terça-feira, 20 de setembro de 2011

Lima Barreto (Porque não se Matava)


Esse meu amigo era o homem mais enigmático que conheci. Era a um tempo taciturno e expansivo, egoísta e generoso, bravo e covarde, trabalhador e vadio. Havia no seu temperamento uma desesperadora mistura de qualidades opostas e, na sua inteligência, um encontro curioso de lucidez e confusão, de agudeza e embotamento.

Nós nos dávamos desde muito tempo. Aí pelos doze anos, quando comecei a estudar os preparatórios, encontrei-o no colégio e fizemos relações. Gostei da sua fisionomia, da estranheza do seu caráter e mesmo ao descansarmos no recreio, após as aulas, a minha meninice contemplava maravilhada aquele seu longo olhar cismático, que se ia tão demoradamente pelas coisas e pelas pessoas.

Continuamos sempre juntos até à escola superior, onde andei conversando; e, aos poucos, fui verificando que as suas qualidades se acentuavam e os seus defeitos também.

Ele entendia maravilhosamente a mecânica, mas não havia jeito de estudar essas coisas de câmbio, de jogo de bolsa. Era assim: para umas coisas, muita penetração; para outras, incompreensão.

Formou-se, mas nunca fez uso da carta. Tinha um pequeno rendimento e sempre viveu dele, afastado dessa humilhante coisa que é a caça ao emprego.

Era sentimental, era emotivo; mas nunca lhe conheci amor. Isto eu consegui decifrar, e era fácil. A sua delicadeza e a sua timidez faziam a compartilha com outro, as coisas secretas de sua pessoa, dos seus sonhos, tudo o que havia de secreto e profundo na sua alma.

Há dias encontrei-o no chope, diante de uma alta pilha de rodelas de papelão, marcando com solenidade o número de copos bebidos.

Foi ali, no Adolfo, à Rua da Assembléia, onde aos poucos temos conseguido reunir uma roda de poetas, literatos, jornalistas, médicos, advogados, a viver na máxima harmonia, trocando idéias, conversando e bebendo sempre.

E uma casa por demais simpática, talvez a mais antiga no gênero, e que já conheceu duas gerações de poetas. Por ela, passaram o Gonzaga Duque, o saudoso Gonzaga Duque, o B. Lopes, o Mário Pederneiras, o Lima Campos, o Malagutti e outros pintores que completavam essa brilhante sociedade de homens inteligentes.

Escura e oculta à vista da rua, é um ninho e também uma academia. Mais do que uma academia. São duas ou três. Somos tantos e de feições mentais tão diferentes, que bem formamos uma modesta miniatura do Silogeu.

Não se fazem discursos à entrada: bebe-se e joga-se bagatela, lá ao fundo, cercado de uma platéia ansiosa por ver o Amorim Júnior fazer sucessivos dezoitos.

Fui encontrá-lo lá, mas o meu amigo se havia afastado do ruidoso cenáculo do fundo; e ficara só a uma mesa isolada.

Pareceu-me triste e a nossa conversa não foi logo abundantemente sustentada. Estivemos alguns minutos calados, sorvendo aos goles a cerveja consoladora.

O gasto de copos aumentou e ele então falou com mais abundância e calor. Em princípio, tratamos de coisas gerais de arte e letras. Ele não é literato, mas gosta das letras, e as acompanha com carinho e atenção. Ao fim de digressões a tal respeito, ele me disse de repente:

— Sabes por que não me mato?

Não me espantei, porque tenho por hábito não me espantar com as coisas que se passam no chope. Disse-lhe muito naturalmente:

—Não.

— Es contra o suicídio?

— Nem contra, nem a favor; aceito-o.

— Bem. Compreendes perfeitamente que não tenho mais motivo para viver. Estou sem destino, a minha vida não tem fim determinado. Não quero ser senador, não quero ser deputado, não quero ser nada. Não tenho ambições de riqueza, não tenho paixões nem desejos. A minha vida me aparece de uma inutilidade de trapo. Já descri de tudo, da arte, da religião e da ciência.

O Manuel serviu-nos mais dois chopes, com aquela delicadeza tão dele, e o meu amigo continuou:

— Tudo o que há na vida, o que lhe dá encanto, já não me atrai, e expulsei do meu coração. Não quero amantes, é coisa que sai sempre uma caceteação; não quero mulher, esposa, porque não quero ter filhos, continuar assim a longa cadeia de desgraças que herdei e está em mim em estado virtual para passar aos outros. Não quero viajar; enfada. Que hei de fazer?

Eu quis dar-lhe um conselho final, mas abstive-me, e respondi, em contestação:

— Matar-te.

— E isso que eu penso; mas...

A luz elétrica enfraqueceu um pouco e cri que uma nuvem lhe passava no olhar doce e tranqüilo.

— Não tens coragem?—perguntei eu.

— Um pouco; mas não é isso o que me afasta do fim natural da minha vida.

— Que é, então?

— E a falta de dinheiro!

—Como? Um revólver é barato.

— Eu me explico. Admito a piedade em mim, para os outros; mas não admito a piedade dos outros para mim. Compreendes bem que não vivo bem; o dinheiro que tenho é curto, mas dá para as minhas despesas, de forma que estou sempre com cobres curtos. Se eu ingerir aí qualquer droga, as autoridades vão dar com o meu cadáver miseravelmente privado de notas do Tesouro. Que comentários farão? Como vão explicar o meu suicídio? Por falta de dinheiro. Ora, o único ato lógico e alto da minha vida, ato de suprema justiça e profunda sinceridade, vai ser interpretado, através da piedade profissional dos jornais, como reles questão de dinheiro. Eu não quero isso...

Do fundo da sala, vinha a alegria dos jogadores de bagatela; mas aquele casquinar não diminuía em nada a exposição das palavras sinistras do meu amigo.

— Eu não quero isso—continuou ele. Quero que se de ao ato o seu justo valor e que nenhuma consideração subalterna lhe diminua a elevação.

— Mas escreve.

— Não sei escrever. A aversão que há na minha alma excede às forças do meu estilo. Eu não saberei dizer tudo o que de desespero vai nela; e, se tentar expor, ficarei na banalidade e as nuanças fugidias dos meus sentimentos não serão registradas. Eu queria mostrar a todos que fui traído; que me prometeram muito e nada me deram; que tudo isso é vão e sem sentido, estando no fundo dessas coisas pomposas, arte, ciência, religião, a impotência de todos nós diante de augusto mistério do mundo. Nada disso nos dá o sentido do nosso destino; nada disto nos dá uma regra exata de conduta, não nos leva à felicidade, nem tira as coisas hediondas da sociedade. Era isso...

— Mas vem cá: se tu morresses com dinheiro na algibeira, nem por tal...

— Há nisso uma causa: a causa da miséria ficaria arredada.

— Mas podia ser atribuído ao amor.

— Qual. Não recebo cartas de mulher, não namoro, não requesto mulher alguma; e não podiam, portanto, atribuir ao amor o meu desespero.

— Entretanto, a causa não viria à tona e o teu ato não seria aquilatado devidamente.

— De fato, é verdade; mas a causa-miséria não seria evidente. Queres saber de uma coisa? Uma vez, eu me dispus. Fiz uma transação, arranjei uns quinhentos mil-réis. Queria morrer em beleza; mandei fazer uma casaca; comprei camisas, etc. Quando contei o dinheiro, já era pouco. De outra, fiz o mesmo. Meti-me em uma grandeza e, ao amanhecer em casa, estava a níqueis.

— De forma que é ter dinheiro para matar-te, zás, tens vontade de divertir-te.

— Tem me acontecido isso; mas não julgues que estou prosando. Falo sério e franco.

Nós nos calamos um pouco, bebemos um pouco de cerveja, e depois eu observei:

— O teu modo de matar-te não é violento, é suave. Estás a afogar-te em cerveja e é pena que não tenhas quinhentos contos, porque nunca te matarias.

— Não. Quando o dinheiro acabasse, era fatal.

— Zás, para o necrotério na miséria; e então?

— E verdade... Continuava a viver.

Rimo-nos um pouco do encaminhamento que a nossa palestra tomava.

Pagamos a despesa, apertamos a mão ao Adolfo, dissemos duas pilhérias ao Quincas e saímos.

Na rua, os bondes passavam com estrépido; homens e mulheres se agitavam nas calçadas; carros e automóveis iam e vinham...

A vida continuava sem esmorecimentos, indiferente que houvesse tristes e alegres, felizes e desgraçados, aproveitando a todos eles para o seu drama e a sua complexidade.

Fonte:
BARRETO, Lima. A Nova Califórnia - Contos. São Paulo: Brasiliense, 1979. Texto proveniente de A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro

Carlos Lúcio Gontijo (Outono dos Homens)

Fonte:
Poema e imagem enviadas pelo autor. Montagem por José Feldman.

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 339)


Uma Trova Nacional

Forra com jornal o chão,
sob o toldo do armazém,
e dorme, abraçado a um cão,
– toda a família que tem...
–DARLY O. BARROS/SP–

Uma Trova Potiguar

O cão é mais um parente
na família da pessoa,
é um amigo paciente,
não deixa seu dono à-toa.
–ZÉLIA FIGUEIREDO/RN–

Uma Trova Premiada

1985 - Tambaú/SP
Tema: CONFIANÇA - M/H

Quisera ter e não nego,
entre amigos sempre à mão,
a confiança que um cego
deposita no seu cão.
–JOÃO FIGUEIREDO/RJ–

Uma Trova de Ademar

Tem cão que mora num morro
e outro morando em mansão...
Porque nem todo cachorro
leva uma vida de cão!
–ADEMAR MACEDO/RN–

...E Suas Trovas Ficaram

Embora invertendo o nome
do que lhes dás por almoço,
teu cão não ilude a fome,
pois osso invertido é osso.
–APRYGIO NOGUEIRA/MG–

Simplesmente Poesia

Órion
–EDLA FEITOSA/PE–

Não está escuro !
Existe um jogo de luz e sombra
E um certo silêncio.
Órion muda de lugar
E me confunde ….
Um cão ladra ao longe
Um gato ágil escala telhados
A taça enche e esvazia
Como a maré que sussurra ao longe.
As nuvens cobrem as estrelas ….
E dói a solidão.

Estrofe do Dia

O mendigo que sofre só reclama
pede a bênção de Deus, nossa senhora
quando entra na loja vão embora
quando passa na rua ninguém chama
uma calça que veste é cor de lama
a camisa que usa é cor do chão
ele é mais humilhado que um cão
sem família, sem pão e sem abrigo
os fiapos das roupas do mendigo
são visíveis sinais de humilhação.
NONATO COSTA/CE–

Soneto do Dia

Migalhas
–HUMBERTO RODRIGUES NETO/SP–

Que mais desejas, afinal, que eu faça
pra ter por meu o que de ti não tenho,
se já cansado estou com tanto empenho
de haurir de ti a mais suprema graça?

Há quanto tempo mendigando eu venho
um pouco mais que esta ventura escassa!
Do amor apenas pingos pões-me à taça
que eu sorvo ao jugo de pesado lenho!

Somente a um outro, nas liriais toalhas
da mesa de Eros serves tua paixão,
mesa em que, pródiga, teus bens espalhas!

E ali enjeitado, a farejar o chão,
o meu amor vive a lamber migalhas
que tu lhe atiras qual se fora a um cão!

Fonte:
Textos enviados pelo Autor

Machado de Assis (O Alienista) IX – Dois lindos casos ; X – Restauração


CAPÍTULO IX - DOIS LINDOS CASOS

Não se demorou o alienista em receber o barbeiro; declarou-lhe que não tinha meios de resistir, e portanto estava prestes a obedecer. Só uma coisa pedia, é que o não constrangesse a assistir pessoalmente à destruição da Casa Verde.

— Engana-se Vossa Senhoria, disse o barbeiro depois de alguma pausa, engana-se em atribuir ao governo intenções vandálicas. Com razão ou sem ela, a opinião crê que a maior parte dos doidos ali metidos estão em seu perfeito juízo, mas o governo reconhece que a questão é puramente científica e não cogita em resolver com posturas as questões científicas.. Demais, a Casa Verde é uma instituição pública; tal a aceitamos das mãos da Câmara dissolvida. Há entretanto—por força que há de haver um alvitre intermédio que restitua o sossego ao espírito público.

O alienista mal podia dissimular o assombro; confessou que esperava outra coisa, o arrasamento do hospício, a prisão dele, o desterro, tudo, menos...

—O pasmo de Vossa Senhoria, atalhou gravemente o barbeiro, vem de não atender à grave responsabilidade do governo. O povo, tomado de uma cega piedade que lhe dá em tal caso legitima indignação, pode exigir do governo certa ordem de atos; mas este, com a responsabilidade que lhe incumbe, não os deve praticar, ao menos integralmente, e tal é a nossa situação. A generosa revolução que ontem derrubou uma Câmara vilipendiada e corrupta, pediu em altos brados o arrasamento da Casa Verde; mas pode entrar no animo do governo eliminar a loucura? Não. E se o governo não a pode eliminar, está ao menos apto para discriminá-la, reconhecê-la? Também não; é matéria de ciência. Logo, em assunto tão melindroso, o governo não pode, não quer dispensar o concurso de Vossa Senhoria. O que lhe pede é que de certa maneira demos alguma satisfação ao povo. Unamo-nos, e o povo saberá obedecer. Um dos alvitres aceitáveis, se Vossa Senhoria não indicar outro, seria fazer retirar da Casa Verde aqueles enfermos que estiverem quase curados e bem assim os maníacos de pouca monta, etc. Desse modo, sem grande perigo, mostraremos alguma tolerância e benignidade.

—Quantos mortos e feridos houve ontem no conflito? perguntou Simão Bacamarte depois de uns três minutos.

O barbeiro ficou espantado da pergunta, mas respondeu logo que onze mortos e vinte e cinco feridos.

—Onze mortos e vinte e cinco feridos! repetiu duas ou três vezes o alienista.

E em seguida declarou que o alvitre lhe não parecia bom mas que ele ia catar algum outro, e dentro de poucos dias lhe daria resposta. E fez-lhe várias perguntas acerca dos sucessos da véspera, ataque, defesa, adesão dos dragões, resistência da Câmara etc., ao que o barbeiro ia respondendo com grande abundância, insistindo principalmente no descrédito em que a Câmara caíra. O barbeiro confessou que o novo governo não tinha ainda por si a confiança dos principais da vila, mas o alienista podia fazer muito nesse ponto. O governo, concluiu o barbeiro, folgaria se pudesse contar não já com a simpatia senão com a benevolência do mais alto espírito de Itaguaí e seguramente do reino. Mas nada disso alterava a nobre e austera fisionomia daquele grande homem que ouvia calado, sem desvanecimento nem modéstia, mas impassível como um deus de pedra.

—Onze mortos e vinte e cinco feridos, repetiu o alienista depois de acompanhar o barbeiro até a porta. Eis aí dois lindos casos de doença cerebral. Os sintomas de duplicidade e descaramento deste barbeiro são positivos. Quanto à toleima dos que o aclamaram, não é preciso outra prova além dos onze mortos e vinte e cinco feridos.—Dois lindos casos!

—Viva o ilustre Porfírio! bradaram umas trinta pessoas que aguardavam o barbeiro à porta.

O alienista espiou pela janela e ainda ouviu este resto de uma pequena fala do barbeiro às trinta pessoas que o aclamavam:

—...porque eu velo, podeis estar certos disso, eu velo pela execução das vontades do povo. Confiai em mim; e tudo se fará pela melhor maneira. Só vos recomendo ordem. E ordem, meus amigos, é a base do governo...

—Viva o ilustre Porfírio bradaram as trinta vozes, agitando os chapéus.

—Dois lindos casos! murmurou o alienista.

CAPÍTULO X - RESTAURAÇÃO

Dentro de cinco dias, o alienista meteu na Casa Verde cerca de cinqüenta aclamadores do novo governo. O povo indignou-se. O governo, atarantado, não sabia reagir. João Pina, outro barbeiro, dizia abertamente nas ruas, que o Porfírio estava "vendido ao ouro de Simão Bacamarte", frase que congregou em torno de João Pina a gente mais resoluta da vila. Porfírio vendo o antigo rival da navalha à testa da insurreição, compreendeu que a sua perda era irremediável, se não desse um grande golpe; expediu dois decretos, um abolindo a Casa Verde, outro desterrando o alienista. João Pina mostrou claramente com grandes frases que o ato de Porfírio! era um simples aparato, um engodo, em que o povo não devia crer. Duas horas depois caía Porfírio! ignominiosamente e João Pina assumia a difícil tarefa do governo. Como achasse nas gavetas as minutas da proclamação, da exposição ao vice-rei e de outros atos inaugurais do governo anterior, deu-se pressa em os fazer copiar e expedir; acrescentam os cronistas, e aliás subentende-se, que ele lhes mudou os nomes, e onde o outro barbeiro falara de uma Câmara corrupta, falou este de "um intruso eivado das más doutrinas francesas e contrário aos sacrossantos interesses de Sua Majestade", etc.

Nisto entrou na vila uma força mandada pelo vice-rei e restabeleceu a ordem. O alienista exigiu desde logo a entrega do barbeiro Porfírio e bem assim a de uns cinqüenta e tantos indivíduos que declarou mentecaptos; e não só lhe deram esses como afiançaram entregar-lhe mais dezenove sequazes do barbeiro, que convalesciam das feridas apanhadas na primeira rebelião.

Este ponto da crise de Itaguaí marca também o grau máximo da influência de Simão Bacamarte. Tudo quanto quis, deu-se-lhe; e uma das mais vivas provas do poder do ilustre médico achamo-la na prontidão com que os vereadores, restituídos a seus lugares, consentiram em que Sebastião Freitas também fosse recolhido ao hospício. O alienista, sabendo da extraordinária inconsistência das opiniões desse vereador, entendeu que era um caso patológico, e pediu-o. A mesma coisa aconteceu ao boticário. O alienista, desde que lhe falaram da momentânea adesão de Crispim Soares à rebelião dos Canjicas, comparou-a à aprovação que sempre recebera dele ainda na véspera, e mandou capturá-lo. Crispim Soares não negou o fato, mas explicou-o dizendo que cedera a um movimento de terror ao ver a rebelião triunfante, e deu como prova a ausência de nenhum outro aro seu, acrescentando que voltara logo à cama, doente. Simão Bacamarte não o contrariou; disse, porém, aos circunstantes que o terror também é pai da loucura, e que o caso de Crispim Soares lhe parecia dos mais caracterizados.

Mas a prova mais evidente da influência de Simão Bacamarte foi a docilidade com que a Câmara lhe entregou o próprio presidente. Este digno magistrado tinha declarado, em plena sessão, que não se contentava, para lavá-la da afronta dos Canjicas, com menos de trinta almudes de sangue; palavra que chegou aos ouvidos do alienista por boca do secretário da Câmara entusiasmado de tamanha energia. Simão Bacamarte começou por meter 0 secretário na Casa Verde, e foi dali à Câmara à qual declarou que o presidente estava padecendo da "demência dos touros", um gênero que ele pretendia estudar, com grande vantagem para os povos. A Câmara a princípio hesitou, mas acabou cedendo.

Daí em diante foi uma coleta desenfreada. Um homem não podia dar nascença ou curso à mais simples mentira do mundo, ainda daquelas que aproveitam ao inventor ou divulgador, que não fosse logo metido na Casa Verde. Tudo era loucura. Os cultores de enigmas, os fabricantes de charadas, de anagramas, os maldizentes, os curiosos da vida alheia, os que põem todo o seu cuidado na tafularia, um ou outro almotacé enfunado, ninguém escapava aos emissários do alienista. Ele respeitava as namoradas e não poupava as namoradeiras, dizendo que as primeiras cediam a um impulso natural e as segundas a um vício. Se um homem era avaro ou pródigo, ia do mesmo modo para a Casa Verde; daí a alegação de que não havia regra para a completa sanidade mental. Alguns cronistas crêem que Simão Bacamarte nem sempre procedia com lisura, e citam em abono da afirmação (que não sei se pode ser aceita) o fato de ter alcançado da Câmara uma postura autorizando o uso de um anel de prata no dedo polegar da mão esquerda, a toda a pessoa que, sem outra prova documental ou tradicional, declarasse ter nas veias duas ou três onças de sangue godo. Dizem esses cronistas que o fim secreto da insinuação à Câmara foi enriquecer um ourives amigo e compadre dele; mas, conquanto seja certo que o ourives viu prosperar o negócio depois da nova ordenação municipal, não o é menos que essa postura deu à Casa Verde uma multidão de inquilinos; pelo que, não se pode definir, sem temeridade, o verdadeiro fim do ilustre médico. Quanto à razão determinativa da captura e aposentação na Casa Verde de todos quantos usaram do anel, é um dos pontos mais obscuros da história de Itaguaí a opinião mais verossímil é que eles foram recolhidos por andarem a gesticular, à loa, nas ruas, em casa, na igreja. Ninguém ignora que os doidos gesticulam muito. Em todo caso, é uma simples conjetura; de positivo, nada há.

—Onde é que este homem vai parar? diziam os principais da terra. Ah! se nós tivéssemos apoiado os Canjicas...

Um dia de manhã—dia em que a Câmara devia dar um grande baile,—a vila inteira ficou abalada com a notícia de que a própria esposa do alienista fora metida na Casa Verde. Ninguém acreditou; devia ser invenção de algum gaiato. E não era: era a verdade pura. D. Evarista fora recolhida às duas horas da noite. O Padre Lopes correu ao alienista e interrogou-o discretamente acerca do fato.

—Já há algum tempo que eu desconfiava, disse gravemente o marido. A modéstia com que ela vivera em ambos os matrimônios não podia conciliar-se com o furor das sedas, veludos, rendas e pedras preciosas que manifestou logo que voltou do Rio de Janeiro. Desde então comecei a observá-la. Suas conversas eram todas sobre esses objetos; se eu lhe falava das antigas cortes, inquiria logo da forma dos vestidos das damas; se uma senhora a visitava na minha ausência, antes de me dizer o objeto da visita, descrevia-me o trajo, aprovando umas coisas e censurando outras. Um dia, creio que Vossa Reverendíssima há de lembrar-se, propôs-se a fazer anualmente um vestido para a imagem de Nossa Senhora da matriz. Tudo isto eram sintomas graves; esta noite, porém, declarou-se a total demência. Tinha escolhido, preparado, enfeitado o vestuário que levaria ao baile da Câmara Municipal; só hesitava entre um colar de granada e outro de safira. Anteontem perguntou-me qual deles levaria; respondi-lhe que um ou outro lhe ficava bem. Ontem repetiu a pergunta ao almoço; pouco depois de jantar fui achá-la calada e pensativa.—Que tem? perguntei-lhe.—Queria levar o colar de granada, mas acho o de safira tão bonito!—Pois leve o de safira.—Ah! mas onde fica o de granada?—Enfim, passou a tarde sem novidade. Ceamos, e deitamo-nos. Alta noite, seria hora e meia, acordo e não a vejo; levanto-me, vou ao quarto de vestir, acho-a diante dos dois colares, ensaiando-os ao espelho, ora um ora outro. Era evidente a demência: recolhi-a logo.

O Padre Lopes não se satisfez com a resposta, mas não objetou nada. O alienista, porém, percebeu e explicou-lhe que o caso de D. Evarista era de "mania santuária", não incurável e em todo caso digno de estudo.

—Conto pô-la boa dentro de seis semanas, concluiu ele.

E a abnegação do ilustre médico deu-lhe grande realce. Conjeturas, invenções, desconfianças, tudo caiu por terra desde que ele não duvidou recolher à Casa Verde a própria mulher, a quem amava com todas as forças da alma. Ninguém mais tinha o direito de resistir-lhe—menos ainda o de atribuir-lhe intuitos alheios à ciência.
Era um grande homem austero, Hipócrates forrado de Catão.
–––––––––––––
continua… Capitulo XI – O Assombro de Itaguaí; Capítulo XII – O final dos § 4º.
––––––––––––-
Fonte:
ASSIS, Machado de. O Alienista.

domingo, 18 de setembro de 2011

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 338)

Uma Trova Nacional


Uma Trova Potiguar

Pelos mais árduos caminhos
da vida por onde fores,
verás sempre entre os espinhos
nascer as mais belas flores.
–GIOVANI XAVIER/RN–

Uma Trova Premiada

2008 - ATRN-Natal/RN
Tema: IDADE - 12º Lugar.

Quando a velhice é surgida,
esqueça dos desenganos...
não dê mais anos à vida
e sim, dê mais vida aos anos!
–FRANCISCO JOSÉ PESSOA/CE–

Uma Trova de Ademar

Nessa ausência tão sofrida
que o “ciúme” nos impôs,
vejo o grande mal que a vida
fez na vida de nós dois...
–ADEMAR MACEDO/RN–

...E Suas Trovas Ficaram

Não pisco os olhos ao vê-la
para não correr o risco
de, por momentos, perdê-la,
a cada instante em que pisco.
–ORLANDO BRITO/MA–

Simplesmente Poesia

Vida Reinventada
–JOSÉ ALBERTO COSTA/AL–

A noite minh'alma percorre
o infinito espaço
das lembranças perdidas.
Enquanto durmo,
recolhe pedaços
dispersos de mim,
reinventando uma vida
de coisas esquecidas,
revolvendo escaninhos
de desejos contidos
repletos de sonhos
da adolescência
que deixei fugir.

Estrofe do Dia

Os carinhos de mãe estremecida,
os brinquedos dos tempos de criança,
o sorriso fugaz de uma esperança
e a primeira ilusão da nossa vida,
o adeus que se dá por despedida,
o desprezo que a gente não merece,
o delírio da lágrima quando desce
nos momentos de angustia e de desgraça,
passa tudo na vida tudo passa
mas nem tudo que passa a gente esquece.
DIMAS BATISTA/PE–

Soneto do Dia

Ironia de Lágrimas
–CRUZ E SOUZA/SC–

Junto da morte é que floresce a vida!
Andamos rindo junto a sepultura.
A boca aberta, escancarada, escura
da cova é como flor apodrecida.

A Morte lembra a estranha Margarida
do nosso corpo, Fausto sem ventura...
Ela anda em torno a toda criatura
numa dança macabra indefinida.

Vem revestida em suas negras sedas
e a marteladas lúgubres e tredas
das Ilusões o eterno esquife prega.

E adeus caminhos vãos mundos risonhos!
Lá vem a loba que devora os sonhos,
faminta, absconsa, imponderada cega!

Fonte:
Textos enviados pelo Autor
Montagem da trova nacional por José Feldman

Aníbal Lopes (Quem me Quiser Conhecer)


Quem me quiser conhecer
terá de perguntar ao vento
e saberá nesse momento
que nem tudo se pode saber.

Montargil me viu nascer
quando não era esperado.
não é fácil aparecer
sem ter sido convidado.

Sonhei guitarras e violinos
mas só tive brinquedos de papel
como os que não foram meninos
também senti o gosto do fel.

Em muitos caminhos andarilho
alguns que não escolhi
outros me impuseram o trilho
que obedientemente segui.

Nem sempre fui bem recebido
nem sempre tive a porta aberta
mas quando a gente desperta
já não se sente tão perdido.

Morei em muito lado
e vagueei entre pinhais
fui vendedor de jornais
e marçano de super-mercado.

Já morei no estrangeiro
lá longe ao pé do mar
fui ajudante de pedreiro
e construí castelos no ar.

Bebi agua em muitas fontes
e tracei muitas metas
já morei em muitos horizontes
e um dia, num livro de poetas.

Fontes:
Poema enviado por Lino Mendes
Imagem = http://www.montargil.com

Pedro Du Bois (Resultado)


Certos jogos gritam resultados
trancados em gargantas
afogadas em líquidos

reaparecem em esbirros
espirros
no acordo
desacordado em regras:

ao vencedor
cabe o barulho
infernal do nada
quantificado no instante.

Depois a vida segue o trajeto
previamente decorado: ao vencedor
resta a tênue lembrança
do que esquece.

Fonte:
Poema enviado pelo autor

J. P Mahaffy (A Literatura na História)

Biblioteca de Alexandria
RARAS vezes é inteiramente apreciado que grande parte da literatura do mundo é a história, de qualquer espécie. O primitivo selvagem é provavelmente a única espécie de homem que nela não toma interesse; deve notar-se que a memória dos mortos é muitas vezes cuidadosamente obliterada por ele a os nomes ou ainda palavras sugerindo os nomes dos seus antepassados, evitados nos seus discursos. Mas logo que uma centelha de civilização ilumina esta treva primitiva, os homens começam a tomar interesse pelos outros homens, não somente no que lhes diz respeito directo, mas além dos limites das suas próprias gerações. O interesse pelo passado a previsão para o futuro, são talvez as essenciais diferenças mentais entre o homem civilizado e o selvagem.

A medida que o cuidado pelo passado a pelo futuro aumenta, toda a literatura se divide entre aquela que diz respeito às forças da natureza a aquela concernente à história do homem. Quase toda a literatura de imaginação parte desta última. Os poemas épicos pretendem cantar a história de heróis. Os poemas trágicos pretendem analisar as suas emoções em algumas grandes crises das suas vidas. Os poemas líricos são interessantes principalmente relatando-nos a história da alma do poeta. Até o romance moderno, que é manifestamente fictício, tem que se basear sobre a história de homens vulgares a buscar a maior parte dos seus enredos a ocorrências das suas vidas. O romance histórico é corno que uma ponte entre as verdadeiras ocorrências do tempo passado e o desejo de saber mais dos motivos, da espécie, do caráter dos atores, dos conhecimentos transmitidos até aos nossos tempos por documentos contemporâneos. Este gênero de romances, quando didático, como por exemplo nos livros egípcios de Ebers, pode ser pouco mais do que um simples relatório de fatos; quando artístico, como nos livros de Walter Scott, pode ser uma obra de Aura fantasia.

Contudo, existe neles sempre o interesse histórico, e é ponto discutível se a história de qualquer criatura inventada a formalmente divorciada dos anais dos homens conhecidos poderá jamais despertar esse vívido a permanente interesse que inspirará sempre a história de homens como Alexandre de Macedônia ou Napoleão. Todo o extenso repertório de ficções aglomerado em volta do nome do primeiro pretende impor-se como história; a vasta biblioteca de livros napoleônicos contém muitíssima fantasia; porém a ficção torna-se de pouco interesse se a compararmos com a história verdadeira dessa extraordinária existência.

Assim, visto a história, na acepção mais ampla da palavra, abranger a maior parte da literatura mundial, deveremos limitar-nos aqui a referir os esforços feitos por escritores nos últimos 3.000 anos, para investigar a história de homens que os precederam na vida ou passaram longe deles a existência, ou ainda para nos descrever a sociedade em que eles próprios viveram. Enquanto imperou na imaginação do homem a crença em uma idade de ouro, a de um heróico passado, os anais a os poemas épicos também se ocuparam de um passado incerto a lendário.

A História de Heródoto, justamente considerada a obra-prima de uma nova escola, tentou a narrativa de um formidável combate, cujos pormenores ainda se não haviam apagado na memória dos velhos, e demonstrar ainda as causas que levaram a realizar-se este combate. Assim, pela primeira vez se tornou importante a parte literária de urna obra, em contraste com os anais secos e monótonos ou a simples relação de fatos, adotada pelos escritores a fim de fugirem das fábulas dos contistas para entrar no domínio dos fatos. Porém o antagonismo manifestado nestes anais contra a maneira poética e ornada, tornou-se demasiado forte.

Os homens graves de então enganaram-se como os de agora ainda se enganam;
julgaram que bastava investigar e narrar os fatos cruamente, para haver a história verídica do passado. É quimérica tal ideia; nunca se poderá obter a verdadeira história da humanidade sem a descrição dos homens, das suas paixões e da lógica dos seus sentimentos. O romance histórico aproxima-nos muito mais da verdade dos fatos do que poderá jamais consegui-lo um relatório cronológico. Eis a razão por que o gênio de Heródoto, como o gênio dos historiadores do Velho Testamento, descobriu que os únicos retratos verdadeiros são os que expressam o caráter do retrato e que a perfeição desse retrato depende tanto do pintor como do assunto que ele tenta reproduzir. Os homens e
as mulheres de Heródoto e até os estados e cidades que ele descreve, vivem na nossa imaginação. Ele, mais do que outro qualquer, conseguiu tornar a história da Grécia em assunto de eterno interesse. Neste sentido, Plutarco é o seu único rival. Se não houvesse existido estes dois escritores o público educado de todas as nações europeias teria há muito perdido o contacto com os Gregos, e apenas uma restrita minoria de artistas e estudiosos se interessariam ainda pelas coisas da Grécia.

Se existe a ideia de que Heródoto conserva ainda a obscura tendência de fazer da História um poema épico e que é demasiado pródigo em digressões e pontos de paragem - todavia preciosos! - os gregos fornecem-nos um forte antídoto. Em virtude da curiosa lei que não admite que apareça esporadicamente o gênio literário (como no caso excepcional de Dante), mas antes surja em grupos (como na época de Péricles, Isabel e Napoleão) - temos como grande rival contemporâneo de Heródoto, o historiador Tucídides. Em intencional antagonismo com a livre e fácil palestra do viajante da escola antiga, que se detém com frequência na marcha da sua epopéia imortal, a fim de deleitar os seus leitores com ramalhetes colhidos nos campos da anedota, este outro gênio literário ensina-nos claramente, sem se dignar dizê-lo mais do que uma vez e em uma leve frase, que (na sua opinião) o valor permanente da história consiste, não na parte social ou artística mas sim no progresso dos movimentos políticos, nos conflitos dos grandes princípios em que se amoldam o caráter e as condições das nações. Para ele a guerra entre Atenas e Esparta, até nas suas mais insignificantes e monótonas insurreições, é bem mais importante do que a escultura de Fídias, a poesia de Sófocles, a arquitetura de Ictinos e de Mnesicles. Para ele, como para um grande número de historiadores modernos - desde Macchiavelli até Seeley - a política domina o mundo e portanto a história política excede a todas as outras em interesse e em valor.

Será possível, todavia, que algum pensador, vivendo em certo meio e tomando parte nos debates políticos do seu tempo possa dar-nos uma relação objetiva do que em volta dele se passe? É isto que Tucídides pretende fazer; e soube tão bem ocultar a sua parcialidade, com a sua seriedade e afetada exatidão, que o seu gênio literário tem-se imposto no mundo dos eruditos desde então até aos nossos dias. Sabemos agora que a sua subjetividade não era menos dominadora do que a de Heródoto. Estava porém disfarçada, como a subjetividade de um grande pintor se disfarça - para a maioria vulgar - sob a fidelidade do retrato que executa. É provável que os contemporâneos de Rembrandt insistissem na exatidão com que ele reproduzia os seus burgomeisters, as suas velhas e os seus judeus. Nós, hoje em dia, avaliamos os seus quadros não como retratos fiéis, mas como a expressão do gênio do pintor. Ora, o mesmo nos acontece com a História de Tucídides. Se Heródoto é um Van Dick, que nos oferece uma galeria das personagens da Hélada e da Ásia, Tucídides é o Rembrandt que representa o seu próprio povo, embora seja rude e feio, com toda a energia e vigor do seu sombrio gênio.

Assim são eles dois protótipos imortais até entre os Gregos, nossos mestres, porque
ao lado deles todos os seus sucessores parecem fracos. Xenofonte possui toda a técnica de um artista historiador: falta-lhe porém a energia de caráter, a subjetividade que produz a harmonia de uma obra transcendente. Políbio é dotado da subjetividade e do forte caráter de um historiador, mas é tão deficiente a sua técnica, que se encontra esquecido por todos.

Não deixa de ser interessante inquirir até que ponto se manifestam estes eternos contrastes nos grandes escritores que têm conservado aceso, em tempos modernos, o luminoso facho da história artística; porém é demasiado vasto o assunto para que nos seja aqui permitido fazer mais do que algumas ligeiras reflexões gerais. A solidariedade da Europa, as miríades de relações dos grandes reinos em constante comunicação uns com os outros, tornaram tão imensa a tarefa, que nenhum cérebro humano pode encher a tela completa da história contemporânea, com um quadro adequado e harmonioso.

Assim a Europa de Alison tinha de ser um fracasso como grande obra de arte e nenhum verdadeiro gênio histórico teria tentado escrevê-la. A única história contemporânea do autor ocupando um elevado lugar na Arte é a que se publica sob a forma de Memórias, como as de St. Simon ou de Boswell, que a refletem dia a dia à superfície de uma sociedade interessante. Aqueles que têm demonstrado verdadeiro talento como historiadores em tempos modernos, escolheram épocas dos séculos passados, em que existiram caracteres e factos de bastante importância, para não deixar de interessar ainda hoje o espírito do mundo civilizado.

O primeiro entre os historiadores ingleses foi Gibbon, o Heródoto dos tempos modernos pela amplitude do assunto, pela clareza da compreensão e pela riqueza da fantasia. É porém inferior a Heródoto como artista, tornando-se tão excessiva a pompa artificial do estilo, que chega frequentes vezes a distrair da narrativa a atenção do leitor; enquanto o velho grego havia atingido o elevado grau em que a arte se assemelha à natureza pela sua aparente simplicidade e total ausência de afetação. Apesar disto a história de Gibbon é uma grande e permanente obra de arte, que nunca será excedida pelas produções mais pragmáticas dos modernos escritores. Servia-lhe de lema o velho princípio clássico que exige ao historiador imaginação rica e fácil eloquência.

Depois do Decline and Fall de Gibbon, entre as histórias escritas na língua inglesa deve figurar, tia minha opinião, a História da Grécia, de Grote. Assemelhando-se a Tucídides, na forma grave e sóbria, na exclusiva tendência para a política, no mal velado desejo de refutar os pontos de vista dos seus predecessores, Grote carecia contudo de hábil retórica e ainda mais daquela maravilhosa concisão, que torna tão impressionante a narrativa de Tucídides.

É, de fato, na sua forma de parafrasear os seus antigos modelos, que Grote mais brilha; mas, apesar de se haver chamado à sua história um enorme panfleto de radicalismo filosófico, a sua latitude, a sua ciência, a conscienciosa forma por que procura todas as fontes de informação, fazem destacar a sua História da Grécia, acima de muitas outras histórias mais curtas produzidas por eruditos europeus. É que ele não foi apenas erudito, foi também político; sabia como se podem evitar contradições teóricas em uma constituição, por meio de transições práticas, e se cuidava pouco de arte, de arqueologia e, em geral, da nota pitoresca do assunto de que tratava, pode contudo ainda ser utilizado para corrigir a falta de conhecimentos políticos, tão frequentemente demonstrada pelos historiadores profissionais de França e da Alemanha.

As investigações dos alemães e o espírito brilhante do franceses não produziram qualquer obra de valor igual às de Gibbon e Grote, apesar de haverem contribuído para a história com excelentes e até grandiosos elementos. Entre as produções alemãs, na minha opinião destacam-se duas: a História Romana de Mommsen e as histórias de Atenas e de Roma, por Gregorovius. Ambas são tratadas com uma perfeição de estilo geralmente desusada na Alemanha e são ambas monumentos de notável e exatíssima erudição. No livro de Mommsen esta erudição acha-se - para assim dizer - encoberta pela ausência de notas no fim da página e ainda mais por uma petulância de estilo que parecia indicar um certo faciosismo sobre algumas questões políticas de capital importância. Esta suspeita, originada pelo estilo desse livro notável, podia ser confirmada fazendo-se uma cuidadosa investigarão acerca das autoridades em que ele se apoia. Por outro lado, o conhecimento dos estudos especiais de Mommsen demonstra o gigantesco poder de que dispunha na arte de coligir elementos para a história. Niebuhr, o mais notável dos predecessores destes homens, apesar de ser autor de um método novo, como escritor não soube ser grande bastante para manter a sua situação contra os competidores modernos. Apesar disso os sucessores dele, excetuando Mommsen, serão pessoas muito respeitáveis, mas não são com certeza artistas de valor. Muitos deles são eruditos de primeira ordem; porém isso aqui não vem ao caso.

Como seria de esperar da parte de uma nação que produz tão excelente prosa, a França deu-nos uma série completa de eminentes historiadores, mas foi talvez devido ao elevado nível do seu estilo que nenhum deles conseguiu obter supremacia sobre os colegas. Guizot, Taine, Thiers, Renan, Montalembert, Henri Martin e muitos outros têm-nos oferecido brilhantes exposições de várias épocas na história europeia; raras vezes, porém, conseguem libertar-se dessa subjetividade que caracteriza os franceses e prejudica a sua autoridade como juízes em assuntos históricos. Além disso, existe na maioria deles a visível preocupação do estilo, o desejo de dizer coisas brilhantes que tende mais a deslumbrar o espírito do leitor do que a iluminar o assunto de que tratam. É de crer que qualquer deles seria mais facilmente substituído do que Tocqueville, cujos estudos sobre a democracia são contudo antes exemplos de política do que de história.

Mas estas generalidades acerca de historiadores estrangeiros tornam-se pouco valiosas sem mais amplas justificações. Ocupemo-nos novamente dos escritores ingleses que tornaram célebre o século actual, e mesmo a presente geração, pelos seus estudos históricos. Entre os que mais sobressaem há dois americanos - Motley, o historiador do período mais notável da história holandesa, e Parkman que, numa tela de menores dimensões, mas com pincel seguro, nos descreveu a prolongada contenda entre a França e a Inglaterra, pela posse da América do Norte. Na nossa Inglaterra, acabam de desaparecer dois homens eminentes, apresentando tais contrastes, que merecem ser discutidos e comparados: estes homens chamaram-se Freeman e Froude.

Este último era um grande escritor, e possuindo ainda uma brilhante imaginação – faculdade esta que pode ser censurável em um historiador mas que se torna completamente indispensável para sua grandeza. Assim, apesar de haver sido acusado de muitas inexatidões, a sua compreensão e perspicácia tornaram-no frequentes vezes tão acertado nas considerações, que não posso deixar de o julgar um historiador muito superior a Freeman, seu adversário e crítico. Este, embora possuísse em mais elevado grau a ciência de investigar, e fosse muito mais exato nos pormenores, serve-se de um certo estilo grosseiro que afastará dele os leitores. Além de ostentar constantemente e com pedantesco orgulho a sua erudição, ainda afirma ou dá a entender com insolência a inferioridade dos que trabalham no mesmo campo. Desvia-se da sua História das federações gregas a fim de escrever notas sobre Napoleão III, que poderiam ser escritas por Vítor Hugo. Assim, apesar da sua grossa ciência, dos seus conhecimentos acerca da história do mundo, das suas cuidadosas investigações, Freeman será esquecido, quando ainda for lido o brilhante e gracioso Froude, que falará a milhares ele leitores, enquanto aquele já apenas o escutam algumas dezenas de ouvintes. Assim, também, os mestres do povo inglês na história são antes Shakespeare e Walter Scott do que o bispo Stubbs ou sir John Seeley, porque é esta a forma extrema do contraste entre o escritor pitoresco e o laborioso investigador. Sei que é regra entre os discípulos da escola de investigação negar-se qualquer mérito ou valor como historiadores aos escritores imaginativos.

Todavia, sustento a opinião de que para cada pessoa que arranjou alguns conhecimentos acerca de Luís XI, rebuscando-os entre crônicas contemporâneas, existem dez mil que obtiveram dele uma ideia mais geral e verdadeira pela leitura de Qentin Durward ou de Notre, Dame de Paris. Devo acrescentar que não é fácil tarefa interessar o público vulgar na leitura histórica e have-lo conseguido representa um grande passo na civilização moderna.

Ocupando um lugar intermédio entre Froude e Freetnan, coloco os meus dois amigos pessoais, Green e Lecky, os quais me aventuro a considerar como os mais populares escritores de história que a Inglaterra produziu depois de Gibbon. Green faleceu antes de poder dar a sua medida. Lecky é ainda hoje uma figura proeminente em Inglaterra; mas é considerado mais político do que historiador, visto ter trocado o estudo pelo Senado, e substituído a vida contemplativa pela atividade prática.

É pouco provável, portanto, que ele nos apresente um novo livro de história. Contudo, os oito volumes da sua História de Inglaterra no Século XVIII, já apresentariam suficiente e ampla confirmação do seu gênio, ainda que os não houvessem precedido esses outros notáveis volumes sobre a história da cultura europeia, que tornaram conhecido e popular o seu nome por todo o império britânico. Pode ser posto em dúvida se o estilo acabado e leve de Lecky iguala o de Froude, ou se as suas investigações podem ser comparadas as de Freeman; contudo. ele reúne qualidades que eles não possuíam e portanto pode ser classificado acima deles por tino crítico independente. Torna-se talvez impossível a qualquer escritor escrever com o brilhantismo de Froude, se quiser escrever com judiciosa serenidade, se for indulgente para com os seus adversários, esforçando-se pela imparcialidade em controvérsias políticas. A narrativa de Lecky não se assemelha ao impetuoso Áufido, que arrasta homens e gado nas suas inesperadas cheias; parece-se mais com o tranquilo Líris, que vai lentamente desgastando os outeiros com a sua mansa corrente.

Mas, por muito bem que Lecky saiba avaliar quanto é necessária a eloquência na confecção da história, sa igualmente subordiná-la aos seus propósitos. Nos últimos dois volumes, que relatam a revolta irlandesa de 1798, ele, convencendo-se de que era pouco provável que alguém tratasse novamente desses factos, pôs de parte beleza da sua obra, a fim de nos fornecer uma compilação de todas as mais fidedignas notas contemporâneas, transcritas com as próprias palavras das autoridades que cita. Assim, estes valiosíssimos volumes dão-nos pouco mais do que um catálogo de extratos, compilados e expresso com cuidado e perícia, aliadas a uma modéstia que o torna ainda mais admiráveis. Podem, portanto, ser imparcialmente apreciados, mais como prova real do seu espírito investigador, do que do seu estilo, além de demonstrar-nos que, longe de ser o escravo deste, sabe subordiná-lo, a fim de atingir mais elevados fins. E contudo, se o livro fosse todo escrito sob essa forma, teria sido apenas lido por estudiosos especialistas e não por toda a gente.

João Ricardo Green foi um homem notável de outro tipo, e o seu único volume sobre o progresso e a educação do povo inglês logo atingiu e conserva ainda uma excepcional popularidade; mas assim como este livro não foi executado na larga escala do Século XVIII de Lecky, também nos dá ideia de uma menos cuidada investigação. Por exemplo, o relato de operações militares é manifestamente feito por forma tão superficial que não elucida bem o leitor. Jamais saberia descrever uma batalha como sir G. Trevellyan (que poderia figurar entre os nossos primeiros historiadores se não fossem as distrações de política partidária) descreveu recentemente a de Bunker's Hill. Por outro lado, as suas narrativas de movimentos populares, como por exemplo, a que trata da reação do povo abandonando o Protetorado para abraçar a antiga soberania, são das mais brilhantes páginas que existem na literatura histórica inglesa.

Não há lugar neste estudo para a filosofia política -` para a história das ideias, independentemente das realizações políticas, como as de Mr. Lecky, acima mencionadas. Não deporei, contudo, a minha pena sem afirmar que em uma dessas obras - o imenso fragmento da vasta concepção de Buckle sobre a civilização da Europa – encontrei maior estímulo, mais sugestão, mais incitamento à reflexão e ao estudo do que jamais encontrei em livro algum do nosso tempo. Não conheço tão pouco outra obra que a possa substituir completamente na educação intelectual de um historiador. Esta confissão é apenas pessoal; outros homens haverá que não aceitariam Buckle, levados por outras considerações. Green começou a concentrar a sua atenção na história por uma mera casualidade. Sendo ainda rapaz, foi felicitado, por ter ganho um prêmio, por um velho professor-mor do colégio da Madalena, que lhe disse:

"Lembra-te que esta mão que agora apertas, já foi apertada pela mão do grande dr. Johnson".

E quantos outros homens haverá a quem uma casualidade, muitas vezes trivial em aparência, desperta faculdades dormentes? Se me for permitido citar o meu próprio caso, direi que a libertação de trabalhos escolares, a falta de ocupações suficientes e o acaso que me deparou um volume da Grécia de Grote, foram as causas determinantes que me impeliram, aos quatorze anos, para o estudo da história clássica, não obstante faltarem a Grote tanto a imaginação com eloquência tendentes a atraírem as atenções de uma criança. Todavia ambas estas qualidades existem no livro: sob a forma de uma clareza extrema, quando trate de descrições complicadas; em impressiva gravidade nas lições políticas, e em um certo tom geral digno e ponderado, que só um escritor de mérito pode atingir. Os homens variam nas suas predileções e nos seus gostos mas a história fornece uma galeria de tipos e de variedades suficientes para satisfazer todas as formas de inteligência por muito elevadas que sejam; pois acaso não é ela, segundo as eloquentes palavras de Cícero:

Testis temporum, lux veritatis, vita memoriae, magistra vitae, nintia vetustatis?

Fonte:
Suplemento Literário “Portal dos Sonhos” n.4 junho de 2002 – Elaborado pela ALIUBI – Associação dos Literatos de Ubiratã – Presidente: Odair Roberto da Silva; Vice Presidente: José Feldman. Ubiratã/PR: TV Aymoré.

Ialmar Pio Schneider (Mate no Galpão)


O mate amargo passa de mão em
mão e a gente se lembra de tropeadas
do destino que leva por estradas
desconhecidas, tristes, sem ninguém.

A cuia prateada me entretém,
escutando os causos dos camaradas
que fizeram de suas gauchadas
por terras que se somem pelo além.

Ruivo fogo crepita no galpão,
nobre abrigo dos tauras soberanos
que saudosos se ajuntam no rincão

a fim de recordar passados anos.
E a cuia do gostoso chimarrão
me é tristezas, saudades, desenganos...

Jornal de Novo Hamburgoem 17.9.2010

Fonte:Soneto enviado pelo autor

Machado de Assis (O Alienista) VII – O Inesperado; VIII – As angústias do boticário


CAPÍTULO VII - O INESPERADO

Chegados os dragões em frente aos Canjicas houve um instante de estupefação. Os Canjicas não queriam crer que a força pública fosse mandada contra eles; mas o barbeiro compreendeu tudo e esperou. Os dragões pararam, o capitão intimou à multidão que se dispersasse; mas, conquanto uma parte dela estivesse inclinada a isso, a outra parte apoiou fortemente o barbeiro, cuja resposta consistiu nestes termos alevantados:

—Não nos dispersaremos. Se quereis os nossos cadáveres, podeis tomá-los; mas só os cadáveres; não levareis a nossa honra, o nosso crédito, os nossos direitos, e com eles a salvação de Itaguaí.

Nada mais imprudente do que essa resposta do barbeiro; e nada mais natural. Era a vertigem das grandes crises. Talvez fosse também um excesso de confiança na abstenção das armas por parte dos dragões; confiança que o capitão dissipou logo, mandando carregar sobre os Canjicas. O momento foi indescritível. A multidão urrou furiosa; alguns, trepando às janelas das casas ou correndo pela rua fora, conseguiram escapar; mas a maioria ficou bufando de cólera, indignada, animada pela exortação do barbeiro. A derrota dos Canjicas estava iminente quando um terço dos dragões,—qualquer que fosse o motivo, as crônicas não o declaram,—passou subitamente para o lado da rebelião. Este inesperado reforço deu alma aos Canjicas, ao mesmo tempo que lançou o desanimo às fileiras da legalidade. Os soldados fiéis não tiveram coragem de atacar os seus próprios camaradas, e um a um foram passando para eles, de modo que, ao cabo de alguns minutos, o aspecto das coisas era totalmente outro. O capitão estava de um lado com alguma gente contra uma massa compacta que o ameaçava de morre. Não teve remédio, declarou-se vencido e entregou a espada ao barbeiro.

A revolução triunfante não perdeu um só minuto; recolheu os feridos às casas próximas e guiou para a Câmara Povo e tropa fraternizavam, davam vivas a el-rei, ao vice-rei, a Itaguaí, ao "ilustre Porfírio". Este ia na frente, empunhando tão destramente a espada, como se ela fosse apenas uma navalha um pouco mais comprida. A vitória cingia-lhe a fronte de um nimbo misterioso. A dignidade de governo começava a enrijar-lhe os quadris.

Os vereadores, às janelas, vendo a multidão e a tropa, cuidaram que a tropa capturara a multidão, e sem mais exame, entraram e votaram uma petição ao vice-rei para que mandasse dar um mês de soldo aos dragões, "cujo denodo salvou Itaguaí do abismo a que o tinha lançado uma cáfila de rebeldes . Esta frase foi proposta por Sebastião Freitas, o vereador dissidente cuja defesa dos Canjicas tanto escandalizara os colegas. Mas bem depressa a ilusão se desfez. Os vivas ao barbeiro, os morras aos vereadores e ao alienista vieram dar-lhes noticia da triste realidade. O presidente não desanimou:—Qualquer que seja a nossa sorte, disse ele, lembremo-nos que estamos ao serviço de Sua Majestade e do povo.—Sebastião insinuou que melhor se poderia servir à coroa e à vila saindo pelos fundos e indo conferenciar com o juiz de fora, mas toda a Câmara rejeitou esse alvitre.

Daí a nada o barbeiro, acompanhado de alguns de seus tenentes, entrava na sala da vereança intimava à Câmara a sua queda. A Câmara não resistiu, entregou-se e foi dali para a cadeia. Então os amigos do barbeiro propuseram-lhe que assumisse o governo da vila em nome de Sua Majestade. Porfírio aceitou o encargo, embora não desconhecesse (acrescentou) os espinhos que trazia; disse mais que não podia dispensar o concurso dos amigos presentes; ao que eles prontamente anuíram. O barbeiro veio à janela e comunicou ao povo essas resoluções, que o povo ratificou, aclamando o barbeiro. Este tomou a denominação de—"Protetor da vila em nome de Sua Majestade, e do povo".—Expediram-se logo várias ordens importantes, comunicações oficiais do novo governo, uma exposição minuciosa ao vice-rei, com muitos protestos de obediência às ordens de Sua Majestade; finalmente uma proclamação ao povo, curta, mas enérgica:

"Itaguaienses!

Uma Câmara corrupta e violenta conspirava contra os interesses de Sua Majestade e do povo. A opinião pública tinha-a condenado; um punhado de cidadãos, fortemente apoiados pelos bravos dragões de Sua Majestade, acaba de a dissolver ignominiosamente, e por unânime consenso da vila, foi-me confiado o mando supremo, até que Sua Majestade se sirva ordenar o que parecer melhor ao seu real serviço. Itaguaienses! não vos peço senão que me rodeeis de confiança, que me auxilieis em restaurar a paz e a fazenda publica, tão desbaratada pela Câmara que ora findou às vossas mãos. Contai com o meu sacrifício, e ficai certos de que a coroa será por nós.

O Protetor da vila em nome de Sua Majestade e do povo

Porfírio Caetano das Neves".

Toda a gente advertiu no absoluto silêncio desta proclamação acerca da Casa Verde; e, segundo uns, não podia haver mais vivo indício dos projetos tenebrosos do barbeiro. O perigo era tanto maior quanto que, no meio mesmo desses graves sucessos, o alienista metera na Casa Verde umas sete ou oito pessoas, entre elas duas senhoras e sendo um dos homens aparentado com o Protetor. Não era um repto, um ato intencional; mas todos o interpretaram dessa maneira; e a vila respirou com a esperança de que o alienista dentro de vinte e quatro horas estaria a ferros e destruído o terrível cárcere.

O dia acabou alegremente. Enquanto o arauto da matraca ia recitando de esquina em esquina a proclamação, o povo espalhava-se nas ruas e jurava morrer em defesa do ilustre Porfírio Poucos gritos contra a Casa Verde, prova de confiança na ação do governo. O barbeiro faz expedir um ato declarando feriado aquele dia, e entabulou negociações com o vigário para a celebração de um Te-Deum, tão conveniente era aos olhos dele a conjunção do poder temporal com o espiritual; mas o Padre Lopes recusou abertamente o seu concurso.

—Em todo caso, Vossa Reverendíssima não se alistará entre os inimigos do governo? disse-lhe o barbeiro, dando à fisionomia um aspecto tenebroso.

Ao que o Padre Lopes respondeu, sem responder:

—Como alistar-me, se o novo governo não tem inimigos?

O barbeiro sorriu; era a pura verdade. Salvo o capitão, os vereadores e os principais da vila, toda a gente o aclamava. Os mesmos principais, se o não aclamavam, não tinham saído contra ele. Nenhum dos almotacés deixou de vir receber as suas ordens. No geral, as famílias abençoavam o nome daquele que ia enfim libertar Itaguaí da Casa Verde e do terrível Simão Bacamarte.

CAPÍTULO VIII - AS ANGÚSTIAS DO BOTICÁRIO

Vinte e quatro horas depois dos sucessos narrados no capítulo anterior, o barbeiro saiu do palácio do governo,—foi a denominação dada à casa da Câmara,—com dois ajudantes-de-ordens, e dirigiu-se à residência de Simão Bacamarte. Não ignorava ele que era mais decoroso ao governo mandá-lo chamar; o receio, porém, de que o alienista não obedecesse, obrigou-o a parecer tolerante e moderado.

Não descrevo o terror do boticário ao ouvir dizer que o barbeiro ia à casa do alienista.—Vai prendê-lo, pensou ele. E redobraram-lhe as angústias. Com efeito, a tortura moral do boticário naqueles dias de revolução excede a toda a descrição possível. Nunca um homem se achou em mais apertado lance: —a privança do alienista chamava-o ao lado deste, a vitória do barbeiro atraía-o ao barbeiro. Já a simples noticia da sublevação tinha-lhe sacudido fortemente a alma, porque ele sabia a unanimidade do ódio ao alienista; mas a vitória final foi também o golpe final. A esposa, senhora máscula, amiga particular de D. Evarista, dizia que o lugar dele era ao lado de Simão Bacamarte; ao passo que o coração lhe bradava que não, que a causa do alienista estava perdida, e que ninguém, por ato próprio, se amarra a um cadáver. Fê-lo Catão , é verdade, sed victa Catoni, pensava ele, relembrando algumas palestras habituais do Padre Lopes; mas Catão não se atou a uma causa vencida, ele era a própria causa vencida, a causa da república; o seu ato, portanto, foi de egoísta, de um miserável egoísta; minha situação é outra.

Insistindo, porém, a mulher, não achou Crispim Soares outra saída em tal crise senão adoecer; declarou-se doente e meteu-se na cama.

—Lá vai o Porfírio à casa do Dr. Bacamarte, disse-lhe a mulher no dia seguinte à cabeceira da cama; vai acompanhado de gente.

—Vai prendê-lo, pensou o boticário.

Uma idéia traz outra; o boticário imaginou que, uma vez preso o alienista, viriam também buscá-lo a ele na qualidade de cúmplice. Esta idéia foi 0 melhor dos vesicatórios. Crispim Soares ergueu-se, disse que estava bom, que ia sair; e, apesar de todos os esforços e protestos da consorte, vestiu-se e saiu. Os velhos cronistas são unânimes em dizer que a certeza de que o marido ia colocar-se nobremente ao lado do alienista consolou grandemente a esposa do boticário; e notam com muita perspicácia o imenso poder moral de uma ilusão; porquanto, o boticário caminhou resolutamente ao palácio do governo e não à casa do alienista. Ali chegando, mostrou-se admirado de não ver o barbeiro, a quem ia apresentar os seus protestos de adesão, não o tendo feito desde a véspera por enfermo. E tossia com algum custo. Os altos funcionários que lhe ouviam esta declaração, sabedores da intimidade do boticário com o alienista, compreenderam toda a importância da adesão nova e trataram a Crispim Soares com apurado carinho; afirmaram-lhe que o barbeiro não tardava; Sua Senhoria tinha ido à Casa Verde, a negócio importante, mas não tardava. Deram-lhe cadeira, refrescos, elogios; disseram-lhe que a causa do ilustre Porfírio era a de todos os patriotas; ao que o boticário ia repetindo que sim, que nunca pensara outra coisa, que isso mesmo mandaria declarar a Sua Majestade.

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continua… Capitulo IX – Dois lindos casos ; Capítulo X – Restauração
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Fonte:
ASSIS, Machado de. O Alienista.

Raquel Amélia dos Santos (Desejo Humano)


"Nada sabemos da alma senão da nossa;As dos outros são olhares;São gestos, são palavras..."
Fernando Pessoa


O encontro talvez seja a eterna busca humana.
No encontro pode ocorrer a afirmação do ser e a possibilidade do estar sendo.
O desejo de pertencer, de ser reconhecido e de reconhecer-se, impulsiona essa busca permanente que homens e mulheres empreendem todos os dias de forma consciente ou não.

Entre as aspirações humanas, ser acolhido é a que considero mais urgente e fundamental. O acolhimento no sentido pleno da palavra. Clarice Lispector ao falar das aspirações humanas, diz que "O que o ser humano mais aspira é tornar-se humano." Neste caso, a humanidade desejada traz consigo virtudes, limites e mazelas próprios do ser gente.

Os encontros podem ser permeados de oportunidades de acolhimento ou não.

Vivemos em um tempo em que as pessoas não sentem-se a vontade para ser elas mesmas e assumirem sua humanidade. Na maior parte do tempo, vivemos em um grande teatro, onde exibem padrões e habilidades físicas, aparência de auto-controle, uma felicidade permanente e um entusiasmo constante.É abominável e proibido mostrar fragilidade ou qualquer sinal dos limites humanos, como por exemplo, carência afetiva e querer ser amado.

O que se deseja realmente é o encontro como confluência e não a colisão.
As pessoas querem ser vistas e ouvidas. Esse ser visto e ouvido é anseio profundo da alma, que nem sempre é devidamente assumido.
As crianças demonstram claramente o desejo do encontro sem camuflagens.

Querem brincar, rir, conversar e recriar a realidade juntas. Inventam, reinventam, constroem, desconstroem. E fazem isso muito bem na interação com o outro, no encontro. São livres, verdadeiras e desejam naturalmente serem acolhidas pelo outro. Na sua autenticidade não pretendem impressionar. São apenas elas mesmas.

Nos encontros infantis, há facilidade de uma boa negociação. Vão ao encontro uma da outra, sem muitas restrições e sem medo da não aceitação.
As vezes tenho o prazer de observar tais encontros e finjo não estar prestando atenção. Um propõe a brincadeira e então fazem os combinados e estabelecem as regras.

É mais ou menos assim: _ Vamos brincar de casinha? _Vamos! Finge que eu sou a mãe. _ Eu sou o filho! _Então eu vou ser o pai._ Ah! Então vou ser o irmão! E neste diálogo começam a brincar, distribuem tarefas, organizam o espaço, estabelecem limites, atribuem funções, estabelecem direitos e deveres e assim reproduzem e reelaboram a realidade. As crianças não precisam ser velhas amigas para que haja o encontro entre elas. Agem com naturalidade. Assim ocorre em outras brincadeiras também.

Os adultos são ex crianças, formados por outros adultos. Em muitos casos, rigidamente treinados para não sorrirem, não olharem de verdade para o outro e devem ter sempre convicção e jamais abrir mão de suas verdades. Principalmente das antigas, que aparentemente dão segurança. Deixam de ser espontâneos, perdem a autenticidade e estão formatados para dizerem definitivamente sim ou não. Não sabem lidar com o talvez. Criam escudos e variadas formas de defesa.

Ser uma ex criança, não significa ter que extinguir do ser, elementos essenciais à vida, como por exemplo, flexibilidade e abertura para aprender a lidar com o novo, mobilidade de pontos de vista.

As crianças investigam, experimentam, começam, recomeçam, fazem, refazem o tempo todo.

Já o adulto, considera-se pronto e têm dificuldades de colocar-se no lugar do outro, de experimentar novas e diferentes perspectivas. Neste caso o encontro torna-se colisão.

A cada dia as pessoas estão mais solitárias e perdem-se em si mesmas. Sentem saudades de quem realmente são, sem compreenderem que o ser e o estar sendo, fazem-se com a presença do outro.

O encontro é uma forma de saber quem somos. O auto conhecimento depende também da presença do outro. Jean Paul Sartre diz que "Para saber uma verdade qualquer a meu respeito, é preciso que eu passe pelo outro." O encontro é um passar pelo outro. Isso requer flexibilidade e disposição para deslocar-se quando necessário. Não é tarefa fácil, não para os adultos.
Bem treinados, são hábeis na defesa e no ataque. Estão sempre atentos a qualquer sinal de proximidade do outro. Dominados pelo medo de mostrarem-se estão prontos para uma colisão, apesar de desejarem ardentemente a confluência.

O medo nem sempre é assumido de forma consciente, mas quase sempre está presente enquanto homens e mulheres tentar vivenciar sua humanidade.
A cantora Pitty, em uma de suas músicas, diz o seguinte: "(...) homem que nada teme é homem que nada ama". Há certa razão nesta forma de pensar.
Medrosos e Medrosas do mundo inteiro, tranquilizem-se! O medo pode ser um indício do amar! Não do amor simplesmente, mas do Amar! Lembrando que amor é substantivo e amar é verbo, e verbo é ação. Indica movimento que aconteceu, acontece e acontecerá.

O medo é normal e necessário. É um mecanismo de defesa, acionado sempre que pensamos haver algum perigo.

Ter momentos de medo, não significa encontrar-se sempre neste estado.
Sobre o medo afirma Sartre: "(...) Todos os homens têm medo. Quem não tem medo não é normal; isso nada tem a ver com coragem."
No encontro, há um processo em que o medo faz parte de uma etapa. Outras etapas vão sendo vivenciadas a seu tempo.

Mesmo sendo natural e necessário, em certa medida, acaba por limitar e dificultar as relações afetivas e amorosas entre as pessoas.
É preciso tomar as rédeas do medo e realizar o que Fernando Pessoa chama de "travessia". Ele diz assim: "É o tempo da travessia... E se não ousarmos faze-la... Teremos ficado...para sempre... À margem de nós mesmos"
Há o tempo do medo, o tempo de enfrenta-lo e domina-lo e de experimentar dar uma chance a nós mesmos.
Há três ações essenciais em um verdadeiro encontro. O falar, o escutar e o olhar. O encontro pode começar de várias formas. Mas o olhar, o ouvir e o falar são o solo onde firmam-se os fundamentos de um encontro.

No início de um encontro, as palavras tentam manifestar-se de forma tímida e meio sufocadas. Levam algum tempo para serem colocadas em liberdade.

O encontro de verdade, não é só o estar perto fisicamente. Essa é só uma forma de estar junto. O verdadeiro encontro requer palavras. As certas, as erradas, as sem sentido, as idiotas, as engraçadas, as que indagam as reveladoras e até as enigmáticas.

Normalmente em começos de relacionamentos, as palavras são bem planejadas e formais.
Com o tempo elas vão sendo usadas como brinquedos.Com esta configuração, servem para descontrair, divertir e aliviar as tensões provocadas pelo medo da não aceitação, pela vontade de impressionar ou despertar o ouvir e o olhar do outro.

E quando menos se espera a distração toma conta do encontro. Tudo fica mais natural e mais próximo da realidade.
Então, inadivertidamente as palavras fluem e acabam por atingir o desejado objetivo de encantar. Ganham força e originalidade, mesmo que o falar seja apenas a citação de um poema alheio.
Sejam elas superficiais, íntimas, eróticas, engraçadas, sérias, românticas, sinceras ou não, tornam-se instrumentos essenciais na construção de vínculos e na recriação da realidade.

As palavras vão sendo carregadas de simbolismos e significados dados pelos encontrantes, que acabam criando seu próprio vocabulário.
As vezes, as palavras estão aprisionadas dentro das pessoas e anseiam por um encontro. Desejam a liberdade que Rubem Alves diz ser o "encontrar um ouvido para repousar".

Em encontros de amor, imprevistos, ocasionais, planejados ou desejados, as palavras não são apenas palavras. São poemas que por vezes podem estar impregnados da ardente necessidade de expressar sonhos, fantasias, desejos, emoções e sentimentos que moram em algum canto esquecido da alma.
É o querer amar e ser amado. O querer ter com quem sorrir, com quem desejar, com quem realizar fantasias, com quem sonhar, com quem falar, com quem fazer amor..., o ter para quem voltar.

As palavras certas usadas na hora certa, podem despertar os sentimentos mais doces, a tranquilidade que a alma anseia, a felicidade que estava ali em algum canto do coração, os sonhos, o desejo mais ardente, uma amizade verdadeira, o amor e até a alegria de viver.

Escutar "vem do Latim Auscutare e deu origem a "Auscultar", termo técnico usado pela medicina para definir o ato de ouvir sons em órgãos internos dos pacientes e tem o sentido de ouvir com atenção, ouvir indiretamente e às escondidas.

Escutar demanda disposição e habilidade para perceber o que o outro tem a dizer de forma direta ou indireta. Ou seja, até as palavras que não foram ditas ou permaneceram "às escondidas".

Perceber o que vem do próprio interior e do interior de outra pessoa requer a compreensão de que cada um traz consigo uma história, um contexto, uma formação, uma singularidade, um ser.
Em um encontro, é preciso saber escutar.

Escutar no sentido de ouvir indiretamente, é como o "auscultar". Para auscultar os pulmões de um paciente, o médico precisa de um estetoscópio.
Escuta-se de verdade quando há uma apropriação temporária de alguns dos sentimentos e emoções do que fala. Isto se dá com ajuda do coração, da alma e a capacidade de deslocar-se para o lugar do outro.

O encontro é promovido pelo desejo de ser e de ter a fala acolhida. Gosto de pensar no que Rubem Alves diz a esse respeito. "(...) A gente ama não é a pessoa que fala bonito. É a pessoa que escuta bonito. A fala só bonita quando ela nasce de uma longa e silenciosa escuta. É na escuta que o amor começa. E na não-escuta ele termina."

O olhar é também um elemento mágico em um encontro. Mário Quintana diz que "Quem não compreende um olhar, tampouco compreenderá uma longa explicação".

Os olhos falam. E na verdade dizem mais do que muitas palavras. É fácil mentir com as palavras, mas não com o olhar.

Através do olhar puro e humano percebemos e sentimos a beleza do outro. Se olharmos firmemente nos olhos de outra pessoa, veremos a nós mesmos, a nossa imagem refletida na pupila do outro, que serve de espelho. Por isso Rubem Alves tem razão em dizer que "Uma pessoa é bela, não pela beleza dela, mas pela beleza nossa que se reflete nela..."

O amor, a tristeza, a alegria, o ódio, a indiferença ou qualquer outro sentimento, refletem luz ou a falta dela através do olhar.

Sobre o olhar, a bíblia afirma o seguinte: "Teus olhos são a lâmpada do teu corpo. Se teus olhos forem bons, todo teu corpo será cheio de luz, mas se forem maus, teu corpo ficará cheio de trevas" (Lucas 11:34 e 35).

Um encontro se dá com o falar, com o escutar, com o olhar e demanda mostrar quem somos de fato. Não é possível fazer isto voluntariamente sem que haja uma relação de confiança.

Muitas pessoas vivem juntas anos seguidos e nunca se deixam conhecer.
A confiança é um espaço a ser conquistado em coração alheio.

Uma vez conquistado o espaço, começa-se uma construção cujos fundamentos devem ser estabelecidos sobre a verdade e a sinceridade.

Dentro do processo de conquista e construção da confiança, conquistador e conquistado, concedem permissão para a ocupação no coração do outro.

Diferente das estratégias usadas pelos grandes conquistadores da história. Estes, invadiam e ocupavam através da força bruta, os espaços ou o objeto da conquista.

A confiança não pode ser conquistada através da força bruta. Só acontece quando conquistador e conquistado vão se mostrando de verdade. O conquistador precisa oferecer um bom projeto que indique a implantação de bases firmes para uma edificação estável e segura. O conquistado deve deixar o espaço livre e preparado para tal edificação. Pois não se constrói sobre entulhos ou terreno instável.

As primeiras palavras começam a abrir um caminho para que a conquista seja iniciada. Pode ser o começo de uma relação de amizade ou amor.

Todas as pessoas necessitam mostrar seus poemas secretos.
No entanto, nem sempre é possível encontrar quem os queira conhecer.
A razão é importante, mas não ajuda muito no processo em que a ternura e o afeto querem instalar-se.

Em um encontro, sentimentos confusos e indefinidos podem ir tomando a forma de amor e transformarem-se em amar.

Amar e ser amado é necessidade fundamental do ser. Mas a arrogância e medo de mostrar fraqueza, faz com que homens e mulheres passem a vida mentindo para si próprios e sem coragem de assumir tal necessidade.

O desejo de encontrar amigos e um amor de verdade é próprio do ser humano.

Abandonar velhos hábitos e reelaborar as moradas do coração não é tarefa fácil, mas pode facilitar o reencontro com o que somos de verdade e assim abrir caminhos para o encontro com o outro. O que mais aspiramos mesmo, é a confluência.

É preciso sentir saudades de nós mesmos, e ir ao nosso encontro. Realizar a "travessia", o quanto antes, pois o tempo não para.

Ativar a capacidade de ouvir, de falar e de olhar pode ser uma forma de "passarmos" por nós mesmos e pelo outro. Se o fizermos, saberemos com mais segurança quem somos e assumiremos a nossa humanidade.

Com esse saber pode ser que a busca do encontro seja mais bem sucedida , plena e não " Teremos ficado...para sempre... À margem de nós mesmos".

18 de Setembro de 2011.

Fonte:
Texto enviado pela autora