sábado, 26 de novembro de 2011

Reinaldo Pimenta (Origem das Palavras 10)

A COBRA ESTÁ FUMANDO
Em 1943 foi constituída a FEB - Força Expedicionária Brasileira com o objetivo de lutar na Europa, ao lado dos países aliados, na Segunda Guerra Mundial. A insígnia da FEB ficou assim: sobre um fundo amarelo, o desenho de uma cobra verde fumando um cachimbo; no alto, em letras brancas sobre um fundo azul: "BRASIL".
Pronto, aí estavam as cores da bandeira nacional. Tudo isso aparecia dentro de um octaedro com bordas vermelhas - a cor representando a guerra. O desenho foi uma resposta a um repórter do Rio de Janeiro, que disse ser mais fácil uma cobra fumar do que o Brasil entrar na guerra. O réptil chegou até a ser representado pela Disney: uma cobra de capacete, soltando fumaça pelas ventas e disparando dois revólveres.
A expressão ficou, então, com o sentido de "vou botar pra quebrar", "a situação vai ficar preta".

COBRAS E LAGARTOS
Dizer cobras e lagartos de alguém é dizer coisas ofensivas a essa pessoa. Cobras aí é uma forma antiga de copias, que eram versos de escárnio para zombar de alguém. Dizer cobras era, então, satirizar, ridicularizar uma pessoa. Depois, a palavra cobras, que, com esse sentido, passou a ter a forma copias, passou a ser interpretada como o animal pelo uso popular, que acrescentou os lagartos para dar simetria à frase e também porque, desde a Bíblia, cobras e lagartos já andavam juntos. No livro dos Salmos do Antigo Testamento, aparece: "Sobre a áspide e o basilisco andarás e calcarás aos pés o leão e o dragão" (salmo XC). Áspide é uma serpente; basilisco, um lagarto. O leão e o dragão se separaram porque o segundo assinou contrato de exclusividade de imagem com São Jorge.

CONTO-DO-VIGÁRIO
Vigário veio do latim vicariu, formado de vicis, vez, mudança (daí vice). Tal como a palavra latina, vigário tem o sentido de substituto. Na terminologia eclesiástica, é o padre que substitui o pároco ou, popularmente, o próprio pároco.
Pode ser que a expressão conto-do-vigário tenha vindo daí, ou seja, é o golpe que alguém aplica fazendo-se passar por outro.
Conta-se também a história de um vigário que, em troca de dinheiro miúdo para despesas urgentes, teria confiado a uma pessoa honesta um embrulho, que, segundo ele, continha uma grande quantia em dinheiro, mas na verdade era tudo papel sem valor.
Existe ainda outra tese para a origem da expressão. Entre os nobres da corte portuguesa que vieram parar no Brasil, em 1808, havia um farsante que se anunciava herdeiro de um riquíssimo vigário de Portugal. Por conta da futura herança, o sujeitinho morava, comia e bebia à tripa forra, anunciando que tudo pagaria assim que o vigário português fosse ao encontro do Senhor. O vigarista sumiu, legando suas dívidas aos credores.
O leitor escolha aí a sua versão e eu o poupo de pelo menos outras três.

IR PRA CUCUIA
Na ilha do governador, cidade do Rio de Janeiro, fica o cemitério da Cacuia, junto à praia da Cacuia. Mas, se alguém diz que Fulano foi pra Cacuia, é mais fácil imaginar Fulano dentro de um barranco do que sob uma barraca. E que o cemitério deu nascimento à expressão ir pra cucuia ou ir pras cucuias, morrer, malograr-se.
Cucuia é uma variante popular de Cacuia. A palavra cacuia está dicionarizada como sinônima de cemitério.

DA SILVA
A expressão "da Silva" vem caindo em desuso. Significa "totalmente" e aparece depois de um adjetivo no diminutivo (doidinho da silva, branquinho da silva).
Não existe nenhuma explicação convincente para sua origem. Mas uma delas, sustentada por alguns etimólogos, é bem inventiva. Se o leitor achar que acreditar nela é mais difícil que tirar o primeiro lenço de papel da caixinha, pode esquecer.
A história da expressão teria começado com os pregões das vendedoras portuguesas de sardinhas, que assim alardeavam seu produto: "Ainda viva! Vivinha da costa!" - costa, aí, com o sentido de litoral. Como Costa e Silva, além de nomes muito comuns em Portugal, têm sentidos de certa forma opostos (litoral x selva), assim teria surgido, por contraste, a variante "vivinha da silva".

FAVAS CONTADAS
Favas contadas é uma expressão usada para designar algo fatal, inevitável. A fava é uma prima do feijão, cultivada desde os tempos pré- históricos e adorada pelos romanos.
Antigamente, as favas também eram usadas nas votações: favas brancas para o sim, favas pretas para o não. E cada votante atirava sua fava na urna. Feita a apuração com a contagem das favas, era eleito quem recebesse o maior número de favas brancas. Não adiantava mais ninguém reclamar porque já eram favas contadas. E aí era partir para o abraço e comemorar devorando os votos.

Fonte:
PIMENTA, Reinaldo. A casa da mãe Joana 2. RJ: Elsevier, 2004

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) O Casamento De Narizinho – II – O pedido


Logo que os peixinhos escoteiros chegaram ao sítio de dona Benta, foram tratando de erguer a concha e enroscá-la entre duas pedras na beirinha do ribeirão — bem perto do pé de ingá. E por ali ficaram, descansando e espiando.

Não demorou muito, apareceu Pedrinho de vara na mão; vinha pescar justamente ali. Chegou, pôs uma pobre senhora minhoca no anzol e já ia lançá-la ao rio, quando...

— Concha por aqui! — exclamou muito admirado. — Isto tem dente de coelho!...

Pegou a concha. Examinou-a. Sacudiu-a ao ouvido. Percebeu barulhinho de carta dentro. Abriu-a: era carta mesmo!

— Hum! Carta para Lúcia. Há de ser namoro — e voltou para casa a correr.

— Narizinho! — foi gritando logo da porta da rua. — Uma carta para você!...

A menina estava ajudando tia Nastácia a enrolar rosquinhas de polvilho. Assim que ouviu aqueles berros, largou da massa, limpou as mãos no avental da preta e disse:

— De quem será, meu Deus do céu? Rasgou o envelope e leu:

Senhora!
A felicidade do reino das Águas Claras está nas vossas mãos. Nosso príncipe perdeu-se de amores e só pode ser salvo se a menina o aceitar como esposo. Ou casa-se ou morre — diz o médico da corte.
Quererá a menina salvar este reino da desgraça, compartilhando o trono com o nosso muito amado príncipe?
(Assinado) Peixinhos do mar

— Sim, senhor! — disse Narizinho depois de lida a carta. – Estes tais peixinhos sabem escrever na perfeição. Acho que nem vovó, que é uma danada, seria capaz de escrever uma cartinha tão cheia de gramáticas...

Depois, voltando-se para Pedrinho, ordenou muito naturalmente:

— Responda que sim, que aceito. Diga que estou ajudando tia Nastácia a enrolar estas rosquinhas e logo que acabe irei casar com ele.

Dona Benta, que ia passando, ouviu o final da frase.

— Casar com quem, menina? Que história de casamento é essa?...

— Sim, vovó! Fui pedida em casamento e aceitei. Vou casar-me com o príncipe Escamado.

Tia Nastácia arregalou os olhos para dona Benta, que por sua vez tinha os olhos arregalados para a menina.

Narizinho riu-se de tanto olho arregalado e continuou :

— De que é que se espantam? Se toda a gente se casa, por que não posso casar-me também?

— Sim, minha filha — respondeu dona Benta com pachorra.

— Todos se casam, não há dúvida. Eu me casei, sua mãe se casou. Mas todos se casam com gente da mesma igualha. É muito diverso disso de casar com um peixe...

— Dobre a língua, vovó! Escamado é príncipe. Se se tratasse aí dum peixe vulgar de lagoa, vá que vovó falasse. Mas o meu noivo é um grande príncipe das águas!...

— Mas não é criatura da nossa espécie, menina.

— E que tem isso? A Emília, que é uma boneca, não se casou tão bem com Rabicó, que é leitão? Acho as suas idéias muito atrasadas, vovó...

Dona Benta volveu os olhos para tia Nastácia.

— Já não entendo estes meus netos. Fazem tais coisas que o sítio está virando livro de contos da Carochinha. Nunca sei quando falam de verdade ou de mentira. Este casamento com peixe, por exemplo, está me parecendo brincadeira, mas não me admirarei se um belo dia surgir por aqui um marido-peixe, nem que esta menina me venha dizer que sou bisavó duma sereiazinha...

A negra benzeu-se com ambas as mãos.

— Credo! Até parece bruxaria... Mas se chegar a esse tempo, sinhá, mecê que trate de arranjar outra cozinheira. Assim catacega como sou, tenho medo de escamar e fritar um bisneto de mecê pensando que é alguma traíra...

Enquanto as velhas discutiam o estranho caso, Pedrinho fez a carta de resposta. Depois dobrou-a, bem dobradinha. Depois fechou-a, bem fechadinha, dentro do mesmo envelope-concha. Depois colocou o envelope-concha no lugar onde o havia encontrado.

Imediatamente os peixinhos escoteiros se aproximaram. Cheiraram a concha, viram que havia resposta dentro e com fortes narigadas a derrubaram n’água, voltando a rolar com ela pelo fundo do rio.

Quando o príncipe leu a resposta de Narizinho, quase morreu de alegria. Apesar de ser a carta mais curta do mundo, pois se compunha apenas duma palavra — “SIM!” — o príncipe perdeu a compostura, e pôs-se a dar pinotes em cima do trono que até parecia um peixe pescado e largado no seco.

Os ministros e demais fidalgos da corte trocaram olhares de aflição. Teria enlouquecido o amado príncipe?

Escamado, afinal, caiu em si, e ficou vermelhinho como um camarão.

— Perdoem-me estas expansões, amigos! — disse ele. – São alegrias loucas dum náufrago que vê afinal o porto da salvação. Este “sim” comoveu-me até o fundo da alma. Não é um simples sim, reparem. É um sim seguido de um ponto de admiração! Quer dizer que Narizinho não se limita a aceitar a minha proposta, mas a aceita com entusiasmo! Céus! Como me sinto feliz!...

Dando em seguida ordem para prepararem o reino para a maior festa que ainda houve nos Sete Mares, dirigiu-se à sua mesinha, molhou uma pena de beija-flor na pérola furada que lhe servia de tinteiro e principiou a escrever cartas de amor. Escreveu até acabar a tinta e a pena ficar reduzida a um toco. Ia escrevendo e mandando, e tantas escreveu e mandou que o mordomo do palácio teve de organizar um serviço de correio especial, dispondo milhares de sardinhas pelo mar afora, a pouca distância uma da outra. As cartas iam passando de mão em mão, como fazem os pedreiros com os tijolos.

Narizinho lia as cartas e respondia com presentes — ora uma flor, ora um grilinho do gramado, ora uma rosada e roliça minhoca.

Mandou também uma das rosquinhas de polvilho, dizendo que fora enrolada pela suas próprias mãos.

Foi o presente de que o príncipe mais gostou. Mas em vez de comer a rosquinha, mandou que o melhor ourives do reino engastasse nela uma fileira de diamantes, de modo a transformá-la numa preciosa coroa.

— Ficará sendo a minha coroa real — e nenhuma porei na cabeça com maior orgulho! — disse o príncipe, comovido.
––––––––
Continua... Os brincos do Marquês

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Trova Ecológica 51 - Wagner Marques Lopes (MG)

Carolina Ramos (Livro de Poesias "Destino")


texto por José Feldman

Temos o destino que merecemos.
O nosso destino está de acordo com os nossos méritos.
(Albert Einstein)

Destino é o livro de poesias da “primeira dama da trova” de Santos/SP, Carolina Ramos. Além de suas magníficas trovas, seus contos que vim a conhecer em seu livro “Interlúdio”, esta guerreira nos encanta com suas poesias.

Destino é o que buscamos, cada qual a seu modo, por seu caminho, e neste livro, Carolina mostra este fado, através da Tentação, do Cântico de Fé, de Esperança, da Voz do Silêncio, da Hipocrisia, do Milagre, da Amizade. Ela nos faz enveredar por um caminho que às vezes parece árduo, mas que ao mesmo tempo nos seduz, fazendo com que desejemos continuar esta caminhada. Ela não só nos delicia com suas palavras, mas faz que vivamos os momentos de emoções, muitas vezes por nós vividos, outras por nossos sonhos, assim como os instantes de nossas desilusões.

Segundo Machado de Assis, “O destino, como os dramaturgos, não anuncia as peripécias nem o desfecho”, e é assim nas 227 páginas do livro. Todo momento é um novo momento, cada poesia faz parte de um emaranhado de uma teia, a teia do Destino.

O destino, sobretudo,
numa visão alongada,
é uma incerteza de tudo
ante a certeza do nada!
Eduardo A. O. Toledo (Pouso Alegre/MG)

E Carolina não pára por aí, vai criando uma teia enorme ao escrever sobre o que há a nossa volta ou sobre personagens que povoam nossa mente, como Castro Alves, José de Anchieta, ou mesmo locais como Nova Friburgo, Corumbá, Santos, etc.

Deixa que o ouro do sonho te enriqueça:
– Velho, terás um coração menino!
Vai…que o beijo das Musas tua alma aqueça…
– Poeta, vai… e cumpre o teu Destino!
(Carolina Ramos, in poesia Destino, estrofe final, p.18)

Qual será o destino? Não sabemos! Mas,

Sou tal qual um beduíno,
na vastidão do deserto,
levado pelo destino
para o meu destino incerto!
Francisco Neves de Macedo (Natal/RN)

Somos qual beduíno a percorrer a vastidão das folhas deste livro, que ora é deserto, ora é oásis, e que cada verso, cada palavra seja um momento de reflexão, aquele momento sublime entre a tempestade e a calmaria, e que este momento seja como um fio, um fio tênue e longo que una em suas pontas os desejos e os mistérios do destino, um fio de um lado nós, seres humanos, do outro, Deus.

Saiba que seu destino é traçado pelos seus próprios pensamentos,
e não por alguma força que venha de fora.
O seu pensamento é a planta concebida por um arquiteto
para construir um edifício denominado prosperidade.
Você deve tornar o seu pensamento mais elevado,
mais belo e mais próspero
(Martin Luther King)

Ou, nas palavras de Paulo Bomfim: “O destino deste livro é destinar destinos”.

Divaguemos ao sabor das ondas do Destino.

José Feldman

Carolina Ramos (Caderno de Poesias)


CÉU DE AMOR

Bastava o manto azul da fantasia
a oferecer à vida luz e cor...
Bastava uma semente de Poesia
para, de sonhos, um jardim compor!

Bastava acreditar que ainda viria
nos meus braços pulsar um grande amor.
O que nunca, meu Deus, pressentiria,
é que a vida guardasse tanta dor!

E se a angústia aceitei por companheira,
sinto, agora, feliz, por vez primeira,
a doçura de obter, sem pedir nada!

Que importam rumos que o destino assume,
se, sobre mim, há um céu que se resume
nesta glória de amar e ser amada!
1976
(in: Destino, p.64)

SÚPLICA

Dá-me, Senhor, a benção que resume
a certeza de que, crescendo aos poucos,
hei de chegar a ver o excelso lume
- privilégio dos bons, quiçá bem poucos!

Dá-me a graça de olhar, sem ter ciúme,
namorados aos pares, de amor loucos,
da saudade a esquecer o frio gume
e o coração no peito a dar-me socos!

Dá-me ver rosas, mesmo em vaso alheio,
a enfeitar este mundo, às vezes feio
- feio porque o egoísmo assim o quis!

Dá-me um punhado tenro de esperanças...
Dá-me o riso espontâneo das crianças...
- Mais nada eu peço, para ser feliz!
(in: Destino, p.98)

NOVA FRIBURGO

Loira "Princesa da Serra",
das nuvens rasgando o véu!
Indago, serás da terra
ou doce visão do céu?!

Tens glórias de velho burgo,
cobrem-te rendas e galas,
mas, sempre nova, Friburgo,
vive a beijar-te o Bengalas!

Pelas nuvens resguardada,
meio aos penhascos da Serra,
Friburgo és concha encantada,
onde a Poesia se encerra!

Tua chave, hoje, me ofertas!
Isto me faz tua irmã...
e vejo portas abertas,
nesta festiva manhã!

Em troca deste presente
que me dás, Friburgo bela,
minha alma te abro e, contente,
verás que estás dentro dela!

E quando meus olhos ponho
no céu azul, sobre ti...
Não sei, Friburgo, se é sonho...
só sei que o teu céu sorri!!!
(in: Destino, p.186-187)

Fonte:
RAMOS, Carolina. Destino: poesias. SP: EditorAção, 2011

Adélia Prado (Sem Enfeite Nenhum)

Pintura de Guido Viario
A mãe era desse jeito: só ia em missa das cinco, por causa de os gatos no escuro serem pardos. Cinema, só uma vez, quando passou os Milagres do padre Antônio em Urucânia. Desde aí, falava sempre, excitada nos olhos, apressada no cacoete dela de enrolar um cacho de cabelo: se eu fosse lá, quem sabe?

Sofria palpitação e tonteira, lembro dela caindo na beira do tanque, o vulto dobrado em arco, gente afobada em volta, cheiro de alcanfor.

Quando comecei a empinar as blusas com o estufadinho dos peitos, o pai chegou pra almoçar, estudando terreno, e anunciou com a voz que fazia nessas ocasiões, meio saliente: companheiro meu tá vendendo um relogim que é uma gracinha, pulseirinha de crom', danado de bom pra do Carmo. Ela foi logo emendando: tristeza, relógio de pulso e vestido de bolér. Nem bolero ela falou direito de tanta antipatia. Foi água na fervura minha e do pai.

Vivia repetindo que era graça de Deus se a gente fosse tudo pra um convento e várias vezes por dia era isto: meu Jesus, misericórdia... A senhora tá triste, mãe? eu falava. Não, tou só pedindo a Deus pra ter dó de nós.

Tinha muito medo da morte repentina e pra se livrar dela, fazia as nove primeiras sextas-feiras, emendadas. De defunto não tinha medo, só de gente viva, conforme dizia. Agora, da perdição eterna, tinha horror, pra ela e pros outros.

Quando a Ricardina começou a morrer, no Beco atrás da nossa casa, ela me chamou com a voz alterada: vai lá, a Ricardina tá morrendo, coitada, que Deus perdoe ela, corre lá, quem sabe ainda dá tempo de chamar o padre, falava de arranco, querendo chorar, apavorada: que Deus perdoe ela, ficou falando sem coragem de aluir do lugar.

Mas a Ricardina era de impressionar mesmo, imagina que falou pra mãe, uma vez, que não podia ver nem cueca de homem que ela ficava doida. Foi mais por isso que ela ficou daquele jeito, rezando pra salvação da alma da Ricardina.

Era a mulher mais difícil a mãe. Difícil, assim, de ser agradada. Gostava que eu tirasse só dez e primeiro lugar. Pra essas coisas não poupava, era pasta de primeira, caixa com doze lápis e uniforme mandado plissar. Acho mesmo que meia razão ela teve no caso do relógio, luxo bobo, pra quem só tinha um vestido de sair.

Rodeava a gente estudar e um dia falou abrupto, por causa do esforço de vencer a vergonha: me dá seus lápis de cor. Foi falando e colorindo laranjado, uma rosa geométrica: cê põe muita força no lápis, se eu tivesse seu tempo, ninguém na escola me passava, inteligência não é estudar, por exemplo falar você em vez de cê, é tão mais bonito, é só acostumar. Quando o coração da gente dispara e a gente fala cortado, era desse jeito que tava a voz da mãe.

Achava estudo a coisa mais fina e inteligente era mesmo, demais até, pensava com a maior rapidez. Gostava de ler de noite, em voz alta, com tia Santa, os livros da Pia Biblioteca, e de um não esqueci, pois ela insistia com gosto no titulo dele, em latim: Máguina pecatrís. Falava era antusiasmo e nunca tive coragem de corrigir, porque toda vez que tava muito alegre, feito naquela hora, desenhando, feito no dia de noite, o pai fazendo serão, ela falou: coitado, até essa hora no serviço pesado.

Não estava gostando nem um pouquinho do desenho, mas nem que eu falava. Com tanta satisfação ela passava o lápis, que eu fiquei foi aflita, como sempre que uma coisa boa acontecia.

Bom também era ver ela passando creme Marsílea no rosto e Antissardina n° 3, se sacudindo de rir depois, com a cara toda empolada. Sua mãe é bonita, me falaram na escola. E era mesmo, o olho meio verde.

Tinha um vestido de seda branco e preto e um mantô cinzentado que ela gostava demais.

Dia ruim foi quando o pai entestou de dar um par de sapato pra ela. Foi três vezes na loja e ela botando defeito, achando o modelo jeca, a cor regalada, achando aquilo uma desgraça e que o pai tinha era umas bobagens. Foi até ele enfezar e arrebentar com o trem, de tanta raiva e mágoa.

Mas sapato é sapato, pior foi com o crucifixo. O pai, voltando de cumprir promessa em Congonhas do Campo, trouxe de presente pra ela um crucifixo torneadinho, o cordão de pendurar, com bambolim nas pontas, a maior gracinha. Ela desembrulhou e falou assim: bonito, mas eu preferia mais se fosse uma cruz simples, sem enfeite nenhum.

Morreu sem fazer trinta e cinco anos, da morte mais agoniada, encomendando com a maior coragem: a oração dos agonizantes, reza aí pra mim, gente.
Fiquei hipnotizada, olhando a mãe. Já no caixão, tinha a cara severa de quem sente dor forte, igualzinho no dia que o João Antônio nasceu. Entrei no quarto querendo festejar e falei sem graça: a cara da senhora, parece que tá com raiva, mãe.

O Senhor te abençoe e te guarde,
Volva a ti o Seu Rosto e se compadeça de ti,
O Senhor te dê a Paz.

Esta é a bênção de São Francisco, que foi abrandando o rosto dela, descansando, descansando, até como ficou, quase entusiasmado.

Era raiva não. Era marca de dor.

Fonte:
Ítalo Moriconi . Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século. RJ: Objetiva, 2000.

Adélia Prado (1935)


Adélia Luzia Prado Freitas nasceu em Divinópolis, Minas Gerais, no dia 13 de dezembro de 1935, filha do ferroviário João do Prado Filho e de Ana Clotilde Corrêa. Leva uma vidinha pacata naquela cidade do interior: inicia seus estudos no Grupo Escolar Padre Matias Lobato e mora na rua Ceará.

No ano de 1950 falece sua mãe. Tal acontecimento faz com que a autora escreva seus primeiros versos. Nessa época conclui o curso ginasial no Ginásio Nossa Senhora do Sagrado Coração, naquela cidade.

No ano seguinte inicia o curso de Magistério na Escola Normal Mário Casassanta, que conclui em 1953. Começa a lecionar no Ginásio Estadual Luiz de Mello Viana Sobrinho em 1955.

Em 1958 casa-se, em Divinópolis, com José Assunção de Freitas, funcionário do Banco do Brasil S.A. Dessa união nasceriam cinco filhos: Eugênio (em 1959), Rubem (1961), Sarah (1962), Jordano (1963) e Ana Beatriz (1966).

Antes do nascimento da última filha, a escritora e o marido iniciam o curso de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Divinópolis.

Em 1972 morre seu pai e, em 1973, forma-se em Filosofia. Nessa ocasião envia carta e originais de seus novos poemas ao poeta e crítico literário Affonso Romano de Sant'Anna, que os submete à apreciação de Carlos Drummond de Andrade.

"Moça feita, li Drummond a primeira vez em prosa. Muitos anos mais tarde, Guimarães Rosa, Clarisse. Esta é a minha turma, pensei. Gostam do que eu gosto. Minha felicidade foi imensa.Continuava a escrever, mas enfadara-me do meu próprio tom, haurido de fontes que não a minha. Até que um dia, propriamente após a morte do meu pai, começo a escrever torrencialmente e percebo uma fala minha, diversa da dos autores que amava. É isto, é a minha fala."

Em 1975, Drummond sugere a Pedro Paulo de Sena Madureira, da Editora Imago, que publique o livro de Adélia, cujos poemas lhe pareciam "fenomenais". O poeta envia os originais ao editor daquele que viria a ser Bagagem. No dia 09 de outubro, Drummond publica uma crônica no Jornal do Brasil chamando a atenção para o trabalho ainda inédito da escritora.

"Bagagem, meu primeiro livro, foi feito num entusiasmo de fundação e descoberta nesta felicidade. Emoções para mim inseparáveis da criação, ainda que nascidas, muitas vezes, do sofrimento. Descobri ainda que a experiência poética é sempre religiosa, quer nasça do impacto da leitura de um texto sagrado, de um olhar amoroso sobre você, ou de observar formigas trabalhando."

O livro é lançado no Rio, em 1976, com a presença de Antônio Houaiss, Raquel Jardim, Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector, Juscelino Kubitscheck, Affonso Romano de Sant'Anna, Nélida Piñon e Alphonsus de Guimaraens Filho, entre outros.

O ano de 1978 marca o lançamento de O coração disparado que é agraciado com o Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro.

Estréia em prosa no ano seguinte, com Soltem os cachorros. Com o sucesso de sua carreira de escritora vê-se obrigada a abandonar o magistério, após 24 anos de trabalho. Nesse período ensinou no Instituto Nossa Senhora do Sagrado Coração, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Divinópolis, Fundação Geraldo Corrêa — Hospital São João de Deus, Escola Estadual são Vicente e Escola Estadual Matias Cyprien, lecionando Educação Religiosa, Moral e Cívica, Filosofia da Educação, Relações Humanas e Introdução à Filosofia. Sua peça, O Clarão,um auto de natal escrito em parceria com Lázaro Barreto, é encenada em Divinópolis.

"O transe poético é o experimento de uma realidade anterior a você. Ela te observa e te ama. Isto é sagrado. É de Deus. É seu próprio olhar pondo nas coisas uma claridade inefável. Tentar dizê-la é o labor do poeta."

Em 1980, dirige o grupo teatral amador Cara e Coragem na montagem de O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna. No ano seguinte, ainda sob sua direção, o grupo encenaria A Invasão, de Dias Gomes. Publica Cacos para um vitral. Lucy Ann Carter apresenta, no Departament of Comparative Literature, da Princeton University, o primeiro de uma série de estudos universitários sobre a obra de Adélia Prado.

Em 1981 lança Terra de Santa Cruz.

De 1983 a 1988 exerce as funções de Chefe da Divisão Cultural da Secretaria Municipal de Educação e da Cultura de Divinópolis, a convite do prefeito Aristides Salgado dos Santos.

Os componentes da banda é publicado em 1984.

Participa, em 1985, em Portugal, de um programa de intercâmbio cultural entre autores brasileiros e portugueses, e em Havana, Cuba, do II Encontro de Intelectuais pela Soberania dos Povos de Nossa América.

Fernanda Montenegro estréia, no Teatro Delfim - Rio de Janeiro, em 1987, o espetáculo Dona Doida: um interlúdio, baseado em textos de livros da autora. A montagem, sob a direção de Naum Alves de Souza, fez grande sucesso, tendo sido apresentada em diversos estados brasileiros e, também, nos EUA, Itália e Portugal.

Apresenta-se, em 1988, em Nova York, na Semana Brasileira de Poesia, evento promovido pelo Comitê Internacional pela Poesia. É publicado A faca no peito.

Participa, em Berlim, Alemanha, do Línea Colorada, um encontro entre escritores latino-americanos e alemães.

Em 1991 é publicada sua Poesia Reunida.

Volta, em 1993, à Secretaria Municipal de Educação e Cultura de Divinópolis, integrando a equipe de orientação pedagógica na gestão da secretária Teresinha Costa Rabelo.

Em 1994, após anos de silêncio poético, sem nenhuma palavra, nenhum verso, ressurge Adélia Prado com o livro O homem da mão seca. Conta a autora que o livro foi iniciado em 1987, mas, depois de concluir o primeiro capítulo, foi acometida de uma crise de depressão, que a bloquearia literariamente por longo tempo. Disse que vê "a aridez como uma experiência necessária" e que "essa temporada no deserto" lhe fez bem. Nesse período, segundo afirmou, foi levada a procurar ajuda de um psiquiatra.

"O que se passou? Uma desolação, você quer, mas não pode. Contudo, a poesia é maior que a poeta, e quando ela vem, se você não a recebe, este segundo inferno é maior que o primeiro, o da aridez."

Deus é personagem principal em sua obra. Ele está em tudo. Não apenas Ele, mas a fé católica, a reza, a lida cristã.

"Tenho confissão de fé católica. Minha experiência de fé carrega e inclui esta marca. Qual a importância da religião? Dá sentido à minha vida, costura minha experiência, me dá horizonte. Acredito que personagens são álter egos, está neles a digital do autor. Mas, enquanto literatura, devem ser todos melhores que o criador para que o livro se justifique a ponto de ser lido pelo seu autor como um livro de outro. Autobiografias das boas são excelentes ficções."

Estréia, em 1996, no Teatro Sesi Minas, em Belo Horizonte, a peça Duas horas da tarde no Brasil, texto adaptado da obra da autora por Kalluh Araújo e pela filha de Adélia, Ana Beatriz Prado.

São lançados Manuscritos de Felipa e Oráculos de maio. Participa, em maio, da série "O escritor por ele mesmo", no ISM-São Paulo. Em Belo Horizonte é apresentado, sob a direção de Rui Moreira, O sempre amor, espetáculo de dança de Teresa Ricco baseado em poemas da escritora.

Adélia costuma dizer que o cotidiano é a própria condição da literatura. Morando na pequena Divinópolis, cidade com aproximadamente 200.000 habitantes, estão em sua prosa e em sua poesia temas recorrentes da vida de província, a moça que arruma a cozinha, a missa, um certo cheiro do mato, vizinhos, a gente de lá.

"Alguns personagens de poemas são vazados de pessoas da minha cidade, mas espero estejam transvazados no poema, nimbados de realidade. É pretensioso? Mas a poesia não é a revelação do real? Eu só tenho o cotidiano e meu sentimento dele. Não sei de alguém que tenha mais. O cotidiano em Divinópolis é igual ao de Hong-Kong, só que vivido em português."

Em 2000, estréia o monólogo Dona da casa, em São Paulo, adaptação de José Rubens Siqueira para Manuscritos de Felipa. A direção é de Georgette Fadel e Élida Marques interpreta Felipa.

Em 2001, apresenta no Sesi Rio de Janeiro e em outras cidades, sarau onde declama poesias de seu livro Oráculos de Maio acompanhada por um quarteto de cordas.

OBRAS:

POESIA:
- Bagagem, Imago - 1976
- O coração disparado, Nova Fronteira - 1978
- Terra de Santa Cruz, Nova Fronteira - 1981
- O pelicano, Rio de Janeiro - 1987
- A faca no peito, Rocco - 1988
- Oráculos de maio, Siciliano - 1999
- A duração do dia, Record - 2010

PROSA:

- Solte os cachorros, Nova Fronteira - 1979
- Cacos para um vitral, Nova Fronteira - 1980
- Os componentes da banda, Nova Fronteira - 1984
- O homem da mão seca, Siciliano - 1994
- Manuscritos de Felipa, Siciliano - 1999
- Filandras, Record - 2001
- Quero minha mãe - Record - 2005
- Quando eu era pequena - 2006.

ANTOLOGIAS:

Mulheres & Mulheres, Nova Fronteira - 1978
Palavra de Mulher, Fontana - 1979
Contos Mineiros, Ática - 1984
Poesia Reunida, Siciliano - 1991 (Bagagem, O Coração Disparado, Terra de Santa Cruz, O pelicano e A faca no peito).
Antologia da poesia brasileira, Embaixada do Brasil em Pequim - 1994.
Prosa Reunida, Siciliano - 1999

BALÉ

- A Imagem Refletida - Balé do Teatro Castro Alves - Salvador - Bahia - Direção Artística de Antônio Carlos Cardoso. Poema escrito por Adélia Prado especialmente para a composição homônima de Gil Jardim.

Vem de antes do sol
A luz que em tua pupila me desenha.
Aceito amar-me assim
Refletida no olhar com que me vês.

Ó ventura beijar-te,
espelho que premido não estilhaça
e mais brilha porque chora
e choro de amor radia.

(Divinópolis, 1998).

Fonte:
http://www.releituras.com/aprado_bio.asp

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 406)


Uma Trova Nacional

Em minha varanda a sós,
vendo os ganchos na parede,
eu choro a falta dos nós
que amarravam nossa rede...
–DOMITILLA BORGES BELTRAME/SP–

Uma Trova Potiguar

Que a mão do homem não tisne
com seu desarranjo anárquico.
O lago onde nada o cisne
com porte nobiliárquico!!!
–LUIZ DUTRA BORGES/RN–

Uma Trova Premiada

2010 - TrovaUneVersos/RN
Tema: SILHUETA - M/E.

Trago no peito guardada,
entre as lembranças da vida
a Silhueta gravada
da tua imagem querida!
–ZENAIDE MARÇAL/CE–

Uma Trova de Ademar

Ao partir, causaste um drama
e, em estado de demência,
finjo ter você na cama...
E nem sinto a sua ausência.
–ADEMAR MACEDO/RN–

...E Suas Trovas Ficaram

É uma verdade e parece
que se tornou popular:
a gente primeiro esquece
para depois perdoar.
–JOSÉ FIRMO/PE–

Simplesmente Poesia

Ser Poesia. Ser Poeta...
–AUZÊH FREITAS/RN–

Me desnudo de tudo
e sinto o absurdo que é
não acreditar
no que me veste
e me reveste.

Canso sem correr.
E o fim da caminhada
não é mais minha meta.

Quero seguir a passos lentos
tendo como único alento
a maravilhosa descoberta
que respiro e aspiro a mim mesma.

Ser Poesia. Ser Poeta.

Estrofe do Dia

No deslumbrar da aurora
um coro de muitas aves
canta as canções mais suaves
que a gente cantava outrora,
na cama ela reza e chora
ouvindo a doce aquarela,
desperta, vai pra janela,
recorda nossa amizade;
nasceu um pé de saudade
no jardim da casa dela.
–ZÉ FERNANDES/CE–

Soneto do Dia

O Ébrio.
–PEDRO ORNELLAS/SP–

Curtindo o efeito da malvada pinga,
cantando vai pela deserta rua...
Do mundo mau que o desprezou se vinga
fazendo um show bizarro à luz da lua!

Um sonolento abre a janela e xinga,
menciona a mãe e ele responde: “É a tua!”
gargalha e chora... e grita... e dança... e ginga...
e deita e dorme na calçada nua...

Já foi homem de bens, hoje um mendigo
que teve um dia a lhe mudar a história
uma mulher traidora e um falso amigo...

Que força estranha encerra um desengano:
pode impulsar um homem à vitória
ou transformá-lo num farrapo humano!

Fonte:
Textos enviados pelo Autor

Preservação de Livros (Parte 2)


3. UMIDADE E TEMPERATURA

A umidade e a temperatura são fatores climáticos que contribuem significativamente para a deterioração do material bibliográfico.

São fontes de umidade:
Chuvas,
rios,
limpezas aquosas,
infiltrações por janelas,
paredes e tetos.

Existem diversos equipamentos para controle climático, desde um simples ar condicionado até os sistemas mas sofisticados como:
Sistemas centrais de resfriamento,
calefação,
umidificação e
desumidificação do ar.

Locais que não disponibilizam essas aparelhagens pode-se utilizar ventilação natural ou forçada como meio de controle simultâneo da umidade e da temperatura.

II. TRATAMENTOS BÁSICOS PARA CONSERVAÇÃO DO ACERVO

1. TRATAMENTO DE HIGIENIZAÇÃO

Esse tratamento é muito importante para a conservação do acervo, pois irá retirar do livro os agentes responsáveis pela sua deterioração como poeira, espórios e detritos de insetos. O ideal seria que esse trabalho fosse realizado em uma mesa apropriada, local ventilado e afastado das estantes para evitar que a poeira seja transferida para as outras obras.

1.1 HIGIENIZAÇÃO COM SABONETE NEUTRO

Utilizar sabonete neutro para limpeza das capas plastificadas e de material sintético. Proceder da seguinte maneira:

Material necessário:
- Sabonete
- Tecido de algodão (fralda)

Procedimento: · · · · ·
Colocar água em um balde; Molhar a fralda e torcer bem; Passar a fralda sobre o sabonete neutro (nunca molhar o sabonete); Aplicar sobre as capas removendo toda a sujeira; Passar uma fralda seca para retirar o excesso de umidade.

2. REPARAÇÃO DE LIVROS

O desgaste e a degradação do acervo é muito rápido, sobretudo quando se trata de coleções públicas maciçamente utilizadas. Por isso, faz-se necessário o reparo das obras para prolongar a vida útil do acervo nas bibliotecas. Os livros devem ser analisados para determinação do tratamento adequado a ser utilizado. Antes de começar o trabalho de reparação do livro devemos saber como ele é formado. Geralmente o livro é constituído por cadernos separados e em alguns casos são formados por páginas coladas juntas uma a uma (folhas soltas).

2.1 REMOÇÃO DE FITAS ADESIVAS

Os adesivos possuem componentes que com o tempo se degradam e descolam. A retirada dos mesmos merece atenção especial, considerando que em alguns casos nem com a utilização de solventes, se consegue remove-los. Neste caso, não insistir, pois o papel poderá ser danificado.

Material necessário:

– Cotonete ou vareta de madeira (usado por manicures),
- Algodão,
- Acetona acetato de etila;
- Pedaço de vidro ou celulóide (chapa de radiografia),
- Papel absorvente e
- Bisturi

Procedimento: · ·

As fitas adesivas podem ser removidas com uma espátula ou bisturi; O resíduo do adesivo que ficar no papel deve ser removido com acetona e espátula ou, se não tiver a espátula remove-las somente com a acetona ou acetato de etila.

Colocar a folha com a fita adesiva sobre um papel absorvente e as duas sobre um vidro ou celulóide; Umedecer o cotonete na acetona; Passar na fita adesiva pelos dois lados da folha (verso e direito); Com a ponta do bisturi, soltar cuidadosamente a fita adesiva para não danificar o papel.

2.2 LIMPEZA DA LOMBADA

É o processo onde se retira o excesso de cola, restos de papéis, fitas adesivas, etc... É usado quando a costura está perfeita e não necessita desmonte do livro.
––––––
Continua... Desmonte dos Livros; Conserto das Folhas; Costura

Fontes:
DIVISÃO DE PRESERVAÇÃO; Preservação e Recuperação de Material Bibliográfico. Biblioteca Pública do Paraná, Curitiba, 2001.

MILEVSKY, Robert J.; Manual de Pequenos Reparos em Livros; Conservação Preventiva em Bibliotecas e Arquivos. 2ª edição, Rio de Janeiro, 2001.

Emiliano Perneta (Ilusão) Parte 10


GATA

Na brancura da pele e no gesto macio,
A carícia tu tens e a moleza de gata:
O teu andar sutil é doce como a pata
Desse animal pisando um tapete sombrio...

Tens uma morbidez lânguida de sonata.
Teu sorriso é polido, é fino e é muito frio...
Se as tuas mãos acaso eu beijo e acaricio,
Sinto uma sensação esquisita, que mata.

Quando eu tomo esse teu cabelo ondeado e louro,
E o cheiro, e palpo o teu corpo branco e felino,
Como te torces, pois, minha serpente de ouro!

O teu corpo se enrola em meu corpo amoroso,
E o teu beijo me aquece e vibra como um hino,
Animal de voz rouca e gesto silencioso!

HELIOGÁBALO


É um prostíbulo. E pois, tendo admirado tudo,
– Calígula a rugir dentro d’um lupanar,
Tibério, como se fosse um fauno cornudo,
De lepras e furor a se despedaçar, –

Supunha nada mais ter que ver, quando mudo
E apavorado, viu pela cidade entrar
O novo imperador, coberto de veludo,
Seda e ouro, e por fim bracelete e colar...

E era um deus, era um deus, d’uma pompa feroz.
Quando o filho do sol aos pórticos assoma,
Entre eunucos reais e truões, alçando a voz,

“Viva o Imperador!” O mundo o aclama e quer.
“Viva!” O monstro excedeu as crápulas de Roma!
Heliogábalo é um homem e é uma mulher!
Maio – 1904

AMOR CINZENTO

Ao Celestino Junior

Embaixo é o dia fusco, é a luz mortuária; em cima
Rolos de fumo e sebo, ó soturna cloaca!
A Vida extinta sob uma grandeza opaca...
Nem pomos de ouro, nem cantigas de vindima!

Fumo só. Tédio só. Natureza de luto.
Cinza e betume chove. E em torno se derrama
Todo um acre vapor feralmente corrupto,
Feito de cerdos e de batráquios e lama...

O corpo é um muito mau pardieiro, bem vedes!
E por isso também, embora que murmures,
Oh! minha alma! estás presa entre quatro paredes!

Presa! e dilui-se o mundo! e nem um sonho ao menos,
E nem festas! e nem um agasalho algures,
Num leito brando, nuns braços brandos de Vênus!...
1898

BORBOLETA

Ao José Gelbecke

Hoje, uma borboleta, assim, toda amarela,
Veio bater aqui junto à minha janela.
Olhei. Ela passou. Eu comecei a olhar.
De novo ela passou e tornou a passar,
Tão veludosa e ao mesmo tempo tão inquieta...
Que quereria pois aquela borboleta?
Ia e vinha outra vez, doida, a se debater,
Com ademanes, com trejeitos de mulher...
Era um dia de sol, fino e voluptuoso,
De um grande beijo ideal, de um infinito gozo,
De um lindo céu azul, esplêndido verão,
E ela a roçar em mim, como uma tentação...
E ela a passar aqui, dentro do seu corpete,
Tão leve, tão sensual, no seu andar coquete,
A subir, a descer de tal modo, Senhor,
Que a mim me pareceu, mas sem tirar nem pôr,
Essas que andam de lá p’ra cá, coquetemente,
À noite, nos jardins, a seduzir a gente...
1903

SÚPLICA DE UM FAUNO

Ao Pânfilo d’Assumpção

– Foi neste bosque, olhai, que ontem a mais pomposa
Das lupercais eu vi. Coroada de rosa,
Dos loureiros em flor à sombra, que perfuma,
Vênus o corpo ideal, mais claro que uma espuma,
Cedeu ao teu furor, ó Adônis, à tua
Fome, como se fosse uma bacante nua...

Ébria, a torcer-se toda em delírios de louca,
Mirto rugiu de amor, a boca em tua boca,
Enlaçada contigo, ó sátiro cornudo,
Sobre essa relva, assim, tenra como veludo...

E que algazarra vã daquela juventude,
Ouvindo Pã soprar na sua flauta rude,
Quando no meio de sussurros e de assombros,
Correu Apolo atrás dos lactescentes ombros
De Leucoteia uivando: eu te amo! eu te amo! eu te amo!
Ágil, sutil, veloz, como se fosse um gamo...

E que riso cruel, tonitroante e louco,
Quando Vulcano aparecendo daí a pouco,
Entre outros braços nus, que não de seu esposo,
Vênus veio encontrar delirando de gozo...

Correu o vinho a flux. Os sonhos e as quimeras
Coroaram o deus Pã de mirtos e de heras...
Resplandeceu o sol da alegria. A floresta
Ecoou, como se fosse o próprio Olimpo em festa.

Só eu de quem jamais a dúvida se arranca,
Só eu não pude rir dessa risada franca.
Adoro uma deidade, a caçadora Diana,
Mas amar sem ventura é uma batalha insana...

E de fato, não sei que demônio porfia
Entre nós dois, que sendo a única alegria
Dos meus olhos, jamais logro o puro desejo
De morrer a seus pés como a onda de um beijo...
Por Júpiter, no entanto eu juro que não posso
Domar este furor, conter este alvoroço...
Por onde quer que eu vá, luz desesperadora,
Eros o coração me enfurece a toda hora
Desses desejos vãos, inquietos e raros,
Que eu nunca vencerei, porque a beleza é fátua...

Assim pois, antes ser um triste cego, Vênus,
Ou possuir então esse prestígio, ao menos,
De poder transformar-me, ó deuses, numa estátua
Mais insensível do que o mármore de Paros!

Fonte:
Emiliano Perneta. Ilusão e outros poemas. Re-edição Virtual. Revista e atualizada por Ivan Justen Santana. Curitiba: 2011

Daniel Galera (Mãos de Cavalo)


Mãos de Cavalo, obra de Daniel Galera, começa com capítulos curtos, escritos em terceira pessoa.

O autor intercala duas histórias. A primeira destaca a trajetória de um garoto que - dos dez aos quinze anos de idade, metido em suas aventuras de bairro, entre corridas de bicicleta e campinhos de futebol - vive justamente as primeiras descobertas em relação à sua própria identidade. Na segunda, o foco aponta um jovem cirurgião plástico que, ao chegar aos trinta anos depois de uma rápida, árdua e bem sucedida trajetória de estudos e experiências profissionais, começa então a colocar sua escolhas em cheque, bem no momento em que sai para uma longa viagem com um amigo. Esses acontecimentos vão aos poucos se conectando no tempo e no espaço dramáticos, e compõem uma delicada trama sobre memória, perda e culpa.

Com habilidade, costura os capítulos e mistura as referências de uma maneira que traz ao leitor um grande prazer em acompanhar, ele próprio, o processo de auto-descoberta vivido pelo personagem. Tanto o garoto como o cirurgião vão entender que, tragicamente, só se conhece a própria identidade a partir de eventos-limite, extasiantes ou cruéis, momentos que vão ser carregados pela vida a fora. Entre ritos de passagem e acertos de contas, forma-se um indivíduo.

Durante as duas trajetórias, o escritor não perde a oportunidade de explorar temas bastante interessantes. O fascínio pela violência estética em contraponto à covardia frente a agressividade real, o recalque das emoções, o desejo e a impressão de vermos nossas vidas registradas pelas lentes de uma câmara de cinema.

O protagonista de Mãos de Cavalo não é uma pessoa simples. Talvez ninguém seja mesmo. E pouco a pouco o vemos exposto pelo autor. Através das descrições ultra-detalhistas de cada situação, vemos dissecadas suas impressões frente a cada situação, seja ela o descer vertiginoso de uma ladeira montado numa CaloiCross aro 20', seja testemunhar o ventre de sua esposa ser rasgado durante o parto enquanto a anestesia não fazia efeito.

Primeiramente independentes, as duas tramas vão, aos poucos, ganhando elementos que as aproximam, até que o passado e o presente praticamente se transformam em um só acontecimento, mostrando como foi e como poderia/deveria ter sido determinado fato aos olhos do protagonista. Durante essa trajetória, o autor constrói uma gradativa imersão do personagem do presente em fatos do seu passado que o ajudaram a afirmar sua própria identidade. Em um momento em que dúvidas em relação à vida levam o protagonista a buscar e assumir novas referências de mundo, há uma volta no tempo até um momento traumático, mas que o ajudou a encontrar a si próprio. E essa rememoração é decisiva também para os rumos do seu próprio futuro. Nesse momento as duas histórias se fundem em uma imagem única e definitiva.

Segundo o autor, a obra é uma síntese de diversas histórias que guardou na cabeça durante anos, mas que vieram se transformando e atualizando ao longo do tempo. Algumas cenas e personagens têm origem em coisas que ele imaginava desde os dez ou doze anos de idade, muito antes de sonhar em escrever. Segundo Galera, as primeiras três versões de Mãos de Cavalo foram jogadas fora: somente na quarta tentativa o autor encontrou a forma que lhe pareceu ideal para desenvolver o romance até o fim.

Esse tom se manifesta numa prosa rica em detalhes, em descrições bem trabalhadas de cenas e atmosferas, nas quais a aparente placidez do cenário reforça a intensidade dos sentimentos dos personagens. Nada é gratuito aqui: numa partida de videogame, num parto sem anestesia, na trilha sonora de uma festa de quinze anos, assiste-se à tumultuada trajetória do protagonista rumo ao cotidiano do mundo adulto, preenchido entre o sucesso profissional e o "piloto automático" de um casamento fora dos planos.

O tema principal do livro é a identidade, a obsessão que se tem por defini-la e a inutilidade geral desse esforço. Até que ponto é possível decidir como as pessoas querem ser e que imagem os outros terão delas? Talvez definir isso racionalmente seja tão inviável quanto decidir se se quer ou não amar uma determinada pessoa.

Diante do impasse, Mãos de Cavalo acena com um desfecho surpreendente num relato em que a tragédia se insinua a cada linha. Como nas clássicas histórias sobre segunda chance, está em jogo a possibilidade de o covarde se transformar em herói, ou de quem sempre se definiu como "solitário e renegado" encontrar uma integração possível com o mundo. O futuro aí apontado não é movido por certezas absolutas, mas pela grandeza de saber quando aceitar ou lutar contra as armadilhas do acaso.

A estrutura temporal sobre a qual foi montada, o conjunto lexical selecionado e a condução da narrativa em função da construção da personagem são alguns dos aspectos que garantem à obra relevância para ser analisada criteriosamente. Além disso, o valor interpretativo extraído desses aspectos comprova a intencionalidade do autor em desenvolver uma narrativa repleta de significado, justificando sua consagração na literatura.

Um dos fatores da narrativa de Daniel Galera que oferecem oportunidade de proveitosa explanação é a construção da personagem central. Na verdade, todo o percurso do romance concorre para apresentar ao leitor o perfil psicológico e comportamental de Hermano (o “Mãos de Cavalo”). Aliás, percurso seria a palavra-chave dessa narrativa.

Já no primeiro capítulo – O Ciclista Urbano – a narração apresenta-se construída sobre os percursos que Hermano faz, relacionados em algum sentido com o rumo da sua vida.

“(...) O trecho de subida... sairá ileso.” (p. 09-10)

O leitor perceberá ao longo da leitura que todos os obstáculos descritos (árvores, postes, rampas deslizantes, buracos, lombadas, etc.) estão semanticamente ligados aos desafios da vida do próprio Hermano.

A partir do segundo capítulo começamos a entender mais claramente esse jogo com o curso da narrativa relacionado à forma como o personagem guia a sua vida. Os capítulos intitulados por horários – 6h08, 6h13,... – apresentam Hermano em sua vida adulta atual, dirigindo seu carro por ruas e avenidas até a casa de seu amigo Renan para juntos irem a uma escalada na Bolívia. Enquanto Hermano dirige, o narrador vai apresentando elementos do percurso como monumentos, viadutos, nomes de ruas, que remetem ao pensamento de Hermano alguma lembrança de sua vida.

“Passando por baixo... deu a luz a Nara.” (p. 71)

Quando, no capítulo 6h23, fala-se que Hermano “fantasia que a construção... antes que fosse tarde.” (p. 97), remete-se ao fato de que ele deve ainda agarrar-se a fatos de seu passado (o “asfalto”, as “calçadas”, as “árvores”) para resolvê-los antes de serem encobertos por sua vida atual (“o concreto das novas avenidas”). Vemos aí que o espaço à volta de Hermano está sendo relacionado com as suas sensações e lembranças.

Os outros capítulos vão intercalando a narrativa com flashbacks a partir da mirada e reflexão de Hermano de seu passado.

Outra analogia entre um trajeto difícil de percorrer e a vida acontece no capítulo “A Clareira” no momento em que Hermano, Morsa e Pedreiro se entretinham com um jogo de computador com pistas de corrida:

“O jogo de computador... desmontar o computador.” (p. 164-165).

Diante da pista intransponível, os amigos viam que os acontecimentos das próprias vidas seguiam um curso impossível de se evitar.

A forma dos capítulos onde Hermano está dirigindo reforça a idéia de que a narrativa foi organizada sob a ótica de um trajeto, pois eles em um parágrafo apenas, caracterizando assim, a continuidade, a linearidade da estrada, do caminho, da vida.

O tempo em Mãos de Cavalo é outro fator importante para a análise. Com uma leitura atenta, o leitor perceberá que as histórias se fundem, como já citado, unindo passado e presente, e ainda, que os fatos passados exerceram grande influência sobre Hermano em sua fase adulta. Observa-se isso no episódio em que o personagem se vê em situação semelhante a que havia vivenciado na adolescência, na qual tinha agido covardemente ao não ajudar o amigo que era espancado.

“(...) tinha ficado covardemente escondido... minutos depois.” (p. 173).

Hermano guardou para si o sentimento de culpa que o acompanhou durante anos, como uma verdadeira marca, da qual sempre se envergonhou.

“(...) Hermano sentiu-se imediatamente cúmplice... na testa.” (p. 173).

Agora adulto, ele tem a oportunidade de se livrar desse sentimento de culpa e fazer o que não teve oportunidade no passado.

“(...) Sente gosto de sangue... não da covardia.” (p. 151).

A alternância entre passado e presente leva o leitor a compreender o personagem de forma gradual, assim, o passado não só ilumina o futuro, mas também, o próprio passado de Hermano, simultâneamente. Para entender o Hermano adulto, é essencial emergir em sua adolescência.

Outro aspecto interessante é a finalização do livro, o qual não se dá na metade cronologicamente mais atual da narrativa, mas sim, na fase adolescente do personagem. A história termina no fim da narrativa do passado, com uma decisão convicta do personagem sobre como será seu futuro. Porém, o leitor que acaba de saborear o romance sabe que o futuro do personagem não foi tão livre de conflitos como ele imaginava. Existe uma grande contradição na última frase: “Agora sabia exatamente o que fazer. Não seria necessário fingir nunca mais.” (p.188).

A tensão gerada entre passado e futuro, sobre o que o personagem idealiza e o que o leitor já conhece sobre seu destino, são detalhes decisivos para o sucesso do romance.

Com respeito à narração, pode-se notar que, de acordo com a tipologia desenvolvida por Norman Friedman, o narrador é onisciente intruso, ou seja, age como uma espécie de “voz” que permeia a narrativa, porém permanece de fora da trama – não é um personagem – mas sabe de tudo que se passa nas ações exteriores das personagens e também das interiores (seus pensamentos e intencionalidades); por isso, é capaz de transmitir uma perspectiva mais ampla ao leitor, tanto dos fatos presentes, quanto dos acontecimentos que podem estar por vir. Isso é notado no início do capítulo “6h23”:

“Ao pensar no nome da filha percebe pra onde, na verdade, está guiando seu Mitsubishi Pajero...” (p.96)

Outro ponto de destaque é o constante conflito que Hermano enfrenta consigo mesmo. Desde a infância, quando cai da bicicleta, e adquire marcas não só no corpo, mas também na mente.

Na adolescência, a falta de uma personalidade formada do garoto é latente: a ausência de um apelido face aos amigos, que tinham, cada qual uma denominação diferente; a falta de coragem para enfrentar problemas, como em “Downhill”, em que Hermano nota o desdém por parte de Bonobo e sua trupe, ao que ele retruca saltando e levando mais um tombo histórico; a frustração com a sexualidade na primeira relação afetiva; e, principalmente, sua covardia diante do grupo que se vinga de Bonobo com a surra que o leva à morte, em que Hermano foge e se esconde, e apenas assiste ao massacre:

“Hermano entrou no mato, caiu numa vala do terreno e se escondeu atrás de folhas e galhos. (...) durante um período que pareceu horas.”(pp.169-170).

A fase adulta, por sua vez, corresponde a 1 hora e 56 minutos da vida da personagem nos quais se desdobram todos os traumas: a reação de Hermano, agora médico formado, casado e pai de uma filha, como a súbita desistência da escalada ao Cerro Bonete com um amigo, as indagações que faz para si com relação ao casamento e o nome de sua filha, Nara; a revolta na briga entre adolescentes que encontra na vila onde morou, na qual salva o rapaz acuado e bate em todos os demais; e um estranho reencontro com Naiara. Tudo que Hermano realiza nesse período equivale a um “acerto de contas” consigo mesmo, a uma volta no tempo, para refazer todas as ações que um dia deixou de fazer:

“Aos trinta anos, lhe parecia antes de tudo um constante ensaio para um heroísmo que nunca chega. (...) pelo que gostaria de ter sido no passado ou de ser no futuro.” (p.177)

Por fim, um tópico extremamente relevante é a fixação que o autor demonstra ter por sangue.

Por meio de Hermano, surge, incontáveis vezes, durante a trama, de forma direta ou por meio de associações. No livro, a sensação é a de que cada marca ou cicatriz faz com que ele sinta no corpo o que não sentia com os problemas da vida. As marcas deixadas na infância, a queda no torneio de downhill, a preferência por atuar como médico cirurgião, enfim, tudo isso ajuda a trazer a sensação constante de uma tragédia que vai aos poucos se delineando. Porém, a circunstância mais trágica é a morte de Bonobo após a surra, como já comentado. Ele não tinha medo de sentir dor, não tinha medo de se machucar nem de ver sangue; pelo contrário, tinha uma fixação por isso. A sensação de dor do corpo compensava a falta de sensações emocionais:

“Estava pronto para sangrar. Era seu talento. (...) agora ele seria capaz de cortar, quebrar, ralar, escoriar, debulhar, raspar, fraturar, arranhar, perfurar e esmagar seu próprio corpo de um jeito que ninguém jamais esqueceria.”(p. 91)

Os demais fatos têm seu desfecho no que ocorre nas cenas da fase madura do personagem, na briga com os meninos de rua, em que apanha, e sangra muito. Mesmo que tal interpretação não seja necessariamente a que o autor pensou, conforme resposta do próprio a tal questão, ele considera esse ponto de vista aceitável.

Em Mãos de Cavalo, o foco está nas questões de caráter psicológico, embora não seja psicologizante, e induz o leitor a pensar na própria vida, bem como na do autor, por trazer em si um caráter confessadamente autobiográfico, e falar das coisas que ele gosta. Vale salientar que o escritor trata o personagem como alguém externo a ele, conforme palavras do próprio: “A relação do Hermano com o corpo é cheia de simbologias – ele procura controlar e afligir no corpo o que não consegue obter e praticar na vida, acho.”

Fonte:
Análise por Cláudio Edson Baldavia, Daniela Gravina Matielo, Juliano Magalhães Viana, Claudemir Oliveira de Lira, Ivanise Casarin Bandeira e Jéssica Silva de Andrade - II Projeto Integrado de Prática Educacional do Curso de Letras - Mackenzie 2008. Disponível em http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/analises_completas/m/maos_de_cavalo

Daniel Galera (1979)


Daniel Galera (São Paulo 13 de Julho de 1979) é um escritor e tradutor literário brasileiro. Foi um dos precursores do uso da internet para a literatura, editando e publicando textos em portais e fanzines eletrônicos entre 1997 e 2001. Foi um dos convidados da segunda edição da Festa Literária Internacional de Parati (FLIP), em 2004.Já traduziu 13 livros, predominantemente das novas gerações de autores ingleses e norte-americanos. Publicou até então quatro livros, além de ter participado em algumas antologias de contos. Seu último livro ganhou o Prêmio Machado de Assis de Romance, concedido pela Fundação Biblioteca Nacional em 2008.

Cresceu e passou boa parte da vida em Porto Alegre, onde voltou a viver recentemente, depois de ter morado por alguns anos em São Paulo - sua cidade natal - e Garopaba, em Santa Catarina. Formou-se em publicidade na UFRGS. Foi colunista fixo do fanzine eletrônico CardosOnline, que também revelou Clarah Averbuck e Daniel Pellizzari. Após o encerramento do ezine em meados 2001, Galera fundou a editora Livros do Mal voltada à nova literatura, junto com dois outros colegas também egressos da extinta publicação, Daniel Pellizzari e Guilherme Pilla. Falando da sua motivação para fundar a editora, Galera diz: "Nossa vontade era ser lido. Não era vontade de conquistar fama ou de receber convite de uma grande editora." Em 2005, exerceu o cargo de coordenador do Livro e da Literatura na Secretaria Municipal de Cultura da Prefeitura de Porto Alegre.

Como tradutor, Galera busca trabalhar com obras das novas gerações de autores ingleses e norte-americanos, como quadrinhos de Robert Crumb e os romances "Sobre a beleza" (Zadie Smith), "Reino do Medo" (Hunter Thompson), "Extremamente alto e incrivelmente perto" (Jonathan Safran Foer) e, em parceria com Daniel Pellizzari, "Trainspotting" e "Pornô", (Irvine Welsh).

Como escritor possui quatro livros publicados, além de participações em algumas antologias de contos. Seu livro de estréia, uma coletânea de contos chamada "Dentes Guardados", foi publicada em 2001 pela editora Livros do Mal e encontra-se disponível na internet. Em 2003 publica "Até o Dia em que o Cão Morreu", escrito quando ele tinha 23 anos. No livro, Galera narra a história de um jovem de classe média, recém-formado em Letras, que leva uma vida sem realizações num apartamento que aluga no centro de Porto Alegre. O livro traça um retrato de muitos de seus contemporâneos, jovens sem perspectivas ao se formar da faculdade, e narra suas dificuldades para enfrentar a realidade e suas maneiras de se relacionar afetivamente. Em 2007, o livro ganhou adaptação cinematrográfica com o título de "Cão sem Dono", dirigido por Beto Brant e com colaboração de Renato Ciasca.

Estreou na Companhia das Letras em 2006, quando publicou o seu terceiro romance, "Mãos de Cavalo". No livro, a história se desenvolve ao redor de um personagem em três momentos distintos de sua vida: um garoto de dez anos que pilota sua Caloi Cross em um trecho urbano; um cirurgião plástico de sucesso que vive um casamento quase frustrado e que vai escalar o Cerro Bonete, na Bolívia; e adolescente tímido e pacato que encara o valentão da turma durante uma partida de futebol. Ao longo do romance os três enredos se entrelaçam, atraídos para um ponto em comum. De acordo com Galera, o tema principal do livro é a identidade e a inutilidade de se tentar definí-la. Mãos de Cavalo mostra que apenas até certo ponto as pessoas conseguem programar aquilo que são e o que representam para os outros. De um momento em diante, sobretudo em situações-limite, elas passam a ser elas mesmas, sem mediações.

Em 2008, Galera publicou o romance "Cordilheira", ambientado em Buenos Aires. A protagonista do livro é Anita, uma jovem escritora que perde o interesse por literatura e apenas cuida do desejo inadiável de gerar um filho. Movida por essa idéia fixa, acaba indo para Buenos Aires onde se envolve com uma liga de escritores. O livro foi o primeiro lançamento do projeto Amores Expressos da Companhia das Letras, onde diferentes escritores brasileiros visitaram capitais no exterior para escrever obras de ficção. Em 2008 o livro foi o vencedor do Prêmio Literário Machado de Assis da Fundação Biblioteca Nacional na categoria romance.

Romances
Cordilheira, Companhia das Letras, 2008;
Mãos de Cavalo,Companhia das Letras, 2006;
Até o Dia em que o Cão Morreu, editora Livros do Mal, 2003; Companhia das Letras, 2007.

Contos
Dentes Guardados, editora Livros do Mal, 2001. [1]

HQs
Cachalote, Quadrinhos na Cia, 2010 (com

Prêmios
Prêmio Machado de Assis de Romance da Fundação Biblioteca Nacional (Rio de Janeiro, 2008), por Cordilheira.
Prêmio Açorianos de Literatura: Editora do Ano (Porto Alegre, 2003).
Prêmio Jabuti de Literatura: Cordilheira, terceiro lugar na categoria Romance (São Paulo, 2009).
Prêmio HQ Mix Novo Talento – Roteirista (2010).

Fontes:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Daniel_Galera
- Arrais, Daniel; Bertoni, Estêvão. "Como chegar ao primeiro livro" Folha de São Paulo, São Paulo, 26 de março de 2007.
- Borges, Julio Daio. Mostro a mão para poder esconder o resto - Entrevista com Daniel Galera, Rascunho
- Filho, Rubens Ewald Resenha de Cãos sem Dono. Uol Cinema. Acessado em 13 de dezembro de 2008.
- Assis, Diego. "Daniel Galera agarra o osso do romance.", Folha de São Paulo, São paulo, 26 de maio de 2003.
- "A voz de uma geração." Gazeta do Povo, Curitiba, 7 de maio de 2006.
- Pécora, Alcir. "Crítica: Livro luta contra auto-ajuda, mas resulta anódino." Folha de São Paulo, São Paulo, 15 de outubro de 2008.
- "Biblioteca Nacional divulga seus premiados." O Globo, Rio de Janeiro, 10 de dezembro de 2008.

Reinaldo Pimenta (Origem das Palavras 9)


CAPICUA
A palavra ou a frase que é lida da mesma forma da esquerda para a direita ou vice-versa tem um lindo nome: palíndromo - do grego palíndromos (que volta sobre seus passos), formada de pálin (em sentido inverso) + drómos (correr; daí hipódromo, autódromo...).
É o caso de palavras como radar, anilina, Natan, Menem e de frases como as seguintes.

Amor a Roma.
- A base do teto desaba.
- A bola da loba.
- A cera causa a sua careca.
- A droga da gorda.
- A grama é amarga.
- Ame o poema.
- Anotaram a data da maratona.
- Laço bacana para panaca boçal.
- Seco de raiva, coloco no colo caviar e doces.
- Socorram-me, subi no ônibus em Marrocos.

Não fique o leitor aí torcendo-me o nariz. A frase palindrômica vale mais pela engenhosidade do autor (não fui eu!) do que pela possibilidade do fato enunciado. Afinal de contas, todo o mundo sabe que lobas não têm bolas (não importa o sentido) e que a medicina jamais recomendou como calmante a aplicação de caviar e doces no colo.
Esse processo da mesma leitura de lá para cá e de cá para lá também acontece com os números (202, 1.441, 172.424.271...). Como palíndromo é só para letras, o número que é lido da mesma forma em qualquer sentido tem um nome especial: capicua. A palavra se formou de capi (do latim caput, cabeça) + cu + a. A palavra também existe no espanhol, capicúa, que veio do catalão, significando literalmente "cabeça e rabo".
A última data que foi capicua: 20/02/2002. Qual será a próxima, prezado leitor?
Capicua também é, no dominó, a pedra que pode acabar o jogo encaixando-se em qualquer das duas pontas.

CESARIANA
Do FRANCÊS CÉSARIENNE.
Na Roma antiga, já se nascia com o destino traçado. O bebê era posto no chão pela parteira e o pai o levantava em manifestação de reconhecimento como filho legítimo. Se o pai não fizesse isso, a criança era deixada na porta da casa ou num monturo público à disposição de qualquer um. Se a mãe quisesse ficar com o filho, já era meio caminho andado: salta um futuro escravo à romana! Os bebês que nasciam deformados eram abandonados ou afogados, sem nenhum ressentimento, sob a chancela da inteligensia local. Veja só o preceito

(i)moral do filósofo Sêneca:
"É preciso separar o que é bom do que não pode servir para nada". Plutarco registrou que os pobres abandonavam os filhos "para não vê-los corrompidos por uma educação medíocre que os torne inaptos à dignidade e à qualidade".

Qualquer argumento servia de desculpa moral para o enjeitamento de um recém-nascido. Logo depois que Nero assassinou sua mamãe, Agripina, um romano abandonou um bebê com um cartaz: "Não te crio com medo de que mates tua mãe", o equivalente romano para "Remember Agripina".

Mas fiquemos com os casos felizes. Ao bem nascer, a menina recebia um nome só, o da sua gens (um grupo de famílias com um antepassado comum): Túlia, Cornélia, Júlia. Já o irmãozinho da Túlia ganhava três nomes: (a) o prenome - de segunda mão, já usado por um antepassado (Marco, por exemplo); (b) o nome - que era o da sua gens (com isso já virava Marco Túlio); (c) o sobrenome - o da sua família (e ficava Marco Túlio Graco). Depois, devido ao acúmulo das homonímias e à ausência do CPF, foi- se agregando um quarto e um quinto nomes.

Quando César, o famoso imperador assassinado, nasceu em 100 a.C., foi batizado assim: Caio Júlio César.

O sobrenome da gens Julia - Caesar-já era usado desde 208 a.C., e sua origem é imprecisa. Para alguns veio de caesaries, cabeleira (longa e abundante); para outros, de caesus, particípio de caedere, cortar, e aí interpretado como "retirado do ventre da mãe por incisão". Como o César que ganhou notoriedade foi o personagem shakespeariano, criou-se a lenda de que a palavra cesariana veio dele, que teria nascido dessa forma. Muito improvável: a mãe, Aurélia, viveu muitos anos após o nascimento do filho. A primeira cesariana documentada (numa mulher viva, é claro) foi realizada em 1610. A mãe? Morreu 25 dias depois.

Caesar virou duas coisas: título de imperador romano e salada. A famosa "Caesar salad" tem o nome do seu criador, Caesar Gardini, dono do restaurante Caesar"s Place, em Tijuana, no México. Mais um caso de criatividade movida pela necessidade. A invenção se deu na década de 1920, numa noite em que Caesar teve de improvisar uma salada quando apareceram mais clientes do que ele imaginava.

CLIPE
Do inglês clip, que é a forma resumida de paper (papel)
clip (juntar). *

A palavra foi aportuguesada, clipe, e tem o plural regular clipes, e não, como alguns pronunciam, clips, que é o plural do inglês clip.

No século XIX, as pessoas usavam um alfinete para manter juntas duas ou mais folhas de papel, muitas vezes involuntariamente adornadas por gotículas de sangue.

Videoclipe foi formado de vídeo + o verbo inglês (to) clip com o sentido de cortar, abreviar.

Em 1899, o norueguês Johan Vaaler, Convicto de que o século não poderia terminar sem um fato impactante para a civilização, inventou o clipe. Ele patenteou sua criação na Alemanha porque, naquela época, não havia legislação sobre patentes na Noruega.

O clipe de Vaaler tinha uma volta a menos que o atual, com a desvantagem de o final do arame ferir o papel. E daí? - questionaram os noruegueses, sem conhecer a versão posterior aprimorada. Era um objeto inventado por um norueguês para a humanidade, um orgulho para o país. Que outra invenção, além do bacalhau, a Noruega teria a ostentar perante o mundo?

O clipe se transformou num símbolo nacional. Na Segunda Guerra Mundial, as forças nazistas ocupantes proibiram que os noruegueses usassem buttons com as iniciais de seu rei Haakon VII, que vivia no exílio. Em substituição, e em sinal de protesto pela ocupação, eles passaram a usar um clipe na lapela. Em Oslo, existe um monumento com uma escultura de um clipe de seis metros de altura, em homenagem a Vaaler.

O clipe ganhou cores, formas, plásticos e um consumo impressionante em todo o planeta. Nos Estados Unidos as vendas chegam hoje a 11 bilhões de unidades por ano. Aí pelo final da década de 1990, Lloyds Bank promoveu uma curiosa pesquisa sobre a utilização dos clipes pelos norte-americanos, que são fascinados por pesquisas bizarras. Qual o destino final de um clipe? Se você pensa que evidentemente é unir folhas de papel, veja o resultado da pesquisa (colhido num site na Internet, acredite se quiser). De cada 100.000 clipes consumidos nos Estados Unidos:

- 19.143 servem como fichas de pôquer;
- 17.200 mantêm peças de roupa juntas;
- 15.556 caem no chão e se perdem;
- 14.163 são distraidamente destruídos em conversas telefônicas;
- 8.504 são usados para limpar unhas ou cachimbos;
- 5.434 viram palitos para cavucar os dentes.

O que dá um total de 80.000 clipes. Os demais 20.000 têm destinos variados. Ah, sim, quantos são usados para juntar folhas de papel? Apenas cinco!

Fonte:
PIMENTA, Reinaldo. A casa da mãe Joana 2. RJ: Elsevier, 2004

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) O Casamento De Narizinho – I – A doença do Príncipe


Depois da viagem de Narizinho ao reino das Águas Claras o príncipe Escamado caiu em profunda tristeza. Emagreceu. Suas escamas foram ficando fininhas como papel de seda. Permanecia horas de olho pregado no trono de onde Narizinho havia assistido ao grande baile da corte, e de vez em quando puxava uns suspiros que pareciam arrancadas com torquês.

E quanto a apetite, nada. Por mais coisas gostosas que o cozinheiro real inventasse, era sempre aquilo: o príncipe erguia-se da mesa sem tocar em prato algum. Minhocas lindas deixavam-no tão indiferente como se fossem dessas horríveis minhocas de isca, que têm anzol dentro.

Esse estado de alma do príncipe entristecia bastante a corte. Além de o amarem sinceramente, receavam que no caso da morte do Escamado subisse ao trono alguma piranha de má casta, ou um célebre polvo que se divertia em estrangular os pobres peixes nos seus terríveis tentáculos.

O doutor Caramujo foi chamado para examinar o príncipe. Tomou-lhe o pulso. Pediu para ver a língua. Depois, erguendo para a testa os óculos de tartaruga, disse com toda a gravidade:

— Vossa Majestade está sofrendo de narizinho arrebitadite, doença muito séria, cujo único remédio é casamento com uma certa pessoa.

O príncipe arregalou os olhos, cheio de espanto. Era a primeira vez que aquele médico não receitava pílulas.

— Tens razão, Caramujo! — disse ele. — Minha moléstia não é do corpo, mas da alma. Desde que Narizinho deixou o reino não mais houve sossego para mim. Perdi o apetite, o sono, a coragem e não tenho gosto para coisa nenhuma.

— Pois é! — continuou o médico, muito contente de ter acertado. — A doença de Vossa Majestade não passa de amor recolhido e só pode sarar com casamento. Se Vossa Majestade me permite, farei uma tentativa para obter esse precioso remédio.

Os olhos do príncipe brilharam de esperança.

— Sim, permito, pois não. E se conseguires obter-me esse precioso remédio, saberei recompensar-te. Far-te-ei Duque da Pílula!...

O grande médico retirou-se contentíssimo com a idéia de virar duque. Seria uma grande honra para a família dos caramujos, na qual nunca houve nem sequer um comendador, quanto mais duque.

E foi conferenciar sobre o importantíssimo assunto com os outros figurões da corte.

Discutiram, discutiram, e depois de muito discutir resolveram endereçar a Narizinho um pedido de casamento. O doutor Caramujo mandou chamar uma senhora Lula, à qual disse:

— A senhora, que é a escrevente do mar, porque tem dentro do corpo uma pena de osso e um tinteiro de tinta, faça uma carta bem bonita pedindo a mão de Narizinho para o nosso amado príncipe.

A senhora Lula fez a carta. O doutor Caramujo dobrou-a, bem dobradinha, e fechou-a, bem fechadinha. E colocou dentro duma concha de madrepérola — para que não se molhasse na viagem. Em seguida entregou a concha aos peixinhos escoteiros, dizendo:

— Levem-me esta concha até à beira do ribeirão que corre pelo sítio de dona Benta e depositem-na em lugar onde possa ser enxergada. Se se distraírem pelo caminho com alguma minhoca e perderem a concha, o príncipe os fará eletrocutar a todos pelo peixe elétrico, estão ouvindo?

Os peixinhos juraram obediência e lá seguiram, rodando com a concha pelo fundo do mar.
––––––––
Continua... O Pedido

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 405)


Uma Trova Nacional

Saudade sem esperança
é berço sem serventia!
É brinquedo sem criança,
na casa triste e vazia!
–THALMA TAVAVES/SP–

Uma Trova Potiguar

Quero teu corpo revolto,
tantas vezes prometido,
e este céu que está envolto
nas sombras do teu vestido.
–GONZAGA DA SILVA/RN–

Uma Trova Premiada

2009 - Bandeirante/PR
Tema: AUSÊNCIA - M/H

Na vida vivo tentando
tornar meu mundo risonho,
pois a tristeza vem quando
existe ausência de um sonho.
–VANDA ALVES/PR–

Uma Trova de Ademar

Talvez por ser inocente
nessa matéria de amar,
por mais disfarces que invente,
não consigo lhe enganar.
–ADEMAR MACEDO/RN–

...E Suas Trovas Ficaram

Por mais que eu viva desperto
meu porvir não descortino:
o destino é tão incerto,
que também não tem destino.
–ADERBAL MELO/PE–

Simplesmente Poesia

Palavras Nuas
–EFIGÊNIA COUTINHO/SC–

Quem sonha acorda, discorda
Vem frase de língua a falar...
Soltas ao vento, em horda.

Neuma dentro do sonho,
O balancim com andor a vagar...
Imagens dum tempo bisonho.

Ritmo limiar com intenção,
Que as portas de palavras a olvidar.
Sejam abertas com precisão.

Breve pausa sem fachada,
Somente vai o tempo enganar.
Pois ele não tem retomada.

Há ventos ruidosos nos ares,
Revirando tempos a passar...
Não faz vincos similares.

É o tempo duma palavra nua,
Entre dois corpos a sina lavrar...
A vida que em mil cores continua.

Estrofe do Dia

Quando eu olho pro céu fico pensando
se mereço ir pra lá quando morrer,
Deus não gosta de abuso de poder
e eu abuso do meu de vez em quando,
quando os pobres me pedem soluçando
mesmo tendo sobrando eu digo não;
e nessa coisa de “ajuda teu irmão”
eu ainda não quis acreditar;
Jesus Cristo morreu pra me salvar,
e eu nem sei se mereço a salvação!
–RAIMUNDO CAETANO/PB–

Soneto do Dia

Terceira Juventude
–MARIA NASCIMENTO/RJ–

Primeiro, os anos passam lentamente...
Depois, no declinar da mocidade,
o tempo sai voando, loucamente,
deixando as marcas da Terceira Idade...

Mas, trazendo a esperança ainda latente,
e, enfeitando com sonho, a realidade,
vamos rememorando, heroicamente,
os mais doces momentos de saudade...

É sublime a Terceira Juventude...
E, quando Deus nos dá paz e saúde,
vencemos o receio da partida,

pois, somando as benesses da existência,
nos mostra a sábia voz da experiência
que foi um Céu, na Terra, a nossa vida!...

Fonte:
Textos enviados pelo Autor

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Trova Ecológica 50 - Nemésio Prata Crisóstomo (CE)

Fábio Rocha (Antologia Poética)


LOBOS

Escrever
Meu corpo se enche de emoções dementes,
como uma taça sob torneiras intermitentes.
Se não fosse a poesia,
para onde ela transbordaria?

FÉRIAS

A Fábio, Eduardo, Suzana e José Ronaldo Neto

Lá vai o turista
subindo a ladeira.
E corre o pivete
atrás da carteira...
Lá vem o turista
descendo a ladeira.

JARDIM

A Marta, Mário, Ilka e Salvador

Do velho terraço cheio de limo,
pedaço cinzento de sua infância,
via as sombras da grande amendoeira.
O balanço enferrujado,
as grandes e barulhentas folhas caídas...
Parecia algo intocado, sagrado.
Um copo de água estagnado
era visitado
por miúdos pardais sedentos.
As amêndoas serviam de giz
para escrever nas paredes
que era um menino feliz.

BRILHO

A Alessandra

Sempre haverá
estrelas no céu.
As nuvens passam,
as tempestades se acalmam...
Sempre haverá
estrelas no céu.
Pingue a última gota
de esperança do coração...
Sempre haverá
estrelas no céu.
E nelas verei teu sorriso.

CHUVA ATUAL

Vendo a chuva que cai agora,
lembro daquela
que choveu outrora.
Escorrendo pelas folhas, naquele dia...
Hoje chove a melancolia.
Há o frio, Há poças,
há o cheiro da chuva na terra,
há tristeza em cada gota.
Algo nas nuvens se move.
Quem chora quando chove?
O pior é que a cada dia,
aquilo que já choveu,
de novo jamais chover poderia.

O VIGIA

O vigia
vigia.
Raios de luz esguia
iluminam a rua vazia.
O vigia
vigia.
Uma brisa suave e fria
traz cheiro de terra molhada e assobia.
O vigia
vigia.
Em sua mente toca uma canção da utopia
que há muito não se ouvia.
Mas é triste a canção.
E só traz mais solidão
e melancolia.

DEFINIÇÃO

A Daishoo

A vida é
como a lágrima que cai.
De tristeza ou alegria,
cai com poesia.
Algumas caem rebeldes, brigando.
Outras se deixam levar.
Caem tristes, felizes, esperançosas,
melancólicas, rebeldes, carentes ou desgostosas.
Mas todas que dos olhos saem,
sem exceção, caem.
E feliz da gota
que chega ao mar,
após cair longamente,
a procurar.
E a comunhão eterna, total e imutável
encontrar.
(Não conte a ninguém não,
mas algumas gotas que se juntam tem essa sensação,
mesmo antes do fim da queda.)

SOLIDÃO

Não estou só.
Há ácaros em minha pele,
insetos escondidos em meu quarto,
células estranhas em meu sangue,
vírus em animação suspensa no ar
e sua forte presença
em meu coração.

Fonte:
ROCHA, Fábio. A Magia da Poesia. Rio de Janeiro: Papel Virtual Editora, 2000.
Editoração Eletrônica: Ana Petrik Magalhães

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 404)

Uma Trova Nacional
Uma Trova Potiguar

Contemplo à noite, à janela...
e entre as estrelas e a lua,
eu sinto o perfume dela
que no meu quarto flutua.
–FRANCISCO MACEDO/RN–

Uma Trova Premiada


2000 - Goianá/MG
Tema: SEARA - M/E

Ante a dor, chora risonho,
jamais pises em ninguém!
Mantém, meu filho, o teu sonho,
trilha a seara do bem!
–JOSÉ VALDEZ DE C. MOURA/SP–

Uma Trova de Ademar

Faço versos...Me comovo,
e o meu pranto se mistura
com a cultura do povo
e a minha própria cultura...
–ADEMAR MACEDO/RN–

...E Suas Trovas Ficaram

Coração, bate de leve;
deixa os teus sonhos horríveis,
que um coração nunca deve
sonhar coisas impossíveis.
–BELMIRO BRAGA/MG–

Simplesmente Poesia

Ser
–JÂNIA SOUZA/RN–

Em mim, há imenso céu azul
puro sussurro de anjo de luz.

Há também profundo oceano
fruto da melancolia do mundo
com meus segredos, meus medos
murmúrio de ondas – sonhos.

Há também em mim frágil pássaro
soberano em voo – liberdade!
Sem limite em seus horizonte
em busca de paz e felicidade.

Em mim ainda há este ser
eterno aprendiz, até que seu sopro
se torne apenas o resto do fim.

Estrofe do Dia

Não conto mesmo a ninguém
essa dor que me atrofia,
eu me calo e escrevo em verso,
porque sei que a poesia
seca o choro da saudade
e nunca diz a verdade
sobre o mundo da agonia.
–DÁGUIMA VERÔNICA/MG–

Soneto do Dia

Fora do Prazo.
–Amilton Maciel/SP–

A beleza do sol, em seu ocaso,
Supera muita vez o resplendor
Desse astro-rei a pino, lá no vaso
Azul que o concebeu seu Inventor!

Também conosco, não só por acaso,
Consegue-se sentir todo o sabor
Da existência, talvez fora do prazo,
Ou seja, quando a vida está a se pôr...

Antes que a noite chegue, o sol se esmera
E dá o melhor que tem, enquanto a espera,
Em homenagem que presta ao Criador!

E quando o sono-eterno se aproxima,
Nossa existência sente o melhor clima
Para reverenciar o Deus de Amor!

Fonte:
Textos enviados pelo autor