sábado, 5 de janeiro de 2013

Eça de Queiros (O Mandarim) Parte 5


Uma rica liteira esperava-me à Porta de Tung Tsen-Men, para eu atravessar Pequim até à residência militar de Camilloff. A Muralha agora, ao perto, parecia erguer-se até aos céus com o horror de uma construção bíblica: à sua base apinhava-se uma confusão de barracas, feira exótica, onde rumorejava uma multidão, e a luz de lanternas oscilantes cortava já o crepúsculo de vagas manchas cor de sangue; os toldos brancos faziam ao pé do negro muro como um bando de borboletas pousadas.

Senti-me triste; subi à liteira, cerrei as cortinas de seda escarlate todas bordadas a ouro; e cercado dos cossacos, eis-me entrando a velha Pequim, por essa porta babélica, na turba tumultuosa, entre carretas, cadeirinhas de xarão, cavaleiros mongólicos armados de flechas, bonzos de túnica alvejante marchando um a um, e longas filas de lentos dromedários balançando a sua carga em cadência...

Daí a pouco a liteira parou. O respeito Sá-Tó correu as cortinas, e vi-me num jardim, escurecido e calado, onde, por entre sicômoros seculares, quiosque alumiados brilhavam com uma luz doce, como colossais lanternas pousadas sobre a relva: e toda a sorte de águas correntes murmuravam na sombra. Sob um peristilo feito de madeiros pintados a vermelhão, aclarado por fios de lâmpadas de papel transparente, esperava-me um membrudo figurão, de bigodes brancos, apoiado a um grosso espadão. Era o general Camilloff. Ao adiantar-me para ele, eu sentia o passo inquieto das gazelas fugindo de leve sob as árvores...

O velho herói apertou-me um momento ao peito, e conduziu-me logo, segundo os usos chineses, ao banho da hospitalidade, uma vasta tina de porcelana onde entre rodelas finas de limão sobrenadavam esponjas brancas, num perfume forte de lilás...

Pouco depois a lua banhava deliciosamente os jardins: e eu, muito fresco, de gravata branca, entrava pelo braço de Camilloff no boudoir da generala. Era alta e loira; tinha os olhos verdes das sereias de Homero; no decote baixo do seu vestido de seda branca pousava uma rosa escarlate; e nos dedos, que lhe beijei, errava um aroma fino de sândalo e de chá.

Conversámos muito da Europa, do niilismo, de Zola, de Leão XIII, e da magreza de Sarah Bernhardt...

Pela galeria aberta penetrava um ar cálido que rescendia a heliotrópio. Depois ela sentou-se ao piano – e a sua voz de contralto quebrou até tarde os silêncios melancólicos da Cidade Tártara, com as picantes árias de «Madame Favart» e com as melodias afagantes do «Rei de Lahore». 

Ao outro dia cedo, encerrado com o general num dos quiosques do jardim, contei-lhe a minha lamentável história e os motivos fabulosos que me traziam a Pequim. O herói escutava, cofiando sombriamente o seu espesso bigode cossaco.

– O meu prezado hóspede sabe o chinês? – perguntou-me de repente, fixando em mim a pupila sagaz.

– Sei duas palavras importantes, general: «mandarim» e «chá».

Ele passou a sua mão de fortes cordoveias sobre a medonha cicatriz que lhe sulcava a calva:

– «Mandarim», meu amigo, não é uma palavra chinesa, e ninguém a entende na China. É o nome que no século XVI os navegadores do seu país, do seu belo país...

– Quando nós tínhamos navegadores... murmurei, suspirando.

Ele suspirou também, por polidez, e continuou:

– Que os seus navegadores deram aos funcionários chineses. Vem do seu verbo, do seu lindo verbo...

– Quando tínhamos verbos... – rosnei, no hábito instintivo de deprimir a Pátria. Ele esgazeou um momento o seu olho redondo de velho mocho – e prosseguiu paciente e grave:

– Do seu lindo verbo «mandar»... Resta-lhe portanto «chá». É um vocábulo que tem um vasto papel na vida chinesa, mas julgo-o insuficiente para servir a todas as relações sociais. O meu estimável hóspede pretende esposar uma senhora da família Ti Chin-Fu, continuar a grossa influência que exercia o Mandarim, substituir, doméstica e socialmente, esse chorado defunto... Para tudo isto dispõe da palavra «chá». É pouco.

Não pude negar – que era pouco. O venerando russo, franzindo o seu nariz adunco de milhafre, pôs-me ainda outras objecções que eu via erguerem-se diante do meu desejo como as muralhas mesmas de Pequim: nenhuma senhora da família Ti Chin-Fu consentiria jamais em casar com um bárbaro; e seria impossível, terrivelmente impossível que o imperador, o Filho do Sol, concedesse a um estrangeiro as honras privilegiadas de um mandarim...

– Mas porque mas recusaria? – exclamei. – Eu pertenço a uma boa família da província do Minho. Sou bacharel formado; portanto na China, como em Coimbra, sou um letrado! Já fiz parte de uma repartição pública... Possuo milhões... Tenho a experiência do estilo administrativo...

O general ia-se curvando com respeito a esta abundância dos meus atributos.

– Não é – disse ele enfim – que o imperador realmente o recusasse: é que o indivíduo que lho propusesse seria imediatamente decapitado. A lei chinesa, neste ponto, é explícita e seca. 

Baixei a cabeça, acabrunhado.

– Mas, general – murmurei – eu quero livrar-me da presença odiosa do velho Ti Chin-Fu e do seu papagaio!... Se eu entregasse metade dos meus milhões ao Tesouro chinês, já que não me é dado pessoalmente aplicá-los, como mandarim, à prosperidade do Estado...? Talvez Ti Chin-Fu se calmasse...

O general pousou-me paternalmente a vasta mão sobre o ombro:

– Erro, considerável erro, mancebo! Esses milhões nunca chegariam ao Tesouro imperial. Ficariam nas algibeiras insondáveis das classes dirigentes: seriam dissipados em plantar jardins, coleccionar porcelanas, tapetar de peles os soalhos, fornecer sedas às concubinas: não aliviariam a fome de um só chinês, nem reparariam uma só pedra das estradas públicas... Iriam enriquecer a orgia asiática. A alma de Ti Chin-Fu deve conhecer bem o Império: e isso não a satisfaria.

– E se eu empregasse parte da fortuna do velho malandro em fazer particularmente, como filantropo, largas distribuições de arroz à populaça faminta? É uma ideia...

– Funesta – disse o general, franzindo medonhamente o sobrolho. – A corte imperial veria aí imediatamente uma ambição política, o tortuoso plano de ganhar os favores da plebe, um perigo para a Dinastia... O meu bom amigo seria decapitado... É grave...

– Maldição! – berrei. – Então para que vim eu à China?

O diplomata encolheu vagarosamente os ombros; mas logo, mostrando num sorriso astuto os seus dentes amarelos de cossaco:

– Faça uma coisa. Procure a família de Ti Chin-Fu... Eu indagarei do primeiro-ministro, Sua Excelência o Príncipe Tong, onde pára essa prole interessante... Reúna-os, atire-lhes uma ou duas dúzias de milhões... Depois prepare ao defunto funerais régios. Funerais de alto cerimonial, com um préstito de uma légua, filas de bonzos, todo um mundo de estandartes, palanquins, lanças, plumas, andores escarlates, legiões de carpideiras ululando sinistramente, etc., etc. Se depois de tudo isto a sua consciência não adormecer e o fantasma insistir...

– Então?

– Corte as goelas.

– Obrigado, general.

Uma coisa, porém, era evidente, e nela concordaram Camilloff, o respeitoso Sá-Tó e a generala: – que, para frequentar a família Ti Chin-Fu, seguir os funerais, misturar-me à vida de Pequim, eu devia desde já vestir-me como um chinês opulento, da classe letrada, para me ir habituando ao traje, às maneiras, ao cerimonial mandarim... 

A minha face amarelada, o meu longo bigode pendente favoreciam a caracterização – e quando na manhã seguinte, depois de arranjado pelos costureiros engenhosos da Rua Chá-Cua, entrei na sala forrada de seda escarlate, onde já rebrilhavam as porcelanas do almoço sobre a mesa de xarão negro, – a generala recuou como à aparição do próprio Tong-Tché, Filho do Céu!

Eu trazia uma túnica de brocado azul-escuro abotoada ao lado, com o peitilho ricamente bordado de dragões e flores de oiro: por cima um casabeque de seda de um tom azul mais claro, curto, amplo e fofo: as calças de cetim cor de avelã descobriam ricas babouches amarelas pespontadas a pérolas, e um pouco da meia picada de estrelinhas negras: e à cinta, numa linda faixa franjada de prata, tinha metido um leque de bambu, dos que têm o retrato do filósofo Lao-Tsé e são fabricados em Swa-Ton.

E, pelas misteriosas correlações com que o vestuário influencia o carácter, eu sentia já em mim ideias, instintos chineses: – o amor dos cerimoniais meticulosos, o respeito burocrático das fórmulas, uma ponta de cepticismo letrado; e também um abjecto terror do imperador, o ódio ao estrangeiro, o culto dos antepassados, o fanatismo da tradição, o gosto das coisas açucaradas...

Alma e ventre eram já totalmente um mandarim. Não disse à generala: – Bonjour, Madame. – Dobrado ao meio, fazendo girar os punhos fechados sobre a fronte abaixada, fiz gravemente o chin-chin...

– É adorável, é precioso! – dizia ela, com o seu lindo riso, batendo as mãozinhas pálidas.

Nessa manhã, em honra da minha nova encarnação, havia um almoço chinês. Que gentis guardanapos de papel de seda escarlate, com monstros fabulosos desenhados a negro! O serviço começou por ostras de Ning-Pó. Exímias! Absorvi duas dúzias com um intenso regalo chinês. Depois vieram deliciosas febras de barbatana de tubarão, olhos de carneiro com picado de alho, um prato de nenúfares em calda de açúcar, laranjas de Cantão, e enfim o arroz sacramental, o arroz dos Avós...

Delicado repasto, regado largamente de excelente vinho de Chão-Chigne! E, por fim, com que gozo recebi a minha taça de água a ferver, onde deitei uma pitada de folhas de chá imperial, da primeira colheita de Março, colheita única, que é celebrada com um rito santo pelas mãos puras de virgens!... 

Duas cantadeiras entraram, enquanto nós fumávamos; e muito tempo, numa modulação gutural, disseram velhas cantigas dos tempos da Dinastia Ming, ao som de guitarras recobertas de peles de serpente, que dois tártaros agachados repenicavam, numa cadência melancólica e bárbara. A China tem encantos de um raro gosto...

Depois a loira generala cantou-nos, com chiste, a «Femme à Barbe»: e quando o general saiu com a sua escolta cossaca para o yamen do príncipe Tong, a informar-se da residência da família Ti Chin-Fu – eu, repleto e bem disposto, saí com Sá-Tó a ver Pequim.

A habitação de Camilloff ficava na Cidade Tártara, nos bairros militares e nobres. Há aqui uma tranquilidade austera. As ruas assemelham-se a largos caminhos de aldeia sulcados pelas rodas dos carros; e quase sempre se caminha ao comprido de um muro, donde saem ramos horizontais de sicômoros.

Por vezes uma carreta passa rapidamente, ao trote de um pónei mongol, com altas rodas cravejadas de pregos dourados; tudo nela oscila: o toldo, as cortinas pendentes de seda, os ramos de plumas aos ângulos; e dentro entrevê-se alguma linda dama chinesa, coberta de brocados claros, a cabeça toda cheia de flores, fazendo girar nos pulsos dois aros de prata, com um ar de tédio cerimonioso. Depois é alguma aristocrática cadeirinha de mandarim, que coolies vestidos de azul, de rabicho solto, vão levando a um trote arquejante para os yamen do Estado; precede-os uma criadagem maltrapilha que ergue ao alto rolos de seda com inscrições bordadas, insígnias de autoridade; e dentro o personagem bojudo, com enormes óculos redondos, folheia a sua papelada ou dormita de beiço caído...

A cada momento parávamos a olhar as lojas ricas, com as suas tabuletas verticais de letras douradas sobre fundo escarlate: os fregueses, num silêncio de igreja, subtis como sombras, vão examinando as preciosidades – porcelanas da Dinastia Ming, bronzes, esmaltes, marfins, sedas, armas marchetadas, os leques maravilhosos de Swa-Ton: por vezes, uma fresca rapariga de olho oblíquo, túnica azul, e papoulas de papel nas tranças, desdobra algum raro brocado diante de um grosso chinês que o contempla beatamente, com os dedos cruzados na pança: ao fundo o mercador, aparatoso e imóvel, escreve com um pincel sobre longas tabuinhas de sândalo: e um perfume adocicado, que sai das coisas, perturba e entristece...

Eis aqui a muralha que cerca a Cidade Interdita, morada santa do imperador! Moços nobres vêm descendo do terraço de um templo onde se estiveram adestrando à frecha. Sá-Tó disse-me os seus nomes: eram da guarda selecta, que nas cerimónias escolta o guarda-sol de seda amarela, com o dragão bordado, que é o emblema sagrado do imperador. Todos eles cumprimentaram profundamente um velho que ia passando, de barbas venerandas, com o casabeque amarelo que é o privilégio do ancião; vinha falando só, e trazia na mão uma vara sobre que pousavam cotovias domesticadas... Era um príncipe do Império.
–––––––––––
Continua…

Fonte:
http://leituradiaria.com 

Clássicos do Cancioneiro Popular (A Velha Bizunga)


Colhido em Maricá, RJ
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Velha Bizunga,
 Casai vossa filha,
 Pra termos um dia
 De grande alegria.
 "Eu, minha filha,
 Não quero casar;
 Pois não tenho dote
 Para a dotar.

 Saiu a Preguiça,
 De barriga lisa:
 — Case a menina,
 Que eu dou a camisa.
 "Quem dê a camisa
 Decerto nós temos;
 Mas a saia branca,
 Donde a haveremos?

 Saiu a cabrita
 Do mato manca:
 — Case a menina,
 Darei a saia branca.
 "Quem dê saia branca
 De certo nós temos;
 Mas o vestido.
 Donde o haveremos?

 Saiu o veado
 Do mato corrido:
 — Case a menina,
 Que eu dou o vestido.
 "Quem dê o vestido
 De certo nós temos;
 Porém os brincos,
 Donde os haveremos?

 Saiu o cabrito
 Dando dois trincos:
 — Case a menina,
 Eu darei os brincos.
 "Quem dê os brincos
 De certo nós temos;
 Mas falta o ouro,
 Donde o haveremos?

 Saiu do mato
 Roncando o besouro
 — Case a menina,
 Qu’eu darei o ouro.
 "Quem nos dê o ouro
 De certo nós temos;
 Mas a cozinheira,
 Donde a haveremos?

 Saiu a cachorra
 Descendo a ladeira:
 — Casai a menina,
 Serei cozinheira.
 "Quem seja a cozinheira
 É certo já temos;
 Porém a mucama,
 Donde a haveremos?

 Saiu a traíra
 De baixo da lama;
 — Casai a menina,
 Serei a mucama.
 "Quem seja a mucama
 De certo nós temos,
 Porém o toucado,
 Donde o haveremos?

 Saiu o coelho
 Todo embandeirado:
 — Casai a menina,
 Darei o toucado.
 "Quem dê o toucado
 É certo que temos;
 Porém o cavalo,
 Donde o haveremos?

 Saiu do poleiro
 Muito teso o galo
 — Casai a menina,
 Que eu dou o cavalo.
 "Quem dê o cavalo
 De certo nós temos;
 Porém o selim,
 Donde o haveremos?

 Saiu um burro
 Comendo capim
 — Casai a menina,
 Darei o selim.
 "Quem dê o selim
 É certo que temos;
 Porém falta o freio,
 Donde o haveremos?

 Saiu uma vaca,
 Pintada no meio:
 — Casai a menina,
 Eu darei o freio.
 "Quem nos dê o freio
 Sim, senhores, temos;
 Porém a manta,
 Donde a haveremos?

 Saiu a onça
 Co‘a boca que espanta:
 — Casai a menina,
 Que darei a manta.
 "Quem nos dê a manta,
 É verdade temos;
 Mas quem será o noivo?
 Donde o haveremos?

 Saiu o tatu
 Com o seu casco goivo:
 — Casai a menina,
 Que eu serei o noivo.
 "O noivo tratado
 De certo nós temos;
 Porém o padrinho,
 Donde o haveremos?

 Saiu o ratinho
 Todo encolhidinho:
 — Casai a menina,
 Serei o padrinho.
 "Quem seja o padrinho
 De certo nós temos;
 Porém a madrinha.
 Donde a teremos?

 Saiu a cobrinha,
 Toda pintadinha:
 — Casai a menina,
 Serei a madrinha.
 "Quem seja a madrinha
 De certo nós temos;
 Mas quem pague o padre,
 Donde o haveremos?

 Saiu a cobrinha,
 Que era a comadre:
 — Casai a menina,
 Pagarei ao padre.
 Cada um dando o que pôde
 Todos se arrumaram:
 Chamado o padre,
 Logo se casaram.

 Caindo o sereno
 Por cima da grama,
 Debaixo da pedra
 Fizeram a cama,
 Se divertiram,
 Cantaram, dançaram;
 E diz o lagarto
 Que também tocaram.

 Se é verdade ou não,
 Isso lá não sei;
 O que me foi contado
 Eu também contei.

 O que sei só é
 Que tanto brincaram,
 Que todos também
 Se embebedaram.

 Até eu também
 Me achei na função,
 E pra casa truce
 De doce um buião.

Fonte:
Romero, Sílvio. Cantos populares do Brasil. Coleção Documentos Brasileiros. Rio de Janeiro, Livraria José Olímpio Editora, 1954; Disponível em Jangada Brasil. Setembro 2010 - Ano XII - nº 140. Edição Especial de Aniversário

Mitos e Lendas (A Raposa e as Aves)


Contam que um dia a galinha estava ciscando embaixo de uma goiabeira quando lhe caiu uma goiaba na cabeça. A galinha levou um susto tremendo e gritou: 

— Có-có-có-có! Vamos fugir amigo galo! O mundo está acabando! 

— Quem lhe disse isso? — perguntou o galo. 

— Foi uma coisa que caiu no meu cocuruto — E os dois saíram correndo como doidos. Mais adiante encontraram o peru, o o galo disse: 

— Corra, amigo peru. O mundo está acabando! 

— Quem lhe disso isso, amigo galo?

— Foi a amiga galinha.

— E quem disse à amiga galinha?

— Foi uma coisa que caiu na cabeça dela.

Os três saíram correndo. Um pouco mais adiante encontraram o pato, e o peru convidou-o a correr, contando-lhe a história. O pato juntou-se a eles e correu também. Depois encontraram o ganso, a marreca, a saracura e outras aves e todos seguiram na carreira, até encontrarem a raposa.

— Fuja, amiga raposa! O mundo está se acabando!

— Quem lhe disse isso, amiga saracura?

— Foi a amiga marreca.

— Que lhe disse isso, amiga marreca?

— Foi o amigo ganso.

— Quem lhe disse isso, amigo ganso? 

— Foi o amigo pato.

Assim, de um em um, até chegar à galinha, que respondeu:

— Foi uma coisa que caiu no meu cocuruto.

— Então, vamos. Venham comigo — disse a raposa. E todos se puseram a correr de novo, até chegarem à casa da raposa.

— Entrem na minha casa e fiquem escondidos, — disse ela, parando à porta. Passado algum tempo, a raposa falou:

— Acho que não há mais perigo, mais é preciso cuidado. Agora, venham saindo, mais, um a um, quando eu chamar.

E ela ia chamando, um a um e comendo um a um... Não sobrou nada. Já vê que o mundo acabou mesmo para eles. A galinha tinha razão.

Fonte:
Colhido por Jerônimo B. Monteiro e publicado em sua coluna Lendas, mitos e crendices
Jangada Brasil. Setembro 2010 - Ano XII - nº 140. Edição Especial de Aniversário

Machado de Assis (A Crítica Teatral. José de Alencar: Mãe)


ESCREVER crítica e crítica de teatro não e só uma tarefa difícil, é também uma empresa arriscada.

A razão é simples. No dia em que a pena, fiel ao preceito da censura, toca um ponto negro e olvida por momentos a estrofe laudatória, as inimizades levantam-se de envolta com as calúnias. Então, a crítica aplaudida ontem, é hoje ludibriada, o crítico vendeu-se, ou por outra, não passa de um ignorante a quem por compaixão se deu algumas migalhas de aplauso.

Esta perspectiva poderia fazer-me recuar ao tomar a pena do folhetim dramático, se eu não colocasse acima dessas misérias humanas a minha consciência e o meu dever. Sei que vou entrar numa tarefa onerosa; sei-o, porque conheço o nosso teatro, porque o tenho estudado materialmente; mas se existe uma recompensa para a verdade, dou-me por pago das pedras que encontrar em meu caminho.

Protesto desde já uma severa imparcialidade, imparcialidade de que não pretendo afastar-me uma vírgula simples revista sem pretensão a oráculo, como será este folhetim, dar-lhe-ei um caráter digno das colunas em que o estampo. Nem azorrague, nem luva de pelica; mas a censura razoável, clara e franca, feita na altura da arte da crítica.

Estes preceitos, que estabeleço como norma do meu proceder, são um resultado das minhas idéias sobre a imprensa, e de há muito que condeno os ouropéis da letra redonda, assim como as intrigas mesquinhas, em virtude de que muita gente subscreve juízos menos exatos e menos de acordo com a consciência própria. Se faltar a esta condição que me imponho, não será um atentado voluntário contra a verdade, mas erro de apreciação.

As minhas opiniões sobre o teatro são ecléticas em absoluto. Não subscrevo, em sua totalidade, as máximas da escola realista, nem aceito, em toda a sua plenitude, a escola das abstrações românticas; admito e aplaudo o drama como forma absoluta do teatro, mas nem por isso condeno as cenas admiráveis de Corneille e de Racine.

Tiro de cada coisa uma parte, e faço o meu ideal de arte, que abraço e defendo. Entendo que o belo pode existir mais revelado em uma forma menos imperfeita, mas não é exclusivo de uma só forma dramática. Encontro-o no verso valente da tragédia, como na frase ligeira e fácil com que a comédia nos fala ao o espírito.

Com estas máximas em mão — entro no teatro. É este o meu procedimento; no dia em que me puder conservar nessa altura, os leitores terão um folhetim de menos, e eu mais um argumento de que cometer empresas destas, não é uma tarefa para quem não tem o espírito de um temperamento superior.

Sirvam estas palavras de programa.

Se eu quisesse avaliar a nossa existência moral pelo movimento atual do teatro, perderíamos no paralelo. Ou influência ou estação, ou causas estranhas, dessas que transformam as situações para dar nova direção às coisas, o teatro tem caminhado por uma estrada difícil e escabrosa.

Quem escreve estas palavras tem um fundo de convicção, resultado do estudo com que tem acompanhado o movimento do teatro; e tanto mais insuspeito, quanto que é um dos crentes mais sérios e verdadeiros desse grande canal de propaganda. Firme nos princípios que sempre adotou, o folhetinista que desponta, dá ao mundo, como um colega de além-mar, o espetáculo espantoso de um crítico de teatro que crê no teatro. E crê: se há alguma coisa a esperar para a civilização é desses meios que estão em contacto com os grupos populares. Deus me absolva se há nesta convicção uma utopia de imaginação cálida.

Estudando, pois, o teatro, vejo que a atualidade dramática não é uma realidade esplêndida, como a desejava eu, como a desejam todos os que sentem em si uma alma e uma convicção. Já disse, essa morbidez é o resultado de causas estranhas,
inseparáveis talvez — que podem aproximar o teatro de uma época mais feliz.

Estamos com dois teatros em ativo; uma nova companhia se organiza para abrir em pouco o teatro Variedades; e essa completará a trindade dramática. No meio das dificuldades com que caminha o teatro, anuncia-se no Ginásio um novo drama original brasileiro. A repetição dos anúncios, o nome oculto do autor, as revelações dúbias de certos oráculos, que os há por toda parte, prepararam a expectativa pública para a nova produção nacional.

Veio ela enfim.

Se houve verdade nas conversações de certos círculos, e na ânsia com que era esperado o novo drama, foi que a peça estava acima do que se esperava. Com efeito desde que se levantou o pano o público começou a ver que o espírito dramático, entre nós, podia ser uma verdade. E quando a frase final caiu esplêndida no meio da platéia, ela sentiu que a arte nacional entrou em um período mais avantajado de gosto e de aperfeiçoamento.

Esta peça intitula-se Mãe.

Revela-se à primeira vista que o autor do novo drama conhece o caminho mais curto do triunfo; que, dando todo o desenvolvimento à fibra da sensibilidade, praticou as regras e as prescrições da arte sem dispensar as sutilezas de cor local.
A ação é altamente dramática; as cenas sucedem-se sem esforço, com a natureza da verdade; os lances são preparados corri essa lógica dramática a que não podem atingir as vistas curtas.

Altamente dramática é a ação, disse eu; mas não pára aí; também altamente simples. Jorge é um estudante de medicina, que mora em um segundo andar com uma escrava apenas — a quem trata carinhosamente e de quem recebe provas de um afeto inequívoco. No primeiro andar, moram Gomes, empregado público, e sua filha Elisa. A intimidade da casa trouxe a intimidade dos dois vizinhos, Jorge e Elisa, cujas almas, ao começar o drama, ligam-se já por um fenômeno de simpatia.

Um dia, a doce paz, que fazia a ventura daquelas quatro existências, foi toldada por um corvo negro, por um Peixoto, usurário, que vem ameaçar a probidade de Gomes com a maquinação de um trama diabólico e muito comum, infelizmente, na humanidade. Ameaçado em sua honra, Gomes prepara um suicídio que não realiza; entretanto, envergonhado por pedir dinheiro, porque com dinheiro removia a tempestade iminente, deixa à sua filha o importante papel de salvá-lo e salvar-se.

Elisa, confiada no afeto que a une a Jorge vai expor-lhe a situação; esse compreende a dificuldade, e, enquanto espera a quantia necessária do Dr. Lima, um caráter nobre da peça, trata de vender, e ao mesmo Peixoto, a mobília de sua casa. Joana, a escrava, compreende a situação, e, vendo que o usurário não dava a quantia precisa pela mobília de Jorge, propõe-se a uma hipoteca; Jorge repele ao princípio o desejo de sua escrava, mas a operação tem lugar, mudando unicamente a forma de hipoteca para a de venda, venda nulificada desde que o dinheiro emprestado voltasse a Peixoto.

Volta a manhã serena depois de tempestade procelosa; a probidade e a vida de Gomes estão salvas. Joana, podendo escapar um minuto a seu senhor temporário, vem na manhã seguinte visitar Jorge. 

Entretanto o Dr. Lima tem tirado as suas malas da alfândega e traz o dinheiro a Jorge. Tudo vai, por conseguinte, voltar ao seu estado normal. Mas Peixoto, não encontrando Joana em casa, vem procurá-la à casa de Jorge, exigindo a escrava que havia comprado na véspera. O Dr. Lima não acreditou que se tratasse de Joana, mas Peixoto, forçado a declarar o nome, pronuncia-o. Aqui a peripécia é natural, rápida e bem conduzida; o Dr. Lima ouve o nome, dirige-se para a direita por onde acaba de entrar Jorge.

— Desgraçado, vendeste tua mãe!

Eu conheço poucas frases de igual efeito. Sente-se uma contração nervosa ao ouvir aquela revelação inesperada. O lance é calculado com maestria e revela pleno conhecimento da arte no autor.

Ao conhecer sua mãe, Jorge não a repudia; aceita-a em face da sociedade, com esse orgulho sublime que só a natureza estabelece e que faz do sangue um título. Mas Joana, que forcejava sempre por deixar corrido o véu do nascimento de Jorge, na hora que este o sabe, aparece envenenada. A cena é dolorosa e tocante, a despedida para sempre de um filho, no momento em que acaba de conhecer sua mãe, e por si uma situação tormentosa e dramática.

Não é bem acabado este tipo de mãe que sacrifica as carícias que poderia receber de seu filho, a um escrúpulo de que a sua individualidade o fizesse corar. 

Esse drama, essencialmente nosso, podia, se outro fosse o entusiasmo de nossa terra, ter a mesma nomeada que o romance de Harriette Stowe — fundado no mesmo teatro da escravidão. Os tipos acham-se ali bem definidos, e a ligação das frases não pode ser mais completa. O veneno que Joana bebe, para aperfeiçoar o quadro e completar o seu martírio tocante, é o mesmo que Elisa tomara das mãos de seu pai, e que a escrava encontrou sobre uma mesa em casa de Jorge, para onde a menina o levara.

Há frases lindas e impregnadas de um sentimento doce e profundo; o diálogo é natural e brilhante mas desse brilho que não exclui a simplicidade, e que não respira o torneado bombástico.

O autor soube haver-se com a ação, sem entrar em análise. Descoberta a origem de Jorge, a sociedade dá o último arranco em face da natureza, pela boca de Gomes, que tenta recusar sua filha prometida a Jorge.

Repito-o: o drama é de um acabado perfeito, e foi uma agradável surpresa para os descrentes da arte nacional. Ainda oculto o autor, foi saudado por todos com a sua obra; feliz que é, de não encontrar patos no seu Capitólio. A Sr.ª Velluti e o Sr. Augusto disseram com felicidade os seus papéis; a primeira, dando relêvo ao papel de escrava com essa inteligência e sutileza que completam os artistas; o segundo, sustentando a dignidade do Dr. Lima na altura em que a colocou o autor. A Sr. ª Ludovina não discrepou no caráter melancólico de Elisa; todavia, parecia-me que devia ter mais animação nas suas transições, que é o que define o claro-escuro. O Sr. Heller, pondo em cena o caráter do empregado público, teve momentos felizes, apesar de lhe notar uma gravidade de porte, pouco natural, às vezes.

Há um meirinho na peça desempenhado pelo Sr. Graça, que corno bom ator cômico, agradou e foi aplaudido. O papel é insignificante, mas aqueles que têm visto o distinto artista, adivinham o desenvolvimento que a sua veia cômica lhe podia dar. Jorge foi desempenhado pelo Sr. Paiva que, trazendo o papel a altura de seu talento, fez-nos entrever uma figura singela e sentimental. O Sr. Militão completa o quadro com o papel de Peixoto, onde nos deu um usurário brutal e especulador.

A noite foi de regozijo para aqueles que, amando a civilização pátria , estimam que se faça tão bom uso da língua que herdamos. Oxalá que o exemplo se espalhe. 

Na próxima revista tocarei no teatro de S. Pedro e no das Variedades, se já houver encetado a sua carreira. Entretanto, fecho estas páginas, e deixo que o leitor, rigor da estação, vá descansar um pouco, não à sombra como Títiro, mas entre os nevoeiros de Petrópolis, ou nas montanhas da velha Tijuca.

Fonte:
Machado de Assis. Crítica Literária. Pará de  Minas/ MG: Virtualbooks, 2003.

Raimundo Fontenele (Poesias Avulsas)


O DOM DE SER DE NOVO

 Como num passe de mágica
 vi-me posto de joelhos adorando uma paisagem.
 Todas as estrelas eram azuis
 e o céu era azul e assim era a vida.
 Aquela água cristalina e verde entre montanhas,
 aquele verde de Deus doendo em nossos olhos,
 aquele murmúrio de pássaros,
 leves plumas, algodão nos lábios passeando,
 ó alegria do mundo!, glória única entre os homens.
 E a paz guardada num coração de cofre.
 E os animais com seus passeios divinos.
 Água dos rios, mar de lágrimas oceânicas,
 piano e voz, é esse o criador que tudo faz.
 Você que me trouxe ao mundo e me deu voz
 para falar, e cantar e gritar: vida é isso aqui.
 Nuvens com chuva pra ninguém chorar.
 Fogo nas montanhas para seguirmos viagem.
 Pasto pros animais. Mundo verde, mineral.
 Ponte e abismo pra sairmos da lama.
 Deu-nos o dom dos salmos para dizermos verdades,
 deu-nos o ar nos pulmões pra respirarmos em uníssono
 e suspirarmos, depois, de amor e de lembranças.

OS DOMINGOS

 Domingo sozinho é pára-raios
 de lágrimas. E chove como nunca nessas flores,
 o dia amanhecendo com seus galos.

 Há barulhos estranhos pela casa.
 Um livro de Vallejo e uma faca
 com a qual devo arrancar meu coração para
 ofertar-te : um peixe pulando sobre a mesa.

 Toda ferida acesa. Todo o céu maculado.
 Embaçado amor, corrente de amarrar doido
 que não me deixa correr ao teu encontro.
 É tudo que leio e vejo.

Fonte:
Suplemento Cultural & Literário JP Guesa Errante. Ano XI. Edição 269. 9 junho 2012.

Raimundo Fontenele (64 anos de nascimento 42 anos de poemas)


Artigo de Alberico Carneiro

 Raimundo Fontenele nasceu em Predeiras, MA. Em sua trajetória de mais de quatro décadas de publicações, ele nos lega uma obra literária que é causa de orgulho a todos quantos, dentre os maranhenses, levam a sério o reconhecimento do nome do Maranhão como terra de excelentes artistas. E quando dizemos terra de artistas, estamos falando em algo com letra maiúscula, para que o povo não confunda a palavra artista com a mesma que se usa para designar pessoas que, com suas atividades, promovem apenas distração, diversão ou entretenimento, o que, sem dúvida já é alguma coisa, mas não é a mesma coisa. Assim, quando dizemos terra de excelentes artistas, estamos nos referindo a uma São Luís que pode se orgulhar de pessoas que aspiram a dar ao Maranhão um lugar de destaque, como o fazem Ferreira Gullar ou Zeca Baleiro, por exemplo.

 A obra literária de Raimundo Fontenele não se constitui de inúmeros livros, mas o conjunto de textos que ele assina o impõe como uma das mais expressivas referências da poesia maranhense escrita a partir da década de 1970 aos dias atuais.

 Irreverente, ousado, transgressor, não é um poeta de concessões, louvores, marca quase comum de inúmeros escritores que tanto envergonham a classe, nesta província. A mediocridade sempre carrega consigo esse estigma maldito.

 A poética de Raimundo Fontenele não se parece com os textos de ninguém de sua geração. É um poeta marginal ou, conforme melhor se diz, maldito, desses cujos poemas sempre causam estranhamento e espanto aos leitores acostumados com a contemplação do cultivo de hortas, jardins e pomares paradisíacos, onde não penetrou a insídia da conspiração, da obliquidade e do olhar que lê o amor e o revela como a senda do prazer e da dor. Por isso, já os textos de Fontenele selecionados para a antologia Antroponáutica, publicada pelo então Departamento de Letras, de São Luís, em 1972, estavam marcados por aquela dicção de um poeta que optava pelo desvio do lugar comum, ocupado por aqueles que preferem repetir os passos seculares de uma tradição herdada e, não, de uma tradição marcada pela rebeldia, própria de poucos que fizeram ou fazem o caminho sangrando as mãos, os pés e as mentes.

 Claro que a aparição desse poeta, em livro, já em 1970, com Chegada Temporal, causou espécie, incomodou a crítica oficial, conquistou a indiferença dos meios acadêmicos. Tratava-se de um poeta que, no mínimo, rompia com a linha tradicional dos conteúdos poéticos, em se tratando essencialmente de uma linguagem que procurava se impor, transgredindo, rompendo, negando. Sim, uma linguagem que se permitia, metalinguisticamente, criticar a tradição, negar a tradição, dizer que a poesia, em essência está além de cânones, estando muito mais na beleza que se expressa melhor através do fluxo natural dos dados imediatos do inconsciente, detonando os padrões de beleza clássica universal.

 E como a tradição não aceita de graça quem ousa se desenraizar e desfamiliarizar, escritores como Raimundo Fontenele sempre pagam um preço doloroso pela autenticidade da produção de uma obra literária que se quer afirmar sem o selo e a chancelaria de uma sintaxe normativa, já que a finalidade primeira desse tipo de poeta é explodi-la.

 Recebi sempre com surpresa, entusiasmo e orgulho os livros que Raimundo Fontenele tem publicado. Cada vez que ele quebrou uma telha, rasgou livros dos medíocres, detonou um sobradão colonial, fez ajoelharem-se os políticos ladrões e hipócritas e os sentenciou à pena de exílio do convívio social, lá eu me senti em comunhão com ele, cúmplice do mesmo santo e abençoado crime que tanto nos irmana, quando se trata de chutar, quebrar, destruir, eliminar todos, que são poucos gatunos, quantos impedem a humanidade de partilhar dos bens e dons da vida, conferidos a todos nós pelo Criador. Sim, a elite dos abomináveis eleitos do Diabo, que aliena o público no particular.

 Então, com imenso prazer releio Chegada Temporal, 1970; Às mãos do dia, 1972; Venenos, 1994; Marginais, 2001, dentre outros.

 Hoje, ele nos surpreende, entusiasma e enche de orgulho mais uma vez, com o lançamento simultâneo de duas obras-primas – estes antológicos O troglodita e Amores.

 É como um coroamento de uma viagem do poeta em sua circunavegação por São Luís e em exílio. Exílio porque quem verdadeiramente se pode tornar um artista de nome, vivendo aqui nesta província? Meu Deus, raras e honrosas exceções. Costumamos dizer, ficando aqui é melhor morar aqui, mas viver em outros lugares, vivendo aqui. É possível esse milagre?

 Certo é que, com os dois últimos livros, o poeta Raimundo Fontenele confirma a conquista de uma poesia forte, humana, singularmente, genial. Como poucos ele vem sabendo se impor pelo bom uso do talento que recebeu ao nascer. A maioria joga tudo fora, ou na primeira lixeira de bandalheiras que descobrem nos cérebros. 

Fontes:
Suplemento Cultural & Literário JP Guesa Errante. Ano XI. Edição 269. 9 junho 2012.
Foto: http://www.editoraalcance.com.br 

Jornais e Revistas do Brasil (Hierarchia)

Período disponível: 1931 a 1932
Local: Rio de Janeiro, RJ

Hierarchia foi uma revista de política, economia, cultura e questões sociais lançada no Rio de Janeiro (RJ) em agosto de 1931, tendo Lourival Fontes como diretor e Rodolfo Carvalho como diretor-comercial e diretor-secretário. A redação era na rua Teophilo Ottoni, passando depois para o nº 110 da Avenida Rio Branco (uma sala no prédio do Jornal do Brasil), e, já em 1932, para o nº 23 da praça Marechal Floriano, onde então funcionava a Casa Allemã.

Lourival Fontes se tornaria mais tarde diretor do Departamento de Propaganda e Difusão Cultural – que mais tarde se tornaria o famoso Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), órgão responsável também pela censura durante a ditadura do Estado Novo – e chefe do Gabinete Civil da Presidência da República. Admirador, tal como muitos quadros do governo Vargas, do Estado fascista, Lourival Fontes imprimiria à publicação um conteúdo nacionalista, antiliberal e anticomunista, o mesmo atribuído a sua congênere Política, também por ele fundada.

Em formato de livro e com 128 a 166 páginas, a revista era feita em duas colunas e dividida em seções. "Artigos Especiaes", a seção principal, tratava de temas como ensino religioso e ensino leigo, fascismo, diretrizes sociais do Brasil, família e divórcio, centralização e federação, economia, architetura, organisação nacional e defesa militar, democracia. Algumas de suas seções permanentes eram "O mez internacional" e "Revista dos llvros". Os artigos eram, em geral, longos e densos.

Entre os temas mais explorados estavam os rumos políticos do Brasil, a identidade nacional, questões relativas ao fascismo (concepção de Estado, relação com o catolicismo, organização sindical etc), economia e finanças do país, nacionalismo, democracia e corporativismo, política internacional, paz mundial, educação, ensino moral e religioso, família (ver "A família e o divórcio", no nº 2), relações entre Igreja e Estado, estudos sociológicos sobre o Brasil, questões militares, conflitos armados no mundo, eugenia e “limpeza étnica” (como o artigo "A primazia da educação hygienica e eugenica escolar", de Belisário Penna, no nº 2), cultura brasileira, literatura, belas artes (como o artigo de Cândido Portinari no nº 5, mar. e abr., 1932), paralelos entre o Brasil e a Rússia soviética, industrialismo, crise econômica mundial, direitos do operariado, federalismo no Brasil, saúde pública, arquitetura, figuras políticas de destaque, questões agrárias, direitos políticos femininos (nº 5), liberdade de imprensa, turismo etc.

Colaboram nas poucas edições da revista: Antônio José Azevedo Amaral, anos depois responsável pelas revistas Diretrizes e Novas Diretrizes, Sérgio Buarque de Hollanda, Plínio Salgado, Alceu Amoroso Lima (que assinava Tristão de Athayde), Cândido Portinari, Christóvam de Camargo, José Maria Bello, Oliveira Vianna, Octavio de Faria, Heráclito Sobral Pinto, Hélio Vianna, Bezerra de Freitas, Moacyr Pompéa, Alberto Gonçalves, Reis Carvalho, o padre Galdino Moreira, padre Leonel Franca, Mattos Pimenta, José Augusto, Luiz Schnoor, Mendes Fradique, Ildefonso Albano, Fábio Sodré, Povoas de Siqueira, Samuel Torres Videla, Saboya de Medeiros, Ribas Carneiro, Gilberto Amado, Belisário Penna, Anísio Teixeira, Fernando Magalhães, Francisco de San Tiago Dantas, Gustavo Lessa, A. Carneiro Leão, Gennaro Vidal, Pandiá Calógeras, Madeira de Freitas, Pantoja Leite, Bernardo Lichtenfels Júnior, Osório Lopes, Belmiro Valverde, Lino Piazza, Ítalo Balbo, Rego Lins, Geraldo Vieira, Basílio de Magalhães, Everardo Backheuser, João Neves da Fontoura, Levi Carneiro, Agenor de Roure, Vital Brasil, Vicente Licínio Cardoso, Arthur Torres Filho, Aguinaldo Rocha Lima, Graccho Cardoso, Ronald de Carvalho, Nicanor Nascimento, Sebastião Pagano, Daniel de Carvalho, João Prestes, Américo Silvado, Arthur Guimarães, R. P. Motta Lima, Hermínio Conde, Olbiano de Mello, Mesquita Pimentel, Paulo da Silveira, Arlindo de Assis, Waldir Niemeyer, Azevedo Lima, George Readers, Janine Boissounouse, além de Rodolfo Carvalho e Lourival Fontes.

A periodicidade oscilou entre bimestral e irregular. O nº 1 foi lançado em agosto de 1931, ao passo que o nº 2 data de outubro de 1931, o nº 4 de janeiro-fevereiro de 1932 e o nº 5, o último publicado, de março-abril de 1932. Esta 5ª edição foi a última.


Fonte
http://hemerotecadigital.bn.br/artigos/hierarchia

José de Alencar (Ao Correr da Pena) Rio, 28 de outubro de 1855: Sem Inspiração


(Folhetins do “Diário do Rio” – de 7 de outubro de 1855 a 25 de novembro de 1855)

Estava sem inspiração, o que me sucede muita vez.

Abri um livro, nem me lembra que livro era.

A primeira palavra que vi foi em latim; era um provérbio:

Res est magna tacere.

Façam idéia, pois, que impressão podia produzir uma semelhante máxima num espírito que procurava inspirações.

Quando eu desejava um tema para falar, - e falar mais do que uma moça que discute modas, ou um ministro que falta a uma promessa, - salta-me pela frente a sabedoria romana, e manda-me calar da maneira mais impertinente.

Ora para um folhetinista que não quer absolutamente indispor-se com os sábios, não havia remédio senão obedecer.

Resolvi portanto calar-me.

A resolução era a mais prudente, e também a mais cômoda possível mas tinha um inconveniente.

Os meus leitores, e sobretudo as minhas maliciosas leitoras, eram muito capazes de supor que me calava por não ter nada que dizer.

Isto seria uma quebra para a minha reputação de folhetinista; seria uma falta imperdoável para aqueles que julgam que o espírito de um escritor de revista deve ser uma esponja que durante a semana se embebeda e sature de idéias, e que ao domingo se esprema no papel, e deite uma chuva de bonitos pensamentos e lembranças graciosas.

Ora, apesar de não pretender a glória desta comparação polipiana, contudo o meu amor-próprio não podia consentir que me visse decaído das boas graças do leitor por causa de três palavras latinas.

E três palavras latinas que eram por si mesmas uma mentira e uma contradição; porque, se o tal sábio (Salomão ou Sócrates) estivesse bem convencido da utilidade de calar-se, não teria a indiscrição de falar e dizer aquelas palavras: Res est magna tacere.

Mas é que todos os sábios deste mundo são assim; pregam muito boas máximas, excelentes conselhos, e eles são os primeiros que fazem o contrário, e que dão o mau exemplo.

Tudo isto porém nada tem com a questão; o que é verdade é que me achava na mais difícil posição do mundo; por um lado a prudência e a sabedoria mandavam que me calasse, por outro o leitor e o público exigiam que falasse e escrevesse.

Se houvesse um meio de combinar as duas coisas, e ficar com ambas, seria para mim um salvatério.

Mas ainda estou pouco ao fato destes meios empregados por certos jornalistas e certos políticos, novos Janos da civilização que passam pela sociedade, sorrindo para um e outro lado com cada um dos cantos da boca.

Não me restava pois senão um expediente, e foi o que decidi-me a adotar.

Era preciso calar-me, visto que os sábios o ordenavam; mas, calando-me, restava-me o direito de dizer ao menos os assuntos diversos sobre que me calava.

Assim nem incorro na censura de falador, nem também se pode dizer que não tenho matéria sobre que escrever.

Uma das primeiras coisas sobre que eu me calo é sobre a questão atual da farinha de trigo, sobre a questão do pão.

Com efeito, poucas matérias são tão importantes como esta, que afeta geralmente a todos os diversos interesses da sociedade.

Os pobres e os ricos, os empregados, os ministros, os pretendentes, os confeiteiros, os gastrônomos, as senhoras, o país, a colonização, a estatística, enfim tudo tem uma relação imediata com esta grande questão.

Isto exige uma explicação.

Ei-la:

Há diversas espécies de pão: o pão branco e o pão de rala, o pão-de-ló, o pão d’ouro, e muitas outras espécies menos importantes; há igualmente uma espécie indefinida, genérica, ainda não caracterizada, e que se exprime ordinariamente pelo simples termo – o pão.

Esta última espécie é a mais importante; todos trabalham para ganhar o pão; o pobre muitas vezes não tem o pão para a boca; e o operário vê-se obrigado a regar o pão com o suor do seu rosto.

Já se vê que este pão não é feito nos fornos e nem se compõe de fermento, e que por conseguinte não é o preço da farinha de trigo ou uma padaria central e privilegiada que o tornarão mais fácil para o pobre.

Este pão é o pão do trabalho, do trabalho ativo, honesto e inteligente a que todo o pobre deve dedicar-se com amor, deixando os hábitos de indolência e os vícios, que quase sempre são a causa única da miséria.

Esta espécie pois exige do governo não só uma proteção à indústria do país, como uma política ativa e regular, com as competentes casas de detenção, necessárias para o trabalho dos velhos e mendigos.

A questão do pão-de-ló tem grande interesse também: este pão é muito saboroso e muito suave ao paladar, mas por isso mesmo é um pouco mais caro do que os outros.

Dizem que o pão-de-ló – higienicamente falando – é um pouco indigesto; mas a experiência tem mostrado o contrário: há estômagos que digerem um número extraordinário de boas fatias.

A respeito desta espécie já pusemos em prática o sistema francês da administração municipal da boulangerie parisienne.

Temos uma padaria central ou nacional, e diversas padarias provinciais, onde se fabrica excelente pão-de-ló, que se distribui conforme o estômago de cada um.

Esta organização precisa de uma reforma radical, que demanda longos estudos e muita prudência e reflexão da parte do governo.

Vejam pois que tinha razão quando disse que a questão do pão era uma das de maior vulto da atualidade.

Quanta reforma importante, quanta ciência, quanto estudo e prática não exige esta única palavra?

Que revolução econômica e social não são capazes de produzir estas três linhas juntinhas e cobertas com um til à guisa de chapéu-de-sol?

E ainda isto não é tudo. Disse que o país, as senhoras, as famílias, a população, a estatística, as modas, tudo enfim estava empenhado na questão do pão.

E vou prova-lo.

Mas... agora me lembro que não posso falar, que obriguei-me a calar, em deferência aos provérbios latinos.

Portanto fiquem os leitores em jejum, a menos que algum dos tais impertinentes provérbios não queira falar por mim, como por exemplo, este: Sine Cerere et Baccho friget Vênus.

A bom entendedor meia palavra basta. Aquele friget que ali está com um ar tão sonso e tão ingênuo é um brejeiro de conta; e se ele quisesse falar mostrar-nos-ia a influência legítima do pão.

Porém é um verbo muito sisudo e discreto, e por isso não há meio de arrancar-lhe uma explicação mais clara.

Há ainda outras muitas coisas sobre que podia falar, mas a respeito das quais me calo para cumprir o prometido.

Podia falar da representação da Sapho, e dizer muita coisa bonita e interessante sobre a nossa grega, que inspira com seu canto os nossos poetas, e com os seus olhos os nossos diletantes.

Podia fazer um poema sobre esta história de um amor profundo, que se reproduz entre nós todos os dias, e que acaba sempre por um passo de Leucate.

A única diferença que existe é na posição geográfica e na qualidade do passo de Leucate moderno, o que é devido à diferença dos países e à diversidade das idades, dos usos e costumes.

Assim, o passo de Leucate antigo era um rochedo à beira do mar; o da Idade Média era um convento no cimo de uma montanha; o de nossos dias é um casamento de conveniência.

As Saphos de hoje, quando chegam ao triste desenlace de uma história de amor, sobem ao altar e de lá precipitam-se...

Precipitam-se nos braços de um homem que não amam, precipitam-se na monótona e triste existência de um casamento mal sucedido.

Mudados pois os nomes e os lugares, o drama é o mesmo, e as personagens idênticas.

Em continuação deste tema de Sapho moderna, podia falar-vos das Mulheres de mármore, representadas sexta-feira no Ginásio, e pintar-vos uma bela cena da Grécia criada pelo pincel do Bragaldi.

Haveis de saber o admirável efeito que produziu esta representação, a que deveis ir assistir esta noite; lá conversaremos a gosto, e apreciaremos juntos a habilidade com que todos os artistas desempenham os seus papéis.

Sobre o concerto do teatro lírico desta noite, também poderia escrever algumas linhas recomendando-vos o talento da distinta harpista Mme. Belloc, que não foi feliz na concorrência.

Mas a razão, eu a sei: nesta época de tantos desconcertos era impossível que fosse bem aceito um concerto.

Agora, tendo eu me calado sobre tanta coisa, é justo que converse um pouco com as minhas leitoras.

Tenho de lhes noticiar que se acha criada uma nova ordem – A ordem das violetas...

Esta ordem é dedicada especialmente à caridade, e teve sua origem no dia do leilão das Belas-Artes, em um bouquet de violetas.

Quem a criou (o que para mim é segredo) teve uma feliz inspiração; tirou o ramo do seio, distribuiu as flores à direita e à esquerda a quem as mereceu por caridade; e o sorriso de seus lábios dizia neste momento: - Honni soit que mal y pense.

O caso é que a ordem está criada, e que agora o luxo, o chic, é trazerem os gentlemen na casaca preta a modesta e linda florzinha, que tornou-se o emblema de uma tão santa virtude.

por falar nisto lembro-me que hoje tem lugar o segundo leilão das Belas-Artes.

Quando criaram este edifício, nunca pensaram que ele teria o nobre destino que lhe deram domingo passado, e que o seu nome teria uma outra significação ainda mais apropriada.

Com efeito, que mais belas-artes, do que as artes, as travessuras, os meios engenhosos, que a caridade aí inspirou domingo passado às elegantes peregrinas da Glória?

Mas que há aí de admirar!

Eram brasileiras.

Se não sabeis o que quer dizer isto, ouvi-me.

Vou contar-vos uma história muito linda, um verdadeiro conto de fada.

Não sei se minha pena ainda se lembrará dessas coisas de outro tempo, desses contos árabes tão cheios de poesia oriental.

Mas enfim lá vai.

Foi um dia...

Lancei os olhos sobre uma página solta deste folhetim, e lá vi o meu Cabrion.

Res est magna tacere.

Calo-me pois, e desta vez seriamente; dou um ponto na boca, ou antes, no papel.

Fonte:
José de Alencar. Ao Correr da Pena. SP: Martins Fontes, 2004.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

Nilto Maciel (As Galhofas de José Alcides Pinto)

José Alcides e Nilto Maciel
Estive poucas vezes com Alcides Pinto. Antes de 1977, quando morava em Fortaleza, só o conhecia dos livros. E de ouvir falar. Não me aproximava dele, por retraimento. Talvez nem me ouvisse. Talvez nem me cumprimentasse. Ora, eu o sabia poeta muito conhecido, desde Concreto: estrutura visual-gráfica (1965) e Cantos de Lúcifer (1966), sem contar as antologias de que participara no início dos anos 1950. Além de poeta de renome, romancista, contista e autor da peça Equinócio (1973). E eu? Apenas um estudante, apenas um sonhador, apenas um quase-escritor. Mas um estudante, um leitor não podia se aproximar de um escritor, pelo menos para lhe pedir autógrafo? Podia e pode. Mas cadê coragem para tanto? Como eu me enganava! Alcides sempre se mostrou muito acessível. Nunca pareceu arrogante. Dava-se bem com jovens e velhos. Com “marginais” e “acadêmicos”.

Não lembro quando o conheci de fato. Tenho alguns livros dele autografados, quando eu morava em Brasília e certamente o procurei, em Fortaleza, em 1982: O enigma (Fortaleza: Edições Quetzalcoalt, 1974), Cantos de Lúcifer (Rio de Janeiro: Edições GRD, 1966), Manifesto traído (Fortaleza: Lourenço Filho, 1979) e As águas novas (Fortaleza: Editora Henriqueta Galeno, 1975). Autografados no mesmo dia, possivelmente. Na sua casa. Vieram outros autógrafos, outros encontros, em 1998 e 2002.

Não acompanhei sua trajetória de vida, suas “loucuras” (conheço-as de oitiva), suas excentricidades. Falavam-me dele: é doido; virou franciscano; largou o emprego público para se dedicar à literatura; comprou uma fazenda no sertão do ceará, onde só brotavam pedras e onde dorme o dragão da mitologia alcideana. Nunca o vi louco, não o vi vestido de frade, não conheci a famosa fazenda Equinócio. Vivia como pobre, numa casinha de uma vila localizada na Avenida Tristão Gonçalves (sua última morada): na sala, uma rede e uma estante com seus livros (os dos outros nunca vi. Como os meus. Talvez os tenha doado. E como conseguia fazer citações? Tudo de cor. Por isso, às vezes se confundia). Uma cama no quarto. No cozinha, um fogão, uma geladeira, uma mesa com cadeiras. E só.

Fora de casa, andava sempre bem vestido. Quem não se lembra de seu terno branco, com que se apresentava em lançamento de livro, entrega de prêmio, palestra, dele ou de outros? Magro, quase esquelético, flutuava, feito pena branca. Dava gargalhadas estrepitosas, de fazer corar magistrados e madamas, nos salões mais nobres.

O Alcides que conheci vivia em constante alegria, a galhofar com tudo e com todos. Fingia-se doido, sim. Puro gracejo. Certa tarde (não lembro o ano: se antes de meu regresso a Fortaleza, em 2002, se depois), convidou-me Pedro Salgueiro a irmos visitar Alcides. Bateu palmas, à porta. Alcides gritou: Já vou. Pela frincha da porta eu vi: ele se vestia, apressadamente. Já vou, já vou. Pedro repetiu as palmas: Trouxe, para vê-lo, um grande contista cearense. O velho poeta abriu a porta, assanhado, nu da cintura para cima, olhou para mim, me abraçou com força e exclamou: Meu grande contista Airton Monte! Ora, Alcides enxergava bem e sua lucidez não confundiria Airton comigo. Aquilo não passava de mais uma brincadeira.

Visitei-o algumas vezes, ora só, ora acompanhado. Não para conversar demoradamente, mas para vê-lo e levar-lhe alguma publicação, sobretudo a revista Literatura, na qual publiquei poemas e artigos dele, assim como uma entrevista que me concedeu em 2003. Recebia-me com alegria, como certamente acolhia outros amigos e conhecidos. Brincalhão como sempre, quando nos víamos, divertia-se muito: Só existem dois escritores bons no Ceará: eu e você. Se eu mencionava o nome de algum conterrâneo, ele sorria: Esse não sabe escrever.

Vez por outra, telefonava para mim ou eu telefonava para ele. Constantemente a brincar: Poeta (tratava assim todo mundo; pelo menos, os escritores), venha me visitar. Arranjei uma namorada, mas não tenho mais condições de fornicar. Venha me substituir. Eu prometia visitá-lo. E assim o tempo ia passando, até que um dia a outra namorada de todos nós – aquela que aguardamos, mas não queremos –, até que um dia Ela, montada numa motocicleta, o encontrou desprotegido e só, no meio de uma rua, e o levou para as núpcias eternas. Sua última galhofa, em 2 de junho de 2008.

Fortaleza, 5 de outubro de 2009.

Fontes:
http://www.niltomaciel.net.br/node/204
Foto = http://literaturasemfronteiras.blogspot.com