quarta-feira, 6 de março de 2013

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia XIV)

Primeiro Fausto
Quarto Tema
O Temor da Morte


I

Que a morte me desmembre em outro, e eu fique
Ou o nada do nada ou o de tudo
E acabo enfim esta consciência oca
Que de existir me resta.
Sinto um tropel esfuziante e quente
De propósitos-sombras, e de impulsos
Transbordando do cálix da consciência
Para cima da vida...

II

Só um sentimento
De desejar eterna quietação,
Ambição vaga de fechar os olhos
E vaga esp'rança de não mais abri-los.
Ânsia cansada de não mais viver;
Meu cérebro esvaído não lamenta
Nem sabe lamentar. Tumultuárias
Idéias mistas do meu ser antigo
E deste, surgem e desaparecem
Sem deixar rastos à compreensão.
Já deslumbradas, vãs, incoerentes,
Amargas, [vagas] desorganizações
Que nem deixam sofrer. Vem pois, oh Morte!
Sinto-te os passos! Sinto-te! O teu seio
Deve ser suave e ouvir teu coração
Como uma melodia estranha e vaga
Que enleva até ao sono e passa o sono.
Nada. Já nada [passa] — nada, nada...
Vai-te, Vida!

III

Ah, o horror de morrer!
E encontrar o mistério frente a frente
Sem poder evitá-lo, sem poder...

IV

Gela-me a idéia de que a morte seja
O encontrar o mistério face a face
E conhecê-lo. Por mais mal que seja
A vida e o mistério de a viver
E a ignorância em que a alma vive a vida,
Pior me [relampeja] pela alma
A idéia de que enfim tudo será
Sabido e claro...
Pudesse eu ter por certo que na morte
Me acabaria, me faria nada,
E eu avançara para a morte, pávido
Mas firme do seu nada.

V

Gela-me apenas, muda,
A presença da morte que triplica
O sentimento do mistério em mim.

VI

Mistério, vai-te, esmagas-me! Ah, partir
Esta cabeça contra aquele muro
E tombar morto. Mas a morte, a morte,
Ali, como a temo! Para onde fugir?
Na vida nem na morte tenho abrigo.
Maldita seja... Quem? Quem faz o mal,
Este que sinto! Ah, mas já [nem] posso
Amaldiçoar...

VII

Não é o horror à morte, porque raie
Nela o mistério em mim, nem venha nela
Ou o acabar-me ou o continuar-me
Não. Não é minha alma que os sineiros
Rebatem medos pelo que hei de ser.
É a minha carne que em minha alma grita
Horror à morte, carnalmente o grita,
Grita-o sem consciência e sem propósito,
Grita-o sem outro medo do que o medo.
Um pavor corporado, um pavor frio
Como uma névoa, um pavor de todo eu
Subindo à tona intelectual de mim.

VIII

O animal teme a morte porque vive,
O homem também, e porque a desconhece;
Só a mim é dado com horror
Temê-la, por lhe conhecer a inteira
Extensão e mistério, por medir
O [infinito] seu de escuridão.
Dor que transcende o verbo e o sentimento
Criando um sentimento para si
Do qual o Horror é apenas a aparência
Pensável e sensível do exterior.
Uns têm — e é sofrer — o duvidar:
Há Deus ou não há Deus? Há alma ou não?
Eu não duvido, ignoro. E se o horror
De duvidar é grande, o de ignorar
Não tem nome nem entre os pensamentos.

IX

Medo da morte, não; horror da morte.
Horror por ela ser, pelo que é
E pelo inevitável.

X

Ao condenado
Inda no seu horror lhe luz ao menos
Uma sombra desesperada d'esperança;
Inda o horror que espera não é aquele
Horror da morte — não tem o intenso
Arrastar da inevitabilidade
Que a morte tem. A mim nem esperança
Nem suspeita de sombra de esperança
Ocorre, mas o horror completo e negro.
Isso que lhe aparece qual resgate
É o que eu temo!

XI

Ah, não me ofendas com palavras vãs
O horror do pensamento. Ninguém
Como eu teve este horror. Nem poderá
Nas veias e na alma do seu sangue
Tê-lo tão íntimo [...]
Tão feito um comigo.
As figuras do sonho não conhecem
O sonho [...] de que são figuras,
Porque o mundo não só é [já] sonhado
Mas é dentro dum sonho um [sonho] real,
Em que sonhados são os sonhadores
Também.
Não poder apagar esta tortura
Não poder despegar-me deste Ser;
Não poder esquecer-me desta vida ...

XII

Só uma cousa me apavora
A esta hora, a toda a hora:
É que verei a morte frente a frente
Inevitavelmente.
Ah, este horror como poder dizer!
Não lhe poder fugir. Não podê-lo esquecer.
E nessa hora em que eu e a Morte
Nos encontrarmos
O que verei? O que saberei?
Horror! A vida é má e é má a morte
Mas quisera viver eternamente
Sem saber nunca [...] isso que a morte traz [...]
Que o tempo cesse!
Que pare e fique sempre este momento!
Que eu nunca me aproxime desse
Horror que mata o pensamento!
Envolvei-me, fechai-me dentro em vós
E que eu não morra nunca.

Fonte:
Fernando Pessoa . Primeiro Fausto. http://www.cfh.ufsc.br/~magno/fausto.htm

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) 17. Louva-a-Deus

Tivemos hoje, à ida, um inesperado companheiro de viagem. Não sei quando nem como se aboletou no carro; só foi notado ao levantar o vôo do chapéu de um cavalheiro velho para ir pousar no seio de uma senhora gorda, copiando a abelha da pequena ode de Anacreonte. A senhora gorda enxotou-o, num gesto de susto muito gracioso, como convinha ao sexo. O bicharoco, executando um rápido vôo plané, foi aterrar no ombro de um rapaz elegante. Este se apresentava para lhe desfechar um tiro com o dedo médio armado em aríete, quando ele se passou para as costas de um homem distraído, onde se deixou e o deixaram ficar.

Uma vaga de hilaridade desencadeou-se no bonde ao toque das asas daquele forasteiro. Todos lhe acompanhavam as evoluções com sorrisos. E alguns manifestavam na cara uma curiosidade lorpa, como se estivessem diante de um invento completamente novo. Porque essa hilaridade? Problema complicado e escuro. Lembro-me de Bergson, mas não vejo como aplicar ao caso a sua teoria. Até nova ordem, penso que o riso proveio apenas de que o bonde não é veículo para passageiros dessa classe; de que o lugar habitual onde imaginamos o louva-a-deus não é o bonde, não as ruas ladeadas de prédios, calçadas de pedras, atravancadas de carruagem e caminhões, riscadas de fios de metal e pontas de cimento, -e de que os passageiros sentiam, ou melhor, não sentiam, mas tinham necessidade de deixar ver uns aos outros a impressão de desconcerto ou desconveniência que o transviado lhes produzia.

De fato, a mecânica do riso assenta no irreprimível instinto de comunicação próprio do homem. Como o pranto, o riso é uma forma de linguagem, em grande parte inconsciente, destinada a comunicar o incomunicável, a exprimir o inexprimível, o que não se pode, não se sabe, não se quer ou não se pensa exprimir por palavras ou por gestos que lhes eqüivalham. (Se é certo que rimos e choramos a sós, também é certo que falamos conosco mesmos -e todo pensamento é diálogo interior -sem que por isso possa negar-se o caráter eminentemente, social da linguagem articulada, cujas origens supõem fatalmente troca, relação entre indivíduos, fixação coletiva de sinais sonoros). A mímica do pranto e do riso nasceu provavelmente da necessidade de se solidarizarem e coligarem os ânimos, na horda primeva diante do perigo, da contrariedade ou do benefício comum que iam encontrando pela frente. Seria um elemento de coesão sublimável. Uma circulação rápida de psiquismo coletivo. Com o tempo, isso se teria refletido e entranhado no indivíduo, até assumir uma sorte de vida inferior, independente. Mas a inconsciência do seu mecanismo interindividual aí está para lhe atestar as origens gregárias. Somos ovelhas que se vão apenas destacando do rebanho por ligeiras diferenças de pêlo, de dimensões ou de andadura; mas a alma da ovelha pertence mais ao rebanho do que a ela própria.

E se tudo isto estiver errado? Não importa. Para um simples passageiro de bonde, as idéias são como os bilhetes de loterias: é preciso jogar em muitas, para ter probabilidade de acertar em alguma. E ainda o melhor é não acertar. Criar fama de rico é uma das mais graves maçadas que possam cair sobre quem não necessite de tanto numerário. Responsabilidade social muito pesada. Admiradores. Compromissos. Facadas, amabilidades, invejas, intrigas, amofinações... Que bom travesseiro, a pobreza!

A mim, o que me fez sorrir diante do louva-a-deus foi o riso dos outros, tão saudavelmente natural e estúpido. E foi também o próprio louva-a-deus, natural e bobo como esse riso.

O louva-a-deus é talvez um simples broto que de repente se animou, mexeu as suas folhazinhas tenras mal transformadas em asas, saltou, olhou o mundo em torno com os dois olhitos esbugalhados que se lhe acabavam de pôr -e esqueceu-se do papel que vinha representar. Todo trangalhadanças e todo indeciso, na sua irrepreensível casaquinha verde, é como um mascarado tanto que não tem coragem de ir ao baile nem sabe se há de voltar para casa, e fica a estatelar-se macambúzio pelas esquinas.

Desconfio agora que o louva-a-deus talvez fosse um broche que um artista primitivo, das cavernas ou das palafitas, modelasse,-no barro verdengo de algum açude, dando-lhe, por inabilidade e por fantasia, uma feição de monstro quimérico e grotesco. Um dia, a senhora Natureza, num momento de nervos, confundindo-o com os seus modelos infelizes e inacabáveis ter-lhe-ia comunicado o sopro da vida, lançando-o fora; "Enfim! sume-te, diabo!"

Outra hipótese. Esse e, com esse, muitos bicharocos parecem ter sido produzidos pela artífice quando ela ainda não podia desprender a imaginação dos liames do concreto. A minhoca teria sido tirada de uma raiz de tubérculo. A serpente, de uma haste de foraminífera. O besouro foi talvez copiado de um caroço de mamona. O elefante originar-se-ia de uma pedra viajada, do período glaciário, quer por acaso se tivesse vindo suster em cima de outras pedras menores e espaçadas. O lagarto, de um estilhaço de pau nodoso rachado pelo raio. Os peixes não teriam vindo da sugestão de um cardume de folhas polpudas caídas de grossas plantas aquáticas? E o morcego? O morcego foi de certo imitado de um pequeno guarda-chuva esfrangalhado pelo vento. (Contudo, não estou seguro da existência pré-histórica do guarda-chuva).

Só depois, muito depois, a Artista se libertou das formas anteriores para as inventar novas e mais perfeitas - o galo, esse objeto de luxo, o cisne, esse sonho de paz e perfeição, o gato, essa pequena mistura de inocência e de malignidade, a mulher... Ai, a mulher! complexa obra de fantasia terna, cruel e humorística: cisne, galinhola e gata. Rufina, meu amor, eu adivinho que tu és isso tudo!

Tive também um acesso de ternura pelo coitado do meu louva-a-deus, perdido entre paralelepípedos e almas, na cidade poeirenta e dura, longe do fluido verdor fresco das moitas e dos aguaçais. E lembrei-me do meu tempo de menino, lá muito longe (muito longe, muito longe, num outro mundo que já nem sei se existe!), onde o louva-a-deus se conhecia por cavalinho de Nosso Senhor e onde me divertia com outros pequenos a caçá-lo, para o ver fazer a sua oração de mãos postas e para lhe amarrar um cordelinho a uma das patas traseiras.

Vi os agros lavrados, grandes remendos postos ao manto das lombas, com estrias roxas de terra e bordados verdes de planta nova. Vi a vegetação mole e tufada dos grotões por onde a água corria e ofegava, como rapariga surpreendida nua. Vi o empastamento violáceo-azul fumaça dos morros distantes. Vi o risco sangrento do caminho velho através da solidão virgiliana dos pastios. Senti o cheiro salubre das macegas. Ouvi ranger a velha porteira pesada e pensa, ao pé do valo esboroado, entupido de gravatás, à sombra do pau-d'alho fechado e baixo como uma cabana triste. Ouvi ecos errantes de vozes grossas a chamarem pelo gado, de cantigas de lavadeiras no córrego, do jorro da bica a referver no esqueleto negro da roda de água. E havia no meio de tudo isso, ainda mais distante, mais real e mais irreal, mais vivo e mais sonhado, um toque fremente e forte de buzina de caça, lá pelas barrocas e pelos cerrados desertos, um toque ululante; ansioso, resoluto, que estraçalhava o silêncio com ímpetos heróicos e melancólicos, de desafio e de saudade.

Transpassou-me a alma hereditária de lavrador desenraizado um sentimento agudo de solidão e de incomunicabilidade, e fiquei a olhar para o louva-a-deus na ânsia com que alguém, perdido em terra estrangeira, se poria a amar de longe um compatriota com quem houvesse topado por acaso. (Assim as nossas ternuras vêm sempre acabar em nós mesmos. Aí, senhor duque de la Rochefoucauld!)

Viajava a meu lado um moço atochado de conhecimentos exatos. Disse-me, com certa indignação, que o louva-a-deus, mante réligieuse, é um dos seres mais sinistros da criação viva: a fêmea tem o indelicado costume de devorar o incauto esposo logo no festim de bodas (ao contrário portanto de outras que comem os seus aos bocadinhos, a vida inteira).

Eu já sabia disso pelos Souvenirs do Fabre; mas o moço tinha prazer em me instruir, e eu não lhe quis aguar essa satisfação não de todo inocente, mas tolerável. Não lha tolerei por generosidade, mas porque não queria jogar com ele a cena dos dois pedantes que se travam de sabenças.

Tenho pavor a essa espécie de gente, (aliás estimável, posto que daninha) a essa espécie de gente que vive a verter sabidelas decoradas por todas as juntas, como pipotes de melado em que não se pode pôr o dedo sem sentir o pegajoso das escorrências. São sucursais vivas da tipografia. São jornais parlantes, cheios de reportagens, de ciência feita, mas sem artigos de fundo e sem rodapés literários. A ciência, para eles, é o refugium, desde que se reconheceram anêmicos de bom senso, de imaginação, de sensibilidade e privados dessa divina capacidade de simpatia cósmica, que faz as almas verdad.... Mas não vale a pena repetir Nietzsche.

Fonte:
Domínio Público

Aluísio Azevedo (O Esqueleto) Parte VI – A Peixada

O Satanás acompanhou o príncipe a Santos na madrugada do dia seguinte.

Naquela noite, em que a tragédia da rua do Conde se passara, o Satanás saíra de casa da filha, como um louco. Vagara sem destino até o amanhecer, apertando a cabeça nas mãos, sem compreender ainda o que se havia passado.

E no dia seguinte, a bordo, d. Pedro, que o forçara a partir consigo, notou-lhe a fisionomia alterada: o Satanás queixou-se de estar doente e fechou-se a sete chaves no mais absoluto silêncio a respeito dos sucessos da véspera. A notícia dos dous assassinatos espalhara-se rapidamente pela cidade: tinham sido encontrados os cadáveres de Paulo de Andrade e de Emerenciana, e a polícia pôs-se logo em campo para esclarecer o negócio. De Branca, porém, não havia a menor notícia: desaparecera.

Quando o príncipe partiu para Santos, os horizontes políticos do Brasil toldavam-se, anunciando a tempestade iminente. D. Pedro via-se reduzido a simples governador do Brasil e recebera já a ordem de retirar-se para a Europa. O povo de São Paulo mandara-lhe a célebre representação de oito mil pessoas, pedindo-lhe que ficasse.

No ouvido do príncipe regente soavam ainda as últimas palavras de seu pai, ao embarcar para Lisboa: Pedro, põe a coroa sobre a tua cabeça...

O seu nobre desejo de ser o constituidor de um novo povo era secundado ainda pelos conselhos dos seus partidários, que lhe inflamavam cada vez mais o entusiasmo e a ambição.

A Sociedade Tenebrosa do Apostolado, que então funcionava no quartel da Guarda Velha e da qual era o príncipe o Archonte Rei, incitara-o a precipitar os acontecimentos. Demais, as últimas notícias de Lisboa eram as mais inquietadoras possíveis: os deputados brasileiros, insultados nas cortes, tinham reagido escandalosamente com uma nobre energia: perseguidos, tinham sido forçados a embarcar para Falmouth e daí~ara o Brasil.

De modo que o príncipe não podia mais hesitar.
Mas, em Santos, não foi a política que lhe preocupou o exaltado coração.

Lá mesmo, o Satanás teve de reassumir as funções de medianeiro fiel. Porque, cheio, durante o dia, de preocupações políticas, o príncipe passava as noites a correr a velha cidade, à cata de aventuras.

As ruas sujas de Santos, eternamente cobertas de lama, quer a chuva caísse, quer o sol abrasasse, impregnadas de um cheiro repugnante de maresia, não tiveram mais segredos para os dous. E Satanás descobriu uma rapariga deliciosa, que casara com um velho fidalgo português e que não hesitou em abrir o seio à honra dos beijos do jovem príncipe.

A primeira entrevista realizou-se na Barra, em casa de uma velha algarvia, conhecida na cidade pela perícia inexcedível com que preparava as peixadas suculentas para as funçanatas de então. E fui por uma bela noite de luar que O príncipe, acompanhado do Satanás, partiu para a Barra, onde o esperavam uma farta peixada de escabeche e um farto colo de mulher morena.

A casa abria as janelas para o mar, onde o luar entornava a sua prata líquida, naquela noite serena. Eram a perder de vista, desde a praia curva, de areias claríssimas, até o limite apartado do horizonte, águas e águas que tremiam ao luar, encrespadas e franjadas de espuma.

À porta d. Pedro parou. A sua alma ardente de ambicioso agradava aquele infinito sereno, aquela vastidão de águas calmas, ilimitadas como os seus sonhos de poder e de glória.

O Satanás, ao lado, olhava também o mar: e aquilo trazia-lhe à lembrança o infinito do seu desespero e a soledade da sua vida, sem filha, sem amigos, cão rafeiro de um fidalgo...

Mas d. Pedro foi o primeiro a arrancar-se das suas meditações:

- Entremos. Nunca se deve fazer esperar uma mulher.

- Nem uma peixada, acrescentou o escultor.

Entraram. Uma sala baixa, toda furada de janelas, por onde o luar entrava, cintilando. Ao centro, a mesa estava posta, aceiada, com a grande terrina de louça azul, descoberta, deixando ver o molho louro do escabeche, cujo aroma fazia a água crescer na boca.

Maria, ao ver entrar o príncipe, levantou-se do banco em que estava sentada, a uma das janelas, contemplando o luar. Era uma mulher opulenta, de amplas formas sensualmente arredondadas, olhos profundos e negros, circulados de olheiras roxas. No lábio superior, carnudo e vermelho, sombreava-se-lhe um buço delicioso.

O príncipe beijou-lhe a mão, fidalgamente. E, enlaçando-lhe a cintura, foi com ela para a janela. Daí a pouco, a sala encheu-se de um sussurro de vozes cochichadas nomezinhos ternos, risadinhas brejeiras, beijinhos marotos. O Satanás meditava a um canto, taciturno.

A velha Marta do Peixe entrou muito gorda, muito suada com dous seios formidáveis, trêmulos como dous grandes bolos de gelatina, trazendo os canjirões do Ribatejo.

Que viessem para a mesa, que viessem para a mesa! estava a cousa de empanturrar o bandulho e soluçar por mais! haviam de lamber os beiços.. Não! que para coser as anchovas tenrinhas não havia com'a ela!

Abancaram todos. E a Marta, de mangas arregaçadas, deixando ver dous braços que pareciam duas pernas, pôs-se a encher pratarrazes de peixe.

- Olhem que foi pescado ali assim p'lo meu home! E é quê ele foi feliz, o raio do dianho, que as pescarias têm andado nada boas, p'la Senhora da Boa Morte!

O príncipe interessou-se pelo homem da Marta.

- Então? rendia o negócio?

- Qual nada, senhor! É uma azáfama do tinhoso a sol e chuva, e nada de fazer p'r'ó pão! E inda é bom quando não se morre por lá, por essas aiaguas de Cristo! Inda tresantonte lá se ficou o Chico da Burra, mais a canoa e a rede... Agora é verdade que ninguém mandou o desinfeliz ir pescar por riba da catedral!

- Que catedral, mulher? interrogou o Satanás, curioso.

A Marta contou então a lenda, muito conhecida, naqueles tempos e ainda hoje, em Santos. Dizia-se que uma parte da cidade, construída pelos primeiros portugueses, fora submergida. Era nessa parte que fora edificada a primeira igreja de Santos: e tanto que, por noites assim, de luar, quem chegava à beira da praia, ouvia no seio das águas um barulho de sinos, dobrando a finados. E ai! do pescador atrevido que ousasse pescar naquele ponto!... vinham os padres à tona d'água e carregavam com ele para o fundo do mar.

- Crendices tolas! - disse d. Pedro.

Mas, por uma sucessão de idéias, aquela história supersticiosa da velha trouxera-lhe à memória as profecias da Zabanila. Sacudiu os ombros. E, aproximando a cadeira da cadeira de Maria, pôs-se a conversar com ela, em voz baixa. Depois levantaram-se, voltaram à janela.

A Marta do Peixe ia retirar-se discretamente da sala, frechando para a janela um olhar meloso e brejeiro de rufiona entendida. O príncipe falou:

- Olá! mulher! podes levar a luz!

O Satanás saiu, e foi à praia apreciar a noite. E a sala às escuras encheu-se de beijos.

A mesa ficara posta, com a terrina destampada. E talvez, naquela escuridão, a alma faminta de d. Bias andasse em comunicações espíritas com a alma cheirosa do peixe...

Havia meia hora que estavam sós os amantes, quando o Satanás falou da porta:

- Senhor!

- Que é? saiu das trevas da sala a voz do príncipe, enfadado.

- Cousa séria.

- Ora, deixa lá as cousas sérias para amanhã, homem!

- E o capitão das guardas que aí está.

- Que espere.

- Não pode esperar. É preciso que fale já com ele.

- Vai-te para o diabo e deixa-me em paz!

- Ouça, senhor...

- Arre, vai-te! já te disse...

- Perdão! não me vou. Acabam de chegar despachos assustadores de Lisboa.

O príncipe resolveu-se a desenlaçar-se dos braços da amante. Saiu. O capitão esperava-o. Depois de uma curta conferência, o príncipe veio despedir-se de Maria. Outra vez a sala se encheu de beijos. E o príncipe, elevando a voz, chamou pela Marta.

Ela veio logo, muito azafamada, arrastando as banhas pesadas. E ajoelhou-se, comovida, quando o seu hóspede lhe meteu na mão duas moedas de ouro.

Nessa mesma noite, o príncipe saiu de Santos, acompanhado por um regimento de cavalaria. E a madrugada despontava, banhando de ouro e fogo os píncaros de Cubatão, quando a comitiva começou a subir a serra, a caminho de S. Paulo.
–––––––-
continua

terça-feira, 5 de março de 2013

Francisco José Pessoa (Escrevo...)

Escrevo sim, para completar o pouco de tempo que me resta, tentando enriquecer-me espiritualmente, pois a fortuna material faria  pesar ainda mais meu caixão. E vai ali um pobre rico, que soube brincar com a vida, tornando-a um carrinho de lata de doce de goiabada, Real, por sinal, a rolar calçadas íngremes num desafio constante ao subir e descer coxias.

Alimento-me com o bater dos teclados, orquestra sinfônica das minhas várias noites mal ou bem dormidas. Sorvo o néctar dos sábios, mesmo sabendo que sou incapaz de assimilá-lo,  mas tento outra vez por ser teimoso. E no ir e vir das minhas falanges , apertando cada tecla como num amor de batráquio, satisfaço-me e chego ao orgasmo falso dos falsos escritores. Assim me vejo no meu crítico espelho.

Quanto de devo ó ciência, pois poupaste meu tempo em corrigir meus erros ortográficos, bem como de desgastar as páginas já amareladas e carcomidas do meu Aurélio. Mas escrevo de modo um tanto compulsivo, como no afã do asmático que traga o ar que lhe rodeia, fazendo da eternidade aquele momento. Que bom seria se eu fosse poeta, traduzindo nas minhas linhas o cotidiano, o que a vida me dá e o que tiro dela... seria uma comédia própria não dos teatros da fifth avenue, mas dos circos que percorrem o sertão do nordeste, com suas lonas remendadas, castigadas por um sol sempre presente e pela chuva que acanhadamente, às vezes aparece.

Quão bom é brincar de escrever pois, as idéias e os cenários que passam uns após outros nos transportam para o vale dos sonhos aonde os homens se amam e a paz é a mediadora dos entreveros que não existem. Onde a graúna no seu canto mavioso brinca com os acordes, liberta em pleno vôo. Onde o crocodilo abre seu bocão que aterroriza, mas verte lágrimas com um olhar piedoso. Onde o beija-flor no seu incessante bater de asas, desfiando a lei da gravidade, suga o néctar das rosas, papoulas e margaridas que harmoniosamente compõem e fazem o equilíbrio crômico do meu jardim, por que não meu éden?

Escrevo, escrevo sim, para eternizar para os meus pares o meu tísico pensamento, a minha às vezes tão comentada e criticada maneira de ser, que com certeza e, assino embaixo, nunca teve um tempero de maldade ou falsidade, pois, escrevendo, rumino um pouco do meu eu que, quisera Deus, fosse um alívio para os que sofrem mais que eu.

Vida, minha vida, como fresco contigo minha quenga virgem.

Fonte:
O Autor

Caldeirão Poético 3

Felix Aires
(Buriti Bravo/MA, 1904– Teresina/PI, 1979)


" IMPREVISTO "


O viajante, ao passar., joga e esquece, na mata,
a ponta do cigarro, inconsciente do mal;
e nas folhas do chão a fagulha desata
o fogo que não veio ali proposital.

Irrompe a labareda, alarmante arrebata
ramos, troncos, rechãs a investida infernal!
Rubra serpente enorme em fúria desbarata
a fragrância, o viçor do reino vegetal!

Queima-se o campo, a roda, a um sopro, de improviso!
E longe, o causador de todo o prejuízo
vai muito alheio ao dano, olhos não volve atrás.

- Também há quem nos jogue o olhar flamante e quente
que o coração nos leva a uma paixão ardente
e a dona desse olhar nem sabe o mal que faz!

Félix Pacheco (José F. Alves P.),
(Teresina/PI, 2 de agosto de 1879 –  Rio de Janeiro/GB, 6 de dezembro de 1935)


" ESPELHOS "

Em cada flor, em cada estrela, em cada
réstia de sol, por toda parte, em suma
de dia, à noite, no ar, no azul, na bruma
sinto dispersa a formosura amada.

Nas campinas, ao luar; nas ondas; numa
montanha que, na curva ilimitada
do horizonte impassível e calada,
o seu perfil fantástico ergue e apruma;

por toda a natureza anda sua alma,
na tempestade assim como na calma,
em tudo a vejo - múltipla miragem!

Vivo a fitá-la, extático, de joelhos,
a contemplar de joelhos sua imagem
reproduzida por milhões de espelhos!

Ferreira Gullar
(José Ribamar Ferreira)

(São Luiz/MA, 10 de setembro de 1930)

" SETE POEMAS PORTUGUESES "

Prometi-me possuí-la muito embora
ela me redimisse ou me cegasse.
Busquei-a nas catástrofes, na aurora,
e na fonte e no muro onde sua face

entre a alucinação e a paz sonora
da água e do musgo, solitário nasce.
Mas sempre que me acerco vai-se embora
como se me temesse ou me odiasse.

Assim persigo-a lúcido e demente.
Se por detrás da tarde transparente
seus pés vislumbro, logo nos desvãos

das nuvens fogem, luminosos e ágeis.
Vocabulário e corpo - deuses frágeis -
eu colho a ausência que me queima as mãos.

Filinto de Almeida
(Francisco F. de A.)

(Porto, Portugal. Naturalizado brasileiro, 4 de dezembro de 1857 – Rio de Janeiro/GB, 28 de janeiro de 1945)

" CHAMA DA VIDA "

Dá-me a tua mão, Amiga, e vamos indo
alegremente pela estrada fora.
É já tarde, e o crepúsculo é tão lindo
como foi o dilúculo da aurora.

Vamos subindo devagar, agora;
dá-me o teu braço, assim, vamos subindo...
Repara: é o mesmo Sol de amor de outrora
que ainda no poente ao longe está fulgindo . . .

Virá depois o luar e, de seguida
clarões de estrelas com que o céu se inflama.. .
E os clarões, e o luar, e o Sol, querida,

são várias formas de uma mesma chama
que está dentro de nós, - chama da Vida
que rebenta no peito de quem ama.

Flamínio Caldas
(Campos, RJ, 13 de abril de 1886 – 1907)

" ELAS... "

                                                                             À Luiz Peixoto

Elas aí vêm! Cessai o vosso canto,
aves do azul! . . . Rio, passai mansinho...
Vento, parai! Não lhes causeis espanto
que elas sozinhas vêm pelo caminho...

Como num sonho - singular encanto !-
tudo me ouve por fim . . . Devagarinho
o silêncio se faz em torno, enquanto
passam as duas a falar baixinho...

Escondidos, ouvimos a conversa . . .
Da voz delas a dúlcida harmonia
pelo ar se evola, rápida, dispersa . . .

Falam de amor, entreolham-se, e, passando,
mal calculam que sob a ramaria,
por elas, corações ficam pulsando...

Fontoura Xavier 
 (Antonio Vicente da F. X.)
(Cachoeira do Sul/RS, 7 de junho de1856 – Lisboa/Portugal, 1 de abril de 1922)

" ESTUDO ANATÔMICO "


Entrei no anfiteatro da ciência
atraído por mera fantasia,
e aprouve-me estudar Anatomia
por dar um novo pasto à inteligência.

Discorria com toda a sapiência
o lente, numa mesa, onde jazia
uma imóvel matéria, úmida e fria,
a que outrora animara humana essência.

Fora uma meretriz; o rosto belo
pude, tímido, olhá-lo com respeito
por entre as ondas negras de cabelo.

A convite do lente, contrafeito,
rasguei-a com a ponta do escalpelo
e não vi coração dentro do peito!

Francisco Mangabeira
(F. Cavalcanti M.)
(Salvador/BA, 8 de fevereiro de 1879 – a bordo do vapor S. Salvador, na rota situada entre Belém e S. Luis, 27 de janeiro de 1904 )

" SUPLÍCIO ETERNO "

Não devo amá-la, e amo-a com loucura.
Quero esquecê-la, e trago-a na lembrança...
Ai, quem me livra deste mal sem cura,
a que o destino trágico me lança?!

Uma nuvem de tédio e de amargura
cobre-me a loira estrela da esperança...
Tudo cansa por fim na vida escura,
só este amor infindo é que não cansa.

Se os olhos cerro, vejo-a nos meus sonhos...
Se à noite acordo, sinto que enlouqueço,
de uma angústia nos vórtices medonhos.

E esta morte, em que vivo, jamais finda,
pois, quanto mais procuro ver se a esqueço,
sinto que a adoro muito mais ainda !

Freitas Guimarães
(José de F. G.)
(Caldas/MG, 7 de outubro de 1873 –  Santos/SP, 1944)

" À MINHA ESPOSA "

Na cabeleira farta e perfumada,
farta ainda hoje e perfumada ainda,
descobriste depois de já penteada,
um fio branco de uma graça infinda.

Uma nuvem passou, na iluminada
esfera dos teus olhos! E eu, mais linda
acho que estás agora, assim ornada
da nobre jóia com que Deus te brinda.

Pode a neve cair em teus cabelos,
transformando os esplêndidos novelos
que têm do ébano a cor, em alva prata!

Os poderosos e risonhos laços
de amor, que me prenderam nos teus braços,
só a morte cruel é que os desata.

Fonte:
– J.G . de  Araujo Jorge . "Os Mais Belos Sonetos que o Amor Inspirou". 1a ed. 1963

Eduardo Quive (A Índica Forma de Dar um Beijo ao Mar por Intermédio de um Poema)

Para Eduardo White, esse poeta que amou sobre o Índico

Índico. Cidade mítica escondida no mar. Uma cidade onde escoram as mãos dos deuses. Este nosso mar não tem Deus. Lá do longe, dos pés molhados de uma criança, nasce o Ocidente. É tudo uma viagem perdida. Não há barcos que nos levem a tão longe! Porém há um olhar nas janelas que se abrem. Há uma distância transparente, para onde o homem puxa o barco. As cordas nos levarão até qualquer parte. Penduradas no pescoço dão-nos a beleza da morte e o sabor da coragem. Penduradas nas mãos firmes e negras, tem outro sentido. Já nos foi o cárcere, agora há muitas milhas por alcançar. O sol assa as costas, mas na costa não há vida, não há Índico. Das areias por onde a infância passa velozmente, vêm a mesma sede dos deuses de comer camarão ou de comer as gentes. Mas lá, no Índico, há chuva e há vida. Sathana ou Xikwembus. São todos nossos. O olhar infinito, agudiza a sede do Atlântico e do Pacífico, mas por onde passam os navios há caminhos subterrâneos. Os pássaros nos levarão pelos céus. Do chão a barco a vela. Velaremos até chegar ao azul preto e branco das cores do mundo. O desejo à infinitude é maior para as areias que não se acabam. Iremos. Iremos. Iremos da Ka Tembe, da Costa do Sol, para Mussulo à Iracema, passando pelo Sal e Santana à Praia do Futuro. Este Índico saudoso nos levará, de peitos fermentados, com sal na mão e manga verde na boca. Da Ilha de Moçambique olharemos para longe e não mais veremos as luzes. Veremos águas e mais águas. O Norte é mais distante de perto que de longe. E os pássaros nos levam, pelos caminhos podres dos navios, estes barcos fartos de vida na costa.
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Sathana – diabo, satanás
Xikwembus – deuses, espíritos.
Ka Tembe – nome de um distrito da capital moçambicana Maputo com uma praia do mesmo nome.
Costa do Sol – nome de uma praia da cidade de Maputo.
Mussulo – ilha angolana com uma praia do mesmo nome.
Iracema – nome de uma praia da cidade de Fortaleza, Brasil.
Praia do Futuro – Fortaleza, Brasil.
Sal – Ilha do Sal em Cabo Verde.
Santana – Ilha de Santana, São Tomé e Príncipe.

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*Eduardo Quive é escritor e jornalista. Editor da revista “Literatas – Revista de Literatura Moçambicana e Lusófona” do Movimento Literário Kuphaluxa, agremiação de que é um dos fundadores. Correspondente em Moçambique do jornal angolano de artes e cultura “Cultura”. O seu primeiro livro de poesia intitula-se “Lágrimas da Vida Sorriso da Morte” (FUNDAC, 2012).

Fonte:
O Autor

Marta Barcellos (Para Viver de Literatura)

Libreria Fogola Pisa
 Minha amiga tem um sonho. Nova ainda, ela é cheia de sonhos. No entanto, já passou da idade de revelá-los - teme parecer ingênua. Pois minha amiga me faz perguntas sobre o mestrado em literatura que estou cursando, o que pretendo com ele, se minha carreira no jornalismo ajudou... Ajudou a quê? Ah, ela acha bacana hoje eu viver de escrever. Respondo que não é bem assim, que continuo sendo jornalista, e devo muito desse "ganhar a vida" ao jornalismo econômico. Minha amiga, claro, é poeta, e acha economia uma chatice.

 O que ela quer saber, depois de ter começado e largado a faculdade errada, é como se faz para viver de literatura. No fundo, este é o maior de seus sonhos. Também tem o da pousada na praia - e quem não passou por este...

 Achei que talvez pudesse ajudá-la. Nos últimos anos venho formando uma imagem do tal sistema literário: fiz algumas matérias, conheci escritores e pessoas ligadas ao mercado, passei a frequentar (poucos) eventos literários e ando pesquisando questões para o mestrado. Às vezes encontro alguém e penso: veja só, este vive de literatura. Como sonha minha amiga. Depois descubro que não é bem assim. O sustento vem de outra fonte.

 Minha amiga, é verdade, tem algum apoio da família (em troca do quê?). Mas não é rica, do tipo herdeira. Em outros tempos, nos tempos em que eu tinha a idade dela, eu diria que deixasse de besteira e escolhesse uma profissão/trabalho para garantir sua independência financeira (e existe outra?).

 Ah, a independência. Este sim, o meu sonho da juventude. Que os interesses culturais e artísticos se tornassem hobby, e somente quando houvesse tempo e condições para tal - era o que eu pensava. Importante mesmo era sair da casa dos pais (para quê, agora?), ter um salário, pagar as contas. Sobrando, compravam-se livros e discos. Um dia, quem sabe, uma casa de campo. Nela habitaria o sonho de escrever um livro, ou uma peça teatral - na aposentadoria...

 Este Brasil onde não eram permitidos sonhos, vale ressaltar, era outro. Não tinha dado certo, jamais daria. Éramos todos sobreviventes da Ditadura e da inflação, e se estabilidade e futuro existissem, eles estariam num bom emprego no Banco do Brasil, como ainda pensa Felipão. Aliás, o técnico da seleção brasileira nem estava tão desatualizado assim em sua gafe - basta olhar em volta quanta gente ainda estuda para concurso público sem pensar em prazer ou vocação.

 Mas minha amiga, como eu ia dizendo, é sonhadora, e nasceu neste Brasil em transição (para onde?), portanto não cogita desperdiçar sua criatividade e sua força de trabalho olhando o relógio de uma repartição. Observo a realidade à minha volta, as últimas notícias e indicadores econômicos, e acredito que ela tenha motivos para pensar assim. Se algo chamado Vale Cultura foi aprovado pelo governo federal e a economia criativa floresce no Rio de Janeiro, por que não daria para viver de arte hoje? Ou isso ainda seria exceção?

 Foi assim que me flagrei pesquisando e pensando em conselhos para minha amiga, e para pessoas com o perfil e a idade dela. Observei e conversei com escritores, professores, gente que vive, se não da literatura, em torno dela. Gente, porém, que, quando indagada, prefere desaconselhar o seu caminho. Ah, um caminho difícil, dizem. Para persistentes. Para sofredores. Mas eu já ouvi esse papo no jornalismo, e dou um desconto. Há uma necessidade de valorizar o que se conquistou - no fundo, uma vaidade.

 Mesmo assim, algumas respostas foram surgindo. Com doses esparsas de cinismo e amargura, é verdade, mas caminhos foram apontados. Vamos a eles:

 1) Além de escrever, assuma como bandeira a promoção da literatura nacional, crie programas de leitura ou outras formas de incentivo capazes de atrair patrocínios e, principalmente, verbas públicas.

 2) Depois de publicar alguns livros, ministre oficinas para aspirantes a escritores que sonham viver de literatura.

 3) Migre para a literatura infanto-juvenil.

 4) Seja experimental, ganhe prêmios, aprimore sua performance em público e passe a ser remunerado para participar de eventos literários.

 5) Deixe a implicância e a preguiça de lado, invista numa carreira acadêmica na área de letras e concilie escrever literatura com a tarefa de preencher o currículo Lattes.

 6) Seja flexível em relação a gêneros. Deixar os contos e os poemas de lado para escrever para televisão não significa que você se vendeu.

 7) Deixe a implicância e a preguiça de lado, estude contabilidade e encare um concurso público. Não é de hoje que bons escritores são também funcionários com estabilidade e salário garantidos pelo estado.

 8) Tenha uma editora, voltada para o mercado ou para a autopublicação de escritores que sonham um dia viver de literatura.

 9) Além de escritor, seja crítico literário, depois de desenvolver uma boa argumentação sobre como é possível conciliar as duas funções eticamente.

 10) Tenha outra profissão, uma "pra valer". Moacyr Scliar, 80 livros publicados, na hora de preencher o formulário do hotel, declarava como profissão: médico. Era verdade.

Rio de Janeiro, 7/2/2013

Fonte:
Digestivo Cultural

Trova 252 - Antonio Juraci Siqueira (PA)

Formatação: Dáguima Veronica

Efigênia Coutinho (O Rigor Literário Sobre a Poesia de Efigênia Coutinho por Ela Mesmo)

 A poesia será sempre um meio de comunicação de sentimentos na escrita. Eu tenho um ritmo pessoal, operando desvios de ângulos, mas sem perder de vista a tradição, procurando atingir o núcleo da idéia essencial, a imagem mais direta possível, abolindo as passagens intermediárias. Certa da extraordinária riqueza da metáfora - tratei de instala-lá nos meus poemas, com toda a sua carga e força emocional! Atraída pelos sentimentos, entendi que a linguagem poderia manifestar essa tendência, sob a forma de um encontro de palavras extraídas da Alma. Ao inicio, as palavras vinham num conjunto, informes, desarticuladas e, pouco a pouco, as fui compondo, sentindo silaba por silaba, e aplicando-as dentro dos versos. Há tantos momentos misteriosos dentro da alma poeta, que vivemos uma alquimia , a bem dizer, a essência mesma da vida em vida. Procurei sempre mais a musicalidade que a sonoridade; evitei o mais possível a ordem inversa, procurei muitas vezes obter o ritmo sincopado, a quebra violenta do metro, porque isso se acha de acordo com a nossa atual predisposição emocional; certos versos meus são os de alguém que leu muito Baudelaire, Shakespeare, Paulo Mantegazza, e muita musica clássica. Empreguei freqüentemente a forma elíptica, visto ser uma tendência acentuada da poesia moderna que ajuda a terminologia final; de resto não crio uma ruptura entre o poeta e o leitor, antes impõe este a uma disciplina mental, ensinando-lhe a imaginar nos intervalos, encobrindo analogias e paralelismos. Sendo de natureza impulsiva e romântica, julgo ter feito um trabalho verdadeiro , pois se os relacionar à minha contínua necessidade de expulsão de sentimentos, meus textos são até construídos e ordenados. “É a expressão da subjetividade, da harmonia e do amor universal. Em minha poesia, ora demonstro um tom bastante emotivo, ora amplo interesse pelas coisas simples da vida, revelando alteridade, amizade e solidariedade.

Fonte:
http://www.veropoema.net/publicacao.asp?codtxt=292

Efigênia Coutinho (Entrega)

Que bom que foi
poder escrever estes versos,
imaginá-los do princípio ao fim,
senti-los sair de mim,
sem neles dizer o que sinto,
ou cuidar, sequer,
se falo verdade ou minto,

Gerar o poema
com afeição natural,
desprendido do tema
e do conceito,
sem temer de outros o juízo,
ou se o meu próprio é perfeito.

Cometer o ato insano,
depois de conhecer
o bem e o mal,
comendo de novo,
em pecado original,
o fruto da árvore do Paraíso.

Sentir o poema
como um ser nado
misteriosamente, andrógino,
irrompido do útero do caos,
e dá-lo à luz,
tornando-o em ato,
puramente maternal.

Palavra feita poema,
como terra a mudar-se em vida,
pela vontade do fiat criador.
A suprema ambição da poetisa,
seja ele qual for,
é ver o caos transformar-se em verso,
e a ele entregar-se, por Amor

Fonte:
http://www.veropoema.net/publicacao.asp?codtxt=292

Machado de Assis (Críticas Literárias: Castro Alves)

[RJ, 29 fev. 1868.]

EXMO. SR. - É boa e grande fortuna conhecer um poeta; melhor e maior fortuna é recebê-lo das mãos de V. Exª, com uma carta que vale um diploma, com uma recomendação que é uma sagração. A musa do Sr. Castro Alves não podia ter mais feliz intróito na vida literária. Abre os olhos em pleno Capitólio. Os seus primeiros cantos obtêm o aplauso de um mestre.

Mas se isto me entusiasma, outra coisa há que me comove e confunde, é a extrema confiança, que é ao mesmo tempoum motivo de orgulho para mim. De orgulho, repito, e tão inútil fora dissimular esta impressão, quão arrojado seria ver nas palavras de V. Ex.ª, mais do que uma animação generosa. A tarefa da crítica precisa destes parabéns; é tão árdua de praticar, já pelos estudos que exige, já pelas lutas que impõe, que a palavra eloqüente de um chefe é muitas vezes necessária para reavivar as forças exaustas e reerguer o ânimo abatido.

Confesso francamente, que, encetando os meus ensaios de crítica fui movido pela idéia de contribuir com alguma coisa para a reforma do gosto que se ia perdendo, e efetivamente se perde. Meus limitadíssimos esforços não podiam impedir o tremendo desastre. Como impedi-lo, se, por influência irresistível, o mal vinha de fora, e se impunha ao espírito literário do país, ainda mal formado e quase sem consciência de si? Era difícil plantar as leis do gosto, onde se havia estabelecido uma sombra de literatura, sem alento nem ideal, falseada e frívola, mal imitada e mal copiada. Nem os esforços dos que, como V. Ex.ª, sabem exprimir sentimentos e idéias na língua que nos legaram os mestres clássicos, nem esses puderam opor um dique à torrente invasora. Se a sabedoria popular não mente, a universalidade da doença podia dar-nos alguma consolação quando não se antolha remédio ao mal. Se a magnitude da tarefa era de assombrar espíritos mais robustos, outro risco havia: e a este já não era a inteligência que se expunha, era o caráter. Compreende V.Exª. que, onde a crítica não é instituição formada e assentada, a análise literária tem de lutar contra esse entranhado amor paternal que faz dos nossos filhos as mais belas crianças do mundo. Não raro se originam ódios onde era natural travarem-se afetos. Desfiguram-se os intentos da crítica, atribui-se à inveja o que vem da imparcialidade; chama-se antipatia o que é consciência.

Fosse esse, porém, o único obstáculo, estou convencido que ele não pesaria no ânimo de quem põe acima do interesse pessoal o interesse perpétuo da sociedade, porque a boa fama das musas o é também.

Cansados de ouvir chamar bela à poesia, os novos atenienses resolveram bani-la da república. O elemento poético é hoje um tropeço ao sucesso de uma obra. Aposentaram a imaginação. As musas, que já estavam apeadas dos templos, foram também apeadas dos livros. A poesia dos sentidos veio sentar-se no santuário e assim generalizou-se uma crise funesta às letras. Que enorme Alfeu não seria preciso desviar do seu curso para limpar este presepe de Augias?

Eu bem sei que no Brasil, como fora dele, severos espíritos protestam com o trabalho e a lição contra esse estado de coisas; tal é, porem, a feição geral da situação, ao começar a tarde do século. Mas sempre há de triunfar a vida inteligente. Basta que se trabalhe sem trégua. Pela minha parte, estava e está acima das minhas posses semelhante papel; contudo, entendia e entendo - adotando a bela definição do poeta que V. Ex.ª. dá em sua carta - que há para o cidadão da arte e do belo deveres imprescritíveis, e que, quando uma tendência do espírito o impele para certa ordem de atividade, é sua obrigação prestar esse serviço às letras.

Em todo o caso não tive imitadores. Tive um antecessor ilustre. apto para este árduo mister, erudito e profundo, que teria prosseguido no caminho das suas estréias, se a imaginação possante e vivaz não lhe estivesse exigindo as criações que depois nos deu. Será preciso acrescentar que aludo a V. Ex.ª?

Escolhendo-me para Virgílio do jovem Dante que nos vem da pátria de Moema, impõe-me um dever. cuja responsabilidade seria grande se a própria carta de V. Ex.ª não houvesse aberto ao neófito as portas da mais vasta publicidade. A análise pode agora esmerilhar nos escritos do poeta belezas e descuidos. O principal trabalho está feito. Procurei o poeta cujo nome havia sido ligado ao meu, e, com a natural ansiedade que nos produz a notícia de um talento robusto, pedi-lhe que me lesse o seu drama e os seus versos. Não tive, como V. Ex.ª, a fortuna de os ouvir diante de um magnífico panorama. Não se rasgavam horizontes diante de mim: não tinha os pés nessa formosa Tijuca, que V. Ex.ª. chama de um escabelo entre a nuvem e o pântano. Eu estava no pântano. Em torno de nós agitava-se a vida tumultuosa da cidade. Não era o ruído das paixões nem dos interesses; os interesses e as paixões tinham passado a vara à loucura: estávamos no carnaval.

No meio desse tumulto abrimos um oásis de solidão.

Ouvi o Gonzaga e algumas poesias.

V. Ex.ª. já sabe o que é o drama e o que são os versos, já os apreciou consigo, já resumiu a sua opinião. Esta carta, destinada a ser lida pelo público, conterá as impressões que recebi com a leitura dos escritos do poeta. Não podiam ser melhores as impressões. Achei uma vocação literária, cheia de vida e robustez, deixando antever nas magnificências do presente as promessas do futuro. Achei um poeta original. O mal da nossa poesia contemporânea é ser copista - no dizer, nas idéias e nas imagens. Copiá-las é anular-se. A musa do Sr. Castro Alves tem feição própria. Se se adivinha que a sua escola é a de Vítor Hugo, não é porque o copie servilmente, mas porque uma índole irmã levou-o a preferir o poeta das Orientais ao poeta das Meditações. Não lhe aprazem certamente as tintas brancas e desmaiadas da elegia; quer antes as cores vivas e os traços vigorosos da ode.

Como o poeta que tomou por mestre, o Sr. Castro Alves canta simultaneamente o que é grande e o que é delicado, mas com igual inspiração e método idêntico; a pompa das figuras, a sonoridade do vocábulo, uma forma esculpida com arte, sentindo-se por baixo desses lavores o estro, a espontaneidade, o ímpeto. Não é raro andarem separadas estas duas qualidades da poesia: a forma e o estro. Os verdadeiros poetas são os que as têm ambas. Vê-se que o Sr. Castro Alves as possui; veste as suas idéias com roupas finas e trabalhadas. O receio de cair em um defeito não o levará a cair no defeito contrário? Não me parece que lhe haja acontecido isso; mas indico-lhe o mal, para que fuja dele. É possível que uma segunda leitura dos seus versos me mostrasse alguns senões fáceis de remediar; confesso que os não percebi no meio de tantas belezas.

O drama, esse li-o atentamente; depois de ouvi-lo, li-o, e reli-o, e não sei bem se era a necessidade de o apreciar, se o encanto da obra. que me demorava os olhos em cada página do volume.

O poeta explica o dramaturgo. Reaparecem no drama as qualidades do verso; as metáforas enchem o período; sente-se de quando em quando o arrojo da ode. Sófocles pede as asas a Pindaro. Parece ao poeta que o tablado é pequeno; rompe o céu de lona e arroja-se ao espaço livre e azul.

Esta exuberância, que V. Ex.ª. com justa razão atribui à idade, concordo que o poeta há de reprimi-la com os anos. Então conseguirá separar completamente língua lírica da língua dramática; e do muito que devemos esperar temos prova e fiança no que nos dá hoje. Estreando no teatro com um assunto histórico, e assunto de uma revolução infeliz. o Sr. Castro Alves consultou a índole do seu gênio poético. Precisava de figuras que o tempo houvesse consagrado; as da Inconfidência tinham além disso a auréola do martírio. Que melhor assunto para excitar a piedade? A tentativa abortada de uma revolução, que tinha por fim consagrar a nossa independência, merece e do Brasil de hoje aquela veneração que as raças livres devem aos seus Espartanos. O insucesso fê-los criminosos; a vitória tê-los-ia feito Washington. Condenouos a justiça legal; reabilita-os a justiça histórica.

Condensar estas idéias em uma obra dramática, transportar para a cena a tragédia política dos Inconfidentes, tal foi o objeto do Sr. Castro Alves, e não pode esquecer que, se o intuito era nobre, o cometimento era grave. O talento do poeta superou a dificuldade; com uma sagacidade , que eu admiro em tão verdes anos, tratou a história e a arte por modo que, nem aquela o pode acusar de infiel, nem esta de copista. Os que, como V. Ex.a, conhecem esta aliança. hão de avaliar esse primeiro merecimento do drama do Sr. Castro Alves.

A escolha de Gonzaga para protagonista foi certamente inspirada ao poeta pela circunstância dos seus legendário amores, de que é história aquela famosa Marília de Dirceu. Mas não creio que fosse só essa circunstância. Do processo resulta que o cantor de Marília era tido por chefe da conspiração, em atenção aos seus talentos e letras. A prudência com que se houve desviou da sua cabeça a Pena capital. Tiradentes, esse era o agitador; serviu à conspiração com uma atividade rara; era mais um conspirador do dia que da noite. A justiça o escolheu para a forca. Por tudo isso ficou o nome ligado ao da tentativa de Minas.

Os amores de Gonzaga traziam naturalmente ao teatro o elemento feminino, e de um lance casavam-se em cena a tradição política e a tradição poética, o coração do homem e a alma do cidadão. A circunstância foi bem aproveitada pelo autor; o protagonista atravessa o drama sem desmentir a sua dupla qualidade de amante e de patriota; casa no mesmo ideal os seus dois sentimentos. Quando Maria lhe propõe a fuga, no terceiro ato, o poeta não hesita em repelir esse recurso, apesar de ser iminente a sua perda. Já então a revolução expira; para as ambições, se ele as houvesse, a esperança era nenhuma; mas ainda era tempo de cumprir o dever. Gonzaga preferiu seguir a lição do velho Horário corneiliano; entre o coração e o dever a alternativa é dolorosa. Gonzaga satisfaz o dever e consola o coração. Nem a pátria nem a amante podem lançar-lhe nada em rosto.

O Sr. Castro Alves houve-se com a mesma arte em relação aos outros conjurados. Para avaliar um drama histórico, não se pode deixar de recorrer à história; suprimir esta condição é expor-se a crítica a não entender o poeta.

Quem vê o Tiradentes do drama não reconhece logo aquele conjurado impaciente e ativo, nobremente estouvado, que tudo arrisca e empreende, que confia mais que todos no sucesso da causa, e paga enfim as demasias do seu caráter com a morte na forca e a profanação do cadáver? E Cláudio, o doce poeta, não o vemos todo ali, galhofeiro e generoso, fazendo da conspiração uma festa e da liberdade uma dama, gamenho no perigo, caminhando para a morte com o riso nos lábios, como aqueles emigrados do Terror? Não lhe rola já na cabeça a idéia do suicídio, que praticou mais tarde, quando a expectativa do patíbulo lhe despertou a fibra de Catão, casando-se com a morte, já que se não podia casar com a liberdades? Não é aquele o denunciante Silvério, aquele o Alvarenga, aquele o Padre Carlos? Em tudo isso é de louvar a consciência literária do autor. A história nas suas mãos não foi um pretexto; não quis profanar as figuras do passado, dando-lhes feições caprichosas. Apenas empregou aquela exageração artística, necessária ao teatro, onde os caracteres precisam de relevo, onde é mister concentrar em pequeno espaço todos os traços de uma individualidade, todos os caracteres essenciais de uma época ou de um acontecimento.

Concordo que a ação parece as vezes desenvolver-se pelo acidente material. Mas esses raríssimos casos são compensados pela influência do princípio contrário em toda a peça. O vigor dos caracteres pedia o vigor da ação; ela é vigorosa e interessante em todo o livro; patética no último ato. Os derradeiros adeuses de Gonzaga e Maria excitam naturalmente a piedade, e uns belos versos fecham este drama, que pode conter as incertezas de um talento Juvenil, mas que é com certeza uma invejável estréia. Nesta rápida exposição das minhas impressões, vê V. Ex.ª que alguma coisa me escapou. Eu não podia, por exemplo, deixar de mencionar aqui a figura do preto Luís. Em uma conspiração para a liberdade, era justo aventar a idéia da abolição. Luís representa o elemento escravo. Contudo o Sr. Castro Alves não lhe deu exclusivamente a paixão da liberdade. Achou mais dramático pôr naquele coração os desesperos do amor paterno. Quis tomar mais odiosa a situação do escravo pela luta entre a natureza e o fato social, entre a lei e o coração. Luís espera da revolução, antes da liberdade, a restituição da filha é a primeira afirmação da personalidade humana; o cidadão virá depois.

Por isso, quando no terceiro ato Luís encontra a filha já cadáver, e prorrompe em exclamações e soluços, o coração chora com ele, e a memória, se a memória pode dominar tais comoções, nos traz aos olhos a bela cena do rei Lear, carregando nos braços Cordélia morta. Quem os compara não vê nem o rei nem o escravo: vê o homem. Cumpre mencionar outras situações igualmente belas.

Entra nesse número a cena da prisão dos conjurados no terceiro ato. As cenas entre Maria e o governador também são dignas de menção, posto que prevalece no espírito o reparo a que V. Ex.ª aludiu na sua carta. O coração exigira menos valor e astúcia da parte de Maria; mas, não é verdade que o amor vence as repugnância para vencer os obstáculos? Em todo o caso uma ligeira sombra não empana o fulgor da figura.

As cenas amorosas são escritas com paixão; as palavras saem naturalmente de uma alma para outra, prorrompem de um para outro coração. E que contraste melancólico não é aquele idílio às portas do desterro, quando já a justiça está prestes a vir separar os dois amantes! Dir-se-á que eu só recomendo belezas e não encontro senões? Já apontei os que cuidei ver. Acho mais duas ou três imagens que me não parecem felizes; e uma ou outra locução susceptível de emenda. Mas que é isto no meio das louçanias da forma? Que as demasias do estilo, a exuberância das metáforas, o excesso das figuras devem obter a atenção do autor, é coisa tão segura que eu me limito a mencioná-las; mas como não aceitar esta prodigalidade de hoje, que pode ser a sábia economia de amanhã?

Resta-me dizer que, pintando nos seus personagens a exaltação patriótica, o poeta não foi só à lição do fato, misturou talvez com essa exaltação um pouco do seu próprio sentir. É a homenagem do poeta ao cidadão. Mas, consorciando os sentimentos pessoais aos dos seus personagens, é inútil distinguir o caráter diverso dos tempos e das situações. Os sucessos que em 1822 nos deram uma pátria e uma dinastia, apagaram antipatias históricas que a arte deve reproduzir quando evoca o passado.

Tais foram as impressões que me deixou este drama viril, estudado e meditado, escrito com calor e com alma. A mão é inexperiente, mas a sagacidade do autor supre a inexperiência. Estudou e estuda; e um penhor que nos dá. Quando voltar aos arquivos históricos ou revolver as paixões contemporâneas, estou certo que o fará com a não na consciência. Está moço, tem um belo futuro diante de si. Venha desde já alistar-se nas fileiras dos que devem trabalhar para restaurar o império das musas.

O fim é nobre, a necessidade é evidente. Mas o sucesso coroará a obra? É um ponto de interrogação que há de ter surgido no espírito de V. Ex.ª. Contra estes intuitos, tão santos quanto indispensáveis, eu sei que há um obstáculo, e V. Ex.ª o sabe também: é a conspiração da indiferença. Mas a perseverança não pode vencê-la? Devemos esperar que sim. Quanto a V. Ex.ª, respirando nos degraus da
nossa Tijuca o hausto puro e vivificante da natureza, vai meditando, sem dúvida, em outras obras-primas com que nos há de vir surpreender cá embaixo. Deve fazê-lo sem temor. Contra a conspiração da indiferença, tem V. Ex.ª um aliado invencível: é a conspiração da posteridade.

Fonte:
Machado de Assis. Crítica Literária. Pará de  Minas/ MG: Virtualbooks, 2003.

Eduardo Quive (A Relação Entre o Tempo e o Espaço em “O Sol Nas Feridas” de Ronaldo Cagiano)

Apenas o poeta sabe a dor do parto da palavra. Há, na verdade, dores que só o poeta as conhece. Mas há dores maiores, dores de carne, o fulgor do que a sociedade vive e padece.

Isso remete-nos de imediato à uma dor física, eis porque Ronaldo Cagiano coloca-nos estendidos ao sol para assarmos e fermentarmos as dores que as grandes metrópoles enfrentam que sob caiem directamente ao cidadão.

“O Sol nas Feridas” em 63 poemas reunidos, entre a lírica amorosa e a crítica social, é a solução vista por muitos olhos, mas que só um poeta embondeiro, maduro e vivido sabe justificar a dor do corpo com a sagacidade que o assunto exige.

Lembrar Maria Teresa Horta nestas alturas pode-nos ser uma saída mais eficaz para justificar o sentido desta análise. De acordo com a escritora portuguesa, a escrita e a vida caminham juntas “tem que viver para se ser escritor” – diz ela.

Em Moçambique, de onde me chegou o livro enviado atrevidamente pelo autor, sem temer os oceanos que o mesmo atravessaria desde o Brasil, há um outro embondeiro, Suleiman Cassamo, autor do clássico e símbolo nacional “O Regresso do Morto”, tornar-se-ia cúmplice da poesia deste “velho poeta”, pois disse uma vez que “é preciso ter vivido para escrever”.

É o escritor, o poeta, e os seus devaneios; é o poeta, o cidadão e as razões da sua poesia missionária, não alheia aos mistérios do corpo. Ronaldo Cagiano sabe ser o que tem que ser na indagação e no desassossego a que a sina poética nos remete. Com a devida serenidade é lírico, cuida de si e dos seus sentimentos, mas com a incompreensão dos tempos é externo, exógeno, sente no lugar dos outros refém da engajada posição do poeta zelador e consciente de que “o ofício da verdade é proibido pôr algemas nas palavras”. Liberta-se e fala de sangue, abismos, precipícios, a gênese e o fim.

Reinaldo Cagiano, este meu desconhecido poeta “conta” na sua poesia convulsiva em “O Sol nas Feridas” que “entre a fuga/e os deslizes/ o poema vinga”, mas mais do que esse olhar atento em “Gênese”, o encontramos a consciência e a saudade de algum tempo ao olhar já nós, atentamente o poema “Escamas”:

(…) A vida, em suas estranhas latitudes,
território lisérgico onde dormiam meus fantasmas
já não é mais o cemitério onde cultivo desilusões

hoje, planeta do qual não me escondo,
             catapulta-me sobre os abismos.

A poesia de Cagiano, com certeza não se sairá sem se indagar: como esconder as feridas do sol, quando o meio mundo desconhece, o seu próprio paradeiro? E a poesia é chamada a tão estremo papel de contar o que todos sabem.  A essa dura tarefa cabe ao poeta que poderá não ser compreendido.
Sobre esse aspecto, Reynaldo Damazio já chama atenção na sua nota de leitura no livro ao dizer que “ o sentimento de impermanência e de precariedade ronda a poesia e exige do poeta uma tomada de posição, no sentido de enfrentamento das verdades provisórias.” É essa a posição que Ronaldo Cagiano escolheu tomar ao ver o que viu:

Enquanto o cortejo seguia
alheio aos gestos automáticos
das mãos que cerravam as portas

            Outros continuavam a vida
            imunes à que passava,
despojada de sua última chamada.

A cidade não seria diferente
porque amanhã
outras notícias viriam

É assim que Ronaldo Cagiano faz a relação dos males do seu tempo desde a nascença em Cataguases, Minas Gerais, passando por Brasília, onde formou-se em direito chegado à São Paulo onde reside e tem o seu trabalho. Mas não parou por aí escalou Buenos Aires, Teerã, Berlim, Pirapetinga, Lisboa, Paris, Adrogue, Alentejo, Morrinhos, Persépolis, Itabira, essas “geografias do acaso/ no arremate dos acasos/ onde pululam pássaros aziagos/ e homens ensimesmados/ habitam cidades sem memória,/ cemitério dos vivos.

É assim que o poeta faz a sua poesia, não omitindo o tempo e o espaço, numa forma perplexa de li dar com o texto que quer também contar histórias dos nossos dias. Uma poesia, que se pode dizer de combate aos males de hoje, inclusive a da falta de amor, saudade e das irmandades manobradas pelos contextos.

Certamente seja por isso que até os males do passado são elementos indispensáveis dessa matéria concentrada nessa obra que pode-se chamar de antologia, onde o autor termina com uma pergunta, no mínimo socorrista “Onde está Deus/ cujo poder não exercita?/ cuja vontade não realiza?/ cujas bênçãos nunca vêm?” pergunta o poeta, sabendo da ineficiência da sua função perguntativa. Pergunta para não dizer que não perguntou e que todos testemunhamos. Quem o responde?

Fonte:
http://www.quivismo.blogspot.com/

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia XIII)

Primeiro Fausto
Terceiro Tema
A Falência do Prazer e do Amor

I
Beber a vida num trago, e nesse trago
Todas as sensações que a vida dá
Em todas as suas formas [...]
Dantes eu queria
Embeber-me nas árvores, nas flores,
Sonhar nas rochas, mares, solidões.
Hoje não, fujo dessa idéia louca:
Tudo o que me aproxima do mistério
Confrange-me de horror. Quero hoje apenas
Sensações, muitas, muitas sensações,
De tudo, de todos neste mundo — humanas,
Não outras de delírios panteístas
Mas sim perpétuos choques de prazer
Mudando sempre,
Guardando forte a personalidade
Para sintetizá-las num sentir.
Quero
Afogar em bulício, em luz, em vozes,
— Tumultuárias [cousas] usuais —
o sentimento da desolação
Que me enche e me avassala.
Folgaria
De encher num dia, [...] num trago,
A medida dos vícios, inda mesmo
Que fosse condenado eternamente —
Loucura! — ao tal inferno,
A um inferno real.

II
Alegres camponeses, raparigas alegres e ditosas,
Como me amarga n'alma essa alegria!
Nem em criança, ser predestinado,
Alegre eu era assim; no meu brincar,
Nas minhas ilusões da infância, eu punha
O mal da minha predestinação.
Acabemos com esta vida assim!
Acabemos! o modo pouco importa!
Sofrer mais já não posso. Pois verei —
Eu, Fausto — aqueles que não sentem bem
Toda a extensão da felicidade,
Gozá-la?
Ferve a revolta em mim
Contra a causa da vida que me fez
Qual sou. E morrerei e deixarei
Neste inundo isto apenas: uma vida
Só prazer e só gozo, só amor,
Só inconsciência em estéril pensamento
E desprezo [...]
Mas eu como entrarei naquela vida?
Eu não nasci para ela.

III
Melodia vaga
Para ti se eleva
E, chorando, leva
O teu coração,
Já de dor exausto,
E sonhando o afaga.
Os teus olhos, Fausto,
Não mais chorarão.

IV
Já não tenho alma. Dei-a à luz e ao ruído,
Só sinto um vácuo imenso onde alma tive...
Sou qualquer cousa de exterior apenas,
Consciente apenas de já nada ser...
Pertenço à estúrdia e à crápula da noite
Sou só delas, encontro-me disperso
Por cada grito bêbedo, por cada
Tom da luz no amplo bojo das botelhas.
Participo da névoa luminosa
Da orgia e da mentira do prazer.
E uma febre e um vácuo que há em mim
Confessa-me já morto... Palpo, em torno
Da minha alma, os fragmentos do meu ser
Com o hábito imortal de perscrutar-me.

V
Perdido
No labirinto de mim mesmo, já
Não sei qual o caminho que me leva
Dele à realidade humana e clara
Cheia de luz [...] alegremente
Mas com profunda pesadez em mim
Esta alegria, esta felicidade,
Que odeio e que me fere [...]
Sinto como um insulto esta alegria
— Toda a alegria. Quase que sinto
Que rir, é rir — não de mim, mas, talvez,
Do meu ser.

VI
Toda a alegria me gela, me faz ódio.
Toda a tristeza alheia me aborrece,
Absorto eu na minha, maior muito Que outras
[...]
Sinto em mim que a minha alma não tolera
Que seja alguém do que ela mais feliz;
O riso insulta-me, por existir;
Que eu sinto que não quero que alguém ria
Enquanto eu não puder. Se acaso tento
Sentir, querer, só quero incoerências
De indefinida aspiração imensa,
Que mesmo no seu sonho é desmedida ...

VII
Tua inconsciência alegre é uma ofensa
Para mim. O seu riso esbofeteia-me!
Tua alegria cospe-me na cara!
Oh, com que ódio carnal e espiritual
Escarro sobre o que na alma humana
Fria festas e danças e cantigas...
Com que alegria minha, cairia
Um raio entre eles! Com que pronto
Criaria torturas para eles
Só por rirem a vida em minha cara
E atirarem à minha face pálida
O seu gozo em viver, a poeira — que arda
Em meus olhos — dos seus momentos ocos
De infância adulta e tudo na alegria!
Ó ódio, alegra-me tu sequer!
Faze-me ver a Morte. roendo a todos,
Põe-me ria vista os vermes trabalhando
Aqueles corpos! [...]

VIII
Triste horror d'alma, não evoco já
Com grata saudade, tristemente,
Estas recordações da juventude!
Já não sinto saudades, como há pouco
Inda as sentia. Vai-se-me embotando,
Co'a força de pensar, contínuo e árido,
Toda a verdura e flor do pensamento.
Ao recordar agora, apenas sinto,
Como um cansaço só de ter vivido,
Desconsolado e mudo sentimento
De ter deixado atrás parte de mim,
E saudade de não ter saudade,
Saudades dos tempos em que as tinha.
Se a minha infância agora evoco, vejo
— Estranho! — como uma outra criatura
Que me era amiga, numa vaga
Objetivada subjetividade.
Ora a infância me lembra, como um sonho,
Ora a uma distância sem medida
No tempo, desfazendo-me em espanto;
E a sensação que sinto, ao perceber
Que vou passando, já tem mais de horror
Que tristeza [...]
E nada evoca, a não ser o mistério
Que o tempo tem fechado em sua mão.
Mas a dor é maior!

IX
Ó vestidas razões! Dor que é vergonha
E por vergonha de si-própria cala
A si-mesma o seu nexo! Ó vil e baixa
Porca animalidade do animal,
Que se diz metafísica por medo
A saber-se só baixa ...
Ó horror metafísico de ti!
Sentido pelo instinto, não na mente!
Vil metafísica do horror da carne,
Medo do amor...
Entre o teu corpo e o meu desejo dele
'Stá o abismo de seres consciente;
Pudesse-te eu amar sem que existisses
E possuir-te sem que ali estivesses!
Ah, que hábito recluso de pensar
Tão desterra o animal que ousar não ouso
O que a [besta mais vil] do mundo vil
Obra por maquinismo.
Tanto fechei à chave, aos olhos de outros,
Quanto em mim é instinto, que não sei
Com que gestos ou modos revelar
Um só instinto meu a olhos que olhem ...
Deus pessoal, deus gente, dos que crêem,
Existe, para que eu te possa odiar!
Quero alguém a quem possa a maldição
Lançar da minha vida que morri,
E não o vácuo só da noite muda
Que me não ouve.

X
O horror metafísico de Outrem!
O pavor de uma consciência alheia
Como um deus a espreitar-me!
Quem me dera
Ser a única [cousa ou] animal
Para não ter olhares sobre mim!

XI
Um corpo humano!
Às vezes eu, olhando o próprio corpo,
Estremecia de terror ao vê-lo
Assim na realidade, tão carnal.

XII
Sinto horror
À significação que olhos humanos
Contém...
Sinto preciso
Ocultar o meu íntimo aos olhares
E aos perscrutamentos que olhares mostram;
Não quero que ninguém saiba o que sinto,
Além de que o não posso a alguém dizer...

XIII
Com que gesto de alma
Dou o passo de mim até à posse
Do corpo de outros, horrorosamente
Vivo, consciente, atento a mim, tão ele
Como eu sou eu.

XIV
Não me concebo amando, nem dizendo
A alguém "eu te amo" — sem que me conceba
Com uma outra alma que não é a minha
Toda a expansão e transfusão de vida
Me horroriza, como a avaro a idéia
De gastar e gastar inutilmente —
Inda que no gastar se [extraia] gozo.

XV
Quando se adoram, vividos,
Dois seres juvenis e naturais
Parece que harmonias se derramam
Como perfumes pela terra em flor.
Mas eu, ao conceber-me amando, sinto
Como que um gargalhar hórrido e fundo
Da existência em mim, como ridículo
E desusado no que é natural.
Nunca, senão pensando no amor,
Me sinto tão longínquo e deslocado,
Tão cheio de ódios contra o meu destino. —
De raivas contra a essência do viver.

XVI
Vendo passar amantes
Nem propriamente inveja ou ódio sinto,
Mas um rancor e uma aversão imensos
Ao universo inteiro, por cobri-los.

XVII
O amor causa-me horror; é abandono,
Intimidade...
Não sei ser inconsciente
E tenho para tudo [...]
A consciência, o pensamento aberto
Tornando-o impossível.
E eu tenho do alto orgulho a timidez
E sinto horror a abrir o ser a alguém,
A confiar n’alguém. Horror eu sinto
A que perscrute alguém, ou levemente
Ou não, quaisquer recantos do meu ser.
Abandonar-me em braços nus e belos
(Inda que deles o amor viesse)
No conceber do todo me horroriza;
Seria violar meu ser profundo,
Aproximar-me muito de outros homens.
Uma nudez qualquer — espírito ou corpo —
Horroriza-me: acostumei-me cedo
Nos despimentos do meu ser
A fixar olhos pudicos, conscientes.
Do mais. Pensar em dizer "amo-te"
E "amo-te" só — só isto, me angustia...

XVIII
[...] eu mesmo
Sinto esse frio coração em mim
Admirado de ser um coração
Tão frio está.

XIX
Seria doce amar, cingir a mim
Um corpo de mulher, mais frio e grave
e feito em tudo, transcendentalmente
O pensamento agrada-me, e confrange-me
Do terror de perto, e [junto]
Em sensação ao meu, um outro corpo.
Gelada mão misteriosa cai
Sobre a imaginação [...]

XX
É isto o amor? Só isto? [...]
Sinto ânsias, desejos,
Mas não com meu ser todo. Alguma cousa
No íntimo meu, alguma cousa ali
— Fria, pesada, muda — permanece.
[P'ra] isto deixei eu a vida antiga
Que já bem não concebo, parecendo
Vaga já.
Já não sinto a agonia muda e funda
Mas uma, menos funda e dolorosa,
[Bem] mais terrível raiva [...]
De movimentos íntimos, desejos
Que são como rancores.
Um cansaço violento e desmedido
De existir e sentir-me aqui, e um ódio
Nascido disto, vago e horroroso,
A tudo e todos...

XXI
— Amo como o amor ama.
Não sei razão pra amar-te mais que amar-te.
Que queres que te diga mais que te amo,
Se o que quero dizer-te é que te amo?
Quando te falo, dói-me que respondas
Ao que te digo e não ao meu amor.
Ah! não perguntes nada; antes me fala
De tal maneira, que, se eu fora surda,
Te ouvisse todo com o coração.
Se te vejo não sei quem sou: eu amo.
Se me faltas [...]
Mas tu fazes, amor, por me faltares
Mesmo estando comigo, pois perguntas —
Quando é amar que deves. Se não amas,
Mostra-te indiferente, ou não me queiras,
Mas tu és como nunca ninguém foi,
Pois procuras o amor pra não amar,
E, se me buscas, é como se eu só fosse
Alguém pra te falar de quem tu amas.
Quando te vi amei-te já muito antes:
Tornei a achar-te quando te encontrei.
Nasci pra ti antes de haver o mundo.
Não há cousa feliz ou hora alegre
Que eu tenha tido pela vida fora,
Que o não fosse porque te previa,
Porque dormias nela tu futuro.
E eu soube-o só depois, quando te vi,
E tive para mim melhor sentido,
E o meu passado foi como uma 'strada
Iluminada pela frente, quando
O carro com lanternas vira a curva
Do caminho e já a noite é toda humana.
Quando eu era pequena, sinto que eu
Amava-te já longe, mas de longe...
Amor, diz qualquer cousa que eu te sinta!
— Compreendo-te tanto que não sinto,
Oh coração exterior ao meu!
Fatalidade, filha do destino
E das leis que há no fundo deste mundo!
Que és tu a mim que eu compreenda ao ponto
De o sentir...?

XXII
Pra que te falar? Ninguém me irmana
Os pensamentos na compreensão.
Sou só por ser supremo, e tudo em mim
É maior.

XXIII
Reza por mim! A mais não me enterneço.
Só por mim mesmo sei enternecer-me,
Soba a ilusão de amar e de sentir em que forçadamente me detive.
Reza por mim, por mim! Eis a que chega
A minha tentativa [em] querer amar.

Fonte:
Fernando Pessoa . Primeiro Fausto. http://www.cfh.ufsc.br/~magno/fausto.htm

Ditados Populares do Brasil (Letra A)

A BOA notícia tem pernas curtas.
A CARA de um é o focinho do outro.
A CARA do pai, escarrada e cuspida. Com certeza deturpação do antigo adágio: A cara do pai, em carrara esculpida.
A COISA é mansa mas atropela.
A MÃO que alça o copo não deve segurar o volante.
AS MULHERES perdidas são as mais procuradas.
ADEUS, cinco letras que me faz sofrer.
ADORO as rosas, mas prefiro as trepadeiras.
ALGUM dia a terra cobrirá o teu orgulho.
A LUZ dos teus olhos ilumina o meu caminho.
A MAIOR riqueza do homem é a sinceridade da mulher.
A MAIOR vingança é o desprezo.
ANTES sonhava. Hoje, não durmo…
AMAR sem ser amado é ser castigado sem ter pecado.
AMAR-TE sempre; implorar-te nunca.
A MEDICINA não cura a dor da separação.
AMOR e dinheiro não querem parceiro.
AMOR é fumaça, sufoca e passa.
AMOR só de mãe.
A MORTE é um bem quando a vida se torna um mal.
A MULHER é como rosa: formosa, mas tem espinho.
A MULHER ri quando pode e chora quando quer.
ANTES causar inveja do que dó.
ANDO todo arranhado, mas não largo minha gata.
ANTES de apontar os defeitos do outro, conte até dez… dos seus.
ANTES de falar de mim, pensa no teu passado.
ARTIGO nacional, a mulher é o melhor.
A SAUDADE é companheira de quem não tem companhia.
A SAUDADE não mata, mas sepulta o coração em vida.
A SAUDADE torna presente o passado.
A SUSPEITA é o veneno da amizade.
AS GRANDES almas sofrem em silêncio.
A TERRA cobrirá o teu orgulho.
A VIDA começa aos 40 anos, e a morte aos 80 kms.
A VIDA é uma ilusão, passo por ela e não a vejo.
A VIDA só tem uma porta de entrada, mas várias de saída.
A VIDA é um barato, o povo é que acha caro.
A VIDA é dura pra quem é mole.
A TUA inveja é a minha felicidade.
A CALÚNIA é como fogo, destrói em horas a construção de anos.
A CÓLERA não aceita a presença da razão.
A CÓLERA principia pela loucura e acaba pelo arrependimento.
A ESTRADA é o meu lar.
A FÉ é quem vence sempre.
AJUDE a acabar com os letreiros de caminhão.
AMOR de mãe é imortal.
A MULHER é Maria, o carro é Ford e o homem sou eu.
A DÚVIDA é o travesseiro do sábio.
A EMENDA saiu pior que o soneto.
A GENTE nunca se esquece de quem se esquece da gente.
A GENTE pensa que se benze e quebra as ventas.
A IGNORÂNCIA e a candeia a si queimam, e aos outros “alumeiam”.
A MEDIDA de encher nunca transborda.
A NATUREZA não vai aos saltos.
A OCASIÃO faz o ladrão.
A PALAVRA é de prata, o silêncio é de ouro.
A PALAVRA própria e sensata, pomo de ouro é marchetado a prata.
A PREGUIÇA é a chave da pobreza.
A QUEM tem dinheiro, não lhe falta companheiro.
A VOZ do povo é a voz de Deus.
ABRAÇAR o mundo com as pernas.
ACENDER uma vela a Deus, outra ao diabo.
ÁGUA mole em pedra dura tanto bate até que fura.
ÁGUAS passadas não movem engenho.
AÍ é que a porca torce o rabo.
ALEGRIA de palhaço é ver o circo pegar fogo.
AMARRAR o burro onde o burro do dono manda.
AMIGOS, amigos, negócios à parte.
AMOR com amor se paga.
ANTES calar que com doidos altercar.
ANTES só que mal acompanhado.
ANTES tarde do que nunca.
AO INSENSATO, dá-lhe logo a fúria, quem é prudente dissimula a injúria.
AO RICO, mil amigos lhe aparecem, ao pobre, seus irmãos o desconhecem.
APÓS a tempestade vem a bonança,
AQUI se faz, aqui se paga.
ARARUTA tem seu dia de mingau.
ARRASTAR a mala.
AS APARÊNCIAS enganam.
AS GRANDES essências estão nos pequenos frascos.
ÀS VEZES pequena nuvem esconde o sol.
ATIROU no que viu, matou o que não viu.

Soares de Passos(O Mosteiro da Batalha)

Pulsemos a lira, que além se levanta
Padrão de vitória que imenso reluz!
Um templo e altares à Mãe sacrossanta;
Um templo, um poema que altivo descanta
Grandezas da pátria nos átrios da cruz.

Grandezas da pátria quem traz à memória
Que o peito não sinta d'orgulho bater?
Pulsemos a lira! do livro da história
Volvamos as folhas, que a musa da glória
Em nuvens etéreas sentimos descer!

Eis já d'Aljubarrota nas campinas
Se encontram as hostes contendoras.
Daqui tremulam portuguesas quinas:
Dalém as castelhanas invasoras.
Daqui é João primeiro, cuja lança
A coroa defende e a pátria cara:
Dalém o estranho rei, pedindo a herança
Da princesa Beatriz que desposara.

Refulge o sol nas armas, os cavalos
Rincham fogosos, escarvando a terra;
Dum lado e doutro os chefes a intervalos
Correm as alas animando à guerra.
Pouco avultam as hostes portuguesas;
Tremendo é de Castela o poderio;
Mas quem à pátria negará proezas
D'alto valor, e generoso brio!

A véspera é do dia consagrado
À Assunção gloriosa de Maria;
Os olhos levantando, o rei soldado:
«Senhora, exclama, nosso esforço guia!
«Se vencermos, um templo majestoso
«Te erguerei sobre o campo de batalha!»
Diz, e esporeando seu corcel fogoso
Brios em todos com sua voz espalha.

Soam trombetas; o sinal é dado;
Flutuam soltos os pendões na frente:
– São Tiago! – brada o castelhano ousado;
– São Jorge e avante! – a portuguesa gente.
Rédeas soltando, os esquadrões galopam,
E dão em cheio com furor insano,
Como torrentes que no vale se topam,
Ou como as ondas no revolto oceano.

Retine o ferro, a multidão se agita;
As achas d'armas, os broquéis lampejam;
Peões, ginetes, com medonha grita,
Num mar de sangue em turbilhão pelejam.
O sol já desce a mergulhar no oceano,
E inda referve a encarniçada lida;
Eis redobra d'esforço o lusitano,
E o estrangeiro leva de vencida.

Foge o rei castelhano espavorido;
Fogem os seus em debandada solta;
Persegue-os João primeiro, e destemido
A gozar do triunfo ao campo volta.
Já se erigem troféus, já resplandece
O céu da pátria co fulgor da glória;
Faltava o monumento que dissesse:
– Foi aqui! eis o campo da vitória!
*

E ei-lo aí que se levanta
Com majestosa grandeza,
Daquela gentil proeza
Sublime recordação:
Fi-lo aí aos céus erguido,
Como um colosso gigante
Apontando ao caminhante
O sítio da grande acção.

Altos pórticos, lavores
D'ostentosa arquitectura,
Coruchéus d'imensa altura
Roçando a fronte nos céus;
Dentro, a nobre majestade
Do santuário profundo,
Onde, extinta a voz do mundo,
Só lembra o passado, e Deus.

Sobre os góticos pilares
Brilham trémulos fulgores,
Que das vidraças de cores
Entorna a mística luz.
Tudo cala, mas, se o órgão
Por entre as naves ressoa,
Tudo se anima, e apregoa
O santo Verbo da cruz.

Então a mente se enleva
Nas torrentes da harmonia
Que da abóbada vazia
Retumbam pela multidão;
E, abrasada nos fulgores
Dos vivos, sagrados lumes,
Sobre as asas dos perfumes
Revoa à etérea mansão.

Se tudo cai em silêncio,
Cai em si mesma, e medita,
Recordando a data escrita
Nesses góticos umbrais.
Pensa então nos heroísmos,
E crenças de meia idade,
Combatendo a escuridade
Daqueles tempos feudais;

Pensa nos vultos heróicos
Dos antigos cavaleiros,
E em nossos feitos guerreiros
Pela pátria e pela cruz;
Pensa na grande vitória
Que nos fez independentes,
E que aos olhos dos presentes
Nesse moimento reluz;

Pensa num povo pequeno
Mas esforçado e guerreiro,
Triunfando do estrangeiro
À voz do rei popular;
Pensa no mestre valente;
E sua sombra gigante
Parece às vezes distante
Entre as colunas vagar.

E pensa também no artista,
Nesse arquitecto inspirado,
Que um poema sublimado
Ali traçou a cinzel;
Que cego da luz dos olhos
Acendeu a luz do engenho,
E consumou seu empenho,
Ao grande assunto fiel.

E Afonso Domingues surge
Nesse padrão sobranceiro
Ao lado de João primeiro,
Seu imortal fundador;
Reis ambos: um pelo berço,
Que lhe deu sua nobreza:
Outro, rei pela grandeza
Do seu génio criador.

Lá dormem! um rodeado
Dos brasões da sua glória,
Como depois da vitória,
Sob a tenda a descansar;
Outro à sombra desses tectos
Em campa singela e nua,
Como querendo a obra sua
Dalém da tumba guardar.
*

E lá dormem também outros que a morte
Juntou à sombra do lugar sagrado,
D'infantes e de reis alta corte,
Servindo de cortejo ao rei soldado.

Reunidos enfim no chão funéreo,
Fernando, Pedro, e Henrique, os três infantes;
Henrique, o sábio audaz que outro hemisfério
Primeiro abriu aos lusos navegantes.

Duarte e João segundo descansando
D'altas vitórias na mansão tranquila;
Afonso quinto cos lauréis sonhando
D'Alcácer, Tânger, e da forte Arzila.

E no sopro do vento que perpassa,
E lhes roça nas frias sepulturas,
Parecem murmurar em voz escassa,
E agitar suas ferozes armaduras.

E lá quando o luar pelas janelas
Lhes escoa nas lápides marmóreas,
Talvez erguidos se recostam nelas
A falar entre si de nossas glórias.

Dormi em paz, ó chefes do passado,
Heróico fundador, prole valente;
Dormi em paz no túmulo calado,
Recordando os lauréis da vossa gente.

Enchei em roda os penetrais divinos
De vossos gloriosos esplendores;
E se tendes poder sobre os destinos,
Defendei-os do tempo e seus furores.

Que as gerações passando reverentes
Possam, volvendo as páginas da história,
Largas eras saudar, curvando as frentes,
Esse padrão d'imorredoira glória!

Fonte:
Poesias de Soares de Passos. 1858 (1ª ed. em 1856). http://groups.google.com/group/digitalsource