terça-feira, 26 de março de 2013

Ditados Populares do Brasil (Letra N)

Na prática, a teoria é outra.
Nada como um dia atrás do outro, e uma noite no meio.
Não adianta chorar o leite derramado.
Não botar prego sem estopa.
Não coloque o carro na frente dos bois.
Não confundir alhos com bugalhos.
Não cries cão se te falta pão.
Não culpar a vassoura pela existência do lixo.
Na boca de quem não presta o bom não vale nada.
Na cabine cabem muitas; no coração só uma.
Na estrada da vida há espinhos de metro em metro e rosas de légua em légua.
Na frente, a felicidade; atrás, poeira e saudade.
Na subida você me aperta, na descida nós acerta.
Namorar mulher casada é fazer contrato com a morte.
Namoro é isca, casamento é anzol.
Não buzine, levante mais cedo.
Não buzine, passe por baixo.
Não chore, meu bem, na volta te levarei.
Não confie em mulher nem em freio de caminhão.
Não corro porque tenho pressa.
Não creio em homem que perde nem em mulher que acha.
Não fico rico, mas me divirto.
Não esquente a cabeça que o chifre amolece.
Não faça do seu namorado um tarado, a vítima poderá ser você.
Não fale a Deus dos seus grandes problemas, fale aos seus problemas que você tem um grande Deus.
Não há amor sem disciplina nem disciplina sem amor.
Não há mezinha que cure a dor da separação.
Não há mulher sem graça nem festa sem cachaça.
Não há regra sem exceção nem mulher sem senão.
Não há sabão que lave a alma da inveja.
Não maldiga o fim da vida, ele é o começo da vida sem fim.
NÃo me acompanhe que não sou novela.
Não me dê conselho; sei errar sozinho.
Não podem ser escondidos: o amor, o fogo e a tosse.
Não preciso esconder nada, o tempo vê, escuta e revela tudo.
Não se desculpe, corrija-se.
Não sou batom, mas vivo na tua boca.
Não sou bombeiro, mas apago o teu fogo.
Não sou rei, mas gosto de coroa.
Não sou dentista, mas gosto de banguela.
Não sou detetive, mas ando na pista.
Não sou laquê, mas vivo na cabeça das mulheres.
Não sou parafuso, mas vivo sempre apertado.
Não sou peixe, mas nado nas tuas águas.
Não sou pipoca, mas dou meus pulinhos.
Não sou 7 de setembro, mas sou parada.
Não suba de um salto, você pode cair.
Não suba muito, a queda pode ser maior.
Não temo estrada ruim, tudo é canja pra mim.
Não tenha pressa que a vida é curta.
Não tenho tudo que amo, mas amo tudo o que tenho.
Não tente descobrir os meus defeitos. Procure os seus.
Nas curvas do teu corpo, capotei meu coração.
Nas curvas do teu corpo freei meu coração.
Nas longas estradas de saudade choro.
Nas longas estradas moro e  as vezes de saudade choro.
Nele mando eu e na minha casa minha mulher.
Nesta casa, quanto mais curta a mini-saia, melhor.
Ninguém é tão ninguém que nunca tenha ajudado alguém.
Ninguém se fie em cachorro na cozinha nem em mulher que sai sozinha.
No baralho da vida só encontrei uma dama.
No começo é bom, no fim é pior.
No deserto Deus fala ao homem.
No jardim de minha vida, de planta só tem saudade.
No laço do teu amor, minha alma geme e suspira.
No silêncio da noite é que aumenta a população.
Nossas BRIGAS são renovações de amor.
Nosso amor virou cinza porque você mandou brasa.
Nunca é tarde pra amar.
Não dar ponto sem nó.
Não dê a passada maior que as pernas.
Não deixar o certo pelo duvidoso.
Não deixes pra amanhã o que podes fazer hoje.
Não é com vinagre que se apanha moscas
Não faça aos outros o que não queres que te façam
Não fale o roto do esmolambado.
Não fale o sujo do mal lavado.
Não fazer aos outros o que não quer que lhes faça.
Não há carne sem osso,Não há nada que não tenha suas dificuldades
Não há mal que perdure, não há dor que não se cure
Não há mal que sempre dure, nem bem que nunca se acabe.
Não há mulher sem graça nem festa sem cachaça.
Não há nada como um dia depois do outro
Não há rosa sem espinho.
Não há segundo prato com o gosto do primeiro.
Não julgue o vinho pelo barril.
Não meta a colher onde não é chamado.
Não se deve dar pérolas aos porcos
Não se meta em camisa de onze varas.
Não se pode assobiar e chupar cana.
Não vá o sapateiro além das tamancas.
Nas pedras nascem flores.
Nascer empelicado.
Nem só de pão vive o homem.
Nem tanto ao mar, nem tanto à terra.
Nem tudo está perdido.
Nem tudo que reluz é ouro
Nem tudo que reluz é ouro, nem tudo que balança cai.
Nem tudo são flores.
Ninguém perdoa a testemunha da desdita.
Ninguém pode servir a dois senhores.
Ninguém sabe tanto que não possa aprender e nem tão pouco que não possa ensinar.
No velório de pobre há choro, no de rico há briga.
Nunca vi carrapateira botar cacho na raiz, nunca vi moça solteira ter palavra no que diz.
Nuvem baixa, sol que racha

domingo, 24 de março de 2013

Trova 256 - Pedro Melo (SP)


Paulo Setúbal (Poemas Avulsos II)

Pintura de Iman Maleki
A FAZENDA

Ao meu querido Laerte

Seis horas... Salto do leito.
Que céu azul! Que bom ar!
Ai, como eu sinto no peito,
Moço, vivo, satisfeito,
O coração a cantar!

No meu quarto, alegre e claro,
Há rosas e girassóis.
Eu, com enlevo, reparo
No mínimo do seu preparo,
Na alvura dos seus lençóis.

Que doce encanto, e que graça,
Nesta simpleza aldeã,
Têm, sobre os vãos da vidraça,
Leves cortinas de cassa,
Bailando ao sol da manhã!

E da florida janela
Que eu abro de par em par,
- Verde painel, larga tela,
Da cor mais viva e mais bela,
Desdobra-se ao meu olhar!

A manhã, que é fresca e branda,
A rir, gloriosa e feliz,
Doira a casa veneranda,
Com sua quieta varanda
Cheirosa de bogaris...

Um renque de altos coqueiros
Circunda o velho pomar;
Toscos, enormes tabuleiros,
Ficam em frente os terreiros,
Com grãos em coco a secar.

Num quadro, curvo e sozinho,
Um pobre negro, o Bié,
A passo, devagarinho,
Com seu rumoroso ancinho,
Lá vai, rodando o café...

Depois - a máquina, a tulha,
O alpendre, o farto paiol:
Ah, como a roça se orgulha
De ver subir a fagulha
Que lança a máquina ao sol!

Branca, entre tufos, a escola,
Na estrada logo se vê:
Aí, nessa casinhola,
A filha de nhá Carola
Vive a ensinar o a b c.

Fulgem, na estrada tranqüila,
Casinhas brancas de cal:
É a colônia que cintila,
Graciosa como uma vila,
Risonha como um pombal.

Ao longe, o pasto, a cancela,
- Um boi deitado no chão:
Paisagem rude e singela,
Daria fina aquarela
De puro estilo aldeão.

E além, para lá da ponte,
Ao lado do matagal,
Por sobre as lombas do monte,
Por todo o imenso horizonte,
- Alastra-se o cafezal!

O olhar, tonto, se extasia
Na cena rústica e chá;
E a gente sente a poesia.
Sente a radiosa alegria
De tão soberba manhã!

Absorto no panorama
Que assim contemplo, de pé,
Eis que uma velha mucama,
Surgindo à porta, me chama:
"Nhonhô, tá pronto o café...

A GENTE

Saio a passear... Claro e quente,
O sol na altura sorri.
Eu sigo, de alma contente,
Saudando esta boa gente
Dos sítios onde nasci!

Lá vou, por entre este povo,
Com tanta ingênua emoção,
Que eu, sem querer, me comovo,
Revendo agora, de novo,
Nhô Lau, seu Juca, o Bastião...

* * *

Aquele... Nossa Senhora!...
- Aquele é o seu Nicanor:
O mesmo, tão curvo agora,
Que foi, nos tempos de outrora,
O meu grande professor!

É um velho... Um republicano
Desde o tempo que lá vai!
Vive a falar no Floriano,
Dizendo que é veterano
Da guerra do Paraguai...

* * *

E este?... O Mendonça afamado,
O célebre caçador!
Traz a lapeana de lado,
E um perdigueiro malhado
Que salta no carreador.

Rude, feroz, barba intonsa,
Com a sua desfaçatez,
A todos narra o Mendonça
Terríveis caçadas de onça,
- Caçadas que nunca fez.

* * *

Lá está na foice, roçando,
O velho Jeca Morais:
Caboclo bom, gênio brando,
Apenas, de quando em quando,
Bebe algum trago demais.

* * *

No dia em que se endominga,
Vai ao povoado passear;
E à volta, cheirando à pinga,
Discute, provoca, xinga,
Querendo à força brigar!

* * *

Junto, o Nicola persiste
Em consertar um moirão;
Não sei se no mundo existe
Outro violeiro mais triste
Que esse infeliz mocetão.

Louca paixão, louca e imensa,
Sempre em angústias o traz:
É que ele, o poeta, só pensa
Na filha do Quim Proença,
Que gosta de outro rapaz.

Quando o luar desenrola,
No espaço, o místico alvor,
Sonhando um sonho, o Nicola
Põe-se a chorar na viola
As mágoas do seu amor...

* * *

Guiando os bois do seu carro,
Que ringe num alto som,
Nhô João, na estrada de Barro,
Lá vai, pitando um cigarro,
Cheiroso de fumo bom.

Com seu enorme trabuco,
Calça xadrez, pé no chão,
Na venda do Zé Macuco,
Sentado à mesa do truco,
- Que noites passa nhô João!

* * *

Ao longe, num largo trote,
Com elegâncias de peão,
- Bombacha, espora e chicote -
Passa na estrada o Mingote,
Montado num alazão.

Moço dos mais arrogantes,
De claro olhar, claro e azul,
Conta as paixões delirantes
Que teve em terras distantes,
Ao vir com tropas do Sul...

* * *

Eu sigo... Festivamente,
O sol na altura sorri;
Assim, risonho e contente,
Revejo toda esta gente
Dos sítios onde eu nasci...

DERRADEIRA SAUDADE

Paixão fugaz... Ventura passageira...
Rosa que não colhemos da roseira,
Mas que esteve, no galho, ao nosso alcance.
Ah! Quanta vez, num desespero mudo,
Eu quedo-me a cismar naquilo tudo,
Que encheu de sol nosso cruel romance!

Bendigo ainda os beijos que maldizes,
Que abriram na minhalma cicatrizes,
Que encheram de ambrosias nossa boca;
Só me consola, nesta dor pungente,
Lembrar que te adorei perdidamente,
Lembrar que me adoraste como louca!

Mudaste muito, eu sei... Mas, com certeza,
Nas horas de saudade e de tristeza,
Em que a alma chora e o coração nos trai,
Hás de pensar em mim de quando em quando,
Com lágrimas nos olhos relembrando
- Toda essa história que tão longe vai!

Fonte:
SETUBAL,Paulo. Alma Cabocla 

Olivaldo Junior (Aniversário...)

Aniversário. Pintura de Galina
Tento enganar o Tempo, mas ele não perde o bonde e me deixa a pé. O Tempo é demais para mim. Por isso, ao fazer um texto, ao compor um tema, engano o Tempo (e a mim mesmo) trancando-o nas letras e nos compassos a fim de tê-lo a qualquer hora. Ontem fiz aniversário. Sim, “eu tenho mais de vinte anos”, mas o Tempo ainda corre em minhas veias, ainda durmo em suas teias, sonhando encontros e cânticos para alguém.

Alguém mandou cartão pelos Correios. Mais alguém, um poema, que mo mandou por e-mail. O que me importa é que alguém telefonou e me deu parabéns ainda que longe. Longe, ou perto, alguém se lembrou de que fiz aniversário. Abraçaram-me. Ganhei abraços de braços que também querem outros. Outros não mandaram nada. Alguns não sabiam. De uns poucos, não sei dizer.

Outra noite, cá estava eu, junto do rádio, qual fazia quando criança, ouvindo música, pensando alto e voando baixo. Não consegui encontrar quem me acompanhasse no ato de tentar cantar. Mais coisas, meu bem, não falo. “Eu tenho mais de vinte anos”. Sonhos envelhecem como eu mesmo me envelheço a cada vez que me recordo: tudo é recorte, apenas penas que o vento inventa ao voar.

Parabéns, “menino que eu fui”! Você me fez vivo enquanto viveu! Ainda, num e noutro gole de música, muito breve, eu o vejo... Você, que sonha, mas é morto. O que se vê é um homem cujos versos tem tido indiferença e cuja música é cachaça que se deixa envelhecer (sonhos?), sem ninguém a ter provado.

Fontes:
O Autor
Pintuira obtida em http://www.chapelart.com.br


Homero (Batracomiomáquia – A Guerra entre Rãs e Ratos)


Ao iniciar, rogo ao coro de Helicon que assista a minha alma para entoar o canto que recém registrei nas tábuas sobre meu joelho - uma luta imensa, obra marcial plena de bélico tumulto -, desejando que chegue aos ouvidos de todos os mortais como os ratos se distinguiram ao atacar as rãs, imitando as proezas dos gigantes filhos da terra. Tal como entre os homens se conta, seu princípio aconteceu da seguinte maneira: Sedento, depois de se livrar de uma doninha, um rato submergia sua ávida barba ali perto, num lago, e se reconciliava na água doce como mel, quando viu uma rã tagarela, que no lago tinha suas delícias, e que assim lhe falou:

Inchabochechas: - Quem és tu, forasteiro? De onde chegastes nestas ribeiras? Quem te engendrou? Dize-me tudo honestamente, e que não perceba eu que mentes. Se te considerar digno de ser meu amigo, levar-te-ei a minha casa e te darei muitos e bons presentes de hospitalidade. Eu sou lnchabochechas e, no lago me honram como perpétuo guerreiro das rãs; meu pai Lodoso me criou e deu-me à luz Rainha-das-Águas, que com ele se juntara amorosamente às margens do Erídano. Observo que também és formoso e forte, mais ainda do que os demais; e deves ser rei e valoroso combatente nas batalhas. Mas, ande, revele-me já tua linhagem!

Roubamigalha: - Por que me perguntas por minha linhagem? Conhecida é e a de todos os homens e deuses, e até das aves que no céu voam. Eu me chamo Roubamigalha, sou filho do magnânimo Róipão e tenho por mãe Lambedentes, filha do rei Róipresunto. Mas... Como poderás conseguir que eu seja teu amigo, se minha natureza é completamente diversa da tua? Para ti, a vida está na água, mas eu costumo roer o quanto os homens possuem; não se me oculta o pão enfeitado que se guarda no redondo cesto; nem a grande torta recheada de gergelim; nem a talhada de presunto; nem o fígado dentro de sua branca túnica; nem o fresco queijo, de doce leite fabricado; nem os ricos doces, que até aos imortais apetecem; nem coisa alguma das que preparam os cozinheiros para os festins dos mortais, espargindo condimentos de toda sorte aos borbotões.

Jamais fugi da horrível gritaria insana das batalhas, mas sempre me encaminho para o tumulto e imediatamente me junto aos combatentes mais avançados. O homem com seu grande corpo é coisa que não me assusta, pois, imiscuído-me na cama em que repousa, mordo-lhe a ponta do dedo e até o pego pelo calcanhar, sem que sinta ele qualquer dor nem o desampare o doce sono enquanto eu o mordo. Dois são os inimigos a quem, em grande forma, eu temo sobre tudo o mais na terra: o gavião e a doninha, que terríveis pesares me causam; e também o lutuoso cepo onde se oculta a traidora morte. Mais temo porém a doninha, que é fortíssima e, ao me esconder numa toca, na própria toca vai ela me procurar. Não como rábanos, nem couves, nem abóboras; nem me alimentos de verdes acelgas nem aipo; que estes são vossos manjares próprios dos que habitam a lagoa.

lnchabochechas, sorrindo, respondeu:

Inchabochechas: - Ó, forasteiro, das coisas do ventre muito te envaideces; também nós, as rãs, temos muitas coisas admiráveis de se ver, tanto no lago como em terra firme, pois Zeus Cronion nos deu um duplo modo de viver, e tanto podemos saltar na terra como mergulhar na água, habitando moradas que de ambos elementos participam. Se desejares comprová-lo, mui fácil te há de ser: monta nas minhas costas, agarra-te a mim para não escorregares e chegarás tranqüilo ao meu palácio.

Assim falou - e deu as costas a ele. O rato, subindo de um salto ao lugar indicado, prendeu as mãos no pescoço macio. E a princípio regozijava-se contemplando os hortos vizinhos e deleitando-se com o nado de Inchabochechas; mas assim que se sentiu molhado pelas ondas cor de púrpura, brotaram-lhe copiosas lágrimas e, tardiamente arrependido, lamentava-se e arrancava os cabelos, apertando com suas patas o ventre da rã, com o coração aos pulos com o insólito da aventura, ansiando em voltar à terra firme; enquanto isso, um glacial terror fazia-o gemer. Estendeu então a cauda sobre a água, movendo-a como um remo; e, enquanto pedia às divindades que o ajudassem a chegar no chão firme, as ondas cor-de-púrpura iam banhando-o. Gritou finalmente - e estas foram as últimas palavras que sua boca proferiu:

Roubamigalha: - Com toda a certeza não foi assim que sobre seus ombros levou a amorosa carga o touro que, através das ondas, conduziu à Creta a ninfa Europa - como, nadando, a mim transporta sobre os seus esta rã que mal ergue seu amarelo corpo por entre a branca espuma.

De repente apareceu uma hidra com o pescoço sobre a água. Que amargo espetáculo para os dois! Ao vê-la, submergiu lnchabochecha sem lembrar da qualidade do companheiro que, abandonado, ia morrer. Foi-se portanto a rã ao fundo do lago e assim evitou a negra morte. O rato, quando a rã o soltou, caiu de costas na água; e apertava as patinhas; e, em sua agonia, soltava guinchos agudíssimos. Muitas vezes submergiu ele na água, muitas outras conseguiu flutuar, aos coices; não conseguiu no entanto escapar ao seu destino. O pêlo molhado aumentava seu peso. E, ao perecer nas águas, tais palavras pronunciou:

Roubamigalha: - Teu proceder não haverá de passar despercebido, ó lnchabochechas, que este náufrago fizeste despencar do teu corpo como uma pedra. Em terra, ó mui perversa, não me vencerias nem no vale-tudo, nem na luta, nem na corrida; mas te valeste da fraude para jogar-me nágua. Tem a divindade um olho vingador e pagarás teu crime ao exército de ratos, sem que consigas escapar.

E assim expirou ele na água. Mas aconteceu de vê-lo Lambeprato, que se achava sobre a branda relva da ribeira; e a proferir horríveis chiados correu para dar notícia aos ratos. Assim que estes a souberam, ficaram dominados de terrível ira. Ordenaram em seguida aos arautos que, ao romper da aurora, convocassem todos para uma reunião na morada de Róipão, pai do desditado Roubamigalha, cujo cadáver apareceu estendido na lagoa, pois o mísero já não se achava mais próximo da ribeira: ia flutuando no meio do charco. E quando, ao surgir da madrugada, todos acudiram ao encontro, Róipão, irritado com a sorte do filho, foi o primeiro a falar:

Róipão: - Amigos! Embora a mim em particular as rãs causaram tanta dor, a atual desventura a todos nós alcança. Sou muito desgraçado, pois perdi três filhos. Ao mais velho, matou-o a muito odiada doninha, pondo-lhe as garras em uma toca. Ao segundo, levaram-no à morte os cruéis homens, inventando uma engenhosa armadilha à qual chamam ratoeira e que é a perdição dos ratos. E o que era meu terceiro filho, tão caro a mim e a sua veneranda mãe, afogou-o lnchabochechas, levando-o para o fundo da lagoa. Mas eia, armai-vos, guarnecei vossos corpos com lavradas armaduras e saiamos todos contra as rãs.

Expondo tais razões, a todos persuadiu a que se armassem; e a todos armou Ares, que é quem cuida da guerra. Primeiro ajeitaram a seus músculos bainhas de verdes favas bem preparadas, que então abriram e que durante a noite haviam roído das plantas. Puseram-se couraças de peles hastes, dispostas com grande habilidade, depois de esfolarem uma doninha. O escudo consistia numa tampa, das que levam uma lamparina no centro; as lanças eram longuíssimas agulhas, labor de Ares em bronze; e o capacete era uma casca de ervilha por sobre as frontes.

Assim armaram-se os ratos. Ao perceberem isso, as rãs saíram da água e, reunidas, celebraram uma comissão para tratar do pernicioso embate. E, enquanto procuravam saber qual a causa daquele levante e tumulto, acercou-se deles um arauto com uma varinha na mão - Furaondas, filho do magnânimo Róiqueijo - e anunciou-lhes a funesta declaração de guerra:

Furaondas: - Ó, rãs! Os ratos nos ameaçam com guerra e me enviaram para vos dizer para se armarem para a luta e o combate, pois viram nágua a matar Roubamigalhas vosso rei lnchabochechas. Pelejai, pois, vós, os mais valentes entre as rãs.

Assim começou, e seu discurso penetrou em todos os ouvidos e mexeu com as mente de todas as rãs. E como sobrou a culpa para lnchabochecha, ele falou:

Inchabochechas: - Amigos! Não levei o rato à morte, nem o vi perecer. Deve ter-se afogado enquanto brincava às margens do lago, imitando o nadar das rãs; e os perversos me acusam - a mim, que sou inocente. Mas, adiante, busquemos de que modo nos será possível destruir os pérfidos ratos. Vamos cobrir o corpo com as armas e vamos nos colocar nos altos da ribeira, no lugar mais abrupto; e quando vierem eles nos atacar, fisguemos os que de nós se aproximarem pelos cascos e tiremo-los rapidamente do lago, dentro de suas próprias armadilhas. E depois que na água se afogarem, pois não sabem nadar, vamos erigir um alegre troféu que o ratocídeo comemore.

E assim a todos persuadiu que se armassem. Cobriram suas pernas com folhas de malca; puseram-se as couraças de verdes acelgas; transformaram habilmente em escudos folhas de couve; tomaram como se lança fosse cada qual os seus juncos longos; e cobriram a cabeça com elmos que eram conchas de caracóis. Vestida a armadura, enfileiraram-se no alto da ribeira, brandindo as lanças, cheios de furor.

Então, ao estrelado céu, chamou Zeus as divindades, e mostrando-lhe a batalha e os fortes combatentes, que eram muitos e manejavam longas lanças - como se pusesse em marcha um exército de centauros ou de gigantes -, perguntou sorridente quais deuses ajudariam as rãs e quais os ratos? E disse a Atenéia:

Zeus: - Filha! Irás por ventura auxiliar os ratos, já que todos saltam em teu templo, onde se divertem com o vapor da gordura queimada e com manjares de toda espécie?

E Atenéia respondeu-lhe:

Atenéia: - Ó pai! Jamais iria prestar ajuda aos aflitos ratos porque eles já me causaram um sem-número de males, destruindo os diademas e as lâmpadas para beberem o azeite. E ainda mais me atormenta o ânimo o fato de me roerem e ainda esburacarem uma túnica de sutil trama que eu mesma havia tecido; e agora a costureira me constrange pelo ocorrido - horrível situação para uma imortal! -, pois comprei fiado o tecido para tecer e agora não sei como irei devolver a ele. Mesmo assim, não pretendo defender as rãs, que tampouco elas têm juizo: recentemente, ao voltar de um combate em que muito me cansei, elas não me permitiram cerrar os olhos com seu alarido; e estive deitada, sem dormir e com a cabeça dolorida até ouvir o galo cantar. Portanto, ó Deuses!, vamos nos abster de dar-lhes a nossa ajuda, pois combaterão corpo a corpo mesmo que uma divindade se lhes oponha - vamos nos divertir todos contemplando aqui do céu a batalha.

Assim falou, e os restantes deuses obedeceram-na e todos juntos se encaminharam para determinado lugar estratégico. E então os mosquitos anunciaram, com grandes trombetas, o fragor horroroso do combate; e Zeus Cronida no céu troou, dando o sinal para a funesta luta.

Começou com Chiaforte ferindo Lambehomem com a lança, cravando-a no ventre e no fígado: o rato caiu de boca para baixo, os pêlos manchados e, ao tombar com grande baque, as armas ressoaram sobre seu corpo. Depois Habitatocas, como alcançara Lamacento, enterrou-lhe no peito a forte lança: a negra morte apresou o caído e voou-lhe a alma do corpo. Acelguívoro matou Penetraondas atirando-lhe o dardo no coração e nas mesmas margens matou também Róiqueijo.

Rãdojunco, ao ver Furapresunto, começou a tremer, tirou o escudo e fugiu, saltando na água. Descansanalama, o irrepreensível, matou o Comedordecapim e Gozadoraquático feriu também de morte ao rei Róipresunto, atingindo-lhe com o cabo da arma na parte de cima da cabeça: o cérebro do rato fluiu-lhe pelo nariz e a terra manchou-se de sangue! Lambepratos matou com a lança Descansanalama, o irrepreensível: a escuridão velou seus olhos. Ao vê-lo, Comealho agarrou Farejado pelos pés e, ao apertar o tendão com força, afogou-o no lago. Ladrãodemigalha quis vingar seu companheiro defunto e feriu Comealho no ventre, bem no meio do fígado: caiu a rã a seus pés e o espírito dela foi para o Hades. Andaentrecouves atirou-lhe de longe um punhado de lama que lhe borrou o rosto todo e por pouco não o cegou. Ficou raivoso o rato e, colhendo com a mão uma enorme pedra, verdadeiro obus da terra, com ela feriu Andaentrecouves abaixo do joelho: partiu-se a perna direita da rã, que caiu de costas no pó. Tagarela veio em seu auxílio e, atacando Ladrãodemigalha, feriu-o no ventre: enterrou-lhe todo o afiado junco e, ao arrancar a arma, os intestinos esparramaram-se no solo. E, assim que o viu no alto da ribeira, habitatocas - o qual, sentindo-se bastante abatido, retirava-se coxeando do combate - saltou num fosso para escapar da horrível morte. Róipão feriu Inchabochechas na extremidade do pé; e este; aflito, jogou-se no lago. Ao vê-lo caído e exausto, Alguívoro abriu caminho por entre os combatentes dianteiros e avançou sobre Róipão com seu junco em lance, não conseguindo, porém, romper-lhe a couraça, na qual cravou a ponta da arma. Feriu-o, no entanto, no forte casco de reforço, fazendo-se êmulo do próprio Ares, o divinal Cataorégano, único combatente que se destacava por entre a multidão de rãs. Mas partiram contra ele que, ao perceber-se assim acuado, não quis esperar seus esforçados heróis e acabou submergindo na parte mais profunda do lado.

O mancebo Roubaparte, entre todos destacado e filho do irrepreensível Roedorqueespreitaopão, recebeu deste a ordem para que se juntasse ao combate, e o filho garantiu, esbravejando, que haveria de exterminar toda a linhagem das rãs. Foi a elas com ganas de luta; rompeu ao meio uma casca de noz e armou-se. Temerosas, as rãs retiraram-se para o lago. E haveria ele de levar a cabo seu propósito, pois grande era sua força, se não o houvesse percebido imediatamente o pai dos homens e dos deuses: Zeus,
que compadecido das rãs, moveu a cabeça e assim falou:

Zeus:        - ó Deuses! Enorme é a façanha que meus olhos vão contemplar. Muito perplexo deixou-me Roubaparte ao se vangloriar de que haverá de destruir as rãs do lago. Enviemos o quanto antes Palas Atenas, que é quem produz o tumulto da guerra, ou Ares, para que o retirem da batalha, independente de sua valentia.

Ares respondeu-lhe:

Ares:        - Nem o poder de Palas Atenas nem o de Ares haverão de bastar para livrar as rãs da horrível derrota. Mas mesmo assim sigamos em seu auxílio, ou então move tu a tua arma, com a qual mataste os titãs, que eram em muito melhores do que todos; e desta maneira será dominado o mais valente, tal como em outros tempos fizeste perecer o robusto varão Capaneo, o grande Enceladonte e as ferozes famílias dos Gigantes.

Assim disse, e Zeus arremessou seu brilhante raio. Antes, emitiu um trovão que fez estremecer o vasto Olimpo, e em seguida lançou o raio - a terrível arma de Zeus que voou serpenteando da sua soberana mão. A queda do raio a todos causou pavor, tanto às rãs quanto aos ratos; mas nem por isso o exército destes últimos abandonou o combate, talvez esperando ainda mais do que destruir a linhagem das beligerantes rãs, se Zeus, no Olimpo, compadecendo-se delas, não lhes houvesse imediatamente enviado ajuda.

De pronto apresentaram-se uns animais com ombros como bigornas, de garras curvas e andar oblíquo, pés torcidos, com bocas como tesouras, peles de crustáceos, com ossos consistentes, costas largas e reluzentes, cambaios, lábios prolongados, e que olhavam pelo peito e tinham oito pés e duas cabeças, indomáveis; eram caranguejos que puseram-se a cortar com suas bocas as caudas, pés e mãos dos ratos, cujas lanças se dobravam ao enfrentar os novos inimigos. Temeram-nos os tímidos roedores e, cessando qualquer resistência, puseram-se em fuga.

E assim, ao pôr-do-sol, terminava aquela batalha que só um dia durara.
       
Fonte:
COSTA, Flávio Moreira da (org.) . Os 100 melhores contos de humor da literatura universal. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001

Alberto Caeiro (Caravela da Poesia XX)

Alberto Caeiro (heterônimo de Fernando Pessoa)

POUCO A POUCO

Pouco a pouco o campo se alarga e se doura.
A manhã extravia-se pelos irregulares da planície.
Sou alheio ao espetáculo que vejo: vejo-o,
É exterior a mim. Nenhum sentimento me liga a ele.
E é esse sentimento que me liga à manhã que aparece.
Pouco me Importa
Pouco me importa.
Pouco me importa o que?
Não sei: pouco me importa.
Primeiro Prenúncio
Primeiro prenúncio de trovoada de depois de amanhã.
As primeiras nuvens, brancas, pairam baixas no céu mortiço,
Da trovoada de depois de amanhã?
Tenho a certeza, mas a certeza é mentira.
Ter certeza é não estar vendo.
Depois de amanhã não há.
O que há é isto:
Um céu de azul, um pouco baço, umas nuvens brancas no horizonte,
Com um retoque de sujo embaixo como se viesse negro depois.
Isto é o que hoje é,
E, como hoje por enquanto é tudo, isto é tudo.
Quem sabe se eu estarei morto depois de amanhã?
Se eu estiver morto depois de amanhã, a trovoada de depois de amanhã
Será outra trovoada do que seria se eu não tivesse morrido.
Bem sei que a trovoada não cai da minha vista,
Mas se eu não estiver no mundo.
O mundo será diferente —
Haverá eu a menos —
E a trovoada cairá num mundo diferente e não será a mesma trovoada
Pastor do Monte
Pastor do monte, tão longe de mim com as tuas ovelhas
Que felicidade é essa que pareces ter — a tua ou a minha?
A paz que sinto quando te vejo, pertence-me, ou pertence-te?
Não, nem a ti nem a mim, pastor.
Pertence só à felicidade e à paz.
Nem tu a tens, porque não sabes que a tens.
Nem eu a tenho, porque sei que a tenho.
Ela é ela só, e cai sobre nós como o sol,
Que te bate nas costas e te aquece, e tu pensas
noutra cousa indiferentemente,
E me bate na cara e me ofusca. e eu só penso no sol.

QUANDO TORNAR A VIR A PRIMAVERA

Quando tornar a vir a Primavera
Talvez já não me encontre no mundo.
Gostava agora de poder julgar que a Primavera é gente
Para poder supor que ela choraria,
Vendo que perdera o seu único amigo.
Mas a Primavera nem sequer é uma cousa:
É uma maneira de dizer.
Nem mesmo as flores tornam, ou as folhas verdes.
Há novas flores, novas folhas verdes.
Há outros dias suaves.
Nada torna, nada se repete, porque tudo é real.

QUANDO VIER A PRIMAVERA
Quando vier a Primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim.

Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma

Se soubesse que amanhã morria
E a Primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
Porque tudo é real e tudo está certo.

Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.
O que for, quando for, é que será o que é.

QUANDO ESTÁ FRIO

Quando está frio no tempo do frio, para mim é como se estivesse agradável,
Porque para o meu ser adequado à existência das cousas

O natural é o agradável só por ser natural.
Aceito as dificuldades da vida porque são o destino,
Como aceito o frio excessivo no alto do Inverno —
Calmamente, sem me queixar, como quem meramente aceita,
E encontra uma alegria no fato de aceitar —
No fato sublimemente científico e difícil de aceitar o natural inevitável.

Que são para mim as doenças que tenho e o mal que me acontece
Senão o Inverno da minha pessoa e da minha vida?
O Inverno irregular, cujas leis de aparecimento desconheço,
Mas que existe para mim em virtude da mesma fatalidade sublime,
Da mesma inevitável exterioridade a mim,
Que o calor da terra no alto do Verão
E o frio da terra no cimo do Inverno.

Aceito por personalidade.
Nasci sujeito como os outros a erros e a defeitos,
Mas nunca ao erro de querer compreender demais,
Nunca ao erro de querer compreender só corri a inteligência,
Nunca ao defeito de exigir do Mundo
Que fosse qualquer cousa que não fosse o Mundo.

QUANDO A ERVA CRESCER
Quando a erva crescer em cima da minha sepultura,
Seja este o sinal para me esquecerem de todo.
A Natureza nunca se recorda, e por isso é bela.
E se tiverem a necessidade doentia de "interpretar" a erva verde
sobre a minha sepultura,
Digam que eu continuo a verdecer e a ser natural.

SEJA O QUE FOR

Seja o que for que esteja no centro do Mundo,
Deu-me o mundo exterior por exemplo de Realidade,
E quando digo "isto é real", mesmo de um sentimento,
Vejo-o sem querer em um espaço qualquer exterior,
Vejo-o com uma visão qualquer fora e alheio a mim.

Ser real quer dizer não estar dentro de mim.
Da minha pessoa de dentro não tenho noção de realidade.
Sei que o mundo existe, mas não sei se existo.
Estou mais certo da existência da minha casa branca
Do que da existência interior do dono da casa branca.
Creio mais no meu corpo do que na minha alma,
Porque o meu corpo apresenta-se no meio da realidade.
Podendo ser visto por outros,
Podendo tocar em outros,
Podendo sentar-se e estar de pé,
Mas a minha alma só pode ser definida por termos de fora.
Existe para mim — nos momentos em que julgo que efetivamente
Por um empréstimo da realidade exterior do Mundo

Se a alma é mais real
Que o mundo exterior como tu, filósofos, dizes,
Para que é que o mundo exterior me foi dado como tipo da realidade"

Se é mais certo eu sentir
Do que existir a cousa que sinto —
Para que sinto
E para que surge essa cousa independentemente de mim
Sem precisar de mim para existir,
E eu sempre ligado a mim-próprio, sempre pessoal e intransmissível?
Para que me movo com os outros
Em um mundo em que nos entendemos e onde coincidimos
Se por acaso esse mundo é o erro e eu é que estou certo?
Se o Mundo é um erro, é um erro de toda a gente.
E cada um de nós é o erro de cada um de nós apenas.
Cousa por cousa, o Mundo é mais certo.

Mas por que me interrogo, senão porque estou doente?
Nos dias certos; nos dias exteriores da minha vida,
Nos meus dias de perfeita lucidez natural,
Sinto sem sentir que sinto,
Vejo sem saber que vejo,
E nunca o Universo é tão real como então,
Nunca o Universo está (não é perto ou longe de mim.
Mas) tão sublimemente não-meu.

Quando digo "é evidente", quero acaso dizer "só eu é que o vejo"?
Quando digo "é verdade", quero acaso dizer "é minha opinião"?
Quando digo "ali está", quero acaso dizer "não está ali"?
E se isto é assim na vida, por que será diferente na filosofia?
Vivemos antes de filosofar, existimos antes de o sabermos,
E o primeiro fato merece ao menos a precedência e o culto.

Sim, antes de sermos interior somos exterior.
Por isso somos exterior essencialmente.

Dizes, filósofo doente, filósofo enfim, que isto é materialismo.
Mas isto como pode ser materialismo, se materialismo é uma filosofia,
Se uma filosofia seria, pelo menos sendo minha, uma filosofia minha,
E isto nem sequer é meu, nem sequer sou eu?

Fonte:
Poemas Inconjuntos (http://www.cfh.ufsc.br/~magno/inconjuntos.htm)
Imagem formatada com sobreposição de figuras modificadas com imagens obtidas na internet,
sem identificação do autor.

Autran Dourado (O Risco do Bordado).

Obra-prima da carpintaria literária, O risco do bordado vem percorrendo desde seu lançamento, em 1970, o caminho típico de um clássico contemporâneo, alcançando um notável sucesso de público e crítica, suscitando inúmeras teses universitárias e sendo adotado como leitura curricular. O próprio Autran Dourado considera-o o eixo central de sua obra pela forma com que conjuga sua obsessiva construção de uma mítica mineira. "Escrevo para compreender Minas", declarou ele.

Ambientado na mítica Duas Pontes, cidade a que retornaria em outros livros como uma síntese do universo interiorano de seus personagens, O risco do bordado é uma viagem ao passado do escritor João da Fonseca Ribeiro, que volta ao cenário de sua infância. Ao encontrar antigos moradores da cidade, parentes e companheiros de infância, ele vai montando uma espécie de quebra-cabeças entre o vivido e o imaginado, completando e expandindo fragmentos de memória que são a narrativa de sua infância e adolescência.

Como num típico romance de formação, em que o principal interesse está no crescimento e desenvolvimento do protagonista, o leitor vai sabendo, aos poucos, como João se tornou o que é, sua dura trajetória na descoberta da sexualidade, da amizade, da traição e, também, da literatura. Prostitutas, jagunços, antepassados mortos, parentes velhos, figuras características de Duas Pontes cruzam o caminho de João, que desta forma vai enxergando, retrospectivamente, o risco sob o bordado que, afinal, é a sua própria história de vida.

Autran Dourado dá à narrativa o ritmo descontínuo da memória. Ele trabalha idas e vindas e histórias fragmentadas que, num primeiro momento, podem se assemelhar a contos sutilmente interligados. Arquitetado paciente e minuciosamente a partir de gráficos e esquemas, O risco do bordado tem um similar na obra do autor: Uma poética do romance. Neste ensaio, também reeditado pela Rocco, ele explica cada detalhe da construção do romance, publica os desenhos e plantas-baixas que auxiliaram sua construção e reflete sobre seu processo de criação como um todo.

Artigo:

O Herói Trágico em O risco do bordado, de Autran Dourado.
Por: Lilian Manes de Oliveira - Revista Saberes - Letras/Universidade Estácio, RJ.


Numa sequência cronológica linear, constata-se que o crescimento de João, protagonista de O risco do bordado, corresponde a um sucesso de mistérios que o levam a questionar-se, em sua trajetória de menino a homem. Por vezes as diferentes formas de questionamento revestem um mesmo mistério. O encontro de João com o mistério leva-o a um sentimento trágico da vida. Ele é um pessimista sombrio. A busca de um sentido existencial o conduz a uma atitude de tragédia.

Seu primeiro encontro é com a "Casa da Ponte", que dá título ao primeiro capítulo da obra. Esta tem seu ciclo trágico iniciado e concluído por tal casa.

Segundo Albert Camus, "a tragédia é um mundo fechado". "Mundo fechado" era a Casa da Ponte, "reino proibido" de pequenas e grandes tragédias, que despertavam a curiosidade do menino. Dividido entre dois sentimentos, a vontade de ver Teresinha Virado (o despertar do sexo) e o medo de ser descoberto pela mãe, seu Bernardino ou outra pessoa, João é um personagem tenso: "nunca para ele uma espera durou tanto num átimo assim tão pequeno. O coração carregado, lampejos, vislumbres". "Metade dele queria ir logo embora, a outra metade fincava pé".

O problema ainda semiconsciente do garoto, diante do sexo, vai reaparecer num sentimento irrealizado de amor incestuoso, em "O salto do touro".

Num outro momento, João se defronta com a morte. "... agora que o velho Maximino estava para morrer – aquela agonia lenta que chegava a dar nos nervos e que deixava os meninos, o colégio, a cidade, suspensos de angústia, de medo".

"É limpa a tragédia, é repousante, é certa" (Jean Anouilh). Limpa? Como um terreno após a explosão de uma bomba atômica. Repousante e certa? Como a morte inelutável.

Os colegas de João, a empregada do tio-avô desempenham, cada um, seu papel. Dir-se-ia que correspondem ao coro da tragédia grega, que anuncia a morte do velho, que não deixa nenhuma margem à esperança. Não há surpresa nessa morte. Ela é esperada, longamente esperada. Não atinge João. O que o atinge é a agonia, a situação que se prolonga, a angústia resumindo todos os seus sentimentos: contar ou não à vovó Naninha? Ir ou não ao enterro? A morte já estava decidida. O desenlace, irremediável. Eis o verdadeiro efeito da tragédia. Ela é limpa; é pura, porque é fatal.

Outra vez ela aparece. A fatalidade previsível; a "ananké" dos gregos, o "fatum" latino vai-se repetir em "A volta do filho pródigo" e em "Assunto de família"."Às vezes vovô Tomé achava que tio Zózimo tinha puxado ao pai dele, era muito parecido com o bisavô Mariano". Eis a premonição trágica. O desempenho de Zózimo e Zé Mariano é descrito, como se João tivesse sempre presente no espírito o trágico futuro que os aguardava. Zé Mariano trancou-se num barraco e suicidou-se. Tio Zózimo também, enforcado. Em "As voltas do filho pródigo", João ainda é personagem, o que serve de ligação deste grupo com os dos capítulos precedentes. Em "Assunto de família", João é sujeito oculto, apenas ouvinte, pois o caso é narrado em falsa terceira pessoa, sendo o avô quem fala, o remorso e a culpa identificando os dois. A situação trágica se propõe pelo desdobramento do sujeito enunciante. João participa de ambas as tragédias, já que "presencia" a primeira como o "ouvido" do avô. O capítulo é escrito em terceira pessoa. A tragicidade do personagem se revela na busca da saída para uma angústia que o leitor apenas percebe, sem entender-lhe, a princípio, a razão. Vovô Tomé acha uma saída: comunica-se com o neto. Agora João carrega consigo a dúvida. Os tormentos do avô são seus. Todo esse capítulo poderia ser transposto para a primeira pessoa; mas, se tal ocorresse, não haveria mais o ouvinte: vovô Tomé continuaria incomunicável.

A busca se apodera de João. Incomunicável é ele. É trágico. O questionamento lhe pertence. Ele conscientiza o problema. As perguntas sobre o comportamento do tio nunca lhe são respondidas. Mas percebe a atmosfera trágica num crescendo quotidiano. As cartas que vovó Naninha oculta; o desespero de vovô Tomé; de novo, o coro trágico anunciando a João a volta do tio. Quando ele chega, a tragicidade aumenta; porém sofre uma interrupção. Como um parêntese entre a chegada e o fim de Zózimo, este volta à vida, a família se alegra, os habitantes da cidade o cumprimentam: é o trágico aberto. A um ciclo trágico que se fecha, segue outro ciclo trágico que se abre. Num de seus retornos ao lar, o filho pródigo se suicida. Sucessivamente, João se encontra com a loucura, com a morte. É o trágico cerrado.

Outra vez a figura da morte: a de Zé Mariano. O coro trágico – Teodomiro e Sá Vitoriana – pressentindo o desenlace trágico. A angústia de vovô Tomé: "não demorou três dias (três dias que foram a minha agonia, a minha morte temporã)".

O que compõe a atmosférica trágica não é só a obra, é o leitor; o que conta são as relações dos personagens com o leitor. A atmosfera trágica implica adesão, engajamento, identificação. Daí chamar-se tensão dionisíaca ao estado no qual o leitor se sente ligado ao destino dos personagens, seja por identidade, seja por vontade de ruptura, tão intimamente que ele perde consciência de que este destino não é o seu. Assim a morte, destino comum a todos, pode constituir um tema de tragédia, quando o leitor se identifica com ela. A morte trágica é a minha morte, eu sou o sujeito da ação que se representa.

Entretanto, a morte não é somente o ponto extremo de um engajamento que pode encontrar sua força em outras circunstâncias. No trágico, pode representar um papel secundário. É uma das saídas. O homem é trágico, porque faz uma pergunta, respondida ou não. Só o homem é trágico, porque nunca encontrará uma resposta. As saídas não são A SAÍDA.

Vovô Tomé sofreu o tormento da incomunicabilidade. Não conseguiu penetrar no íntimo do pai, pois Zé Mariano lhe era de um mutismo monossilábico. O ciúme que sentia do meio-irmão foi provocado pelo distanciamento em que, embora filho legítimo, o pai o colocara. Em companhia de Teodomiro, parecia que o pai voltava à vida.

Um princípio de identidade estabelece o paralelismo. Também João não se comunica com o pai. Em seu mundo habitam mãe, avó, avô, tios, amigos. Referia-se ao pai de leve. O leitor sabe apenas que é mal sucedido nos negócios, não se dá bem com o sogro. João não deixa vir à tona os motivos. A incomunicabilidade está nas entrelinhas. Apenas, depois de morto ( "Sob a magia da dor") , descobre-se o nome do pai: Tonico Nogueira. João ainda acrescenta: "remedando o tio que assim o apresentava às pessoas". O silêncio sobre o pai é quase total.

O destino também é o inimigo de tia Margarida. O sobrinho não entende o porquê de uma existência estreita, daquele "mundo fechado". "Querendo, ela podia ser bem bonita". No entanto, um sentimento de culpa em relação a ela o acompanha desde menino. "Esse era o seu pecado mais fundo, a sua maior dor; embora ele nada tivesse feito, nenhuma culpa lhe coubesse. Porém, a culpa tudo tingia e envenenava". "O salto do touro materializa essa culpa, dá-lhe razões de existir. O destino foi inimigo de João também. "Destino", palavra criada por Hegel, para explicar a natureza profunda do tormento helênico, por ele próprio definida: "O destino é a consciência de si mesmo, mas como de um inimigo."

Engloba, portanto, algo exterior e que se realiza no interior do ser humano. O mecanismo trágico existe desde o sempre. "Querendo" e "podia": duas hipóteses. O risco do bordado impede de realizá-las. Prazer e dor, eis a tragédia pura; suas mil combinações refletirão as mil possibilidades de sofrer.
 
"Valente Valentina" retrata a magia e o deslumbramento, a necessidade apolínea do sonho que eleva o homem. Sonho que se esfuma na dualidade da tensão existencial. "Ah, meu Deus, como tudo se passou tão depressa! ... Eu súbito descobri a verdade de que a gente só guarda para toda a vida aquilo que dói demais. Num instante chegou a hora do Circo Milano partir". Valentina partira. "Eu nada podia fazer". Não mais restava nenhuma esperança. O próprio princípio da tragédia se põe em causa. "O mundo é uma comédia para o homem que pensa e uma tragédia para o homem que sente" (Provérbio espanhol).

No capítulo final, "As roupas do homem", o protagonista se liberta de suas dúvidas, recupera sua identidade. O simplesmente João a verbaliza: João da Fonseca Nogueira. Livra-se dos sentimentos de impotência diante do mistério existencial. O trágico o levou à descoberta de um universo misterioso e confusamente temido. Consegue a serenidade: os tormentos que o afligiam são apenas recordações.

O trágico termina num apaziguamento triste. João olha de frente seu destino. Liberta-se, pelo repouso que a tragédia da vida lhe trouxe.

Fonte:
Apostila 8 de Contemporânea da Lit. Brasileira. Disponível em http://www.jayrus.art.br/Apostilas/LiteraturaBrasileira/Contemporanea/Autran_Dourado_O_Risco_do_Bordado_resumo.htm

O Nosso Português de Cada Dia (Pegadinhas do Português) 4

Pegadinha 14
Costuma se fazer bons negócios nesta feira.

O verbo concorda com o seu sujeito, na voz passiva. Observe que temos dois verbos, um auxiliar e outro, principal.

Veja outros exemplos de uso da voz passiva em situações semelhantes:

Não se podem prever essas situações. (Não podem ser previstas essas situações.)
Devem-se devolver os crachás ao final do evento. (Devem ser devolvidos os crachás ao final do evento.)

A frase inicial estaria corretamente escrita da seguinte maneira:

Costumam se fazer bons negócios nesta feira.

Pegadinha 15

Não exceda da dosagem alcoólica permitida.

O verbo exceder não admite preposição. Outros exemplos:

O motorista foi multado porque excedeu os limites de peso de carga de seu caminhão.
(Errado: O motorista foi multado porque excedeu dos limites de peso de carga de seu caminhão.)

Lotação: 42 passageiros. Não exceda este limite. (Errado: Lotação: 42 passageiros. Não exceda deste limite.)

O certo seria escrever a frase original do seguinte modo:

Não exceda a dosagem alcoólica permitida.

Pegadinha 16

Não estacione! Sujeito a guincho.

Nada pode estar sujeito a um objeto que, neste caso, é o guincho, mas sim a uma ação, que seria a de guinchamento. Em outras hipóteses, os que transgridem a lei penal estão sujeitos a prisão, mas não a preso; se a transgressão for grave, podem até estar sujeitos a banimento, mas não a banido; como também, uma latinha de cerveja, no freezer, está sujeita a congelamento, mas não a gelo.

A frase inicial, corretamente grafada, ficaria assim:

Não estacione! Sujeito a guinchamento.

Pegadinha 17

Não fiz o dever de matemática.

Para muitas pessoas, há uma confusão muito grande, envolvendo os significados das palavras dever e deveres. Inicialmente, determinemos suas semânticas, conforme os bons dicionários:

dever: obrigação;

deveres: tarefas (sempre no plural).

O exemplo seguinte economiza muita explicação e esclarece a questão:

O dever de cada estudante é fazer seus deveres escolares.

Talvez, esta regrinha ajude a estabelecer com mais clareza a distinção:
deveres (tarefas) se fazem;
dever (obrigação) se cumpre.

Outros exemplos:
Ele cumpriu o dever de pai.
O dever de todo militar é servir o seu país.
Deixei de fazer os deveres de geografia.
Ela não dá conta de realizar os deveres domésticos. Precisa de uma empregada.

A frase original, corrigida, fica assim:

Não fiz os deveres de matemática.

Pegadinha 18

Pare de atazanar os outros!

Eis uma pérola da linguagem popular. Se formos a um dicionário e chegarmos à excrescência atazanar, teremos como significado a remissão ao vocábulo atenazar, que significa torturar, aborrecer, irritar, apertar com tenaz. Atazanar é uma palavra sem origem, é uma anomalia resultante da pronúncia atrapalhada de atenazar. Fica-se, portanto, com esta grafia, que é a correta.

A frase original deve ser reescrita, assim:

Pare de atenazar os outros.

Pegadinha 19

O comandante nos disse que ficássemos alertas.

Aqui está uma dica de português para vestibular e concurso, a qual tem gerado muita controvérsia. A palavra alerta pertence à classe dos advérbios e, como tais, é invariável. Não se flexiona para indicar gênero (Ele está alerta.), como também para indicar número (Permaneço alerta. Permanecemos alerta. Eles permanecem alerta.). Só se admite variação, quando substantivada, isto é, quando a palavra estiver acompanhada de artigo (Esqueci os alertas do comandante.).

Então, depois da correção da frase inicial, fica assim:

O comandante nos disse que ficássemos alerta.

Fonte:
126 Pegadinhas em Língua Portuguesa. www.softwareebookecia.com.

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) 25. Manual de Cozinha

Arranjei hoje com um contínuo um Manual do Perito Cozinheiro, para ler durante a viagem, à falta de outra leitura edificante, instrutiva ou deleitável.

Trago a cabeça cheia de leituras de jornal, e já não me diverte nada, pelo contrário, a sarabanda cotidiana das crônicas, estudos, fantasias, comentários, bisbilhotices e descomposturas. Tenho a impressão de já haver lido isso tudo não sei quantas vezes, desde a minha vida anterior, nosremotos pródromos do jornalismo com Mr. Théophraste Renandot. É incrível como as coisas atuais caducam depressa, como as novidades são velhas, como os fatos extraordinários são vulgares.

É verdade que a impressão de perpétua velhice só se prova agudamente quando se vai descambando ladeira abaixo dos anos em enta. Mas isso apenas demonstra que o espetáculo é comprido e só se pode bem apreciar depois de lhe ter visto um bom pedaço.

O fato é que estou fazendo quaresma a respeito dessa carne-de-vaca dos prelos. Ontem, li no bonde o Livro de são Cipriano, conhecimento que me entreteve como um fruto proibido, e que valeu ao dono do volume, servente da repartição, um pacote de fumo Veado. Hoje, um dos meus colegas devia emprestar-me as Noites da Virgem, mas afinal parece que teve receio de que eu lhe extraviasse essa "mimosa jóia", e declarou-me que a não havia encontrado; mentira, pois é o seu livro de cabeceira.

Arranjei-me porém com o contínuo, que fora da repartição é cozinheiro praticante, em ocasião de festa e regabofe, e dentro da repartição aprende a arte, decora receitas e dá consultas. Seja registado em sua honra, que não preenche apenas assim o seu horário oficial: também serve o café e faz o jogo do bicho.

O Manual fez-me o efeito refrescante de um bastão de cristal japonês passado pelas têmporas em hora de dor de cabeça. Nunca eu havia provado a tal ponto a maravilhosa utilidade das leituras inúteis. A parte referente ao preparo do peru com farofa e de outras aves domésticas e selváticas parecia escrita por um estômago inspirado, tanto garbo havia na variedade dos termos técnicos, na escolha das palavras mais precisas e sugestivas, no emprego dos adjetivos mais emanteigados e olorosos, enfim na composição de um estilo todo suavemente tostado e pururuca.

Li tudo, mas com absoluto desinteresse; por um puro ato de vontade, sem que nada me obrigasse ou seduzisse, ou me prometesse o mais remoto benefício. Singular prazer, cujo valor só depois completamente reconheci. Nem sequer me era dado pensar no aproveitamento de alguma receita, porque todos os pratos de que eu gosto já são perfeitamente executados e são de sobra para uma rotação conveniente dos menus; a tal ponto que ao saborear o frango assado no domingo, já eu sinto um pouquinho de saudade da torta de palmito da quinta-feira, e vice-versa, e assim por diante.

O que havia de bom nessa leitura era o emprego tenaz da vontade num objeto indiferente, ótimo exercício; era, depois, o esquecimento de umas amofinações, porque é impossível conciliar-se a leitura atenta de uma série de receitas de assados e cabidelas com o remeximento de espinhos espirituais.

Era, finalmente, a entrevisão liminar de um vasto mundo desconhecido, o mundo da Copa e da Cozinha, da pastelaria e das Artes afins; um mundo de ocupações e preocupações, de atividades e de idealidades, com sua história, seu tesouro tradicional, sua literatura, sua arte, sua ética, sua ciência; um mundo que aí fervilha tão perto do meu e ao qual eu andava alheio como se ele fosse Marte ou Saturno!

Esta percepção da impermeabilidade dos diferentes planos da vida me calou fundo na alma, e eu me senti ainda mais pequenino.

Se eu amanhã fizesse (mera hipótese) um poema forte, ou construísse uma teoria de mecânica, ou propusesse uma nova e fecunda maneira de interpretar a história, nada disso teria a mínima repercussão no mundo da Cozinha e da Copa; nem um eco sequer do meu nome chegaria até lá. A preparação do peru com farofa continuaria a mesma; ou, se se modificasse, havia de ser por ação de um dos íncolas, inovador de talento; e a alma do artista viveria em todo esse mundo largo mais viva e mais venerada do que a Divina Comédia ou o Discours de la Méthode ou o Novum Organum cá pelo nosso. E a sua glória não sofreria contestações nem eclipses, proclamada cada dia, através de tempos sem conta, por milhares de bocas verídicas e gratas!

E o nosso pobre mundo comum é todo assim, feito de mundinhos concêntricos, que se articulam sem se confundir E nós, ai de nós! pretendemos viver "cosmicamente!"

Fonte:
Domínio Público

Aluísio Azevedo (O Esqueleto) Parte XIV, final – O Esqueleto

Assim muito aclamado pelas massas populares que lhe iam agradecer a carta de liberdade, d. Pedro desanuviou-se das tristezas que por alguns momentos o ensombraram com o caso de Branca.

De toda essa história tenebrosa que o fizera cruzar armas contra o Satanás não percebia grande cousa. Ficava-lhe apenas na memória o vago delineamento incerto de uma criança que ele supusera amante do escultor e que fora sua por uma noite sombria e treda como nas aventuras daquele tempo. E ficava-lhe principalmente nos quartos baixos do palácio o magro fidalgo das Espanhas que se aproveitava da ferida para prolongar o seu apetite e as suas bravatas.

D. Bias fortunava-se de fato um homem feliz. Servia-se do ferimento como indelével e irrecusável atestado de bravura inscrito no pergaminho da sua pele. E servia-se mais ainda do cozinheiro do Paço a quem estava constantemente pedindo bifes e bifes e outras esquisitas guloseimas.

Gesticulava, gritava e berrava.

Inimigo da solidão, rodeava-se dos criados a quem vivia contando as aventuras complicadas em que se metera. E tanta fertilidade tinha a sua irrequieta imaginação de espanhol, que conseguia sempre forjar mais um caso para o serão de cada noite, e mais um episódio para a conversa de cada dia.

E tantas fez que em torno dele formou-se uma reputação de espírito e bom humor.

D. Pedro quis vê-lo.

Entrou-lhe no aposento muito sério, com a compostura solene e grave de um imperador que também gosta da troça, mas deseja conservar a sua força moral.

Falou no ferimento, mostrando-se muito sentido com o acontecimento, lamentando-se do ocorrido, mas sem uma alusão ao Satanás.

- Ora senhor, ora senhor, isto não foi, não foi nada, explicou d. Bias. - O ferro entrou-me apenas dez polegadas no braço. Uma ninharia!

- Sim. Não foi nada, mas podia ser fatal.

D. Bias respondeu com um forte oscilar desprezível de ombros. Que não se importava. Que já estava acostumado àquelas cousas.

- Em todo caso posso garantir-te que não tinha vontade nenhuma de te matar.

- Ora senhor! Por quem é não falemos mais nisso. Eu até já vou me esquecendo de que fui ferido. A força do hábito, sabe, a força do hábito!

- Com que então tens sido ferido muitas vezes?

- Nem contas há que as possa enumerar.

E narrou:

- De uma, lá nas Espanhas, voltava eu muito sossegado de três duelozinhos pequeninos em que tinha morto os quatro adversários quando me saiu à frente um piquete de cavalaria comandado pelo irmão dos cinco rapazes que eu acabava de remeter para os infernos.

- E brigaste contra todo o piquete?

- Qual briguei! qual nada! Matei-os a todos sem exceção de um cavalo.

- Mas então não foste ferido!

- Fui, sim, senhor! Quando não havia mais adversários contra quem pelejar, caiu uma tempestade e veio um raio com tanta força que...

- Foste queimado?

- Qual queimado! Senhor! Feri-me eu mesmo com a minha espada indo a desviar-me do raio.

- E onde?

- Já não me recordo mais. Mas, caramba! que aquilo, sim, foi um golpe bem dado e de mão de mestre. Voou um braço para aqui, uma perna p'ra ali e a cabeça não sei para onde.

- Diabo! Pois tu te fizeste assim em pedaços?

- Qual eu! qual nada! Senhor. Foi o inimigo.

- Mas que inimigo?

- Ah! Eu não sei.

D. Pedro não pôde conter uma gargalhada e saiu.

Saiu, alegre da vida, cantarolando umas cantigas brejeiras. E teve uma idéia. A idéia de fazer uma caçoada com d. Bias, de pregar-lhe um bom susto. Deviam ser interessantes a cara e as falas do aventuroso cavaleiro das Espanhas, quando lhe aparecesse diante de si um fantasma ameaçador e tétrico que contra ele investisse numa encenação apavorante de tragédia. E, nas boas disposições de espírito em que estava, d. Pedro tratou logo de preparar a pilhéria.

Vieram-lhe a princípio dúvidas para escolha entre diversos projetos que se lhe apresentaram à imaginação. Mas, à noite, quando se despedia da cigana, lá no circo do Valongo, resolveu-se, enfim, e pediu ao Vampa que lhe vendesse um esqueleto articulado, que havia a um canto da parede e de que o saltimbanco se servia nas suas mágicas e pantomimas.

Trouxe-o, ruas afora por aquela noite escura, debaixo da capa, como um mistério, bem junto a si, como uma profanação.

E, quando entrou no Paço, antes de cear, foi logo ao quarto de d. Bias.

Segurando o esqueleto pela coluna vertebral, mal envolveu-o na capa, o bastante para esconder-se a si e para permitir que o descendente do soldado de Cid Campeador pudesse ver toda a horrível conformação espetral do fantasma.

D. Bias dormia.

Uns pratos vazios, muito lambidos e uma garrafa escorropichada, atestavam que o valente cavaleiro andante das aventuras contadas acabara de cear; lautamente, mais lautamente do que era permitido supor a quem o visse magro e esgalgado, um esqueleto ele mesmo. Acordou e gritou.

Sobre o peito descansa-lhe a ossadura descarnada da mão do esqueleto. E a olhá-lo, com o grande olhar tenebroso e mau das caveiras, estava um vulto bem junto a si, debruçado sobre o seu leito. Gritou.

Gritou e retorceu-se todo na cama, nu e esquelético, envolto na mortalha alvadia do lençol, fantasma contra fantasma.

D. Pedro ria-se.

E largou o esqueleto que então caiu todo inteiro sobre d. Bias.

Foi, nesse momento, um espetáculo diabolicamente nunca visto e nunca sonhado até então.

Por entre os lençóis e a capa, no belo contraste do preto e branco, debatiam-se os dous. D. Bias a contorcer-se todo, a querer desvencilhar-se desse novo companheiro de dormida, animava-o, fazia-o viver, emprestava-lhe movimento.

- Por Dios! choramingava o espanhol, por Dios! Não me faça nada! Deixe-me em paz, tenha pena de mim!

E fazia-se súplice, e queria erguer-se para ficar de joelhos, para pedir piedade, para comprometer-se a tudo quanto o fantasma quisesse, para tornar-se submisso e escravo, enfim, com tanto que o deixasse viver.

E com os movimentos que tentava, o esqueleto movia-se também, recolhia o braço num amplexo que horripilava o outro, intrometia a perna entre as do fidalgo das Espanhas, ligava-se-lhe enfim numa bela conjunção amorosa.

D. Bias soluçava. A voz desaparecia-lhe até.

Foi preciso que o príncipe, já farto do espetáculo, interviesse e separasse os dous.

- Caramba! fez d. Bias. Eu tinha medo porque era um esqueleto e não havia contra quem lutar!

E mais calmo depois, achou uma boa compensação no convite para a ceia de d. Pedro que este tinha mandado trazer para o quarto.

Não comia entretanto com toda a sua habitual voracidade. O esqueleto, que ficara sobre o leito, incomodava-o.

Levantou-se, e escondeu-o dentro de um armário.

- Se o esquecem agora, e se o descobrem daqui a cem anos... lembrou o príncipe.

D. Bias mastigou barulhentamente um grande naco de carne; e depois, olhando muito sério para o armário, disse:

- Caramba! que boa peça vou eu pregar às gerações futuras!

FIM