos na mesa e, com o rosto entre as mãos começou a pensar por onde deveria começar a fazer sua redação. O tema era livre, e cada um podia escolher o assunto que quisesse. Por isso tinham vindo à Biblioteca Central. Ali eles poderiam pesquisar os mais variados assuntos.

Ele então lembrou-se do que seu pai lhe havia dito a respeito de amizades, e escreveu como título em letras bem grandes: O VALOR DA AMIZADE. Depois ficou a olhar para uma estante cheia de lombadas coloridas de livros tão grossos como ele nunca tinha visto antes.

De repente, ele levou o maior susto, quando viu uma letra “A” do tamanho de um caderno sair de dentro de um daqueles livros e pular para uma mesa vazia ao lado da sua. Logo em seguida, o “E”, o ”I” o “O” e o “U” pularam atrás dela e sentaram- se também formando um círculo sobre a mesa. Todas tinham cara de poucos amigos. Pareciam zangadas.

Claudinho ficou espantado, quando viu a letra “A” dizer.

- Esta reunião é inútil! Não vai adiantar para nada! Eu já disse que sou a letra mais importante do alfabeto! Ou algum de vocês não concorda com isso? Eu estou em todo lugar, vocês já perceberam? Estou nos jornais, nas propagandas, nas poesias, nos livros de crianças e de adultos...eu estou também nos frascos nos letreiros, nas placas de rua, nos adesivos...não dá para escrever quase nada sem mim!!! Eu sou a letra mais importante! Ponto final!!

Claudinho, com os olhos arregalados, viu a letra “E” ficar de pé e quase gritando, disse:

- Ah, é ? você se a acha a mais importante? Você acha que não dá para falar sem você? Pois vou mostrar que dá, sim! Vou fazer um texto em que você não apareça nem uma só vezinha!

- Ah, Ah! - Riu a letra “A”, zoando com o “E”. essa eu quero ver! Isso é impossível!

- E pode escolher o tema! – disse o “E” estufando o peito.

O “A” ficou meio preocupado com a certeza do “E”, e para não correr riscos resolveu dar um tema bem difícil. Pensou por alguns momentos e disse:

- Um poema! – Isso! Faça um poema sobre a vida sem a letra “A”! Fale das coisas da vida, de uma maneira geral. Se você conseguir isso, eu admito que não sou a mais importante, mas duvido que consiga!

As outras letras ficaram todas de olho no “E”, porque de fato esse era um desafio e tanto. Fazer um poema sem a letra “A” não era brincadeira...e ainda que falasse sobre a vida... sem o “A”? impossível – pensaram todas. Mas elas sabiam que se o “E” não conseguisse, o “A” ficaria ainda mais convencido.

O “E” limpou a garganta, esticou-se todo e começou a declamar, como se fosse um grande ator, e as demais vogais fossem uma grande platéia

Poema sem “A”

Senti como poucos
O mundo dos doces sonhos,
E os espectros medonhos
Que existem em mil superstições...
Chorei por muitos verões,
Repisei mundos guerreiros,
Revisitei meus velhos museus,
Que, por conter projetos idos,
Vertem gritos de dor
De tempos doloridos...
Deixei que meus sonhos se desfizessem,
Como se pudesse o sol existir
Em flores que em luz fenecem...
Errei por muitos penedos,
Gritei por sobre os montes
Todos os meus medos,
E selei os meus segredos
No fundo do sofrido peito...
Enfim, hoje sei
Que no fim desse tormento
No sopro do vento,
Terei,
Meu momento de sorrir,
Meu momento de sentir,
E refletir,
E rever
Esse meu modo de viver...

Quando o “E” terminou, disse:

- Viu? Você não aparece nem uma vez nesse poema, e eu não fico nem uma linha sequer sem aparecer! Eu sim, sou a letra mais importante do alfabeto! Sem mim não é possível escrever, falar, ou dizer qualquer coisa...

Claudinho estava cada vez mais espantado. Ele não conseguia acreditar no que seus olhos viam.

De repente, a letra “I” levantou-se e disse!

- Silêncio, sua convencida! Eu vou provar que você não é importante coisa nenhuma! Onde já se viu? Quer que eu faça também um poema onde você não aparece?

A letra “E” botou a mão na barriga e deu uma gargalhada.

- Você? Fazer um poema onde eu não apareço? Ouviram isso? Essa é boa!! Está bem! Faça também um poema, como eu fiz!

- Prefere algum assunto em especial? – respondeu o “I” muito seguro de si.

- Fale sobre o amor! – disse o “E”, sorrindo maliciosamente.

Todas as outras letras olhara para o “I” , porque sabiam que se fazer um poema sem “E” já era difícil, imagine então um poema que falasse de amor!

O “I” então, pôs um dos joelhos no chão, diante do “E” abriu os braços, e como se estivesse declamando à sua amada, disse:

Poema sem “E”

Quando amar
Não for mais a minha vida,
Quando o sonhar
Não mais for
A razão última
Da minha caminhada,
Vou buscar
Outros sorrisos,
Noutras plagas...
No caminho da brisa,
No calor noturno,
No raiar do sol,
Nas ondas do mar...
Quando, saudosa
A aflição já não mais habitar
Minha alma,
Quando a calma
Do luar da madrugada
Já não mais
Falar ao coração,
Vou buscar outros risos
Nos paraísos
Ainda por sonhar,
Nos haustos carinhosos
Ainda por aspirar,
No país do amor
Ainda por visitar...

Quando terminou, o “I” inclinou-se como fazem os atores para agradecer à platéia, enquanto o “E” sentava-se em silêncio, chateado.

Claudinho ia dizer qualquer coisa, mas a voz grossa do “O” o interrompeu:

- Ora, ora, ora...! Então o amigo “I” pensa ser a letra mais importante do alfabeto...! Minhas amigas, lamento informá-las de que eu não sou somente a letra mais importante, sou também a mais bonita e a mais sonora! Eu dou o som bonito das frases, e vou provar que o “I” não é necessário para coisa nenhuma!

O “I” olhou para o “O” e disse:

Ah, é? E como é que você pretende fazer isso? Acaso vai fazer também um poema, como eu fiz?
- E por que não? – respondeu o “O”? Há algum tema de sua preferência?
O “I” pensou um pouco e depois disse:

- Fale de alegria! quero ver se você é capaz! Se você conseguir admito: você é a letra mais importante do alfabeto, mas aviso de que não é possível fazer um poema sem mim!

O “O” estufou o peito e acertou o tom da voz. Era uma voz tão grossa que Claudinho pensou estar ouvindo o trombone da banda da escola. Depois, ele sentou-se sobre uma pequenina cadeira, cruzou as pernas, e começou a dedilhar um violão imaginário, como se fosse um romântico menestrel. Ele declamou o poema cantando-o numa linda melodia, bolada na hora:

Poema sem “I”

Em tudo e por tudo
Sou como o vento que sopra,
Como a água que brota
Clara, na natureza,
Sou como a leveza
Da pluma,
Flutuando ao sabor da aragem,
Sou, a um só tempo,
A saudade e a chegada,
O choro e a recompensa,
A falta e a presença,
O descanso e a jornada.
Sou como a folha dançando
Nos ventos das tempestades,
Sou o regato que murmura,
E em suave correr, jura
As juras de eterno amor...
Sou o afeto e o calor,
Sou o perfume da mata,
O espelho de uma fonte,
Sou o verdejante monte
De onde vertem essas águas...
Sou o lamento de mágoas,
O bradar de uma saudade,
Sou também o alvorecer
De uma nova alvorada,
Sou a esperança velada
Desse novo renascer,
À espera do momento
De reencontrar você...

Quando terminou de cantar a linda melodia, a foz grossa do “O” ficou a ecoar pela biblioteca, como se estivessem numa grande caverna.
Claudinho tinha a boca aberta de tanta surpresa de uma vez só. Ele estava encantado com o que via e quanto mais ouvia, mais se convencia de que ninguém era insubstituível...

Quando o som do canto do “O” parou de ecoar pelas paredes, o “U” levantou-se e disse:

- Muito bonito! Parabéns! Mas deixe-me lhe dar uma notícia ruim! Você também não é indispensável. Pode-se muito bem escrever, contar histórias e tudo o mais sem que você esteja presente!

O “O” olhou feio para o “U”. Claudinho pensou que as duas letras fossem brigar, mas o “O”, sentando-se, lançou um olhar de desprezo para o “U” e disse:

- Mil perdões, madame, mas você tem o som mais feio do abecedário! Você só serve para vaiar e para assustar pessoas...

Claudinho ia rir do que o “O” disse, mas antes que pudesse faze-lo, o “U” respondeu:

- Pode ser, mas isso não faz de você alguém indispensável. Quer que eu faça um poema em que você não aparece nenhuma vez, e eu apareço muitas? Quer?

- Se você conseguir... - murmurou o “O” – mas acho que você não consegue...

Claudinho já estava torcendo para o “U” conseguir. Ele não gostou da prepotência do “O”.

O “U” então virou-se de costas para todas as outras vogais e concentrou-se por alguns momentos. Depois disse sorrindo, enquanto olhava para o teto:

Poema sem “O”

Vinha eu,
Em alegrias pela vida,
A caminhar,
Entre alegres gargalhadas
E a cantar,
Até que, numa curva qualquer
De minha estrada
Lá estavas tu,
Linda,
A me esperar...
Mas,
Vi lágrimas brilharem,
Vi esperanças tristes,
Vi um caminhar errante,
E vi uma luz esfuziante
Que teu caminhar,
Deixava para trás...
E vi também a calma
Que nessa luz recendia...
E assim caminhavas,
Flutuavas,
Qual frágil avezinha,
E te ver assim,
Deu-me a certeza
De que eu seria teu,
E tu serias minha...
E desde aquele dia
Em nenhum instante,
Deixei nunca de te venerar...
Desde aquele dia
Mergulhei na mágica sublime de te amar...

- Viu? – disse o “U” quando terminou – e agora, quem restou para ser a letra mais importante do alfabeto?

Todas as outras letras estavam quietas, olhando para baixo, sem ter o que dizer...cada uma delas tinha percebido que não eram indispensáveis.

- E então, desafiou o “U” alguém quer tentar provar que eu não sou a letra mais importante, que sem mim não há como escrever ou falar?

Claudinho, que já estava impaciente também com o convencimento do “U” ia dizer qualquer coisa, quando uma voz muito poderosa soou na biblioteca, vinda não se sabe de onde.

- Estúpidas!

- É a Caneta Mágica! – murmuraram as vogais com muito medo no olhar, enquanto se encolhiam e se abraçavam – Ela parece brava!

A voz falou novamente, num tom mais calmo.

Olhar a noite encantado,
E contar estrelas,
E sorrir ao vê-las
Sorrindo pra mim,
É te ver assim,
Entre elas,
Sempre a protegê-las,
Eis como são minhas noites,
Noites sem fim...
Sorrir para o infinito
E conter o grito
De alegria...
Ver nascer o dia
Ensolarado e meigo...
Sorrir para a brisa
E sonhar
Mil sonhos acalentados,
Tão esperados,
Tão acorrentados,
Tão enamorados,
Tão febris e ternos...
Ir aos infernos
Apagar as chamas
Desse desespero,
Desse exagero
De amor extremo!
Sentir-te o coração
Sem poder tocá-lo,
Nessa agonia
Desse amor-paixão!

Após alguns momentos de silêncio em que as vogais tremiam de medo, disse a voz novamente:

- Eis aí o teu poema sem “U”! Estão convencidas agora de que nenhuma de vocês é indispensável?

As vogais continuaram a tremer , e a voz continuou:
Eu tenho estado na mão dos maiores escritores de todos os tempos. Tenho escrito poemas e romances, histórias de guerras, de morte, de vida, e mensagens de amor. Sou a Caneta Mágica, aquela que os grandes escritores usam para criar coisas maravilhosas.

Porque vocês tentam manchar essa criação com o desejo de serem mais importantes que suas companheiras? Pois já que vocês se sentem tão importantes e inteligentes, eu vou lhes dar um quebra-cabeças para resolver. Se vocês não o resolverem, não haverá mais escritores no mundo, porque eu vou expulsar vocês do dicionário...e o mundo será mais triste, porque não haverá mais livros nem jornais, nem revistas, nem letreiros, nem coisa alguma escrita. O mundo voltará a ficar atrasado e ignorante, porque voltarão todos a serem analfabetos.

E isto dizendo, uma folha branca caiu sobre a mesa, bem próximo das vogais que tremiam de medo. Nela havia uma escrita estranha.

A voz voltou a dizer:

Leiam para mim o que está escrito nesta folha. Se até a minha volta em 5 minutos, vocês não tiverem feito isso, o mundo não mais poderá escrever nada!

Depois ficou somente o silêncio...

Uma a uma as vogais se aproximaram da folha. Tentaram ler o que estava escrito, mas não conseguiram. À medida que o tempo passava mais e mais nervosas ficavam.

Claudinho suava torcendo para as vogais conseguirem resolver o quebra-cabeças. Ele não queria virar um analfabeto. Ele gostava muito de ler.

Então ele resolveu esticar o pescoço e espiar o que estava escrito na folha de papel. Havia um amontoado de letras sem sentido:

“ sp ç n c ss r p r str l s... r n c ss r p r m r... m r n c ss r p r p x s, p x n c ss r p r g v t ... g v t pr c s d c p r v r... nt , g v t t n c ss r q nt s str l s...n ng m d sn c ss r n m nd ...c d m t m s mp rt nc ...”

Ao ver aquela grande confusão, ele pensou que a Caneta Mágica era muito má, por não deixar nenhuma pista de solução. Ele sentia pena das vogais correndo desesperadas por cima do papel, tentando ler o que estava escrito.

Então Claudinho começou a ver palavras se formando e se desmanchando rapidamente, á medida que as vogais corriam pela folha. De repente a palavra “PEIXE” se formou e ele gritou:

-Parem! Não se mexam! Fiquem onde estão!

Então ele começou a trocar as vogais de lugar e outra palavra se formou: ESTRELAS. Ele continuou a trocar as letras de lugar tão rapidamente que elas começaram a ficar tontas. E outras palavras foram aparecendo: GAIVOTA...MAR...

O tempo passou rapidamente e eles puderam escutar a voz da Caneta Mágica se aproximando. O tempo estava se esgotando. Suando muito, e cada vez mais nervoso, Claudinho trocava as letras o mais depressa que podia enquanto a Caneta Mágica se aproximava pelos corredores silenciosos da biblioteca.

O “A” já tinha desmaiado de enjôo, o “I” nem sabia aonde estava, de tão tonto que ficou; o “U” se encantava com a correria. O “E“ e o “O” eram os únicos que ainda tinham forças para se manterem de pé.

Uma parte da mensagem já estava pronta:

“O espaço é necessário para as estrelas...o rio é necessário para o mar...o mar é necessário para o peixes... o peixe é necessário para a gaivota...

Mas ainda faltava muito...Então a Caneta Mágica chegou. Olhando a mensagem inacabada, e as letras todas desmaiadas ou quase, ela olhou feio para Claudinho e disse, numa voz de arrepiar:
- Se vocês tivessem colaborado uns com os outros desde o início, não teriam perdido tanto tempo...agora é tarde! A humanidade será para sempre analfabeta, e nunca mais poderá ler nada, porque eu expulsarei essas letras orgulhosas do alfabeto, e sem elas, nada poderá se entender do que se escreve...

Claudinho voltou a sentar-se, muito assustado, enquanto a Caneta Mágica, muito brava, continuou, apontando o dedo para ele:

- O culpado é você , que poderia ter acabado essa reunião idiota das vogais, mas não fez isso! Por sua culpa, e porque você é ainda mais burro do que elas, o mundo nunca mais poderá escrever nem ler nada!!!

- Não! – gritou Claudinho – eu não quero ser um analfabeto! por favor...!

Quando a Caneta Mágica levantou a mão para expulsar as vogais do alfabeto, Claudinho sentiu alguma coisa sacudir seus ombros. Era sua professora.

- Você está bem? Quem é analfabeto? Ou será que estava cochilando durante a aula?
- Hein? – disse Claudinho ainda meio zonzo, chorando – As vogais foram expulsas! Não vamos poder ler nem escrever mais nada! E a culpa é minha!

- Do que você está falando? – disse a professora. Depois, ao ver o título da redação de Claudinho – O Valor da Amizade – colocou à sua frente um livro bem grandão onde se via um desenho de uma linda gaivota voando num céu muito bonito, sobre o mar.

- Você está atrasado! Leia esse texto e use-o como tema de sua redação!

Embaixo desse desenho, estava escrito:

“O espaço é necessário para a estrelas...o rio é necessário para o mar...o mar é necessário para o peixes, o peixe é necessário para a gaivota...a gaivota precisa do céu para voar... então, a gaivota é tão necessária quanto as estrelas...ninguém é desnecessário no mundo...cada um tem sua importância...”

Claudinho nunca mais esqueceu do sonho que tivera e da lição que aprendera...ou teria sido realidade?

O certo é que desse dia em diante, Claudinho transformou- se no melhor amigo de todos os meninos e meninas da escola, e quando cresceu, ele tornou-se um grande escritor! Até hoje ele guarda num estojo muito bonito a caneta com a qual fez os rascunhos de seu primeiro livro. Sobre a caixa há uma placa dourada com uma gravação: Caneta Mágica.

Fonte:
JB Xavier

Ialmar Pio Schneider (Poema Gauchesco pelo Nascimento de Ramiro Barcelos)


Nascimento em 23.8.1851 Após ler Antônio Chimango de Amaro Juvenal (Ramiro Barcelos).

1

Disse Amaro Juvenal,
e aqui fala Tio Simplício,
pra que algum outro patrício
cantasse n´algum fandango,
“o mais que fez o Chimango”,
e eu me proponho a este ofício.

2

E, para tal, a cordeona
já vou sacando da mala,
atiro pra trás o pala
e me sento neste banco,
também pra lhes ser bem franco,
mando que limpem a sala.

3

E depois de tudo aquilo
que o Chimango fez na estância,
ainda teve a arrogância
de intitular-se buenacho,
mas sabemos que o muchacho
já foi maula desde a infância.

4

E tudo o que era bom
para ele não prestava,
proibiu o jogo de tava
e também o de baralho,
exigia muito trabalho,
quanto a ele, só mandava !

5

Pois assim desta maneira
muita coisa transcorria,
se cumprindo a profecia
que a cigana lhe fizera,
rancho virando tapera
e no campo pouca cria...

6

No seu desmando total,
sem compreender mais ninguém,
se dizia gente bem,
pois para trás não olhava,
sabendo que em Caçapava
sempre foi um joão-ninguém.

7

E tendo as rédeas na mão,
não precisava de esmolas,
mandou fechar as escolas
em tudo que foi vivenda,
pra que ninguém mais aprenda
e venha pisar-lhe a cola.

8

Com seu rebenque de couro
era sempre o manda-chuva,
não ajudava nem viúva
que inda chorava o finado,
e por ser do seu agrado
só mandava plantar uva.

9

E quando sentava à mesa,
primeiro pedia o vinho,
embora nunca sozinho,
sempre andava prevenido,
pois isto tinha aprendido
nos tempos do seu padrinho.

10

Mandou esparramar o gado
que se adentrou pelos matos,
coberto de carrapatos,
de bernes e de bicheiras;
nesta sequencia de asneiras
iam se passando os fatos.

11

E a tropa magra berrava
na coxilha e na canhada,
a velha estância arruinada
não tinha mais salvação,
tudo caindo pra o chão,
tudo virando em nada.

12

Não se carneava mais,
pois adeus carne no espeto
e no fogo de graveto,
crepitando no galpão
sapecava-se pinhão,
cozinhava-se feijão preto...

13

E no verão a canjica,
no inverno a batata-doce,
tudo isso o tempo trouxe
para a Estância de São Pedro
e todos levavam medo
que pra sempre assim fosse.

14

Era tudo racionado,
não se comia “a la farta”,
desta forma a sina aparta
o tempo que se passou bem,
a miséria sobrevém
e se come até lagarta.

15

Os velhos tauras sentados
ao derredor do fogão,
tomavam o chimarrão
com erva caúna, amarguenta,
enferrujava a ferramenta,
não se afiava facão.

16

Abandonado, ao relento,
lá fora estava o rebolo,
até o próprio monjolo
não batia noite e dia;
a peonada sofria,
pitando um pobre crioulo.

17

Não se domava mais potros
com firmeza e precisão,
era tudo redomão,
pra não dizer aporreado
e por todo o descampado
aquela desolação.

18

No campo o pasto está raro
em meio a caraguatás;
sem aprender, os piás
iam cruzando a existência,
tendo apenas por experiência
aquilo que vida traz.

19

Nos bolichos de campanha
somente havia cachaça,
sinuelo da desgraça
que conduz qualquer gaudério
aos bretes do cemintério
onde se entrega a carcaça...

20

O minuano mais brabo
trazia seu frio de morte,
a estância na pobre sorte
em que se encontrava, aflita,
não havia china bonita
que o nosso viver conforte.

21

O velho pago de outrora
se transformou num repente
naquilo que o guasca sente
quando tudo se transforma,
obedecer era a norma,
ficar quieto, prudente !

22

Ninguém se manifestava
neste estado de cousas,
somente as pobres esposas
iam parindo seus filhos,
as éguas os seus potrilhos,
e as viúvas chorando em lousas.

23

Não se tinha mais notícia
do que acontecia no mundo,
na macega o vagabundo
procurava um agasalho,
pois fugindo do trabalho
se embrenhava nestes fundos.

24

A velha estância sofria
o que nunca tinha passado,
e quem fora bem mandado
hoje de nada valia,
quando tinham melancia,
o mogango era guardado.

***
Canoas - RS, 1972 - na Rua da FAB próximo ao Rancho do Pára Pedro, do saudoso José Mendes, onde o autor conheceu e conviveu com muitos tradicionalistas.

Fonte:
Textoe imagem enviados pelo autor

Ramiro Barcelos (1851 – 1916)


Ramiro Fortes de Barcelos (Cachoeira do Sul, 23 de agosto de 1851 — Porto Alegre, 28 de janeiro de 1916) foi um político, escritor, jornalista e médico brasileiro.

Filho de Vicente Loreto de Barcellos e de Joaquina Idalina Pereira Fortes (irmã do Barão de Viamão), Ramiro Bacellos cursou o secundário na Escola Pública de Cachoeira do Sul, vindo a concluir o curso em Porto Alegre.

Cursou a Faculdade de Medicina no Rio de Janeiro. Exerceu os cargos públicos de ministro plenipotenciário no Uruguai durante a Revolução Federalista, secretário da Fazenda, procurador do estado do Rio Grande do Sul no Rio de Janeiro e superintendente das Obras da Barra de Rio Grande.

Exerceu os mandatos de deputado provincial nos períodos de 1877 a 1878, 1879 a 1880 e 1881 a 1882; elegeu-se senador da República pelo Rio Grande do Sul de 1890 a 1899 e de 1900 a 1906. Criou, em 1902, como senador, a moeda cruzeiro, que só veio a ser adotada na década de 1940, no governo de Getúlio Vargas.

Colaborou com o jornal A Federação, desde seu primeiro número, no qual escreveu Cartas a d. Izabel, com o pseudônimo de Amaro Juvenal, que continuou sendo utilizado em poemas satíricos.

O que mais literariamente notabilizou Ramiro Barcellos foi um poemeto campestre, hoje considerado uma jóia da literatura gauchesca, elaborado entre 1910 e 1915, em razão de uma briga política contra seu primo Antônio Augusto Borges de Medeiros (1863-1961), então presidente do estado, ali retratado como Antonio Chimango.

Foi um dos apoiadores da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre.

Fonte:
Wikipedia

Roberto de Paula (Sempre Tecendo a Fantasia)


Os primeiros livros que comecei a ler eram pequenos, de capas duras e escuras, de letras miúdas, de muitas páginas. Fui apresentado a eles no já longínquo 1968. Meu Deus! O tempo passou e eu estou passando pela vida tão rapidamente que não sei se vou poder ler todos os livros que prometi.

A história começa com meu pai me mandando para um internato católico de Ponta Grossa, o Verbo Divino. Faz tempo, mas me lembro muito bem da disciplina que nos era imposta: trabalho, estudo e oração, não necessariamente nesta ordem. O domingo era livre e tínhamos como opções, no período da manhã desse abençoado dia, a retirada de livros da biblioteca e a confecção de terços. O futebol estava liberado à tarde.

Como nunca fui bom em trabalhos manuais, ignorava o alicate, os arames e as contas, e ia buscar um livro, que poderia ser devolvido no domingo seguinte. Não me recordo de nenhum título. As lembranças são difusas quanto às histórias que li. Eram, em sua maioria, fábulas, ensinamentos cristãos etc etc. E põe etc nessas recordações

Eu era um moleque que adorava futebol, paixão que carreguei pela vida sem que precisassem me incentivar. Já a paixão pela leitura começou naquelas viagens catequéticas entre santos e mártires, ou mártires que se tornaram santos, a fé e a caridade, a criação do mundo…

Uma história que me marcou foi a de Maximiliano Kolbe, o padre que se ofereceu para morrer em Auschwitz no lugar de outro preso. Kolbe virou santo e eu deixei o Verbo Divino. Melhor dizendo: fui tirado de lá. A percepção do meu pai de que eu jamais me tornaria padre e a saudade que a minha mãe tinha do filho de 11 anos forçaram o retorno.

Não vou listar os colégios pelos quais passei nas décadas seguintes porque não considero relevante e também porque não sobraria espaço para contar sobre minha fissura pelos gibis.

Aliás, “fissura” é bem anos 70, não? Pois foi nessa época que fiz dos gibis os meus parceiros. Meu avô Bastião tinha um açougue em Maringá, na Vila Operária, quase em frente à Igreja São José. A banca de revistas ficava próxima ao Cine Horizonte, no prédio novo, na avenida Riachuelo.

Minha tia Léa, que também é minha madrinha, sempre me arrumava uns trocados. Invariavelmente, o dinheiro ia para a banca e para a padaria da Zeca, que ficava ao lado do açougue. Quando não estava na sala de aula ou nos campinhos jogando bola, lia gibis e comia tortas de banana. No intervalo da obrigação e da alegria maior, acompanhava as peripécias de Billy the Kid, David Crockett, Batman, todos da Disney, e do melhor, o mais temido, o inesquecível Fantasma, o espírito que anda.

Ainda naquela década surgiu a revista semanal Placar, especializada em futebol. Chegava às bancas na quarta-feira. Lia no mesmo dia. Tinha quase todos os exemplares e podia recitar escalações de times, resultados e títulos, falar da Seleção Brasileira e das Copas. O gosto pela leitura da Placar despertou em mim a escrita. Foi a minha porta de entrada no jornalismo.

Companheiro nas aventuras desses heróis intrépidos e lendários e de tantos outros, que a empoeirada memória não consegue mais se lembrar, e jogador de futebol imaginário ao lado de craques como Pelé, Tostão e Gérson, teci a fantasia da minha infância que continuo a usar até estes dias reais.

Os livros, as revistas e os gibis ainda me remetem a muitos mundos. Os sonhos ainda não foram embora. Acho que eles estarão comigo permanentemente. Assim, faço um cotidiano mais leve e tento não levar tão a sério as inevitáveis agruras diárias. As publicações são paradoxais. São fuga e tentativa de compreender a vida. Elas abrem perspectivas. São os canais para o entender o ser humano e se entender.

São muitas histórias dentro das minhas histórias. Folheando páginas intermináveis, que começaram contando a vida do agora santificado padre Kolbe; passando pelo Fantasma, montado em seu cavalo Herói; pelo romântico futebol, em que a batida da bola acelerava o coração, e o amor à camisa movia o jogador; nos romances, em que o bem sempre vencia no final; nos exemplos de vida e nas nada exemplares biografias; e hoje, ainda vagando pelo passado, no presente carimbado nos jornais, e na comportada angústia do que virá. Vou folheando páginas. Vou tecendo a fantasia. Apesar da rudeza, dos contornos reais, a fantasia nunca vai cessar.

Texto de Antonio Roberto de Paula publicado na revista Maringá Ensina, edição de agosto-setembro-outubro 2010

Fonte:
Antonio Roberto de Paula
Imagem = autor anonimo