segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 657)

 Uma Trova de Ademar

Fiz do quarto um santuário,
pus sua foto no andor
e rezei um novenário  
para louvar nosso amor!
Ademar Macedo/RN–

 Uma Trova Nacional

A caridade amplifica
o sentimento Cristão
que tão bem se multiplica
quando é feita a divisão.
–Eliana Jimenez/SC–

 Uma Trova Potiguar

Quanto as multidões, sou crítico!
Pois em muitas não há luz;
se não aplaude um político,
coloca um cristo na cruz!
–Manoel Cavalcante/RN–

 Uma Trova Premiada

2011  -  Nova Friburgo/RJ
Tema  -  RECADO  -  3º Lugar

Em meu olhar recatado,
teu olhar viu, mas não leu,
a ternura de um recado
que o meu amor escreveu.
–Marina Bruna/SP–

 ...E Suas Trovas Ficaram

Tenho um segredo profundo
- e é de amor... - e, tarde ou cedo,
eu gostaria que o mundo
soubesse desse segredo!
–João Freire Filho/RJ–

  U m a    P o e s i a  

Passou o tempo. Hoje, o inverno
já chegou à minha vida!
O fim já diviso perto
e, às vezes, fico sentida,
porque dúvidas me assaltam,
quanto à hora da partida!
–Delcy Canalles/RS–

 Soneto do Dia

SE UM DIA...
–Diamantino Ferreira/RJ–

- Se um dia me disseres... se o disseres!
“Amo-te!  Apesar dos teus defeitos!”
Serás a maior, mais falsa  das mulheres,
dentre outras tantas. Sem quaisquer conceitos!

Dirás apenas que .. ”Por que  me queres,
pois nenhuma de nós pensa  em “direitos”?
Eis que somos apenas teus talheres,
das tuas refeições e teus confeitos!

Tenho o direito de dizer: Sou tua!
Enquanto vives tu, vives na rua,
e te queres achar seres meu dono!

Que mãe eu tive – se algum dia a tive?
Não a conheço e se tampouco vive.
...A quem pertenço – enfim - neste abandono?

domingo, 2 de setembro de 2012

Haicai 8 - Hermoclydes S. Franco (RJ)


Alda do Espírito Santo (Poemas Diversos)

PARA LÁ DA PRAIA
Baía morena da nossa terra
 vem beijar os pezinhos agrestes
 das nossas praias sedentas,
 e canta, baía minha
 os ventres inchados
 da minha infância,
 sonhos meus, ardentes
 da minha gente pequena
 lançada na areia
 da praia morena
 gemendo na areia
 da Praia Gamboa.

Canta, criança minha
 teu sonho gritante
 na areia distante
 da praia morena.

Teu tecto de andala (1)
 à berma da praia
 teu ninho deserto
 em dias de feira,
 mamã tua, menino
 na luta da vida.

Gamã pixi (2) à cabeça
 na faina do dia
 maninho pequeno, no dorso ambulante
 e tu, sonho meu, na areia morena
 camisa rasgada,
 no lote da vida,
 na longa espera, duma perna inchada

Mamã caminhando p’ra venda do peixe
 e tu, na canoa das águas marinhas
 - Ai peixe à tardinha
 na minha baía
 mamã minha serena
 na venda do peixe
 pela luta da fome
 da gente pequena.

Notas:
(1) Andala: folha de palmeira;
 (2) Gamã pixi: gamela com peixe.


LÁ NO ÁGUA GRANDE
Lá no "Água Grande" a caminho da roça
negritas batem que batem co'a roupa na pedra. 
Batem e cantam modinhas da terra.

Cantam e riem em riso de mofa
histórias contadas, arrastadas pelo vento.

Riem alto de rijo, com a roupa na pedra
e põem de branco a roupa lavada.

As crianças brincam e a água canta.
Brincam na água felizes...
Velam no capim um negrito pequenino.

E os gemidos cantados das negritas lá do rio
ficam mudos lá na hora do regresso...
Jazem quedos no regresso para a roça.

ILHA NUA

Coqueiros e palmares da Terra Natal
Mar azul das ilhas perdidas na conjuntura dos séculos
Vegetação densa no horizonte imenso dos nossos sonhos.
Verdura, oceano, calor tropical
Gritando a sede imensa do salgado mar
No deserto paradoxal das praias humanas
Sedentas de espaço e devida
Nos cantos amargos do ossobô
Anunciando o cair das chuvas
Varrendo de rijo a terra calcinada
Saturada do calor ardente
Mas faminta da irradiação humana
Ilhas paradoxais do Sul do Sará
Os desertos humanos clamam
Na floresta virgem
Dos teus destinos sem planuras...

PARA A TANIA

Nesta noite morna de luar africano
Salpicando de sombras as estradas
Eu estendo os meus braços sedentos
Para a nossa mãe África, gigante
E ergo para ti meu canto sem palavras
Suplicando bênção da terra
Para as vias dos teus caminhos
Para a rota do destino imenso
Traçado na inteireza de todo o teu ser
Para ti, a projecção das nossas estradas
Varridas da impureza dos dejectos inúteis
Para ti, o canto de glória da nossa
Mãe África dignificada.

Fontes:
Luis Gaspar. Estudio Raposa.
Jornal de Poesia

Isabel Furini (Os Portões)

Nessa tarde de domingo, quando sua irmã Cacilda  espalhou as flores sobre o túmulo, rezou uma rápida prece e disse tchau Maria, vou para casa de mamãe, ela nem se preocupou. Calmamente pegou um gladíolo louçano  que sobressaía entre as flores  e colocou-o no vaso de cerâmica azul. Depois foi a vez de arrumar os cravos brancos.

Quando terminou de arrumar as flores, o Sol já estava caindo e faltava pouco para que o guarda-noturno fechasse os portões. Deveria ter saído com Cacilda em vez de dizer tchau e continuar arrumando as flores. Por que eu não fiz isso? Perguntava-se. Receosa, acelerou o passo. O cemitério ficou deserto e ela lá, sozinha.  Tentou correr. Não conseguiu. Suas pernas não obedeciam a seu comando. Essas cruzes. Oh! não!..  Errei o caminho.

Estava na parte detrás do cemitério, só via um muro pintado de branco.  Voltou sobre seus passos, túmulos enfileirados e mais túmulos... Estou perdida.  Calma, Maria, calma, você conhece este cemitério, já veio aqui várias vezes. Calma, calma, murmurava.

Avançou entre os mausoléus. Ah! Já estava perto de um portão! Seu passo não era tão rápido quanto ela queria e suas pernas tremiam, mas estava indo para frente enquanto as sombras avançavam. Com desespero, viu  os portões fechados.  Onde estará o guarda- noturno?
As sombras se espalharam sobre os túmulos dando ao cemitério um aspecto fantasmagórico. Devia ter saído com sua irmã. Cacilda sempre fazia visitas rápidas apenas para colocar as flores de qualquer maneira, e rezar uma Ave Maria.

As sombras se estenderam e ela aí, caminhando sem cessar. Tentando sair. E o vigia? Olhou suas roupas novas. Nem lembrava quando as havia comprado.   Pena que não tinha o celular com ela. Ela havia esquecido o celular em casa!... Seguramente na mesa de jantar ou talvez no criado mudo.

Aquele mausoléu de mármore branco. Ela já havia passado por ele em outras oportunidades.  Que sorte! O guarda estará lá. Ele abrirá o portão. Apressou o passo e lá estava o portão...

Suspirou aliviada. Sob a lua cheia  viu o portão, mas ninguém por perto. E o guarda? Avançou até o portão e olhou para os lados.  E, determinada, começou a escalar o portão, primeiro colocou um pé na barra inferior da grade e ergueu os braços para segurar na parte superior. Conseguiu elevar-se um pouco. Esforçou-se mais, ergueu os braços novamente e segurou  uma das barras horizontais. Já estou perto do topo. Mais um esforço e... tocou a barra superior do portão, um pé no ar e o outro pé escorregou antes de poder segurar com as mãos e caiu de costas. Sentou-se rapidamente no chão, não estava machucada,  mas devia iniciar de novo a subida.

De repente, sons de passos. Um jovem de cabelo loiro transitava pela rua, vinha do bairro em direção ao ponto de ônibus.  Para chamar a atenção do rapaz sacudiu o portão e gritou com todas suas forças. Viu o rapaz parar em frente do portão, com os olhos arregalados por um segundo, e sair correndo apavorado.

–  Volte!... Ajude-me a sair daqui.

– O que foi moça? – perguntou alguém atrás dela.

Graças a Deus, o guarda do cemitério a escutara. Voltou-se. O que viu a deixou confusa. Havia inúmeras pessoas atrás dela, homens, mulheres, velhos, jovens, adultos, crianças. Todos olhando o portão. Alguns com tristeza, outros com desespero e outros ainda, com raiva.
Um velho aproximou-se dela.

– Você deve ser nova aqui e não conhece as regras. Só podemos olhar para fora, mas não podemos sair. Não podemos sair. Só os vivos podem, só os vivos.

Fonte:
Recanto das Letras
http://www.recantodasletras.com.br/contosdesuspense/2232347

Fernando Sabino (Entre dois amores ...melhor ficar o dito pelo não dito)

 Era uma voz angustiada que o chamava lá embaixo na rua, tirando-o do sono. Acendeu a luz, olhou o relógio: uma hora da madrugada.

- Você está sentindo alguma coisa? - a mulher voltou-se na cama, estremunhada.

- Estão me chamando lá na rua. Acho que é o Gil. - Foi até a janela. Era o Gil, acenando-lhe freneticamente da calçada.

- Joga a chave!

Jogou a chave dentro de um maço de cigarros vazio. Depois vestiu o roupão e foi esperar na sala.

Em pouco o Gil irrompia apartamento adentro, esbaforido:

- Entrei numa fria do diabo. Pelo amor de Deus, me ajuda a sair dessa.

- Matou alguém? - disse o advogado, já alerta par as atenuantes. Só que não militava no crime, apenas no cível.

- Estou perdido - gemeu o Gil, sem ouvir - Me arranja pelo menos um troço para beber. Aceitou um conhaque. - E contou então a sua história. A mulher tinha ido fazer uma estação de águas em Poços de Caldas e levara as crianças. Aproveitou a folga para dar uma bordejada por aí, repassar um velho caso... Pois, naquela noite vinha muito fagueiro em companhia do velho caso quando o carro, também velho, ao entrar na praia de Botafogo, derrapou e bateu de cheio noutro carro. Gritos, confusão, desespero:

- Minha amiga não teve nada, só o susto. Meti a desgraçada num táxi para que ela se mandasse dali, fosse para o diabo. Eu também não tive nada, a não ser uma pancada no joelho, que posso contar ter sido no futebol de praia. Mas o outro carro! Ficou lá arrebentado. A impressão que tenho é que quem estava lá dentro vai ter de ser enterrado com carro e tudo. Como cheguei até aqui, só Deus sabe.

- Calma que tudo se arranja. Você não devia ter fugido, mas agora não interessa. O jeito é a gente ir até lá para ver o que houve.

Avisou a mulher, enquanto se vestia.

- O Gil se meteu numa fria. Sofreu um acidente.

“Isso tudo foi combinado” - pensava a mulher: - “esses dois vão pra farra”.

 No local do desastre deram com os dois carros meio destroçados, em meio a pequeno grupo de curiosos. Nenhum ferido, nenhum cadáver pudera observar à distância. A menos que já tivessem sido removidos.

- Conheço o comissário deste distrito. Vamos lá para ajeitar as coisas. Na delegacia os dois passaram por um senhor agitado, enraivecido, andando de um lado para o outro. O comissário informou-lhes que tomara conhecimento do desastre. E olhava para o Gil, penalizado.

- Então foi o senhor, é? Esse homem que vocês viram aí fora é o dono do outro carro. Está uma fera. O carro dele virou farinha. E o pior é que ele é coronel, parece. Daí pra cima. Disse que não sai daqui enquanto não resolver o caso. Como não houve vítimas...

- Não houve vítimas! - os dois respiraram, aliviados, embora pairasse no ar, ameaçadora, a patente militar mencionada. Antes que perguntassem o que estava pretendendo o coronel, este irrompeu na sala:

- Como é, comissário? O senhor não vai fazer nada? Não vai tomar nenhuma providência? Quem é esse homem? O carro é dele?

- O carro é aqui do meu amigo - interveio o advogado, conciliador. - Sou advogado dele. O senhor tenha calma, coronel, não precisa se exaltar, que tudo se arranja. Graças a Deus só houve danos materiais.

- Danos materiais? - e o coronel arregalava os olhos, fora de si, muito além da compreensão.

- Tenha calma, coronel. Com calma tudo se resolve. Talvez a gente possa chegar a um acordo.

- Acordo?... - balbuciou o coronel, tão transtornado que o outro, precavido, deu um pulo para trás. -  O senhor falou em acordo?

E respirou fundo, erguendo os braços dramaticamente:

- Acordo! Meu Deus, há duas horas estou esperando ouvir esta palavra bendita! Tomou o advogado pelo braço com a maior familiaridade e o levou a um canto, para lhe explicar a situação. Servia numa unidade em São Paulo. Tivera de vir ao Rio a serviço, apenas por um dia, e fizera crer à mulher que viera de ônibus - ele tinha horror de avião, assim ficaria tranqüila.

- E vim de carro, porque resolvi trazer uma velha amiga... O senhor compreende, não? Felizmente ela não sofreu nada. Ninguém sofreu nada, e não se sabe de quem foi a culpa, de modo que um acordo... Se por acaso minha mulher... Meu Deus, o senhor não conhece minha mulher. Faço qualquer acordo! Qualquer acordo! Como no verso de Bandeira, só falta o coronel apoplético, sair gritando: “Je vois des anges! Je vois des anges!” - O advogado lhe disse mais uma vez que não precisava se exaltar, estava tudo resolvido.

- O acordo está feito. Uma mão lava a outra.

O coronel deixou escapar sua satisfação num sorriso:

- Isso mesmo.

- Fica o dito pelo não dito - insistiu o outro.

- O dito pelo não dito. Dito e feito! Ou, melhor dizendo - e o coronel piscou um olho, - elas por elas.
 
Fonte:
Moacir Amâncio (organizador). Cronistas do Estadão. SP: O Estado de São Paulo.

Folclore Português (O Pastor feito Mercador)

Mercador (Pintura de José Rosário)
 Era pastor desde menino. Conhecia o seu rebanho como os seus dedos e mal uma ovelha balia, já ele sabia o que ela queria. Queimado do sol, curtido pela neve no Inverno, atravessava as serras e os vales guiando o seu rebanho a caminho das sombras e das pastagens. Também as ovelhinhas o conheciam muito bem e, a um sinal seu, elas entendiam-no e obedeciam-lhe.

 E numa tarde de Verão muito quente, quase ao anoitecer, desceu com o seu rebanho até à praia, e ovelhas e pastor deitaram-se na areia, à sombra dos pinheiros que havia à beira do mar. As ondas iam e vinham, muito mansas, como ovelhas de um rebanho, debruadas de espuma alva, que se rasgava aos bocados, como rendas leves, presas nas pedras e nas areias da praia. Mas o Pastor não dormia; pensava nas lebres do bosque e nas aves que chilreavam nas fontes e nas árvores, ouvia os sons doces e tristes da sua flauta de cana e sonhava com flores, com pastoras e com a felicidade. Não ser pastor… ser rico… não andar um dia inteiro, uma vida inteira atrás das ovelhas, a guiar o seu rebanho…

 Por fim, a Lua apareceu no céu, a iluminar tudo de sombras misteriosas e de luzes fascinantes. À sua claridade tudo tomou um aspecto diferente e adquiriu uma forma fantástica. O mar era um espelho, mais brilhante e mais atraente, as ondas pareciam pedacinhos de luz,bocados da própria Lua caídos do céu, a rolar na enorme superfície…

 E o Pastor começou a pensar:

 — O mar é tão belo… o mar é tão poderoso… Ele leva-nos para terras distantes… Ele faz-nos conhecer outros mundos… Ele faz enriquecer os homens… Porque hei-de eu continuar a ser pastor?! Se eu vendesse o meu rebanho podia comprar um barco e fazer-me mercador. Levava mercadorias de um lado para o outro do mundo e enriquecia, sem dúvida…

 Levantou-se um pouco, de olhos no céu e no mar:

 — Em pouco tempo seria um homem rico… rico…O mar é tão belo… e tão bom… Como ele está manso…como está bonito…

 Seduzido pela beleza e pela bondade que ele via no mar, o Pastor fez o que pensara naquela noite: vendeu o rebanho das suas ovelhas mansas e bonitas, que baliam por ele, e comprou um barco, um belo navio, com mastros altos, velas brancas e largas, que, abertas, semelhavam asas a levarem o barco para longe, para muito longe…

 O Pastor juntou todo o dinheiro que pôde, pediu algum emprestado, comprou um carregamento de tâmaras e fez-se ao mar, esperançoso e alegre, convencido de que voltaria rico logo na sua primeira viagem.

 A meio do caminho, porém, tudo se modificou. Uma grande tempestade surgiu e o barco de velas brancas e largas foi impelido pelo vento e sacudido pelo mar, de tal maneira que oscilava ao de cima das ondas, como um brinquedo leve. O vento e o mar embravecidos, raivosos, rugindo e silvando medonhamente, partiram-lhe os mastros, rasgaram-lhe as velas e em pouco tempo o barco ficou arrombado, a meter água, e afundou-se, destruído. Dificilmente os homens salvaram a vida: tudo o resto se perdeu.

 O Pastor, que sonhava ser um rico mercador, ficou mais pobre do que antes: agora nem um só cordeirinho tinha… Recordou o seu querido rebanho, que ele trocara por um desejo e por uma esperança, e foi pedir trabalho ao homem a quem o vendera, para voltar a ser pastor e não morrer de fome.

 Depois, quando nas horas de sol se deitava à sombra das árvores com as suas ovelhas, dizia para elas:

 — Nunca mais… nunca mais as deixo por uma coisa que eu não conheça. Aprendi à minha custa, mas as lições aprendidas assim são as que nunca mais esquecem.

Fonte:
Luis Gaspar, in Estudio Raposa.

Afonso Duarte (Livro de Sonetos)


CAMPO

A Alberto Martins de Carvalho

Este verde impossível de se ver,
 Que alegre o camponês cultiva o prazo,
 Não dá sequer para me aborrecer
 Na extensão sem fim do campo raso.

Sem fim, a vida, deixa se correr
 Lisa e fatal, serena, sem acaso.
 E acontece o que tem de acontecer
 Como quem já da vida não faz caso.

Nada se passa aqui de extraordinário:
 Tudo assim, como peixe no aquário,
 Sem relevo, sem isto, sem aquilo;

Muito bucólico a favor da besta,
 O campo, sim, é esta coisa fresca…
 Coaxar de rãs, a música do estilo.

ERROS MEUS A QUE CHAMAREI VIRTUDE 

Erros meus a que chamarei virtude,
Por bem vos quero, e morro despedido
Sem amor, sem saúde, o chão perdido,
Erros meus a que chamarei virtude.

A terra cultivei, amargo e rude,
No sonho de melhor a ter servido;
Para ilusão de um palmo de comprido,
A terra cultivei, amargo e rude.

E o amor? A saúde? Eis os dois Lagos
Onde os olhos me ficam debruçados
— Azul e roxo, rasos de água os Lagos.

Mas direis, erros meus, ainda amores?
— São bonitos os dias acabados
Quando ao poente o Sol desfolha flores.

CABELOS BRANCOS 

Cobrem-me as fontes já cabelos brancos,
Não vou a festas. E não vou, não vou.
Vou para a aldeia, com os meus tamancos,
Cuidar das hortas. E não vou, não vou.

Cabelos brancos, vá, sejamos francos,
Minha inocência quando os encontrou
Era um mistério vê-los: Tive espantos
Quando os achei, menino, em meu avô.

Nem caiu neve, nem vieram gelos:
Com a estranheza ingénua da mudança,
Castanhos remirava os meus cabelos;

E, atento à cor, sem ter outra lembrança,
Ruços cabelos me doía vê-los ...
E fiquei sempre triste de criança.

RISO 

Tive o jeito de rir, quando menino,
Até beber as lágrimas choradas:
Com carantonhas, gestos, desatino,
Passou a nuvem e os pequenos nadas.

A rir de escuridões, de encruzilhadas,
Tornei-me afeito logo em pequenino;
Porque ri é que trago as mãos geladas,
E choro porque ri do meu destino.

Vivi de mais num mundo idealizado
Comigo só: E só de mim descreio
Entornava-me riso a luz em cheio

Quando o meu mundo foi principiado;
Rio agora que não sei donde me veio
Sempre o mal que me trouxe o bem sonhado.

PAISAGEM ÚNICA

Olhas-me tu: e nos teus olhos vejo
Que eu sou apenas quem se vê: assim
Tu tanto me entregaste ao teu desejo
Que é nos teus olhos que eu me vejo a mim.

Em ti, que bem meu corpo se acomoda!
Ah! quanto amor por os teus olhos arde!
Contigo sou? — perco a paisagem toda...
Longe de ti? — sou como um dobre à tarde...

Adeuses aos casais dessas Marias
Em cuja graça o meu olhar flutua,
Tudo o que amei ao teu amor o entrego.

Choupos com ar de velhas Senhorias,
Castelo moiro donde nasce a Lua,
E apenas tu, a tudo o mais sou cego.

HORAS DE SAUDADE 

Vou de luar em rosto, descontente:
Meus olhos choram lágrimas de sal.
— Adeus, terras e moças do casal,
— Adeus, ó coração da minha gente.

A hora da saudade é uma serpente:
Quero falar, não posso, e antes que fale
Ela enlaça-me a voz tão cordial
Que as coisas mais me lembram fielmente.

Olhos de amora, e uma ave na garganta
Para enfeitiçar a alma quando canta,
Moças com sua parra de avental;

Graça, Beleza, um verso sem medida,
A Saudade desterrou-me a vida ...
Sou um eco perdido noutro vale.

INSCRIÇÃO 

Dos vastos horizontes me invocaram,
Noutras formas artísticas imersos,
Revoltos pensamentos que formaram
Todo o amor e pureza dos meus versos.

Melodias que os ventos orquestraram
Foram verbo dos átomos dispersos:
Palavras que meus olhos soletraram
Num indizível sonho de universos.

Foram aromas das fecundas messes:
Como se tu, ó Terra, mos dissesses
Numa profunda comunhão de mágoas.

Geraram-mos os génios das Montanhas
Na sua fé de catedrais estranhas,
Na panteísta devoção das Águas.

Fontes:
Luis Gaspar. Estúdio Raposa 
http://www.estudioraposa.com/index.php/category/poetas/afonso-duarte/
Citador
http://www.citador.pt/poemas/a/afonso-duarte

Afonso Duarte (1884 – 1958)

1884 -Nasce Afonso Duarte, a 1 de Janeiro, na aldeia da Ereira, freguesia de Verride, concelho de Montemor-o-Velho. Filho de Henrique Fernandes Duarte e D. Maria Pereira Cantante.
1896- Faz exame de instrução primária na escola de Alfarelos.
1898 - Entra para o Colégio Mondego, de Coimbra, onde permanece como aluno interno durante 3 anos.
1902- Assenta praça em Lanceiros de EI-Rei e matricula-se no Liceu de José Falcão.
1904 - Sabe-se que tinha já concluído nesta altura o seu primeiro livro de versos, Composições verdes, que não chegou a ser publicado.
1908 - Matricula-se na Universidade de Coimbra (prepararatórios para a Escola do Exército)
1909- Desiste da carreira das armas, passando a frequentar o curso de Ciências Físico-Naturais da Faculdade de Filosofia, hoje extinta.
1912 -Publica o Cancíoneíro das Pedras na Livraria Ferreira, de Lisboa, livro que reúne as poesias escritas de 1906 a 1910. Funda, com Nuno Simões, a revista Rajada.
1913- Bacharela-se em Ciências Físico- Naturais.
1914 - Publica a Tragédia do Sol-posto, Franca Amado, editor, Coimbra. É colocado como professor provisório no Liceu de Vila Real de Trás-os-Montes.
1915- Abandona Vila Real para frequentar a Escola Normal Superior de Lisboa.
1916 - Publica a Rapsódia do Sol-nado seguida do Ritual do Amor, Renascença Portuguesa, Porto.
1917 - É nomeado professor do Liceu de Gil Vicente, de Lisboa. Mobilizado pouco depois, dá entrada na Escola de Oficiais Milicianos de Artilharia de Costa.
1918- É licenciado a seguir ao Armistício, sobrevindo-lhe então a grave doença que esteve quase a inutilizá-lo (paraplegia) e de que nunca mais se curou completamente.
1919 - Volta a exercer funções públicas como chefe de secretaria do Liceu Infanta D. Maria e professor da Escola Normal Primária de Coimbra.
1924 - Lança com João Gaspar Simões e Branquinho da Fonseca a revista Triptico.
1925 -Abandona o cargo de chefe de secretaria do Liceu de José Falcão, para onde transitara do Liceu Infanta D. Maria, entregando-se a partir de então, na Escola Normal, a uma experiência pedagógica absorvente, que alcançou verdadeira repercussão europeia. Publica Barros de Coimbra, edições Lumen, Coimbra.
1929 - Dá a lume Os sete poemas líricos, edições Presença, Coimbra, compilação da sua obra poética, inédita e publicada.
1932 - É colocado na situação de adido fora do serviço e compelido à aposentação.
1933 - Publica Desenhos animistas de uma criança de 7 anos, Imprensa da Universidade, Coimbra.
1936 - Publica o ciclo do Natal na literatura oral portuguesa, Biblioteca Etnográfica e Histórica Portuguesa, Barcelos.
1947 - Publica Ossadas, edição da Seara Nova, Lisboa. Poesias escritas, provavelmente, entre 1922 e 1946.
1948 - Publica Um esquema do cancioneiro popular português, também edição da Seara Nova.
1949 - Publica o Post-scriptum de um combatente, Colecção Galo, Coimbra. Escrito em Janeiro e Fevereiro de 1948, excepto as poesias «Post-scriptum de um combatente» (1917), «Coimbra» (1918), «4 de Junho de 1944», «Terra Natal (1947), «Eugénio de Castro» (1947) e a «Saudação a Pascoaes» (1949).
1950-Publica Sibila, edição do autor, Coimbra. Tanto as «trinta e cinco redondilhas fingidas» como o «Soneto verdadeiro» datam de Abril de 1950.
1952 - Publica Canto de Babilónia e Canto de morte e amor ambos edições do autor, o primeiro escrito em 1951, o segundo de Janeiro a Março de 1952.
1956 - Sai a 1.a edição da sua Obra Poética, Iniciativas Editoríais, Lisboa. É uma recolha de todos os livros de poesia já publicados e inclui o livro inédito 0 Anjo da Morte e outros poemas, coligido e completado de 1952 a 1956, embora no plano geral da obra o autor o insira antes do tríptico de redondilhas formado por Sibila, Canto de Babílónia e Canto de Morte e Amor. Acompanha a Obra Poética um apêndice biobibliográfico organizado por Carlos de Oliveira e João José Cochofel.
1956 - A 24 de Junho é-lhe prestada pública homenagem na Ereira, sua terra natal, e descerrada no Castelo de Montemor-o-Velho uma lápide com estes versos seus: Onde nasceu o Fernão Mendes Pinto? Jorge de Montemor onde nasceu? A mesma terra, o mesmo céu que eu pinto, Castelo velho, o que foi deles é meu.
1957 - 2.a edição da Obra Poética, Guimarães Editores, Lisboa, aumentada de novas poesias.
1958 - Morre em Coimbra, a 5 de Março. É sepultado no cemitério da Ereira.
1960 - Sai o volume póstumo Lápides e outros poemas (Iniciativas Editoriais, Lisboa), organizado por Carlos de Oliveira e João José Cochofel.
1974 - Publica-se esta 3.a edição, definitiva, da Obra Poética. A inclusão (não cronológica) de Lápides e outros poemas entre os livros o anjo da morte e Sibila faz-se por determinação de Afonso Duarte, que insistentemente indicou os cicios das redondilhas como fecho de toda a sua obra.
Fonte:

Monteiro Lobato (Uma História de Mil Anos)

–Hu... hu...
É como nos ínvios da mata soluça a juriti.
Doishus – um que sobe, outro que desce.

O destino dou!. .. Veludo verde-negro transmutado em som – voz das tristezas sombrias. Os aborígenes, maravilhosos denominadores das coisas, possuíam o senso impressionista da onomatopéia. Urutau, uru, urutu, inambu – que sons definirão melhor essas criaturinhas solitárias, amigas da penumbra e dos recessos?
A juriti, pombinha eternamente magoada, é todaus. Não canta, geme emu – geme um gemido aveludado, lilás, sonorização dolente da saudade.
O caçador passarinheiro sabe como ela morre sem luta ao mínimo ferimento. Morre em u...
Já o sanhaço é todoas. Ferido, debate-se, desfere bicadas, pia lancinante.

A juriti apaga-se como chama de algodão. Frágil torrão de vida, extingue-se como se extingue a vida do torrão de açúcar ao simples contato com a água. Umu que se funde. Como vivem e morrem juritis, assim viveu e morreu Vidinha, a linda criança afinada emu. E como não seria assim, se era Vidinha uma juriti humana – meiguice feita menina-e-moça, begônia sensível dos grotões?
Que amiga dos contrastes é a natureza!

Ali naquele barraco crescem no árido as samambaias. Rijas, ásperas, corajosas, resistem aos ventos, aos enxurros, ao cargueiro que as esbarra, ao viandante distraído que as chicoteia. Batidas, reerguem-se. Cortadas, rebrotam. Esmagadas, reviçam. Cínicas!
Mais adiante, na grota fria onde tudo é sombra e cerração, ergue-se a espaços, em meio dos caetés valentes e dos fetos rendados, a solitária begônia.
Tímida e frágil, o menor contato a magoa. Toda ela – caule, folhas, flores – é a mesma carne tenra de criança.
Sempre os contrastes.
Os eleitos de sensibilidade, os mártires da dor – e os fortes. A juriti e o sanhaço. A begônia e a samambaia.
Vidinha, a inocente criança, era juriti e begônia.
O Destino, como os sábios, também faz suas experiências. Permite vidas a título de experiência, na tentativa de aclimar na terra seres que não são da terra.
Vingará Vidinha, solta no mundo em meio da alcatéia humana?
Janeiro. Dia de mormaço a envolver o mundo sob a curva do céu imensamente azul.
A casa onde mora Vidinha é a única das cercanias – garça pousada no oceano verde-sujo das samambaias e sapezeiros.

Que terra! Ondula em mamelões verdolengos até encontrar o céu, longe, no horizonte. Hispidez, aridez – terra outrora bendita, que o homem, senhor do fogo, transfez em deserto maldito.
Os olhos pervagam: cá e lá, ’té aos confins, sempre o chamalote verde-oliva da samambaia áspera – esse musgo da esterilidade.
Entristece, aquilo. Cansa a vista o sem-fim da morraria nua de árvores – e o consolo é pousar os olhos na pombinha branca da casinhola.

Como a cal das paredes cintila ao sol! E como nos enleva a alma sua pequenina moldura de árvores domésticas! Aquele pá de espirradeira todo florido, o cercado de taquara; a horta, o canteirinho de flores, o poleiro das aves nos fundos sob a fronde da guabirobeira...

Vidinha é a manhã da casa. Vive entre duas estações: a mãe – um outono, e o pai – inverno em começos. Ali nasceu e cresceu. Ali morrerá. Inocente e ingênua, do mundo só conhece o centímetro quadrado de mundo que é o pequeno sítio paterno. Imagina as coisas – não as sabe. O homem: seu pai. Quantos homens haja, todos serão assim: bons e pais.
A mulher: sua mãe – um tudo.

Bichos?
O gato, o cão, o galo índio que canta pela alvorada, as galinhas suras. Sabe por ouvir dizer de outros muitos: da onça, – gatão feroz; da anta – bicho enorme ; da capivara – porco dos rios; da sucuri – cobra "desta" grossura! Veados e pacas já viu diversos mortos nas caçadas.

Longe do ermo onde está o sítio, é o mundo. Há nele cidades – casas e mais casas, pequenas e grandes em linha, com estradas pelo meio a que chamam de rua. Nunca as viu, sonha-as. Sabe que nelas moram os ricos, seres de outra raça, poderosos que compram fazendas, plantam cafezais e mandam em tudo.
As ideias que povoam sua cabecinha bebeu-as ali na conversa caseira dos pais.
Um Deus no céu, bom, imenso, tudo vê e ouve, até o que a boca não diz. Ao lado dele, Nossa senhora, tão boa, resplandecente, rodeada de anjos...
Os anjos! Crianças de asas e longas túnicas esvoaçantes. No oratório da casa há o retrato de um.
Seus prazeres: a vida da casa, os incidentes do terreiro.
– Venha ver, mamãe, depressa!
– Alguma bobagem...
– ... o pintinho sura trepado nas costas do capão peva, tenteando-se nas asinhas!

Venha ver que galanteza. Ei... ei, caiu!
Ou:
Brinquinho quer por força pegar a cauda. Está que parece um pião, corropiando.

É bonita? Vidinha o ignora. Não se conhece, não faz de si nenhuma idéia. Se nem espelho possui... É, no entanto, linda, dessa lindeza das telas raras que jazem fora de moldoura nos desvãos ignorados.
Vestida à maneira dos pobrezinhos, vale o que não está vestido: o corado das faces, a expressão de inocência, o olhar de criança, as mãos irrequietas. Tem a beleza das begônias silvestres. Dêem-lhe um vaso de porcelana e cintilará.
Cinderela, a eterna história...

O pai vive na luta silenciosa contra a aridez do solo, disputando às formigas, às geadas, à esterilidade, uma colheitinhas curtas. Não importa. Vive contente. A mãe moureja o dia inteiro nos trabalhos da casa. Cose, arruma, remenda, varre.

E Vidinha, entre eles, orquídea que floriu em trnco rude, brinca e sorri. Brinca e sorri com seus amigos: o cão, o gato, os pintos, as rolas que descem ao terreiro. Em noites escuras vêm visitá-la, cirandando em torno à casa, seus amiguinhos luminosos – os vagalumes.
Os anos passam. Os botões se fazem flor.
Um dia Vidinha entrou em sentir vagas perturbações de alma. Fugia aos brinquedos e cismava. A mãe notou a mudança.
– Em que está pensando, menina?
– Não sei. Em nada... e suspirou.
A mãe observou-a ainda uns tempos e disse ao marido:
– É lado de casar Vidinha. Está moça. Já não sabe o que quer.

Mas, casá-la, como? Com quem? Não havia ali vizinho naquele deserto, e a criança corria o risco de estiolar-se como flor estéril sem que olhos de homem casadouro pusessem reparo em seus encantos.
Não será assim, todavia. O destino levará por diante mais uma cruel experiência.
O lobo fareja de longe a menina da capinha vermelha.
A begônia daquele deserto, filha das selvas, será caça. Será caçada por um caçador...
Está na idade do sacrifício.
O caçador não tardará.
Vem perto, piando em inambu, com a espingarda nas mãos. Trocará de bom grado, vão ver, os inambus perseguidos pela inocente juriti incauta.
– Ó de casa!
–??
– Venho de longe. Perdi-me nestes carrascais, coisa de dois dias, e não posso comigo de canseira e fome. Venho pedir pousada.
Os ermitões do samambaial acolhem de braços abertos o transviado gentil.
Bonito moço da cidade. Bem-falante, maneiroso – uma sedução!
Como são belos os gaviões caçadores de inocências...
Deixou-se ficar a semana inteira. Contava coisas maravilhosas. O pai esquecia a roça para ouvi-lo, e a mãe desleixava a casa. Que sereia!
No pomar, sob o dossel das laranjeiras abotoadas:
– Nunca pensou em sair daqui, Vidinha?
– Sair? Aqui tenho casa, pai, mãe – tudo...
– Acha muito isso? Oh, lá fora é que é lindo! Que maravilha é lá fora! O mundo! As cidades! Aqui é o deserto, prisão horrível, aridez, melancolia...
E ia cantando contos das Mil e Uma Noites sobre a vida das cidades. Dizia do luxo, da magnificência, das festas, das pedrarias que cintilam, das sedas que acariciam o corpo, dos teatros, da música inebriante.
– Mas isso é um sonho...
O príncipe confirmava.
– A vida lá fora é um sonho.
E desfiava rosários inteiros de sonhos.
Vidinha, num deslumbramento, murmurava:
– É lindo! Mas tudo só para ricos.
– Para os ricos e para a beleza. Beleza vale mais que riqueza – e Vidinha é bela!
–Eu?
O espanto da criança...
– Bela, sim – e riquíssima, se o quiser. Vidinha é diamante a lapidar. É Cinderela, hoje no borralho, amanhã, princesa. Seus olhos são estrelas de veludo.
– Que ideia...
– Sua boca, ninho de colibri feito para o beijo...
– !...

A iniciação começa. E tudo na alma de Vidinha se aclara. As idéias vagas se definem. Os hieróglifos do coração se decifram.
Compreende a vida enfim. Sua inquietação era amor, em casulo ainda, a agitar-se nas trevas. Amor sem objeto, perfume sem destino.
O amor é febre da idade, e Vidinha chegara à idade da febre sem o saber. Sentia-lhe o queimar no coração, mas ignorava. E sonhava.
Tinha agora a chave de tudo. O príncipe encantado viera afinal. Estava ali ele, o grande mago de palavras maravilhosas, senhor do Abre-te Sésamo da Felicidade.
E o casulo do amor rompeu-se – e a crisálida do amor, ébria de luz, fez-se ardente borboleta de amor...
O gavião da cidade, fino de faro, havia descido no momento oportuno. Dizia-se doente e ia ficando. Sua doença chamava-se – desejo. Desejo de caçador. Ânsia de caçador por mais uma perdiz.
E a perdiz veio-lhe para as garras, fascinada pela estonteante miragem do amor.
O primeiro beijo...
A florada maravilhosa dos beijos...
O último beijo, à noite...
Pela manhã do décimo dia:
– Que é do caçador?
Fugira...
Já não recendem os manacás. São negras as flores do jardim. Não brilham as estrelas do céu. Não cantam os passarinhos. Não luzem os vagalumes. O sol não alumia. A noite só traz pesadelos.
Uma coisa só não mudou: ohu, hu magoado da juriti, lá no recesso das grotas.
Os dias de Vidinha são agora vagueios agitados pelo campo. Detém-se às vezes ante uma flor, de olhos parados, como recrescidos no rosto. E monologa mentalmente:
– Vermelha? Mentira. Cheirosa? Mentira. Tudo mentira, mentira, mentira...
Mas Vidinha é juriti, corpo e alma afinados emu. Não desespera, não luta, não explode. Chora por dentro e definha. Begônia silvestre que o passante brutal chicoteou, dobra no hastil quebrado, pende para a terra e murcha. Chama de algodão... Torrão de açúcar...
Estava concluída a experiência do Destino. Mais uma vez provava-se que não vive na terra o que não é da terra.
Uma cruz...
E dali por diante, se alguém falava em Vidinha, o velho pai murmurava:
– Era a nossa luz de alegria. Apagou-se...
E a mãe, lacrimejante:
– Não me sai da memória a última palavra dela: "Agora um beijo, mamãe, um beijo seu..."
Fonte:
Monteiro Lobato. Negrinha.

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 656)


Uma Trova de Ademar 

Nessa ausência tão sofrida
que a separação impôs;
vejo o grande mal que a vida
fez na vida de nós dois.
–Ademar Macedo/RN–

Uma Trova Potiguar 


Morre a flor na flor da idade,
padece a planta de dor;
a ausência deixa saudade,
até na morte da flor!
–Prof. Garcia/RN–

Uma Trova Premiada 


2000 > Pouso Alegre/MG
Tema > PASSADO > M/E


A saudade, na insistência
em devolver-me o passado,
faz a dor de tua ausência
tomar forma... do meu lado!
–Ivone Taglialegna Prado/MG–

...E Suas Trovas Ficaram 


Aérea, fluída, de gase,
corpo volátil de essência...
sua presença era quase
como se fosse uma ausência...
–João Rangel Coelho/RJ–

U m a   P o e s i a 


Com certeza, lá no céu
a vida é somente amor;
necessidades, não há;
dinheiro não tem valor,
e a felicidade eterna
supõe ausência de dor.
–José Lucas de Barros/RN–

Soneto do Dia 

ROGATIVA.
–Thalma Tavares/SP–


Senhor, que olhas os antros, as vielas,
os homens sem trabalho, o lar sem pão,
que a minha fé não morra como as velas
que ao mais leve soprar se apagarão.

Ante a ganância atroz, cujas mazelas
nos põem em sobressalto o coração,
eu venho Te pedir pelas favelas
que ora clamam por paz e proteção.

O pobre, da miséria anda cansado
e pensa, em sofrimentos mergulhado,
que Tu, ó meu Senhor, lhe deste as costas.

E é tanta, neste mundo, a violência
que não querendo crer na Tua ausência
eu ando pela vida de mãos postas.

Francisco Miguel de Moura (A Mulher que não Ri)

Francisco Miguel de Moura
Encontrei-a na rua.

É bonita mas não chega a ser nenhuma miss. Nem ex-miss. Pelos olhos, pelo rosto, pelos cabelos, acredito que não freqüenta salões de beleza.

Ia andando de pé, pela cidade, e encontrei-a. É que ainda sinto prazer em andar e andar, sem propósito, sem preocupação, pelas ruas da cidade onde habito, apesar de todos os pesares. E nas minhas andanças, poucas vezes em busca de resolver meus quefazeres e tantas outras nas minhas caminhadas matinais e vespertinas, tenho observado hábitos e comportamentos. As diferenças me aprazem.

Como as criaturas são estranhas!

Há pessoas que, mesmo em se lhe dando bom dia, ou boa tarde, conforme a hora não se abrem, não dizem nada em resposta, às vezes nem olham, ou viram a cara. Raras são aquelas que, sem serem conhecidas, respondem à saudação dos passantes ou lhes dirigem a palavra junto com um sorriso prazenteiro.

Verdade que existe o medo dos estranhos, da perversidade dos ladrões, dos seqüestradores, dos assassinos, dos que só buscam fazer o mal. Mas também é certo que pessoas outras não se parecem nada com gente daquele naipe, no físico, nas feições. São comuns, nem precisam ter letreiro na testa. Ainda mais se entraram já na casa dos sessenta, com os cabelos pintados do branco permanente da velhice.

E foi por causa da idade que me vem chegando, talvez, que observei aquela moça especial, desde muito tempo na minha presença - quando a vejo e quando a deixo de vê-la, a que tomo agora por minha “persona”. Não é caminhante como eu e sim empregada de uma loja cujo nome não vai dito aqui porque seria uma propaganda gratuita, e mais, por resguardo da identidade daquela de quem falo ao meu leitor.

Ela, minha personagem, nunca ri. Fala pouco, só o necessário, embora seja expedita no atendimento dos que procuram comprar alguma mercadoria ou pedir informações, esclarecimentos. Mas não ri, não ri nunca. Está sempre ocupada, trabalhando. Seria por causa disto? Já a encontrei na rua outras vezes, além da primeira de que me lembro. É o mesmo comportar-se: o rosto não contraído, mas não ri; e tem poucas palavras para com as pessoas que a cercam, por exemplo uma companheira de trabalho com quem chega na loja. Daquela vez dei-lhe o meu bom dia e não ouvi resposta, ou então era muito baixa sua voz. Conheço-a de três anos a mais. Sabe, leitor, o que ela me falou até agora na loja? Apenas isto:

- Já foi atendido, senhor?

Outras colegas suas já me atenderam e soltaram seus meio-sorrisos, ou falaram alguma coisa mais que o referente ao simples ato comercial.

Minto. No ano passado, quando publiquei minha crônica costumeira de dezembro, ela me dirigiu duas palavras, em meio a seu serviço de vendedora. A provocação partiu de mim.

- Já leu meu conto de Natal deste ano? Eu sou escritor – apresentei-me.

- Como é seu nome? – ela perguntou.

Eu balbuciei meu nome, depois criei coragem e o disse completo.

- Meu nome literário!

E ainda acrescentei onde havia saído - o nome do jornal.

- Ah, sim! Li e gostei. É por ali mesmo.

Agradeci por ter a simpatia de tão agradável leitora e fiquei esperando seu sorriso.

Qual nada!

Por isto fico me perguntando como acontecem tais coisas, como as pessoas são assim, cada uma diferente. E todas iguais no comer, no dormir, no trabalhar, na pratica da vida diária.

Por que, meu Deus?

No ano seguinte, nova crônica de Natal no mesmo jornal, e fico na escuta dos leitores que se manifestam. Uns o fazem agradando, outros não. Pior os que esquecem. Ou não leram.

Continuei a passar por onde minha “persona” atende profissionalmente. E continuo freguês do estabelecimento. Esperando sua reação, lógico. Mas até hoje não me falou nada.

Esse é um dos enigmas que tento desvendar, talvez o mais difícil. Não me parece pessoa infeliz Nem doente. Ao contrario tem uma aparência agradável. Também não pode ser considerada feia de feição, muito menos de corpo. Não faz muito que a vi fora do balcão, mostrava toda a sua estatura, suas formas dentro de uma veste comum, de trabalho. Mulher atraente. Mas como milhares de outras por aí. Convenci-me de que não eram suas formas que me atraíam, nem seu olhar, nem seus cabelos. Era o enigma. Que faz de sua vida a moça que não tem o prazer do riso? Todos os seres humanos se enfeitam com o sorriso, a mulher então!...

Já pensava em quebrar mais um pouco de minha timidez, na próxima passagem por ali, coisa que não seria difícil porque minha andança em redor se tornara mais constante. Era só perguntar-lhe o nome. Depois emendava com outras perguntinhas à-toas. O nome é coisa importante para todo o mundo. É a partir dele que nascem outras palavras. E das palavras, uma história, o comentário de um fato, uma confissão mesmo diminuta. De seqüência em seqüência estaria lhe declarando amor nem que fosse para quebrar a cara. Quebrar a cara seria conhecê-la mais, até então o meu obsessivo propósito.

Qual não foi a minha surpresa quando, no dia seguinte, ela não voltou. Nem no outro, nem no outro. Uma semana inteira. E nenhuma de suas colegas quis dar-me seu endereço.

Pode ser que eu tenha sido o seu constrangimento e onde esteja agora sorria como qualquer criatura.

Fonte:
www.quemtemsedevenha.com.br/20contos/mulher_que_nao_ri.htm (site desativado)