quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

A. A.de Assis (Revista Virtual de Trovas Trovia - fevereiro de 2013)




Só Deus tem uma resposta
mas ninguém sabe qual é.
A nossa vida é uma aposta
que se joga com a Fé.
Ademar Macedo

– Bom dia, Felicidade...
com tanta pressa aonde vais?
– Vou plantar uma saudade
onde o amor não volta mais!...
Augusto Rubião

Amo a virtude maciça
de certas almas, o dom
de quem sofrendo injustiça
tem coragem de ser bom.
Francisco Capibaribe

Minha viola de pinho,
vê o que traz teu tocador:
cabeça tonta de vinho,
coração tonto de amor.
Francisco de Matos

Pode o homem ser vassalo,
desde porém que a mulher
não pense nunca em trocá-lo
por outro escravo qualquer...
Jorge de Pádua

Só te peço amor sincero,
e o céu será todo nosso.
Se sou tua – que mais quero?
Se sou mulher – que mais posso?
Magdalena Léa





Namorou de forma incauta
a madame do soçaite...
E agora culpa o internauta
por um vírus no seu... site!
Edmar Japiassú Maia – RJ 

O meu vizinho se poupa,
já que o cansaço é normal...
Quando fala: "Tira a roupa!",
tira a roupa do varal...
Elisabeth Souza Cruz – RJ

Diz o cinquentão vaidoso:
– “Eu sou madeira de lei!”
E a mulher, em tom jocoso:
– “Então deu cupim…que eu sei!”
Marta Paes de Barros – SP

Tal calor e tanta graça
em minha amada encontrei,
que, de maria-fumaça,
um trem-bala eu me tornei.
Osvaldo Reis – PR

Gongórico tão fecundo
no trajar e na caneta
que o seu filho veio ao mundo
de gravata borboleta!
Roza de Oliveira – PR

Zerou no vestibular!!!
Com vergonha, ela tremeu.
Disse ao pai pra disfarçar:
– Sabe a última?... Sou eu!
Therezinha Brisolla – SP


Amigo é bênção que a gente
acolhe no coração
como o mais belo presente
que Deus e a vida nos dão!
A. A. de Assis - PR

Ante a doida correria
de um povo que vai e vem,
nas cidades de hoje em dia
ninguém conhece ninguém.
Agostinho Rodrigues – RJ

Eu quero ser o seu vinho,
o cálice que inebria;
ser seu parceiro no ninho,
ser madrugada, seu dia!
A. M. A. Sardenberg – RJ

Sem fazer-me de rogada,
só persiste uma verdade:
a trova em mim fez pousada,
trazendo a felicidade.
Andréa Motta – PR

O amor, para muita gente,
é diversão perigosa.
Quem não sabe ser prudente
transforma em espinho a rosa.
Arlene Lima – PR

Em noites frias, sem lua,
quando meus versos componho,
eu cubro a verdade nua
com meu casaco de sonho.
Antonio Juraci Siqueira – PA

Seguindo a rota da lua,
as nuvens não me detêm.
Com tantos riscos na rua,
na lua vou viver bem.
Ari Santos de Campos – SC

Por ter nas mãos quando querem
nossa alma, alheia aos perigos,
os “amigos”, quando ferem,
ferem mais do que inimigos!
Carolina Ramos – SP

Se eu for a todos dizer
o que está no coração,
num livro não vai caber
toda a minha gratidão.
Cidinha Frigeri – PR

Mais criatividade. Mais fraternidade. Menos competição.
Trinômio sugerido para a comunidade da Trova em 2013.

Ainda bem que tenho os meios
de não ficar tão sozinha:
desenho e bordo, abro e-mails,
faço versos na cozinha...
Clevane Pessoa – MG

Entre o sonho e a realidade,
vendo o meu filho eu pensei:
eis a mais bela verdade
de tudo quanto sonhei!
Conceição de Assis – MG

Meu perdão foi um tributo
a uma lágrima suspensa:
– um detalhe diminuto,
mas que fez a diferença…
Darly  O. Barros – SP

Contra os males da existência,
a  trova  é  o  melhor  remédio:
supre  o  vazio  da  ausência,
poetiza   o   próprio   tédio!
Delcy  Canalles – RS

Lua, que vagas serena
na amplidão do azul celeste,
traz consolo à minha pena,
leva a dor que me trouxeste!
Diamantino Ferreira – RJ

Duas raízes na vinha
juntas não iam vingar.
Se uma era erva daninha,
outra era flor luminar.
Dinair Leite – PR

Com altivez, disse um dia:
– “Ir procurar-te? Jamais!”
Mas a saudade vadia
não respeita o “nunca mais”...
Domitilla B. Beltrame – SP

Dispenso festas, mantenho
com elas pouca amizade,
pois quem tem o amor que eu tenho
só pensa em privacidade.
Élbea Priscila – SP 

Minhas rotas saltimbancas
oscilam nesta escalada:
há nuvens amenas, brancas,
outras balançam-me a escada.
Eliana Jimenez – SC

Sempre que a lágrima desce
e insiste em molhar-me a face,
eu uso o lenço da prece...
e é como se eu não chorasse...
Ercy Marques de Faria – SP

Deus, garimpeiro maior,
vai, no seu mister profundo,
salvando o bom e o melhor
que há nos garimpos do mundo.
Flávio Stefani – RS

Há uma sombra em meu caminho
que me segue...e, mesmo assim...
nem quer me deixar sozinho
nem diz o que quer de mim!
Francisco Garcia – RN

Ser  papai é um dom divino,
ser avô faz tanto bem;
quem me dera ser menino
para ter avô também.
Francisco Pessoa – CE

No mar azul, taciturno,
dos teus olhos ao luar,
ponho o veleiro noturno
do meu sonho a te buscar.
Gabriel Bicalho – MG

Quero dizer-te um segredo
 que não confio a ninguém:
 "eu te amo", e estou com medo!
 E peço aos anjos amém.
Gledis Tissot – SC

Um mundo melhor... queria,
para deixar aos meus netos,
onde imperasse a alegria
numa transfusão de afetos!
Gislaine Canales – SC

Inspiração, sonho, rima,
fantasia e alma de esteta,
eis toda a matéria-prima
com que se faz um poeta!
Héron Patrício – SP

Que jornadas gloriosas
fiz ao longo dos caminhos.
Enchi meus braços de rosas
e nem notei os espinhos.
Janske Schlenker – PR

Tendo por espelho o mar
e o espaço embelezando,
a lua, com seu brilhar,
o ar vai romantizando.
Jessé Nascimento – RJ

Querer ser poeta, não!
Quem é não é por querer.
Escrever do coração
não precisa saber ler.
João Batista X. Oliveira – SP

Veteranos ou iniciantes, campeões ou simples “gostantes”, 
nós que formamos a comunidade da trova somos todos iguais.

Não me indagues por que te amo.
Não saberia dizer.
Eu te amo só porque te amo.
Que outra razão pode haver?
João Costa – RJ

Cigana, linda boneca,
tu sondas meu coração,
na estranha biblioteca
da palma da minha mão...
Josafá S. da Silva – RJ

Uma chave carregamos, 
porta de um mundo melhor; 
entretanto não largamos 
a muleta de um pior.
José Feldman – PR

Elaborei belos planos,
mas esta vida é tão curta,
e os sonhos de muitos anos
o mundo agora me furta!
José Lucas de Barros – RN

Ao me afastar de teus braços
tive perdas, mas, enfim...
sou dono dos próprios passos;
voltei outra vez pra mim.
José Ouverney – SP

Enquanto a chuva, lá fora,
escorre pela vidraça,
choro meu pranto que, embora
passando a chuva, não passa.
Laérson Quaresma – SP

Sonatas intercaladas
antes, durante e depois...
E em nossa pele, trocadas,
as digitais de nós dois!
Lucília Decarli – PR

Casaste... triste eu sofria,
pois vestiste, bem contente,
a camisola macia
que eu te dera de presente!
Luiz Carlos Abritta – MG

A vida é palco, onde há canto
de maldade, espanto e dor...
Não há cortina, entretanto,
que feche um palco de amor!
Mara Mellini – RN

Quem deixa a vida pacata,
pra se prender a tormentos,
tem nó, que nunca desata, 
no cordão dos sentimentos. 
Marcos Medeiros – RN

Nas noites de sofrimento,
quer físico, quer moral,
na fé procurei o alento
e encontrei novo alto-astral.
Maria Ignez Pereira – SP

Iluminando o meu ser,
o teu sorriso comprova
que a cada alvo amanhecer
o meu amor se renova.
Mª Luiza Walendowsky – SC

Aquele que um Deus aceita 
e encontra a paz nos seus ritos,  
nem sente que a vida é feita 
de um turbilhão de conflitos.
Maria Nascimento – RJ

A trova é a poesia do século 21: moderna, enxuta,
difícil de fazer mas fácil de entender e de memorizar.

Ponho os olhos no infinito
e me recordo da infância:
do passado escuto um grito
no silêncio da distância...
Mª Thereza Cavalheiro – SP

Tenho uma coisa a dizer
a você que não me entende:
ninguém tem nada a vender,
porém todo mundo vende!
Mário Zamataro – PR

Nas asas da liberdade
firmei meu corpo a voar,
pois ser livre é ter vontade
de não parar de sonhar!
Messody Benoliel – RJ

Eu trago, junto do peito,
silente, a lembrar, constante,
o teu retrato, que estreito
feito uma joia galante.
Maurício Friedrich – PR

A vida é feita de escolhas:
os acertos festejamos...
O duro é virar as folhas
nas tantas vezes que erramos...
Milton Souza – RS

Quando o amor fica em ruína,
sem chão, paredes... ou teto,
o alicerce nos ensina
que só o carinho é concreto.
Olga Agulhon – PR

Toda noite quero vê-las,
mas não vejo (que saudade!).
Cada noite sem estrelas
não é noite de verdade.
Olivaldo Júnior – SP

Trovador que espalha o sonho
que lhe mora n’alma inquieta
confessa ao mundo, risonho,
a bênção que é ser poeta!
Renato Alves – RJ

Ó Lua que estás sozinha
namorando o imenso mar,
tua sorte é igual à minha:
amas quem não vai te amar!
Thalma Tavares – SP

Em vigília a noite passo
e a ansiedade me aniquila.
Ela chega, eu me refaço...
e finjo dormir tranquila.
Thereza Costa Val – MG

Arrumei minha bagagem
com sonhos e fantasia,
e agora, no fim da viagem,
abro a mala... está vazia.
Vanda Fagundes Queiroz – PR

Ao passar por mim, nem para...
Sou a sombra de ninguém!
Que espaço enorme separa
meu amor do seu desdém!
Wanda Mourthé – MG

Fonte:
A. A. de Assis

Kátia Canton (A Abelha Chocolateira)


(Fábula com idéia de João Roberto Monteiro da Silva, 7 anos)

Era uma vez uma abelha que não sabia fazer mel. 

- Mas você é uma operária! - gritava a rainha - Tem que aprender.

Na colméia havia umas 50 mil abelhas e Anita era a única com esse problema. Ela se esforçava muito, muito mesmo. Mas nada de mel...

Todos os dias, bem cedinho, saía atrás das flores de laranjeira, que ficavam nas árvores espalhadas pelo pomar. Com sua língua comprida, ela lambia as flores e levava seu néctar na boca. O corpinho miúdo ficava cheio de pólen, que ela carregava e largava, de flor em flor, de árvore em árvore.

Anita fazia tudo direitinho. Chegava à colméia carregada de néctar para produzir o mais gostoso e esperado mel e nada! Mas um dia ela chegou em casa e de sua língua saiu algo muito escuro. 

- Que mel mais espesso e marrom... - gritaram suas colegas operárias.

- Iac, que nojo! - esbravejaram os zangões. 

Todo mundo sabe que os zangões se zangam à toa, mas aquela história estava ficando feia demais. Em vez de mel, Anita estava produzindo algo doce, mas muito estranho.

- Ela deve ser expulsa da colméia! - gritavam os zangões. 

- É horrorosa, um desgosto para a raça! - diziam outros ainda.

Todas as abelhas começaram a zumbir e a zombar da pobre Anita. A única que ficou ao lado dela foi Beatriz, uma abelha mais velha e sábia.

Um belo dia, um menino viu aquele mel escuro e grosso sobre as plantas próximas da colméia, que Anita tinha rejeitado de vergonha. Passou o dedo, experimentou e, surpreso, disse: 

- Que delícia. Esse é o mais saboroso chocolate que eu já provei na vida!

- Chocolate? Alguém disse chocolate? - indagou a rainha, que sabia que o chocolate vinha de uma fruta, o cacau, e não de uma abelha. 

Era mesmo um tipo de chocolate diferente, original, animal, feito pela abelha Anita, ora essa, por que não...

Nesse momento, Anita, que ouvia tudo, esboçou um tímido sorriso. Beatriz, que também estava ali, deu-lhe uma piscadela, indicando que tinha tido uma idéia brilhante.

No dia seguinte, lá se foram Anita e Beatriz iniciar uma parceria incrível: fundaram uma fábrica de pão de mel, juntando o talento das duas para produzir uma deliciosa combinação de mel com chocolate.

Moral da história: as diferenças e riquezas pessoais, que existem em cada um de nós, são singulares e devem ser respeitadas. 

Fonte:
Revista Nova Escola: Contos

Contos do Folclore Brasileiro (O Macaco e o Confeito)


 Ilustração: Macé
Macaco guariba foi lavar a casa e achou um vintém. Comprou um vintém de confeito, subiu no pau, e lá ficou comendo. Mas macaco não tem modos, pula daqui, pula dali, acabou derrubando o confeitinho dentro de um oco da árvore. Enfiou a mão, pelejou para tirar, não conseguiu, foi direto dali para o ferreiro e pediu que lhe fizesse um machado, para tirar o confeito do buraco.

 — Sem dinheiro não faço machado nenhum.

 — Faz — gritou o macaco — Vou contar ao rei.

 Foi. Entrou no palácio, dando pulos e fazendo micagens e tropelias.

 — Senhor rei — pediu —, mande o ferreiro fazer um machado, que eu quero cortar o pau para tirar o confeito que caiu no oco.

 O rei, nem como coisa. O macaco foi falar com a rainha:

 — Senhora rainha, mande o rei mandar o ferreiro fazer um machado, que eu quero cortar o pau e tirar meu confeito que caiu no oco.

 — Mas é petulante esse macaco — disse a rainha, e não fez caso dele.

 O macaco foi falar com o rato.

 — Rato, roa a roupa da rainha, para ela mandar o rei mandar o ferreiro fazer um machado, que eu quero cortar o pau e tirar meu confeitinho que caiu no oco.

 — Macaco mais bobo! — comentou o rato. Estava comendo queijo e nem se incomodou.

 O macaco foi falar com o gato.

 — Gato, mande o rato roer a roupa da rainha, para ela mandar o rei mandar o ferreiro fazer um machado, que eu quero cortar o pau e tirar meu confeitinho que caiu no oco.

 — Que besteira! — disse o gato, e nem se mexeu.

 O macaco foi falar com o cachorro.

 — Cachorro, mande o gato mandar o rato roer a roupa da rainha, para ela mandar o rei mandar o ferreiro fazer um machado, que eu quero cortar o pau e tirar o meu confeitinho que caiu no oco.

 O cachorro deu um latido de impaciência e nem se incomodou.

 O macaco foi falar com o cacete.

 — Cacete, mande o cachorro mandar o gato mandar o rato roer a roupa da rainha, para ela mandar o rei mandar o ferreiro fazer um machado, que eu quero cortar o pau e tirar o meu confeito que caiu no oco.

 — Ah! Ah! — fez o cacete.

 O macaco foi falar com o fogo.

 — Fogo, mande o cacete mandar o cachorro mandar o gato mandar o rato roer a roupa da rainha, para ela mandar o rei mandar o ferreiro fazer um machado, que eu quero cortar o pau e tirar o meu confeitinho que caiu no oco.

 — Saia daqui — disse o fogo.

 — O macaco foi falar com a água.

 — Água, mande o fogo mandar o cacete mandar o cachorro mandar o gato mandar o rato roer a roupa da rainha, para ela mandar o rei mandar o ferreiro fazer um machado, que eu quero cortar o pau e tirar o meu confeitinho que caiu no oco.

 — Bicho impertinente! — xingou a água.

 O macaco foi falar com o boi.

 — Boi, mande a água mandar o fogo mandar o cacete mandar o cachorro mandar o gato mandar o rato roer a roupa da rainha, para ela mandar o rei mandar o ferreiro fazer um machado, que eu quero cortar o pau e tirar o meu confeitinho que caiu no oco.

 — Suma da minha vista — disse o boi, e continuou ruminando o seu capim.

 O macaco foi falar com o homem.

 — Homem, mande o boi mandar a água mandar o fogo mandar o cacete mandar o cachorro mandar o gato mandar o rato roer a roupa da rainha, para ela mandar o rei mandar o ferreiro fazer um machado, que eu quero cortar o pau e tirar o meu confeitinho que caiu no oco.

 O homem resmungou:

 — Hum!

 O macaco foi falar com a morte. Lá estava ela no seu trono de ossos, pavorosa.

 — Morte, mande o homem mandar o boi mandar a água mandar o fogo mandar o cacete mandar o cachorro mandar o gato mandar o rato roer a roupa da rainha, para ela mandar o rei mandar o ferreiro fazer um machado, que eu quero cortar o pau e tirar o meu confeitinho que caiu no oco.

 A morte, que não estava de bom humor, pegou a foice e avançou no homem.

 — Não me mate!

 — Então abata o boi!

 O homem foi pra cima do boi.

 — Não me abata, homem!

 — Então beba a água.

 — Não me beba — disse a água.

 — Então apague o fogo.

 — Não me apague — disse o fogo.

 — Então queime o cacete.

 — Não me queime — disse o cacete.

 — Então bata no cachorro.

 — Não me bata — uivou o cachorro.

 — Então morda o gato.

 — Não me morda — miou o gato.

 — Então morda o rato.

 — Não me morda — guinchou o rato.

 — Então roa a roupa da rainha.

 O ratinho subiu no guarda-roupa da rainha e foi no vestido mais bonito: roquerroquerroque…

 A rainha gritou:

 — Não roa a minha roupa!

 — Então mande o rei mandar o ferreiro fazer um machado para o macaco cortar o pau e tirar o confeitinho que caiu no oco.

 A rainha mandou o rei, o rei mandou o ferreiro, o ferreiro fez o machado. O macaco derrubou a árvore, abriu o tronco, achou o confeitinho e foi embora dando pulos e fazendo trejeitos.

Fonte:
Jangada Brasil. Setembro 2010. Ano XII - nº 140. Edição Especial de Aniversário.

José de Alencar (O Ermitão da Glória) Parte 1


(Obra em 9 partes)

I

AO CORSO

Caía a tarde.

A borrasca, tangida pelo nordeste, desdobrava sobre o oceano o manto bronzeado.

Com a sombra, que projetavam os negros castelos de nuvens, carregava-se o torvo aspecto da costa.

As ilhas que bordam esse vasto seio de mar, entre a Ponta dos Búzios e Cabo Frio, confundiam-se com a terra firme, e pareciam apenas saliências dos rochedos.

Nas águas da Ilha dos Papagaios balouçava-se um barco de borda rasa e um só mastro, tão cosido à terra, que o olhar do mais prático marinheiro não o distinguiria a meia milha de distância entre as fraguras do penedo e o farelhão dos abrolhos.

Pelas amuradas e convés do barco viam-se recostados ou estendidos de bruços, cerca de dez marujos, que passavam o tempo a galhofar, molhando a palavra em um garrafão de boa cachaça de São Gonçalo, cada um quando chegava a sua vez.

Na tilha sobre alva esteira de coco estava sentada uma linda morena, de olhos e cabelos negros, com uma boca cheia de sorrisos e feitiços.

Tinha ao colo a bela cabeça de um rapaz, deitado sobre a esteira; numa posição indolente, e com os olhos cerrados, como adormecido.

De momento a momento, a rapariga debruçava-se para pousar um beijo em cheio nos lábios do moço, que entreabria as pálpebras e recebia a carícia com um modo, que revelava quanto já se tinha saciado na ternura da meiga cachopa.

- Acorde, preguiçoso! dizia esta galanteando.

- Teus beijos embriagam, amor! Não o sabias? respondeu o moço fechando os olhos.

Nesse instante um homem, que descera a abrupta encosta do rochedo com extrema agilidade, atirou-se á ponta da verga, e travando de uma driça, deixou-se escorregar até o convés.

O desconhecido, que assim chegava de modo tão singular, era já bem entrado em anos, pois tinha a cabeça branca e o rosto cosido de rugas; mas conservara a elasticidade e nervo da idade viril.

Com a arfagem que o movimento do velho imprimiu ao navio, sobressaltou-se toda a maruja; e o moço que estava deitado na esteira, ergueu-se de golpe, como se o tocara oculta mola.

Nesse mancebo resoluto, de nobre e altivo parecer, que volvia em torno um olhar sobranceiro, ninguém por certo reconheceria o indolente rapaz que dormitava pouco antes no colo de uma mulher.

Na postura do moço não havia a menor sombra de temor nem de surpresa, mas somente a investigação rápida e o arrojo de uma natureza ardente, pronta a afrontar o perigo em toda a ocasião. 

Do primeiro lanço viu o velho que para ele caminhava:

- Então, Bruno?

- Aí os temos, Senhor Aires de Lucena; é só fisgar-lhes os arpéus. Uma escuna de truz!

- Uma escuna!... Bravo, homem! E dize-me cá, são flamengos ou ingleses?

- Pelo jeito, tenho que são os malditos franceses.

- Melhor; os franceses passam por bravos, entre os mais, e cavalheiros! A termos de acabar, mais vale que seja a mãos honradas, meu velho.

A esse tempo já a maruja toda a postos esperava as ordens do capitão para manobrar.

Aires voltou-se para a rapariga:

- Adeus, amor; talvez nunca mais nos avistemos neste mundo. Fica certa porém que levo comigo duas horas de felicidade bebidas em teus olhos.

Cingindo o talhe da rapariga debulhada em lágrimas, deu-lhe um beijo, e despediu-a atando-lhe ao braço uma fina cadeia de ouro, sua derradeira jóia.

Instantes depois, uma canoinha de pescador afastava-se rapidamente em demanda da terra, impelida a remo pela rapariga.

De pé, no portaló, Aires de Lucena, fazendo à maruja um gesto imperioso, comandou a manobra.

Repetidas as vozes do comando pelo velho Bruno, colocado no castelo de proa, e executada a manobra, as velas desdobraram-se pelo mastro e vergas, e o barco singrou veloz por entre os parcéis.

II

ÚLTIMO PÁREO

O ano de 1608 em que se passam estas cenas, a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro tinha apenas trinta e três anos de existência.

Devia de ser pois uma pequena cidade, decorada com esse pomposo nome desde o primeiro dia de sua fundação, por uma traça política de Estácio de Sá, neste ponto imitado pelos governadores do Estado do Brasil.

Aos sagazes políticos pareceu da maior conveniência semear de cidades, e não de vilas, e menos de aldeias, o mapa de um vasto continente despovoado, que figurava como um dos três Estados da coroa de Sua Majestade Fidelíssima.

Com esse plano não é de admirar que um renque de palhoças ás faldas do Pão de Açúcar se chamasse desde logo cidade de São Sebastião, e fosse dotada com toda a governança devida a essa jerarquia.

Em 1608 ainda a cidade se encolhia n a crista e abas do Castelo; mas quem avaliasse da sua importância pela estreiteza da área ocupada, não andaria bem avisado.

Estas cidades coloniais, improvisadas em um momento, com uma população adventícia, e alimentadas pela metrópole no interesse da defesa das terras conquistadas, tinham uma vida toda artificial.

Assim, apesar de seus trinta e três anos, que são puerícia para uma vila, quanto mais para uma cidade, já ostentava o Rio de Janeiro o luxo e os vícios que somente se encontram nas velhas cidades, cortesãs eméritas. 

Eram numerosas as casas de tavolagem; e nelas, como hoje em dia nos alcáçares, tripudiava a mocidade perdulária, que esbanjava o patrimônio da família ao correr dos dados, ou com festas e banquetes a que presidia a deusa de Citera.

Entre essa mocidade estouvada, primava pelas extravagâncias, como pela galhardia de cavalheiro, um mancebo de dezoito anos, Aires de Lucena.

Filho de um sargento-mor de batalha, de quem herdara dois anos antes abastados haveres, se atirara a vida de dissipação, dando de mão à profissão de marítimo, a que o destinara o pai e o adestrara desde criança em sua fragata.

Nos dous anos decorridos foi Aires o herói de todas as aventuras da cidade de São Sebastião.

Ao jogo os maiores páreos eram sempre os seus; e ganhava-os ou perdia-os com igual serenidade, para não dizer indiferença.

Amores, ninguém os tinha mais arrojados, mais ardentes, e também mais volúveis e inconstantes; dizia-se dele que não amava a mesma mulher três dias seguidos, embora viesse no decurso de muito tempo a amá-la aquele número de vezes.

Ao cabo dos dous anos achava-se o cavalheiro arruinado, na bolsa e na alma; tinha-as ambas vazias.- estava pobre e gasto.

Uma noite meteu na algibeira um punhado de jóias e pedrarias que lhe restavam de melhores tempos, e foi-se á casa de um usurário. Apenas escapou a cadeia de ouro, que tinha ao pescoço e de que não se apercebeu.

Com o dinheiro que obteve do judeu se dirigiu à tavolagem resolvido a decidir de seu destino. Ou ganharia para refazer a perdida abastança, ou empenharia na última cartada os destroços de um patrimônio e uma vida mal barateados.

Perdeu.

Toda a noite passara-a na febre do jogo; ao raiar da alvorada, saiu da espelunca e caminhando à-toa foi ter á Ribeira do Carmo.

Levava-o ali o desejo de beber a fresca viração do mar, e também a vaga esperança de encontrar um meio de acabar com a existência.

Naquele tempo não se usavam os estúpidos suicídios que estão hoje em voga: ninguém se matava com morfina ou massa de fósforo, nem descarregava em si um revólver.

Puxava-se um desafio ou entrava-se em alguma empresa arriscada, com o firme propósito de dar cabo de si; e morria-se combatendo, como era timbre de cavalheiro.