segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Coelho Neto (Mano) Parte 4


SAUDADE

PRIMAVERA

Alma da Vida, Primavera, tu que sempre ressurges da neve carregada de flores, tantas que as espalhas profusamente pelos campos, enfeitas com elas serras e penhascos, enches os vales, assoalhas lirialmente as águas, alegras as charnecas, animas os areais estéreis e, porque ainda te sobram nas mãos viçosas, lançá-las pelos velhos muros das ruínas, pelas covas humildes dos cemitérios, forrando-os com a tua generosidade, por que havias de vir ao meu canteiro pequenino talar a flor que era o encanto e o conforto de dois corações, que a defendiam, como as folhas defendem o botão que, entre elas, nasce e vai desabrochando?

Rica, procedeste como o avaro que, possuindo tesouros, enverga olhares de inveja para o mealheiro do pobre e, enquanto o não consegue haver a si, não lhe aquieta a ganância.

O que arrebataste pouco vale na abundância da tua riqueza e era tudo no lar, agora mísero.

Era o calor e a luz; era a alegria e a força de duas fragilidades; era a esperança de dois simples; era a religião de dois crentes; um presente de Deus no altar de dois devotos; a luz de dois felizes que, agora, de olhos sem pupila, caminham às apalpadelas, como cegos a quem houvessem levado o guia, deixando-os ao desamparo, assentados na lápide de um túmulo.

Cruel ambição a tua, Primavera! Nem sabes o que possuis, tão copiosa é a tua florescência, e roubaste o pouco que era a riqueza de um lar.

Tendo um rio, sorveste a gota de orvalho que se achava engastada entre dois corações.

Sendo esplendor, como o sol, roubaste a pequenina chama da nossa lâmpada doméstica

Sendo fertilidade para a Natureza toda, passaste por nós como ceifadora.

Dantes, no evento do teu mês, minha alma rejubilava antegozando o espetáculo, sempre novo, do rebentar dos gomos e do chilreio dos ninhos desempolhados e as primícias da tua feracidade, antes que aparecessem na terra verde, anunciava-as eu em louvores jucundos.

Agora, quando as brumas do inverno forem-se, a pouco e pouco, diluindo e os dias clarearem e aquecerem em sol e embalsamarem-se com o teu hálito, os nossos corações, transidos de saudade, ir-se-ão velando e aos novedios da terra responderão neles os espinhos das dores com que, sem pena, os alanceaste.

E quando todos, em júbilo, exaltarem, felizes, a tua vinda, agradecendo as mercês generosas que lhes distribuíres, nós, lembrados do que nos fizestes, fugiremos de ti, das tuas flores, do teu aroma, da tua claridade, surdos aos galreios dos implumes, ao murmúrio sonoro dos córregos vivazes, e o límpido azul do céu parecer-nos-á retinto em roxo, a terra florida se nos afigurará sepulcro imenso e o teu prestígio, renovadora da vida, não terá efeito em nossas almas. 

Tu, que, só com a magia dos teus eflúvios, fazes brotar no lesim da pedra a saxífraga; tu, que dás viço à duna árida cobrindo-a de folhagens vindes, como a piedosa mãe enfeitou de acanto o túmulo do filho; tu, que tudo animas, não conseguirás, como todo o teu poder divino, reviçar a alegria nos corações que enlutaste.

Tu, que vences o inverno, não vencerás a nossa tristeza, ó Força eterna, eterna criadora que foste para nós a Morte.

Primavera, que mal te fizemos nós?

Quanto mais bela e vicejante fores mais nos ressentiremos da tua crueldade.

Criadora de lírios e de rosas, que mal te fizemos?

Tudo que produzires e despertares será, para nós, motivo de melancolia, porque nos relembrará a traição do teu sorriso.

Quando, na aragem das noites taciturnas, vier a nós o aroma das campinas, virá também a imagem do que se foi e nós, sentindo-o no perfume, amaldiçoaremos o teu poder maléfico, Primavera.

Antes o inverno com os seus dias lacrimosos e as suas noites regeladas!

Que nos importavam os rigores da ventania gemendo no escampo, a névoa álgida velando o arvoredo, os aguaceiros copiosos formando torrentes pelos caminhos, todo o cortejo lúgubre dessa funerária estação de morte se tínhamos conosco o filho amado, aquecendo-nos a alma, como a chama aquecia o corpo, participando do pão de nossa mesa, ele que era o nosso dia de amanhã, o nosso futuro, que rebentara em nossa velhice?

E vieste, entraste-nos pela casa coberta de flores, como noiva, e levaste-o contigo escondendo-o na cova para sempre!

O lavrador, que enterra a semente no alfobre, fá-lo para a Vida. E tu, Primavera, que fizeste do que levaste?

Que dirão de nós os que virem de luto no festival da tua era, cobertos de crepe entre as tuas flores, chorando lamentosamente no coro de risos da Natureza?

Quiseste uma flor nova e viera buscar a que tínhamos tão escondida e não temíamos a morte. E fomos traídos pela Vida, porque foste tu que no-lo roubaste, Primavera.

Tu, que reenfolhas, troncos que o lenhador despreza na floresta tendo-os por mortos e apodrecidos; tu, que dás vida em flor aos pântanos, estagnados; tu, que realizas milagres de ressurreição em toda a natureza; tu, onipotente, tu, vivificadora; tu, antagonista da Morte; tu, inspiradora do Gênese; tu, que és o verbo de Deus, ó estação da benção! tu, que és o raio do Sol dentro do qual erram em átomos as messes; tu, que és a Juventude, Primavera fecunda, flor da Eternidade, que mal te fizemos nós para que no entrasse pela casa coberta de flores, como em festa, para matar, com o teu veneno, o filho do nosso amor, consolação das nossa horas tristes e arrimo de nossa velhice?

Por que nos traíste, Primavera, Vida da Natureza e Morte da Ventura nossa?

CONTRASTE 

Quando o levaram de nós o estádio começava a encher-se para um dos mais renhidos jogos do campeonato sul-americano.

Ao alto da muralha da mole atlética, trapejada a bandeiras e flâmulas, que espadanavam ao vento, borrifadas de chuva, apareciam os primeiros vultos.

O movimento das duas ruas que se cruzam dissemelhava-se em contraste irônico. Em uma, o borborinho alacre da multidão desensofrida, que afluía ao espetáculo da luta: veículos e turba, pregões, estropeada de patrulhas, correrias de retardatários que se apinhavam tumultuosamente junto da bilheteira como se a quisessem tomar de assalto.

Na outra rua, silêncio: gente à espera, em grupos nas calçadas, às portas e às janelas; duas longas filas de automóveis e o coche fúnebre parado diante da nossa casa em pranto.

Na minha sala de trabalho, de janelas abertas, revestida de luto, com um altar armado, jazia sobre a minha mesa, entre círios e flores, o maior desastre da minha vida.

Toda a casa regurgitava de gente: era a solidariedade dos corações amigos na desgraça, a doce esmola de amor trazida à nossa miséria.

Por toda a parte, profusamente, flores: sobre os móveis, pelos cantos, fora, no jardim: em palmas, ramos e grinaldas e ainda esparsas, aqui, ali. Nunca a primavera fora tão pródiga com o meu jardim.

Foi preciso que a Morte nele entrasse para que os meus canteiros se adornassem tanto. Por tal preço não os quisera eu tão vegetos.

Longo, perduradouro vozear no estádio anunciava o início do jogo quando o sacerdote, o mesmo que o ouvira de confissão, aproximou-se para encomendá-lo a Deus.

Era o sinal da partida.

Uma voz sussurrou-me:

“Que iam fechar o caixão”.

Estremeci. Seria possível! Encheu-se-me o peito de tanta agonia que me senti opresso como se o coração se me houvesse petrificado

Que fazer?

Último adeus ao filho, último beijo à fronte gélida, bênção derradeira.

Retiraram-lhe o crucifixo do peito.

Como o que embarca entrega no portaló o bilhete de passagem, assim já lhe não era necessário o símbolo da Fé, porque o seu corpo tinha a câmara à espera e o seu espírito suave já devia achar-se na presença de Deus.

Tomei-lhe, a furto, o que dele me podia ficar - algumas flores que lhe haviam murchado sobre o peito, mortas com ele, bem em cima do seu coração. 

Um a um alguém foi apagando os círios.

Eram as últimas esperanças que se extinguiam. A sua eterna manhã rompera. Para que luzes noturnas?

Fecharam o caixão florido. Que mais?!

Eu olhava em volta de mim em busca de uma esperança e só via lágrimas em todos os olhos. Tudo estava acabado. Dali ao túmulo, nada mais.

Levaram-no.

E a casa foi, pouco a pouco, esvaziando-se - vazia da gente, vazia das flores, vazia, principalmente, da felicidade, que ia com ele.

E tive coragem de o acompanhar até à estância derradeira e vi-o baixar ao fundo da sepultura, profundidade só comparável à do azul infinito.

E o abraço brutal da terra sonora. pouco a pouco encerrando em si o corpo amado, fechando-se sobre ele, abafando-o, sumindo-o até possuí-lo todo, só dela.

E ali fiquei a olhar como quem, de cima de uma rocha, vê perder-se no horizonte a vela da última esperança.

E, diante daquele deserto, eu era como um náufrago em ilhéu estéril na vastidão do oceano.

Arrancaram-me do presídio. Era a vida que me reclamava como a morte o levava, a ele.

E vim, sem consciência, até a casa, onde revi os meus, como se uma vaga me houvesse arrojado à praia e eu acordasse atônito.

A tarde estiara. Dir-se-ia que a chuva fora apenas para chorar o morto, como os olhos dos que me haviam acompanhado no doloroso transe.

Águas que não cessam são as que jorram das fontes e dos corações. Águas que se formam nas nuvens passageiras e nos olhos indiferentes depressa o sol e o esquecimento secam; as que brotam das rochas e das profundas do amor, essas não estancam nunca! Se estancassem como se mataria a sede, como se mitigaria a saudade?

No jardim, restos de flores: ainda na minha sala os círios da vigília.

Já haviam despido do luto as paredes, já haviam desarmado a essa e o altar e a minha sala de trabalho voltara ao seu aspecto natural. Pairava apenas no ambiente um cheiro morno de cera e de flores murchas. E na casa era tudo. Os corações, esses...

Onde quer que se passasse ouvia-se convulso tremor de pranto.

Uma figura inerte, de negro, estatelada, estéril, jazia apagada a um canto, como aqueles círios que ainda lá estavam, de morrões negros, também apagados, sem lágrimas.

Não parecia sentir: olhava pasmada, como alguém que se visse em um patíbulo, condenada sem culpa e, em tamanha injustiça, não achasse palavra para bradar a sua inocência.

Pobre mãe!

Aproximei-me dela, unimos os nossos corações feridos do mesmo golpe e as nossas dores comunicaram-se. 

Assim um rio cresce assoberbado e na violência em que investe derruba árvores e barrancas e tais destroços represam-no até que outro rio, nele despejando-se, engrossa-o e, os dois, juntos, forçam, levam de vencida o empeço e correm alagadoramente.

Chorávamos humildes quando trovejou no estádio clamor imenso de triunfo e o coliseu longamente atroou o estrondo das aclamações vitoriosas.

Ouvindo aquele tronejo heróico lembramo-nos de tardes, outras, iguais àquela e parecia-nos que o nome proclamado estrepitosamente era o dele, dele que ali se fizera desde pequenino, brincando naquele campo, nele crescendo em força e garbo, nele batendo-se pelas cores, que eram o seu orgulho.

E seria dele o nome que ouvíamos nas aclamações ovantes da multidão em delírio?

Sim, era o seu nome, não saía do estádio, mas do fundo dos nossos corações porque, embora estrondosas, todas aquelas vozes de milhares de bocas não estrugiam tão alto como nos soavam intimamente os apelos doloridos da nossa imensa saudade.

E, no final do jogo, com o escoar da turbamulta, a nossa rua encheu-se e os que passavam, comentando os lances mais brilhantes da partida, não se lembravam do enterro que dali saíra.

E, para o seu espírito, foi melhor assim.

Era em tal alvoroço que ele gostava de ver o seu clube, cheio, empavesado, ressoando músicas e clamores. Quanta vez...

A casa, fechada, em silêncio, tremia com o rumor da rua. Pobres corações!

E a tarde daquele dia, que fora de tristeza lúgubre, desanuviara-se a pouco e pouco, galeando-se do sol. Dir-se-ia que o céu despia o luto por aquele que chorava ou, quem sabe! talvez assim se transfigurava para recebê-lo festivamente.

Nós é que em nada mudamos: tal como ele nos deixou jazemos: na mesma desolação, na mesma saudade.

E como não há de ser assim se a nossa alegria era ele e ele foi-se, não torna, não tornará nunca! nunca mais!
––––––––
Continua…

Fonte:
http://leituradiaria.com

Isidro Iturat (Arte Poética) parte 3

2.8. O bloqueio

 2.8.1. Tipos

           1º. Total. Quando não conseguimos escrever nada, nem começar uma obra nova, nem dar continuidade a partir de qualquer ponto de uma já iniciada ou mesmo mudar o gênero discursivo (por exemplo, muitas vezes nos sentimos bloqueados escrevendo em verso, mas conseguimos produzir se passamos a escrever em prosa).

           2º. Específico. Podemos nos sentir bloqueados em algum ponto específico de uma obra em curso na hora de expressar uma determinada ideia, de encontrar uma palavra que falta, um tom, um estilo, de continuar com a construção da psicologia de uma personagem, de um espaço etc.

2.8.2. Algumas causas

1º. Pela falta de conhecimento

          Soluções:

           - Aprendendo mais sobre o assunto, evidentemente. Através do estudo, da leitura de outros autores que já tenham abordado a matéria, tentando acumular novas experiências vitais...

           - Dando tempo ao tempo. Temos que levar em consideração que o inconsciente possui a faculdade de guardar o desejo de expressar algo durante muito tempo. Por exemplo, pode acontecer que em um primeiro momento, não consigamos achar a forma adequada para uma determinada ideia que surgiu. Mas caso ela seja significativa para nós, ficará guardada, como uma semente que espera as condições adequadas para germinar, de modo que o texto definitivo que expresse essa ideia apareça inclusive anos depois do primeiro desejo de materialização.

           Às vezes, o texto não sai no momento em que a ideia surge, simplesmente porque ainda não adquirimos a maturidade literária ou vivencial necessárias para isso. A melhor forma de encarar a situação é com tranquilidade e paciência, conscientes de que no futuro o dilema será resolvido e que não haverá problema algum se, momentaneamente, nos ocuparmos com outras questões.

2º. Pelo desequilíbrio emocional ou mental. Estresse, depressão, fadiga, desmotivação, medos etc. A solução é determinar e resolver as causas dos sintomas.

3º. Pelo descenso natural no ciclo da energia criativa. Há épocas que estamos naturalmente mais predispostos para tarefas de introspecção e outras para a extroversão. Este fenômeno é cíclico e perante ele não há outra opção além da espera. Devemos nos adaptar de acordo com a exigência de cada momento.

2.9. Evolução e mudança

          Uma das grandes preocupações para o autor costuma ser a sua própria evolução. Diante disto, pode-se dizer que a poesia muda apenas quando o ser do poeta muda.

           Claro que, se queremos a mudança, será indispensável um certo grau de abertura para o novo. No entanto, isso supõe um esforço, porque de forma natural tendemos a criar o que se chama “zona de conforto”, ou seja, que queremos desenvolver a nossa ação no mundo dentro de determinados limites espaciais e mentais nos quais nos sintamos à vontade, bem adaptados, inclinando-nos assim a manter estáticos nossos valores e ideias. Sair desta zona significa encarar o desconhecido e isso produz, na maioria dos casos, medo.

           Porém,  o estancamento associado ao fator mudança pode vir tanto por causa da não ação quanto pelo seu excesso, isto é, quando nos vemos submetidos a estímulos e situações indutoras de mudança a uma velocidade superior à assimilável pela mente. Alguns dos sintomas dessa dinâmica podem ser, por exemplo, os estados de confusão mental, de ansiedade ou de pressa “eterna”.

           Tomar consciência de tais processos é fundamental para adquirir domínio sobre eles, para decidir o que deve ser mudado ou não em nós mesmos, quais elementos devem ser incorporados e quais descartados.

2.10. Criação, prazer, coragem

          A criação está inerentemente ligada a estes outros dois fenômenos: o prazer e a coragem.

           O ato criativo produz prazer na obra vital, mas também quando expressa realidades dolorosas, mesmo que isso possa parecer paradoxal. Podemos encontrar as causas disso em fenômenos como o desabafo, a catarse, o gozo estético, as sensações de verdade e liberdade, o prazer por adquirir conhecimento, de transgredir, de surpreender-se, de resgatar a inocência, de achar e expandir os limites da própria emoção e conhecimento, de levar ao limite a função criadora...

           E também está ligado à coragem porque implica que deveremos assumir os riscos de engendrar um objeto suscetível de receber a confrontação de outros indivíduos. O objeto afirma nossa personalidade, a faz visível, e por isso mesmo, nos obriga, para bem ou para mal, a assumir a responsabilidade e as repercussões da sua existência.

3. TRABALHAR O TEXTO
  
                                           Ama tu ritmo y ritma tus acciones,
                                                                                     Rubén Darío

3.1. Tensão versal

          Dentro do poema se produz todo um jogo de tensões e distensões, acelerações e decelerações entre as estrofes, frases, palavras, sílabas, letras e silêncios. Não há regra lógica que possa medir o fato, mas ele pode ser sentido perfeitamente. Por exemplo, a falta de tensão versal é percebida no poema cujo discurso soa “flácido demais”, “sem vitalidade”  e o excesso de tensão é sentido naquele que condensa excessivas figuras semânticas e fônicas.

3.2. Ler em voz alta

          É o que permite sentir a tensão versal, o ritmo adequado, a harmonia do poema. O verso eficaz, lido em voz alta, oferece uma pronúncia fácil, que flui.

3.3. O ritmo

3.3.1. Ritmo versal e ritmo prosaico

          Um fato que distingue radicalmente a poesia de outras formas de discurso é a sua natureza musical. Em síntese, pode-se dizer que a poesia é, seguindo a expressão do gramático espanhol Tomás Navarro y Tomás[3], “palavra ritmicamente organizada”.

           O elemento mais importante que lhe imprime um grau de ritmo diferenciado de qualquer outro tipo de expressão verbal é a sua disposição em linhas poéticas ou versos, que apresentam áxis rítmico, ou seja, a última sílaba acentuada em cada verso, onde a curva melódica alcança a sua máxima intensidade, não acontecendo o mesmo na prosa (ver BALBÍN, Rafael de. Sistema de rítmica castellana. Madrid: Biblioteca románica hispánica, Editorial Gredos, 1975[4]).

           Além disso, o autor de um poema sabe que a linha do verso pode parar sempre antes do limite que se estabeleceria no parágrafo da prosa. Ele tem “consciência de verso”, o que por si próprio criará uma cadência rítmica que diferencie o poema de um texto em prosa, mesmo se tratando de uma composição visual ou em verso livre. Isto confere ao primeiro caso um sentido de verticalidade/partição que contrasta com o de horizontalidade/continuidade do segundo.

           A respeito de certas composições que relativizam estas ideias, cabe mencionar, por exemplo, o caso extremo onde parágrafos em prosa alternam-se ou aparecem inseridos entre versos. Diante de tal fenômeno, podemos afirmar que, estando presentes linhas com áxis rítmico, estas composições deverão  ser consideradas poemas.

3.3.2. Ritmos de quantidade, intensidade, timbre e tom

          Mencionaremos agora os quatro elementos considerados fundamentais que imprimem ritmo ao poema[5]:

           1º. Ritmo de quantidade. Determinado pelo número de sílabas.

           2º. Ritmo de intensidade. Determinado pela colocação, regular ou não, dos acentos intensivos no verso.

           3º. Ritmo de timbre. Determinado pela rima.

           4º. Ritmo de tom. Determinado pelas pausas (que podem ser estróficas, versais, médias, ou constituir cesura). Caso os grupos fônicos sejam longos, o tom do poema desacelera e tende a adquirir um ar mais solene, cerimonioso. Caso os grupos fônicos sejam curtos, o tom se agiliza e tende a adquirir um ar vivaz, popular.

           Na cadeia fônica prosaica (prosa), estes quatro elementos de ritmo apresentam uma distribuição livre e assimétrica, já na cadeia fônica rítmica (verso) tendem à regularidade.

3.3.3. Versos em cláusulas silábicas

          As cláusulas silábicas[6] são agrupações de sílabas que comumente se formam com duas ou três delas, chegando a quatro em alguns casos (dentro do grupo, pelo menos uma sempre é tônica). No verso, as sinalefas e sinéreses podem ser contadas como apenas uma sílaba.

           Existem cinco tipos básicos de cláusulas, atendendo à alternância entre as suas sílabas átonas (o) e tônicas (ó), isto é, ao seu ritmo de intensidade, que pode ser:

           1º. Trocaico (ó-o)

 Ella enreda piernas, brazos.

E-lla en / re-da / pier-nas / bra-zos. 
    ó-o       ó-o        ó-o         ó-o

           2º. Iâmbico (o-ó)

 Rubén, azur navío,

 Ru-bén, / a-zur / na-ví-o,
   o-ó        o-ó      o-ó-o

           3º. Dactílico (ó-o-o)

 Corre mil millas horrísono grito.

Co-rre-mil / mi-llas-o / rrí-so-no / gri-to. 
    ó-o-o         ó-o-o       ó-o-o       ó-o          

           4º. Anfíbraco (o-ó-o)

 Soñé: una mujer de color de azafrán.

 So-ñé: u-na / mu-jer-de / co-lor-de a / za-frán.   
      o-ó-o          o-ó-o         o-ó-o          o-ó

           5º. Anapéstico (o-o-ó)

 Tienes ojos de gata de angora,

 Tie-nes-o / jos-de-ga / ta-de an-go-ra, 
     o-o-ó        o-o-ó          o-o-ó-o

           Caso queiramos compor versos utilizando estas cláusulas regulares, não devemos ficar excessivamente preocupados com o cálculo exato das sílabas no momento inicial do surgimento do verso, pois facilmente nos sentiremos bloqueados.

           Para conseguir realmente que o verso flua é preciso, antes mesmo de calcular, sentir a cadência rítmica. É indispensável escutar a música do verso: primeiro sentir o padrão rítmico, depois o ritmo chamará a palavra e a palavra conformará a imagem e a ideia. Antes de procurar a frase, o ritmo deve  estar bem interiorizado mentalmente. Para isto, a cadência rítmica pode ser inclusive cantarolada antes de começar a inserir as palavras na mesma.
  
           Já em um momento posterior, na hora de refinar o poema, poderemos dedicar especial atenção ao cômputo silábico para conseguir que a distribuição das cláusulas fique perfeita.

           Especialmente neste tipo de composição, ritmo, palavra, imagem, emoção, ideia, cálculo, caminham juntos.

           Nota: Os poemas correspondentes aos versos dos exemplos, podem ser consultados no artigo de minha autoria Formas del indriso (3. Con uso de cláusulas silábicas)[7], na seção Ensayos y entrevistas em www.indrisos.com.

3.4. Insuficiências poéticas

          Não se pretende vetar as formas que aqui serão descritas, mas facilitar apenas a contemplação consciente dos seus possíveis efeitos sobre o poema. Trata-se de inclinações que são parte do processo natural de aprendizagem da maioria dos poetas e que costumam estar presentes, principalmente, durante as fases de formação. Desse modo, sugerimos o auto-exame, ver se as mesmas são identificadas na própria obra e se devem entender-se como algo que deve ou não ser superado.

3.4.1. As palavras “profundas”

          Frequentemente, o versificador iniciante tem a ideia errônea de que deve ostentar um pensamento profundo para que o texto seja poético e que, para alcançá-lo, deve incluir vozes tais como: ser, infinito, universo, eterno, alma...

 3.4.2. As palavras gastas

          Além das que já foram citadas anteriormente, seguem algumas que também estão extremamente gastas, principalmente no poema intimista ou amoroso: rosa, arco-íris, borboleta, sol, lua, céu, mar, estrela, noite, pássaro, beijo, coração, amor, olhos... Ou no poema niilista: morte, grito, escuridão, vazio, Deus, sangue, medo, nada...

           A grande maioria dos poetas neófitos recorre às mesmas intensamente, e qualquer leitor que tenha certo conhecimento da tradição literária perceberá o resultado do seu uso como pouco original. Porém, a questão não será apenas  utilizá-las ou não, mas como utilizá-las.

           Seja como for, servir-se de tais palavras para escrever um poema nos dias de hoje e não incorrer no lugar comum pede, realmente, uma boa dose de maestria.

––––––––
Continua…

Fonte:
http://www.indrisos.com/ensayosyarticulos/artepoeticaportugues.html#4

domingo, 13 de janeiro de 2013

Acruche Collection - Trova 1


Tatiana Belinky (Recontado de um poema de Schiller: A Luva)

F oi nos tempos distantes do amor cortês. No reino medieval do rei Franz era dia de festa, e o ponto alto das festividades era a exibição de feras selvagens, trazidas de terras distantes, na arena do grande castelo. Em volta da arena erguiam-se as arquibancadas, encimadas por altos balcões onde brilhavam os nobres da corte, ao lado das belas damas faiscantes de jóias. Entre elas se destacava a donzela Cunegundes, tão rica e formosa quanto orgulhosa, e de pé ao seu lado estava o seu apaixonado adorador, o jovem cavaleiro Delorges, cujo amor ela desdenhava, distante e fria.

Chegou a hora do início da função. A um sinal do rei, abriu-se a porta da primeira jaula, da qual saiu, majestoso, um feroz leão africano e, sacudindo a juba dourada, deitou-se na areia, preguiçoso. Abriu-se a segunda jaula, liberando um terrível tigre de Bengala, que encarou o leão com olhos ameaçadores e deitou-se também, tenso, como quem prepara um bote mortal. Em seguida, abriu-se a terceira jaula, da qual saltaram, quais enormes gatos negros, duas panteras de dentes arreganhados, deitando-se agachados e aumentando a tensão do ambiente.

Fez-se um silêncio no público: todos aguardavam ansiosos um pavoroso embate mortal entre os quatro monstros felinos... E neste momento, como que sem querer, a donzela Cunegundes deixou cair, do alto do balcão, sua branca luva, bem no centro da arena, entre as quatro feras assustadoras. E dirigindo-se com um sorriso irônico ao seu cavaleiro adorador, falou, afetada:

"Cavaleiro Delorges, se de fato me amais como viveis repetindo, provai-o, indo buscar e me devolver a minha luva."

O cavaleiro Delorges não respondeu nada e sem titubear, desceu rápido do balcão e com passos decididos pisou na arena, entre as fauces hiantes e as presas arreganhadas das quatro feras. Calmo e firme ele apanhou a luva, e sem olhar para trás e sem apressar o passo, voltou para o balcão, sob os sussurros de espanto e admiração de todo o público presente.

A donzela Cunegundes estendeu a mão num gesto faceiro para receber a luva e com um sorriso cheio de promessas, falou:

"Ganhaste a minha gratidão, cavaleiro Delorges."

Mas em vez de entregar-lhe a luva, o cavaleiro Delorges atirou-a no belo rosto da dama cruel e orgulhosa: "Dispenso a vossa gratidão, senhora!", ele disse.

E voltando-lhe as costas, o cavaleiro Delorges foi embora para sempre.

sábado, 12 de janeiro de 2013

Clássicos do Cancioneiro Popular (Flor do Dia)



Colhida em Recife.
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Alevanta, meu amor
 Desse bom dormir
 Chame sua mãe
 Para me acudir

 Levantou-se ele
 Sem mais descanso
 Foi selando logo
 Seu cavalo branco

 — Deus vos salve, mãe
 No vosso estrado
 — Deus vos salve, filho
 No vosso cavalo
 Apeia pra baixo
 Jantar um bocado
 — Não quero jantar
 Que vim a chamado
 Que a Flor do Dia
 Lá ficou de parto
 — De mim para ela:
 Um filho varão
 De espora no pé
 E espada na mão
 Rebente por dentro
 Pelo coração

 — Flor do Dia
 Faça por parir
 Minha mãe está doente
 E não pode vir
 Alevanta, amor
 Desse bom dormir
 Chame minha mãe
 Para me acudir
 Que ela mora longe
 Mas sempre há de vir
 Grande dor, marido
 É dor de parir!

 — Deus vos salve, sogra
 No vosso estrado
 — Deus vos salve, genro
 No vosso cavalo
 Apeia pra baixo
 Jantar um bocado
 — Não quero jantar
 Que vim a chamado
 Que a Flor do Dia
 Lá ficou de parto
 — De mim para ela:
 Um filho estimado
 Que eu veja no trono
 Um bispo formado
 Espera lá, meu genro
 Deixa-me vestir
 Que ela mora longe
 Mas sempre hei de ir

 — Pastor de ovelhas
 Que sinal é aquele
 Que está dobrando?
 — É dona Estrangeira
 Que morreu de parto
 Sem haver parteira
 — Aquele sino
 Não cessa de dobrar
 Nem meus olhos
 Também de chorar
 Adeus, minha filha
 Do meu coração
 Que morreu de parto
 Sem minha bênção
 Adeus, milha filha
 Que eu vinha te ver
 Quem não tem fortuna
 Mais val ao nascer

Fonte:
Romero, Sílvio. Cantos populares do Brasil. Coleção Documentos Brasileiros. Rio de Janeiro, Livraria José Olímpio Editora, 1954. Disponível em Jangada Brasil. Setembro 2010 - Ano XII - nº 140.Edição Especial de Aniversário

Mitos e Lendas (O Mauari e o Sono )


Mauari (Ardea Maguari) é um pássaro que não tem pouso certo. Quando pousa, durante o dia ou à noite, em qualquer lugar, começa logo a cochilar e, então, como que sacudido por um susto, levanta vôo subitamente, espantando. 

Contam que o mauari, certa vez, querendo matar o sono esperou-o pousado no galho de uma árvore. Enquanto esperava, ia resmungando: 

— Vou matar esse sono! Vou ficar vigilante. Tenho de matá-lo!

Não demorou muito viu um vulto que se aproximava.

— Acho que é o sono que vem vindo aí... 

Quando o vulto estava bem pertinho e o sono bem próximo, o mauari cochilou, mas acordou de repente, agitou as asas e voou, gritando:

— Cuá! Cuá! Cuá! — e foi para longe dizendo: — Ora vejam o meu coração! Eu cochilei e o sono fugiu. Mas não faz mal. Vou esperá-lo de novo!

Pousado noutra árvore, esperou e esperou. Foi vendo novamente, ali perto, uma escuridão que se aproximava. 

— Aí vem ele de novo! — disse consigo — Agora eu o pego com o meu bico!

A escuridão já vinha bem perto quando o mauari cochilou e, de repente, abriu os olhos, assustado e levantou vôo, gritando: 

— Cuá! Cuá! Cuá!

E assim acontece sempre, desde a antiguidade.

Fonte:
Colhido por Jerônimo B. Monteiro e publicado em sua coluna Lendas, mitos e crendices
Jangada Brasil. Setembro 2010 - Ano XII - nº 140. Edição Especial de Aniversário

Machado de Assis (Francisco de Castro: Harmonias Errantes)


[RJ.,4 ago. 1878.]

MEU CARO POETA, - Pede-me a mais fácil e a mais inútil das tarefas literárias: apresentar um poeta ao Público. Custa pouco dizer em algumas linhas ou em algumas páginas, de um modo simpático e benévolo, porque a benevolência necessária aos talentos sinceros, como o seu, custa pouco dizer que impressões nos deixaram os primeiros produtos de uma vocação juvenil. Mas não é, ao mesmo tempo, uma tarefa inútil? Um livro é um livro; vale o que efetivamente é. O leitor quer julgá-lo por si mesmo; e, se não acha no escrito que o precede, – ou a autoridade do nome, - ou a perfeição do estilo e a justeza das idéias, - mal se pode furtar a um tal ou qual sentimento de enfado. O estilo e as idéias dar-lhe-iam a ler uma boa página, - um regalo de sobra; a autoridade do nome enchê-lo-ia de orgulho; se a impressão da crítica coincidira com a dele. Suponho ter idéias justas: mas onde estão as outras duas vantagens? Seu livro vai ter uma página inútil.

Sei que o senhor supõe o contrário; ilusão de poeta e de moço, filha de uma afeição antes instintiva que experimentada, e, em todo caso, recente e generosa; seu coração de poeta leu talvez, através de algumas estrofes que aí me ficaram no caminho, este amor da poesia , esta fé viva em alguma coisa superior às nossas labutações sem fruto, primeiro sonho da mocidade e última saudade da vida. Leu isso; compreendeu que há ídolos que se não quebram e cultos que não morrem, e veio ter comigo, de seu próprio movimento, cheio daquela cândida confiança de sacerdote novo, resoluto e pio. Veio bem e mal; bem para a minha simpatia, mal para o seu interesse; mas, segundo já disse, nem bem nem mal para o publico, diante de quem esta página é demais.

E contudo, meu caro poeta, é difícil esquivar-se um homem que ama as musas a não falar de um poeta novo, em um tempo que precisa deles, quando há necessidade de animar todas as vocações, as mais arrojadas e as mais modestas, para que se não quebre a cadeia da nossa poesia nacional.

Creio que o senhor pertence a essa juventude laboriosa e ambiciosa, que hesita entre o ideal de ontem e uma nova aspiração, que busca sinceramente uma forma substitutiva do que lhe deixou a geração passada. Nesse tatear, nesse hesitar entre duas coisas, - uma bela, mas porventura fatigada, outra confusa, mas nova, - não há ainda o que se possa chamar movimento definido. Basta, porém, que haja talento, boa vontade e disciplina; o movimento se fará por si, e a poesia brasileira não perderá o verdor nativo, nem desmentirá a tradição que nos deixaram o autor do Uruguai e o autor d' Os Timbiras.

Citei dois mestres; poderia citar mais de um talento original e cedo extinto, a fim de lembrar à recente geração, que qualquer que seja o caminho da nova poesia, convém não perder de vista o que há essencial e eterno nessa expressão da alma humana. Que a evolução natural das coisas modifique as feições, a parte externa, ninguém jamais o negará; mas há alguma coisa que liga, através dos séculos, Homero e Lord Byron, alguma coisa inalterável, universal e comum, que fala a todos os homens e a todos os tempos. Ninguém o desconhece, decerto, entre as novas vocações; o esforço empregado em achar e aperfeiçoar a forma não prejudica, nem poderia alterar a parte substancial da poesia, - ou esta não seria o que é e deve ser!

Venhamos depressa ao seu livro, que o leitor tem ânsia de folhear e conhecer. Estou que se o ler com ânimo repousado, corri vista simpática, justa, reconhecerá que é um livro de estréia, incerto em partes, com as imperfeições naturais de uma primeira produção. Não se envergonhe de imperfeições, nem se vexe de as ver apontadas; agradeçao antes. A modéstia é um merecimento. Poderia lastimarse se não sentisse em si a força necessária para emendar os senões inerentes aos trabalhos de primeira mão. Mas será esse o seu caso? Há nos seus versos__ uma espontaneidade de bom agouro, uma natural simpleza, que a arte guiará melhor e a ação do tempo aperfeiçoará.

Alguns pedirão à sua poesia maior originalidade; também eu lha peço. Este seu primeiro livro não pode dar ainda todos os traços de sua fisionomia poética. A poesia pessoal, cultivada nele, está, para assim dizer, exausta; e daí vem a dificuldade de cantar coisas novas. Há páginas que não provêm dela; e, visto que aí o seu verso é espontâneo, cuido que deve buscar uma fonte de inspiração fora de um gênero, em que houve tanto triunfo a par de tanta queda. Para que a poesia pessoal renasça um dia, é preciso que lhe dêem outra roupagem e diferentes cores; é precisa outra evolução literária.

O perigo destes prefácios, meu caro poeta, é dizer demais; é ocupar maior espaço do que o leitor pode razoavelmente conceder a uma lauda inútil. Eu creio haver dito o bastante para um homem sem autoridade. Viu que não o louvei com excesso, nem o censurei com insistência; aponto-lhe o melhor dos mestres, o estudo; e a melhor das disciplinas, o trabalho. Estudo, trabalho e talento são a tríplice arma com que se conquista o triunfo.

Fonte:
Machado de Assis. Crítica Literária. Pará de  Minas/ MG: Virtualbooks, 2003.

Soares de Passos (O Escravo)


Tremes, escravo? baqueias
Entre os muros da prisão?
Vergado sob as cadeias
Rojas a fronte no chão?
Já da turba ao longe o grito
Pede teu sangue maldito:
Sentes, escravo proscrito,
Vacilar teu coração?

Não sinto! nada perturba
Minha alegria feroz –
Nem o bramir dessa turba,
Nem a lembrança do algoz.
Vinguei-me! nada me aterra,
Curvai-vos, homens da terra!
Contra mim juraste guerra;
Guerra jurei contra vós.

Eu era livre sem meta
Como as ondas lá no mar;
Era livre como a seta
Quando sibila no ar:
Em vossa avidez tirana
Que me algemou desumana...
Ó minha pobre choupana!
Ó florestas do meu lar!

Além, além nas florestas,
Foi além onde eu nasci;
Onde sem prisões funestas
Já venturoso vivi.
Foi dos bosques na espessura
Que eu tive amor e ternura;
Mas liberdade e ventura,
Pátria, amor, tudo perdi.

Perdi tudo! além da morte
Já não me resta ninguém.
Tinha um pai: a negra sorte
Do filho sofreu também.
Trouxe da pátria distante
O férreo jugo aviltante,
Inda eu era tenro infante
Nos braços de minha mãe.

Minha mãe!... oh! quantas vezes
Me vinha a triste abraçar,
E carpindo os seus reveses
Fitava os olhos no mar!
Seu pranto caía ardente,
Em bagas na minha frente;
E eu, pobre infante inocente,
Chorava de a ver chorar.

Mais tarde, quando o navio
Me trazia à escravidão,
Nas praias do mar bravio
Eu a vi cair no chão;
Vi-a através dos espaços,
Morrendo, estender-me os braços...
Sacudi meus férreos laços;
Mas, ai de mim! era em vão!

Perdi-a! só me restava
A virgem do meu amor,
Que a mulher que eu adorava
Quis partilhar a minha dor.
Mas tinha sua beleza
Só dum escravo a defesa...
Devia, oh raiva! ser presa
Do meu infame senhor.

E eu, soberbo vezes tantas,
Curvei-me daquela vez;
Arrastei às suas plantas
Minha feroz altivez.
Debalde! que o vil tirano
Escarneceu do africano;
Maldição! vaidoso, ufano,
Meu amor calcou aos pés.

– É minha, só minha a escrava:
A ti, pertence o grilhão: –
Disse, e o sangue me escaldava
No fundo do coração.
Da vingança a torva imagem
Me sorriu, me deu coragem –
No meu gemido selvagem
Rugiu irado o leão.

Era noite! – negro sonho
Que destes olhos não sai!-
Era noite! um céu medonho
Vi tua sombra, ó meu pai...
Rojando um grilhão pesado,
Teu espectro ensanguentado
Se ergueu sombrio a meu lado,
Sem dar um gemido, um ai...

Té que alçando a voz: – meu filho!
Meu filho! – bradaste enfim,
E os olhos turvos, sem brilho,
Tinhas cravados em mim...
Eu quis lançar-me em teus braços,
Quis cingir-te em doces laços;
Mas fugindo aos meus abraços,
Volvias a olhar-me assim.

Foste escravo... teu destino,
Tua morte compreendi,
E um nome, o do assassino,
Delirando te pedi;
Mas sem atender a nada,
Erguendo a dextra mirrada,
– Vingança! – com voz irada
Bradaste, e não mais te vi.

Sim, vingado foi teu sangue
Por este braço afinal,
Que um deles caiu exangue
Aos golpes do meu punhal.
Era amargo o fel da taça –
Vinguei a nossa desgraça
Num dos tigres dessa raça,
No sangue do meu rival.

Vinguei o meu e teu jugo!
Que importam férreos grilhões,
O cadafalso e o verdugo,
O suplício e as maldições?
Entre os gozos da vingança
Reluz enfim a esperança;
Já não receio a lembrança
De seus cruentes baldões.

Sinto correr-me nas veias
O fogo que lhe ateei...
Quebrai-vos, duras cadeias,
Escravo não mais serei...
Sou livre! a morte o proclama
Neste peito que se inflama...
Já nele circula a chama
Do veneno que eu tomei!

Fonte: 
Poesias de Soares de Passos. 1858 (1ª ed. em 1856). http://groups.google.com/group/digitalsource