sábado, 23 de março de 2013

Paulo Lima (Americanos)

Para Karen Gadient

As casas, uma pequena fileira de cinco ou seis, eram brancas, feitas de madeira e rodeadas por cercas baixas – também de madeira. As portas e janelas tinham telas de proteção contra mosquitos, e abriam para fora.

Ficavam no alto de um conjunto de dunas a caminho da praia. A brancura das dunas ajudava a realçar a solidão daquelas casas, em vez de ocultá-las.

A gente observava de longe, como se fosse uma aparição do outro mundo. E era de fato de um outro mundo.

– São americanos! – meu pai explicava, com uma pontinha de admiração e respeito.

Os americanos. Eu tinha visto na televisão os astronautas passeando na lua pela primeira vez. Eram americanos. Aquelas manchas brancas se moviam lentamente na escuridão. Seriam mesmo astronautas? E aquilo lá era a lua? Às vezes a imagem ficava tão ruim que eu chegava a duvidar. E então as manchas brancas voltavam a se mover mais uma vez.

As pessoas se aglomeravam em frente ao único televisor da rua pra ver os americanos realizarem a conquista da lua.

Quanto a mim, abandonei a cena e subi a rua correndo pra comprar pão. Mas tomei cuidado com o cachorro da esquina. Por que diabos eles adoram perseguir crianças?

Aqueles americanos que moravam naquelas casas de madeira eram astronautas? Todos os americanos eram astronautas? Achei que talvez fossem todos cowboys. Ou Tarzans. E todos deviam ser muito altos e louros. E suas mulheres eram altas e louras e tinham os lábios com um batom de um vermelho forte e vivaz.

Eu via no cinema.

Um dia, no cinema, deram coca-cola de graça pra gente. Diziam que era invenção americana. Aquilo descia pela garganta sufocando e ardendo. A gente sentia vontade de tossir. E os olhos se enchiam de água. Mas era bom. Era muito bom.

Então os americanos bebiam aquilo?

Nos fins de semana a gente ia pra a praia. Mas não era a praia que me atraia. Era a chance de ver as tais casas de perto. Aquelas casas dos americanos, tão diferentes das nossas casas. A gente passava a uma certa distância delas. Os pés afundavam na areia das dunas. Os dedos se enroscavam na vegetação rasteira. Eu esticava o pescoço pra ver melhor as casas.

Eu ficava esperando que alguém aparecesse na porta de uma delas. Um americano. E dissesse alô pra a gente. Mas se ele surgisse de algum lugar é bem provável que eu tivesse medo e ficasse calado. Eu me esconderia atrás do meu pai e deixaria que ele respondesse ao alô, como fazem os adultos.

Um dia meu pai chegou com várias caixas de leite em pó. Ele explicou que eram distribuídas pelos americanos da Aliança para o Progresso. Eu não sabia o que era Aliança, nem o que era Progresso. As caixas eram brancas com letras azuis. Tinham o desenho de uma águia. Minha intuição de criança entendeu que recebíamos ajuda porque éramos muito pobres. E eles, os americanos, eram muito ricos.

Eu tinha visto no cinema uma cidade dos americanos. A cidade era Los Angeles, com muitos viadutos, muitos carros, muitos ônibus e muitas pessoas nas ruas. Havia prédios muito altos. A minha cidade, ao contrário, era atravessada por sítios e terrenos baldios. Quando queríamos ir a algum lugar distante, íamos a pé. Às vezes a gente entrava num sítio e roubava caju. Mas a gente sentia medo, pois se o dono nos visse dava um tiro de sal. Não matava, mas dizem que doía bastante. E, além disso, havia o medo de que fôssemos chamados de ladrão, uma palavra tão feia.

Algumas vezes eu ouvia o pai ou a mãe cochichando segredos. – Você sabia que o filho de fulano é ladrão? Ou pior ainda. – Você sabia que a filha de sicrano é safada? E um silêncio grave se instalava no meio deles.

Os americanos eram muito ricos. E nós, muito pobres. Entre eles não havia filhos ladrões nem filhas safadas.

Eu ficava olhando as casas ao longe, tentando decifrar sua rotina, o movimento dos americanos dentro delas, suas conversas, suas brigas. Eu queria ter super poderes pra perscrutar melhor aquelas casas. Como o Super Homem, Fantasma, Capitão Marvel.

Eu sei, porque lia nas revistas de quadrinhos.

Mas eu não sabia que esses heróis eram americanos. Eu pensava que eles eram meus amigos, somente isso.

E se eu fosse invisível? Se eu fosse invisível eu ia entrar na casa dos americanos, sentar com eles à mesa, comer a comida deles, andar na bicicleta do filho deles e quem sabe dar um beijo na filha deles.

Eu tinha visto no cinema. As filhas dos americanos têm nomes curtos, como Mary ou Joan, têm cabelos loiros e bem lisos, tomam sorvete, mascam chiclete e vão para a colônia de férias.

Os filhos dos americanos têm nomes também curtos, como John ou Peter, têm cabelos loiros e lisos, mascam chicletes, andam de bicicleta, vão para a colônia de férias e adoram brigar entre eles. Os mais velhos pedem o carro dos pais emprestados e saem com suas namoradas.

Isso eu vi no cinema.

Os pais e as mães americanos deixam os filhos dormindo com a baby-sitter e vão ao ball dançar com os amigos. Lá eles enchem a cara, falam de negócios, fumam seus cigarros, e às vezes provocam uma briga em que podem praticar um pouco de boxe.

Depois os homens voltam pra casa pressionando um pouco de gelo contra o olho machucado, e confiam os volantes às suas mulheres, a quem chamam de honey e darling.

Um dia quis saber de meu pai:

– Como é que falam os americanos?

Hoje à noite você vai saber, ele disse. E quando a noite chegou, ele pôs seu velho rádio sobre a mesa, girou uns botões e de dentro dele saiu uma voz forte e metálica com uns ruídos estranhos, como se fritassem algo na frigideira.

This is voice of America.

Tornei-me um ouvinte cativo da Voz da América, serviço radiofônico que durante décadas funcionou como um dos emissários da política americana para a América Latina.

Não entendia uma palavra, mas pontualmente, no mesmo horário, eu aguardava meu pai girar uns botões do seu velho rádio pra sintonizar mais uma vez a Voz da América.

This is voice of America.

A gente ia pra a praia nos fins de semana, e meu interesse era bisbilhotar aquelas casas. Meus pés afundavam na areia, se enroscavam na grama rasteira, eu esticava o pescoço e olhava sobre o ombro. Dali de uma daquelas casas deveria sair algum americano e dizer alô. Eu sentiria medo, e esperaria que meu pai respondesse ao alô, como fazem os adultos.

Mas, pra falar a verdade, eu nunca vi nenhum americano sair de uma daquelas casas. Soube muito tempo depois que eram missionários mórmons, mas houve quem dissesse que eram famílias de engenheiros contratados para auxiliar a Petrobras em trabalhos de prospecção de petróleo por estas bandas.

Meu pai ligava seu velho rádio sempre à mesma hora da noite, girava alguns botões e dele saía, em ondas, uma voz metálica e forte, cheia de ruídos.

This is voice of America.

Décadas depois fui ser estudante em Moscou. Só pra você ter ideia de como são as coisas.

Fonte:
http://literaturasemfronteiras.blogspot.com/2013/02/americanos-paulo-lima.html

VIII Jogos Florais de Niterói/RJ - 1978 (Trovas Vencedoras)

MAC Niterói
TROVADORES DE BRASIL E PORTUGAL
(exceto Rio de Janeiro)

1º TEMA:  MENSAGEM/NS

VENCEDORES


Guarda sempre esta mensagem
da própria vida, que diz:
- É feliz quem tem coragem
de acreditar que é feliz!
CAROLINA RAMOS - Santos

Queimei tudo, destruí
tuas mensagens de outrora,
mas, amor, não consegui
mandar as cinzas embora...
CIPRIANO FERREIRA GOMES - São Paulo

Expondo roupas rasgadas,
ora zombando, ora séria,
a vida põe nas calçadas
as mensagens da miséria...
CIPRIANO FERREIRA GOMES – São Paulo
Na mensagem mentirosa
tu dizes: "Tenho saudade..."
e esta mentira gostosa
é bem melhor que a verdade...
IZO GOLDMAN – São Paulo

O mensageiro fiel
dos sonhos da meninada
é um barquinho de papel
correndo junto à calçada...
SARA MARIANY KANTER – São Paulo
Em tuas cartas havia
mensagens de amor, tão belas,
que eram falsas, eu sabia,
mas como eu gostava delas!...
SILVINA ANTUNES LEAL - Santos
As mensagens de esperança
que trocamos, tu e eu,
são hoje apenas lembrança
da esperança que morreu...
SILVINA ANTUNES LEAL - Santos

MENÇÕES  HONROSAS:


No meu olhar já cansado,
guardo estrelas, guardo luas,
as mensagens de um passado
feito de noites só tuas.
CAROLINA RAMOS – Santos

Vibrante, um sino badala...
Em sua mensagem santa,
é a voz de Deus que nos fala,
na voz do sino que canta...
SILVINA ANTUNES LEAL - Santos

Seis horas... O sol no adeus...
E entre os cânticos e os hinos,
chega a mensagem de Deus,
na voz plangente dos sinos!
DAVID DE ARAÚJO - Santos

Dentro da noite um queixume
a embalar meu sofrimento,
traz mensagens no perfume
que tu deixaste no vento...
CIPRIANO FERREIRA GOMES – São Paulo

Das mensagens que mandaste,
o tempo apagou as linhas,
mas lembranças que deixaste,
jamais se apagam, são minhas...
GRAZIELLA LYDIA MONTEIRO - Belo Horizonte

Sou poeta... Em tudo eu ponho
um pouco de fantasia,
trazendo a ilusão e o sonho
na mensagem da poesia.
DAVID DE ARAÚJO – Santos

No meu refúgio deserto
tua mensagem me diz:
"Mesmo que o amor não dê certo,
quem ama, já é feliz.."
MARIA TERESA GUIMARÃES NORONHA - São Paulo
Na mensagem tu dizias:
"Chegarei na terça-feira!"
E eu descobri que três dias
demoram a vida inteira...
IZO GOLDMAN – São Paulo

Mensagem de amor não leio...
A velhice, esse tropeço,
fez com que pombos-correio
perdessem meu endereço.
SEBASTIÃO SOARES - Natal

As mensagens mais bonitas
que a natureza escreveu,
estão nas flores escritas,
e pouca gente entendeu.
THARCÍLIO GOMES DE MACEDO - Taubaté
Quando o céu em chamas arde,
um sino, ao longe, parece
levar mensagens à tarde,
que morre em tempo de prece.
VASQUES FILHO - Fortaleza

2º TEMA: ESPUMA/S

VENCEDORES


Trapos de espuma estendidos
pelas varandas do mar:
lenços molhados, vencidos
de tanto pranto enxugar...
CIPRIANO FERREIRA GOMES - São Paulo

Selvagem, de vida inquieta,
há no peito da cascata,
um coração de poeta
jorrando espumas de prata...
CIPRIANO FERREIRA GOMES -São Paulo
Tarde... Um chorão se curvava
para ver na água, faceira,
a flor do ipê que bailava
nas espumas da cachoeira!
ELIZABETH MARTHA NOTZ PASCHOAL - Taubaté
Cigano amor que me afagas,
tens a leveza das plumas,
a impermanência das vagas,
a inconstância das espumas...
HUMBERTO LYRIO - Salvador

Teu amor foi como a bruma
que o vento espalha no mar;
onda franjada de espuma
que nem chegou a chegar...
IZO GOLDMAN -São Paulo

Eu confesso, estou cansada,
cansada deste brinquedo:
- ser espuma apaixonada
pela sombra de um rochedo...
SARA MARIANY KANTER -São Paulo

MENÇÕES  HONROSAS:


Meu viver nunca é tristonho,
do mar copiando a investida,
eu jogo espumas de sonho
por sobre as pedras da vida
CAROLINA RAMOS - Santos

Bailando cheia de graça,
sobre as ondas, uma a uma,
a lua se despedaça
em precipícios de espuma.
CIPRIANO FERREIRA GOMES – São Paulo

Felicidade acontece.
Bate à porta, entra, perfuma...
E depois desaparece,
como se fosse de espuma...
CIPRIANO FERREIRA GOMES – São Paulo


Ó praia, para que escondas
teu corpo, é que o mar costuma
trazer, na crista das ondas,
os rendilhados de espuma...
DAVID DE ARAÚJO - Santos

Ó bela praia, por serdes
rendeira, mesmo entre a bruma,
no tear das ondas verdes,
teceis as rendas de espuma...
DAVID DE ARAÚJO - Santos
A vida - senda de abrolhos -
tal como a espuma se esvai,
pondo mágoa nos meus olhos,
de onde a lágrima não cai...
HELVÉCIO BARROS - Bauru

O branco luar flutua
e sobre a espuma passeia:
é o mar carregando a lua,
que vai dormir sobre a areia.
LUCY SOTHER ALENCAR DA ROCHA - Belo Horizonte

Vão-se as espumas das águas,
nas correntezas sem fim...
Mas nunca passam as mágoas
que gemem dentro de mim...
OLÍMPIO M. DA CRUZ - Brasília/DF

Ondas de espumas coroadas
batendo em costas bravias
são espumas de meus nadas,
vividos todos os dias!...
FERRER LOPES - Queluz/Portugal
Alguns amigos parecem
espumas de maré cheia:
na crista, se as ondas crescem,
se as ondas baixam... na areia...
IZO GOLDMAN – São Paulo
Eu sei que não te acostumas,
mas deste amor o que resta?
Pobres vestígios de espumas
na taça de um fim de festa.
MARIA TERESA GUIMARÃES NORONHA – São Paulo

Com a maciez de uma pluma,
o mar, que de amor desmaia,
vestindo luvas de espuma,
alisa as formas da praia!
WALTER WAENY - Santos

A Natureza costuma
semear lições, ao léu:
em cada bolha de espuma
cabe todo o azul do céu!
WALTER WAENY - Santos

PARA TROVADORES DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

1º TEMA:  MÃO/S

VENCEDORES

Trocando afagos, um dia,
aprendi nobre lição...
- Nunca se encontra vazia
a mão que afaga outra mão!...
ALOÍSIO ALVES DA COSTA - Nova Friburgo

Bendita a mão calejada
que, à noitinha, se consola,
trocando o cabo da enxada
pelo braço da viola!
ANTONIO CARLOS TEIXEIRA PINTO - Niterói
Trovadores meus irmãos,
vamos viver de mãos dadas:
onde há correntes de mãos,
não há mãos acorrentadas!...
JOSÉ MARIA MACHADO DE ARAÚJO - Rio de Janeiro
Não me gabo das conquistas,
nem dos troféus que são meus,
porque nas mãos dos artistas
há sempre o dedo de Deus...
OCTÁVIO VENTURELLI- Rio de Janeiro

Louvo essas mãos calejadas,
que, sem escola e instrução,
aprenderam, com as enxadas,
todo o alfabeto do chão!...
P. DE PETRUS- Rio de Janeiro

MENÇÕES  HONROSAS:


Os homens, nas mãos piedosas
de Cristo, pastor das almas,
em vez de palmas e rosas,
puseram cravos nas palmas!...
ALOÍSIO ALVES DA COSTA – Nova Friburgo

Por mais, Senhor, que repartas
teus peixes na multidão,
há sempre mãos, de ouro fartas,
e outras carentes de pão!...
ALOÍSIO ALVES DA COSTA – Nova Friburgo

As estrelas da amplidão,
nem todos conseguem vê-las...
E o sonhador põe a mão
muito além dessas estrelas!...
ALOÍSIO ALVES DA COSTA – Nova Friburgo
Que as mãos dos homens, na terra,
corrigindo um erro antigo,
sobre as trincheiras  de guerra,
façam leiras... plantem trigo!...
ALOÍSIO ALVES DA COSTA – Nova Friburgo
Buscando melhores dias
pelos caminhos da vida,
eu volto de mãos vazias,
porém, de cabeça erguida.
ANA MARIA MOTTA - Nova Friburgo

As tuas mãos tão suaves,
fiandeiras de carinhos,
tendo a esquivança das aves,
têm o aconchego dos ninhos.
JOÃO RANGEL COELHO - Rio de Janeiro

Nas obras que se encadeiam
em benefício da Paz,
bendigo as mãos que as semeiam
nos sulcos que a guerra faz!
JOSÉ COELHO DE BABO - Nova Friburgo

Faço o Bem todos os dias
e, depois que o Bem pratico,
olho as minhas mãos vazias
e vejo o quanto sou rico!...
JOSÉ MARIA MACHADO DE ARAÚJO - Rio de Janeiro
Minhas mãos cheias de amor
plantam amor pelas ruas...
E mais não plantam, Senhor,
porque só me deste duas!...
JOSÉ MARIA MACHADO DE ARAÚJO - Rio de Janeiro
Mãos humildes que se arqueiam
enchendo a terra de grãos...
Benditas mãos que semeiam
para os donos de outras mãos...
JOSÉ MARIA MACHADO DE ARAÚJO - Rio de Janeiro

Eu sempre tentei ser justo
e sempre me injustiçaram...
- Confesso que foi a custo
que estas mãos não se mancharam.
NYDIA IAGGI MARTINS - Nova Friburgo
Por entre os vãos dos meus dedos
fugiram meus sonhos vãos,
que foram simples brinquedos
nos dedos das tuas mãos...
OCTÁVIO VENTURELLI – Rio de Janeiro

Foi um gesto de nobreza,
nas lides duras e bravas:
mãos livres de uma princesa
libertando mãos escravas!...
RODOLPHO ABBUD - Nova Friburgo

Ao traçar vidas sem rumo,
do desgraçado, do louco,
não sei não, mas eu presumo
que a mão de Deus treme um pouco...
WALDIR NEVES- Rio de Janeiro

2º TEMA: FAROL

VENCEDORES


Sobre os sonhos naufragados
nas águas do meu desgosto,
são os meus olhos molhados
faróis sem luz no meu rosto!...
ALOÍSIO ALVES DA COSTA - Nova Friburgo
Deus que é luz e que é bonança,
ante os meus olhos tristonhos,
pôs um farol de esperança
sobre a torre dos meus sonhos...
ALOÍSIO ALVES DA COSTA - Nova Friburgo

Cai a tarde! Que tristeza!
Soluça o mar... E o farol
parece uma vela acesa
ante a agonia do sol!
ANTONIO CARLOS TEIXEIRA PINTO - Niterói
Noite quieta e, de repente,
dois faróis surgem na estrada,
e a escuridão sai da frente,
como quem foge assustada.
DURVAL MENDONÇA - Rio de Janeiro
Nenhum barco... o mar parado...
noite... silêncio... abandono...
E o velho farol, cansado,
parece piscar de sono.
DURVAL MENDONÇA - Rio de Janeiro
Como faróis enganosos,
porque a vaidade os conduz,
quantos homens presunçosos
dão mais sombra do que luz!
ELTON CARVALHO - Rio de Janeiro
Farol velho, não entendes
o contraste que eu te trago:
tu de esperanças te acendes,
eu, de saudades me apago...
OCTÁVIO VENTURELLI - Rio de Janeiro
Soltando as cordas da amarra
da barca do meu destino,
cruzei o farol da barra
dos meus sonhos de menino...
OCTÁVIO VENTURELLI – Rio de Janeiro

MENÇÕES  HONROSAS:

Minha alma, na qualidade
de alma de bom marinheiro,
guarda faróis de saudade
dos portos do mundo inteiro!...
ALOÍSIO ALVES DA COSTA – Nova Friburgo

Amor! Farol! Dois brilhantes
- preciosidades sem par -
ambos salvam navegantes:
um, da vida; outro, do mar!
CARLOS R. DE OLIVEIRA - Niterói

Meu farol mais verdadeiro
foi meu pai, quando eu menino,
pondo luz no meu roteiro
e um porto no meu destino.
DURVAL MENDONÇA – Rio de Janeiro

Ereto em sua tristeza,
o velho farol tomou
um jeito de vela acesa
pelos que o mar condenou.
DURVAL MENDONÇA – Rio de Janeiro

Quanta amargura incontida
n'alma dos cegos magoados...
Seus olhos tristes, sem vida,
são dois faróis apagados...
HEDDA DE MORAES CARVALHO - Nova Friburgo

Teu olhar que me fascina,
lembra tristeza, abandono,
farol envolto em neblina,
nas noites frias de outono!...
HEDDA DE MORAES CARVALHO - Nova Friburgo

Na rocha, em perenes rondas,
à noite, o farol seduz,
ao disparar sobre as ondas,
douradas flechas de luz!
JACY PACHECO - Niterói
Esse farol que, de longe,
nos torvos mares reluz,
tem a doçura de um monge,
lançando bênçãos de luz.
JOÃO RANGEL COELHO – Rio de Janeiro

Bate ao longe a Ave Maria...
A noite vem, devagar,
e o farol é a estrela-guia
para os pastores do mar...
MANITA - Niterói

Certos olhos, já cansados
pelo tempo que passou,
lembram faróis embaçados
que o mar da vida embaçou.
P. DE PETRUS – Rio de Janeiro

Depois que tudo termina,
na indiferença ou na dor,
nenhum farol ilumina
o naufrágio de um amor...
RODOLPHO ABBUD - Nova Friburgo

Na casa do faroleiro
esta ironia ferina:
Lá fora o imenso luzeiro...
- e dentro,uma lamparina.
RODOLPHO ABBUD - Nova Friburgo
Ao voltar, ela sorriu,
e aquele olhar de perdão
foi um farol que surgiu
nas trevas da solidão...
ROMEU GONÇALVES DA SILVA – Rio de Janeiro


Fonte:
Colaboração de Amélia Aparecida Silva/RJ

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) 24. Um Borracho

O bonde vinha tão silencioso, ontem à tarde, como se por ele tivesse passado um sopro de solenidade histórica. Os passageiros, alinhados, taciturnos, pareciam compenetrados de representar algum papel de responsabilidade. Ou dir-se-ia que iam jogar a própria vida numa linha de fogo, logo ali adiante.

A certo momento, entrou um bêbedo, que mal se sustinha nas pernas, como um fardo que trepasse a custo arrastado por uma corda invisível. Mas falava sem parar e ria-se numa grande jovialidade enternecida e patusca. Tudo lhe ria, a barba crespa e grisalha, repartida em duas pontas, os olhos pequenos e azuis, como dois botões de esmalte, o chapéu amolgado e caído sobre a orelha, os longos caracóis de cabelo bamboleantes sobre a testa como gavinhas de aboboreira, e que se haviam despregado da pastinha rala, transversalmente colada por cima da calva. Ria a próprio casaco de pano encorpado, cujos bolsos atafulhados se arredondavam como bolsas, e ria ainda mais o lenço vermelho amarrado ao pescoço, com as pontas a esvoaçar como bandeirolas.

Falando e rindo, o homem caiu sentado em cima de duas mulheres, que recuaram espavoridas "Scusate, signore!" E tirou largamente o chapéu com a mão que segurava o cachimbo, cujas cinzas se espalharam por cima das cabeças vizinhas. "Scusate, io sono un pó allegro, Oggi ê festa!" E disparou a cantar.

O condutor veio lá do fundo como uma flecha e, com o sobrecenho mais autoritário que pôde compor:

"Ó aquele, aqui não se canta!"

-"Non si può. Bene, bene. Non si può. È giusto. Si. Stà benissimo... Eh! condutore, mi dà un fiammífero?"

E, enquanto acamava com o polegar o fumo negro contido no pipo, cantou, numa voz que podia bem ser a de um ex-barítono:

-"Io voglio un fiammifero!" O condutor voltou a ele e, com redobrada energia no cenho e na voz:

-"Já lhe disse que não pode cantar!"

-"Eh!... io già sabia che non si può cantare. Domandavo a lei un fiammifero."

-"Não tem fiammifero. Você vai é já para baixo, se não fica quieto."

-"Pra basso, io?! Dio b...! E che ho fatto io, conduttore... O conduttore! che ho fatto io per esser messo giu... in mezzo alla strada?"

O homem largou o cachimbo em cima do banco, remexeu os bolsos com as mãos bambas, remexeu, e não encontrava o dinheiro. Tirou um lenço, uma laranja, duas metades de charuto toscano, um pedaço de barbante, uns restos de amendoim, uma medalha, um jornal; e resmungava: -"Come no! io tenho dinero. Si! Anche della carta moneta... Vucê truca cinque milla, conduttore? Ebbene, aspetti. Si, ió tenho... eh! Un pó de pazienza, caro."

A muito custo, deu com a nota num dos bolsos do colete, junto do relógio de prata, enorme, que previamente sacou e auscultou. Ao retirar a cédula, fê-lo num gesto de triunfo; ergueu senhorilmente a cabeça e, estendendo a mão com o dinheiro ao condutor irritado, esboçou um canto jacundo e nobre como um ofertório, em voz retumbante: "Ecco, o signor, prendetela!"

O condutor não lhe cobrou a passagem, mas fez parar o carro e obrigou o cantor a descer, com tácita aprovação dos demais passageiros. Quando se viu na rua, o expulso abriu os braços para protestar, mas cambaleou e sentou-se no chão, gritando sonoramente, à maneira de insulto e de ameaça: "Portoghese! Vado dal presidente dello Stato!"

Mas o bonde já ia longe. E os passageiros riam-se. E ria-se o condutor. Precisamente nesse momento, eu ficava sério, e aquele homem alegre e inofensivo, posto do veículo abaixo como uma lata velha, me começava a interessar. Era a vítima simpática de um lote de imbecis. E eu no meio destes.

Um homem alegre, fosse qual fosse o combustível da sua alegria, devera ser olhado como em certas civilizações primitivas se olhavam os doidos, criaturas sagradas, ou como os gregos consideravam os devotos delirantes de Dionísios, condensadores momentâneos desse mistério de jovialidade e de exaltação que em certas épocas circula através das coisas, e preme os úberes da terra, e desata as ofertas do céu.

Minha alma ficara lá para trás, junto daquele homem assoado para a rua pela austera
comunidade do bonde. E minha alma lhe dizia:

Ri, ri, ri, minha vitima, meu irmão. Brinca, tagarela, traquina à tua vontade. Frui sem vergonha e sem cuidado este parêntese divino de liberdade e de loucura alegre que se abre na miséria soturna da tua vida. Ri, ri, meu irmão, minha vítima.

A tua risada não me alivia, mas vinga um pouco a minha ânsia recolhida de libertação impossível, pobre, torturado escravo que sou, mesquinho escravo das Regras, dos Horários, dos Regulamentos, dos Códigos e das Necessidades criadas.

Ri, folga, berra, cabriola, papagueia, pragueje, insulta! E canta! canta, nessa efusão de lirismo obscuro que sobe do mais fundo da nossa alma bruta, expressão sem palavra de alegria vital, inconsciente, expansiva, cósmica, alegria do gafanhoto que salta e voeja, da maritaca gritadeira e gloriosa, da água que foge às guinadas fervendo e brilhando, do fogo que dança o bailado da labareda, de tudo que não é esta nossa desgraçada alma superficial de bicho domesticado e diminuído.

Ri, ri, ri, com todo o teu ser, todo o teu sangue, a tua carne, para além ou aquém do Bem e do Mal, Homem! pobre Homem, bom Homem, meu irmão.

Ri, ri, ri, até que estoures de repente com o riso, como a cigarra a cantar, e acabes assim na mais bela das mortes, fulminado por uma explosão de vida!"

Agora, ao rememorar esta minha ode, com a pena entre os dedos, já não me parece que tenha justificado bem a embriaguez, que afinal é um vício detestável. Embriaguez por embriaguez, é preferível uma consciência clara e um sentimento profundo e sutil das realidades. Também isto é uma espécie de bebedeira; mas lúcida, infinitamente matizada; e tem todo, o atrativo de um vício artificial.

"Sede duros, meus irmãos!" pregava Zaratustra, "e a verdade é que a dureza é um ingrediente da vida e uma condição de ordem."

Nada mais saboroso do que o diálogo de Tolstói com a sentinela do Cremlim. Esta enxotava um mendigo de certo lugar onde não se permitia a permanência de estranhos. Tolstói aproxima-se, vê, sofre, e aborda o soldado, perguntando-lhe se não conhecia os versículos do Novo Testamento em que se recomenda tratar o próximo como a um irmão. Retruca o militar: "E o senhor não conhece o regulamento da praça? Pois eu o conheço."

Palavra profunda! A primeira necessidade é cumprir cada um o seu dever particular, o seu dever concreto, positivo, limitado, pequenino.

O dever particular às vezes é duro, como pedra, como prego, duro como pau, mas é dele que se faz a ordem, a ordem que é edificação, que é obra, que é abrigo e desfrute, oficina e palácio, lavoura e escola, a ordem que é civilização. Os deveres mais gerais são também mais flutuantes: discutem-se; oscilam com a temperatura do sentimento, com as marés da idealidade. Mas o dever imediato e cotidiano é fixo e indiscutível: não há senão obedecer-lhe. E a obediência é a segurança e o alimento de cada um e de todos. Coisa insignificante, um homem que regularmente cumpre os seus deveres de cada dia: coisa majestosa, uma nação em que todos procedem assim!

O ideal é talvez juntar ao livro de Tolstói a espada do soldado. Em todo caso, eu daria ao soldado uma fria aprovação, e a Tolstói um abraço.

Fonte:
Domínio Público

Alberto Caeiro (Caravela da Poesia XIX)

Alberto Caeiro (heterônimo de Fernando Pessoa)

FALAS DE CIVILIZAÇÃO
Falas de civilização, e de não dever ser,
Ou de não dever ser assim.
Dizes que todos sofrem, ou a maioria de todos,
Com as cousas humanas postas desta maneira.
Dizes que se fossem diferentes, sofreriam menos.
Dizes que se fossem como tu queres, seria melhor.
Escuto sem te ouvir.
Para que te quereria eu ouvir?
Ouvindo-te nada ficaria sabendo.
Se as cousas fossem diferentes, seriam diferentes: eis tudo.
Se as cousas fossem como tu queres, seriam só como tu queres.
Ai de ti e de todos que levam a vida
A querer inventar a máquina de fazer felicidade!

GOZO OS CAMPOS
Gozo os campos sem reparar para eles.
Perguntas-me por que os gozo.
Porque os gozo, respondo.
Gozar uma flor é estar ao pé dela inconscientemente
E ter uma noção do seu perfume nas nossas idéias mais apagadas.
Quando reparo, não gozo: vejo.
Fecho os olhos, e o meu corpo, que está entre a erva,
Pertence inteiramente ao exterior de quem fecha os olhos
À dureza fresca da terra cheirosa e irregular;
E alguma cousa dos ruídos indistintos das cousas a existir,
E só uma sombra encarnada de luz me carrega levemente nas órbitas,
E só um resto de vida ouve.

HOJE DE MANHÃ

Hoje de manhã saí muito cedo,
Por ter acordado ainda mais cedo
E não ter nada que quisesse fazer...

Não sabia por caminho tomar
Mas o vento soprava forte, varria para um lado,
E segui o caminho para onde o vento me soprava nas costas.

Assim tem sido sempre a minha vida, e
assim quero que possa ser sempre —
Vou onde o vento me leva e não me
Sinto pensar.

NÃO BASTA

Não basta abrir a janela
Para ver os campos e o rio.
Não é bastante não ser cego
Para ver as árvores e as flores.
É preciso também não ter filosofia nenhuma.
Com filosofia não há árvores: há idéias apenas.
Há só cada um de nós, como uma cave.
Há só uma janela fechada, e todo o mundo lá fora;
E um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse,
Que nunca é o que se vê quando se abre a janela.

NAVIO QUE PARTES

Navio que partes para longe,
Por que é que, ao contrário dos outros,
Não fico, depois de desapareceres, com saudades de ti?
Porque quando te não vejo, deixaste de existir.
E se se tem saudades do que não existe,
Sinto-a em relação a cousa nenhuma;
Não é do navio, é de nós, que sentimos saudade.

NOITE DE SÃO JOÃO

Noite de S. João para além do muro do meu quintal.
Do lado de cá, eu sem noite de S. João.
Porque há S. João onde o festejam.
Para mim há uma sombra de luz de fogueiras na noite,
Um ruído de gargalhadas, os baques dos saltos.
E um grito casual de quem não sabe que eu existo.

NUNCA SEI

Nunca sei como é que se pode achar um poente triste.
Só se é por um poente não ter uma madrugada.
Mas se ele é um poente, como é que ele havia de ser uma madrugada?

O ESPELHO

O espelho reflete certo; não erra porque não pensa.
Pensar é essencialmente errar.
Errar é essencialmente estar cego e surdo.

ONTEM O PREGADOR

Ontem o pregador de verdades dele
Falou outra vez comigo.
Falou do sofrimento das classes que trabalham
(Não do das pessoas que sofrem, que é afinal quem sofre).
Falou da injustiça de uns terem dinheiro,
E de outros terem fome, que não sei se é fome de comer.
Ou se é só fome da sobremesa alheia.
Falou de tudo quanto pudesse faze-lo zangar-se.

O QUE OUVIU OS MEUS VERSOS
O que ouviu os meus versos disse-me: "Que tem isso de novo?
Todos sabem que unia flor é uma flor e uma árvore é uma árvore.
Mas eu respondi, nem todos, (?.......... )
Porque todos amam as flores por serem belas, e eu sou diferente
E todos amam as árvores por serem verdes e darem sombra, mas eu não.
Eu amo as flores por serem flores, diretamente.
Eu amo as árvores por serem árvores, sem o meu pensamento.

O ÚNICO MISTÉRIO DO UNIVERSO

O único mistério do Universo é o mais e não o menos.
Percebemos demais as cousas — eis o erro, a dúvida.
O que existe transcende para mim o que julgo que existe.
A Realidade é apenas real e não pensada.

O UNIVERSO

O universo não é uma idéia minha.
A minha idéia do Universo é que é uma idéia minha.
A noite não anoitece pelos meus olhos,
A minha idéia da noite é que anoitece por meus olhos.
Fora de eu pensar e de haver quaisquer pensamentos
A noite anoitece concretamente
E o fulgor das estrelas existe como se tivesse peso.

Fonte:
Poemas Inconjuntos (http://www.cfh.ufsc.br/~magno/inconjuntos.htm)
Imagem formatada com sobreposição de figuras modificadas com imagens obtidas na internet, sem identificação do autor.

O Nosso Português de Cada Dia (Pegadinhas do Português) 3

Pegadinha 9

Confesso que me simpatizei com ela.

O verbo simpatizar, como também seu antônimo antipatizar não são empregados com pronomes. Portanto, escreve-se correto, grafando-se assim:

Confesso que simpatizei com ela.

Abaixo, seguem outros exemplos de frases corretamente escritas:

Você simpatizou com a moça, mas ela antipatizou com você.
Antipatizo com políticos em geral.
Simpatizamos com a nova professora.
Eles antipatizam conosco.

Pegadinha 10

Ela quer se aparecer.

Isso é o fim da estrada da ignorância. Daí em diante, só resta adentrar no campo da bestialidade.

Certos verbos são essencialmente pronominais como suicidar-se, por exemplo. Outros, porém, jamais podem ser usados com pronomes, como os verbos da dica anterior, simpatizar ou antipatizar. Trazemos um desses verbos que jamais são usados com pronome, que é o verbo aparecer. Esse é um típico verbo intransitivo. Não admite voz reflexiva, objetos de espécie alguma. Não se pode aparecer ninguém e, também, aparecer a si mesmo. Escreve-se corretamente, assim:

Ela quer aparecer.

Pegadinha 11

Começou nevar hoje cedo em Urubici.

Certas notícias são dadas de modo negligente, sem nenhuma preocupação com as regras do idioma. O verbo começar forma locução com outro verbo, no infinitivo, por intermédio da preposição a.

Exemplos:
Nice começou a chorar.
Naquela hora, Eliane começou a rir.
Começou a chover.

Eis a frase do topo corretamente escrita:

Começou a nevar hoje cedo em Urubici.

Pegadinha 12

Vou mostrar-lhe meu caderno, mas não repare a desorganização.

O verbo reparar assume dois significados. O que irá determiná-los é a presença ou não da preposição em. Veja, a seguir:

Com a preposição em significa notar, observar:

Repare nos exemplos que damos nesta lição de gramática.
 
Entre, mas não repare na bagunça.
Posso escrever, porém não reparem em meus erros de português.
Sem a preposição em, significa consertar, indenizar:
O técnico reparou o computador que estava avariado.
A empresa reparou os danos causados.
O juiz condenou o prefeito a reparar os prejuízos sofridos pelos camelôs.
O mecânico reparará o motor do carro.

Então escreve-se corretamente a frase original da seguinte maneira:

Vou mostrar-lhe meu caderno, mas não repare na desorganização.

Pegadinha 13

Residente à Rua Joana Sartóri.

As palavras residente, morador, situado e sua forma reduzida sito não admitem a preposição a para ligar-se ao respectivo logradouro, mas, sim, a preposição locativa em. Não se diz, por exemplo, que um imóvel está situado a Campinas, porém em Campinas.

Veja os exemplos que seguem:

O escritório, sito na Rua Filisbina, recebe seus clientes de segunda a sexta-feira.
O prédio está situado na Avenida Duque de Caxias.
Márcio, morador na Travessa Cotia, prestou depoimento ontem.
Resido na Alameda Tabajara.

A frase do topo escrita corretamente fica assim:

Residente na Rua Joana Sartóri.

Fonte:
126 Pegadinhas em Língua Portuguesa. www.softwareebookecia.com.

Raquel Ordones (A Vida Segue)

Fonte:
http://raquelordonesemgotas.blogspot.com

Aluísio Azevedo (O Esqueleto) Parte XIII – Estátuas

O Satanás ao sair do Paço, levando consigo a filha, parou um momento no largo, procurando apertar o coração para lhe conter as palpitações.

Ah! parecia incrível aquilo... tê-la de novo, louca embora, embora desonrada, mas tê-la enfim, poder de novo apertá-la nos braços, purificá-la com o batismo dos seus beijos, tentar à força de carinhos e de afetos restituir-lhe a razão e a felicidade.

O outro vencera... que importava? O essencial para ele era possuir de novo a filha.

Amanhecia. Perto o mar cintilava espumando contra o cais. Passavam negros descalços, nus da cintura para cima, carregando os tigres, barris cuidadosamente fechados e ainda assim empestando o ar. O largo começava a encher-se de trabalhadores e catraieiros.

O Satanás compreendeu que era preciso sair dali. Podia causar suspeitas a sua presença naquele lugar, ao lado de uma mulher, cujo estado de loucura se via logo no desvario do olhar, no desalinho das roupas, no desordenado dos gestos.

E, arrastando consigo a filha, caminhou para o cais.

Um catraieiro acorreu logo:

- Uma canoa, patrão?

- Sim e depressa.

Mas, o catraieiro um brutamontes espadaúdo e barbado, de camisa de flanela branca listrada de azul, olhava agora com desconfiança para o Satanás. Via-se que hesitava, com receio de se ver comprometido em algum crime: receava conduzir aquele homem suspeito e aquela mulher de fisionomia estranha e de vestido ensangüentado, porque o pouco sangue perdido por d. Bias caíra sobre ela.

- Então! que é que esperas?

- Eh! patrão! quem é você?

- Homem, vamo-nos embora e deixa-te de falar, bruto! - gritou-lhe o escultor, metendo-lhe na mão uma moeda de ouro.

Não hesitou mais o catraieiro. Saltou para a canoa e ajudou a descer Branca e o pai.

- Pr'a onde arriba, patrão?

- Para a Lapa. Depressa.

Daí a pouco, saltavam os dous, pai e filha, na praia da Lapa, e entravam, por uma porta baixa, numa casa espaçosa, cheia de janelas.

Era o atelier do Satanás.

Sentia-se, desde a entrada, um cheiro incômodo de mofo, um ar abafado de casa longo tempo fechada, onde ninguém mora, onde ninguém vai. Ao entrar na sala principal, foi necessário que o escultor corresse imediatamente a abrir as janelas, tão forte, tão sufocante era o cheiro do gesso mofado.

Havia muito tempo que o Satanás não entrava ali. O seu tempo andava ocupado em outras cousas, nas correrias noturnas com o príncipe, nas conjurações, nas vigílias vagabundas pelas tavernas e pelas casas de batota. Pallingrini era um nevrótico. Passava meses inteiros na convivência única do copo e da espada, numa boêmia infernal, cheia de bebedeiras e de duelos, sem se lembrar da sua arte. De repente, vinha ao atelier, fechava-se lá oito dias, começava com entusiasmo uma estátua, um busto, trabalhava com ardor, numa impaciência febril, numa alucinação doentia, aborrecia-se, atirava ao chão a pá de modelagem, dava um pontapé no camartelo, e voltava a atirar-se à vida airada, deixando a obra incompleta.

A sala era toda envidraçada. Enchiam-na, cobertos de pó, estragados pela umidade e pelo sol, os esboços do escultor.

Nada acabado, nada completo. Aqui um projeto de digladiador, sem cabeça, levantava-se, cheio de manchas de mofo, esticando os músculos atléticos. Adiante, uma cabeça de mulher, anjos de asas quebradas, grupos disformes, misturados com instrumentos de trabalho, ossos humanos, caveiras e manequins. Uma estátua do príncipe, modelada em gesso, estava atirada a um canto, partida pelo meio.

Foi para aí, para essa casa povoada de estátuas, que o escultor levou a filha: e ela também parecia uma estátua tão fria e tão branca como as outras, arrastando-se pelo atelier, durante os dous dias que se seguiram ao do malogrado duelo.

Foi debalde que o Satanás formou em torno da filha uma atmosfera de cuidados e de carinhos. A vida desaparecia aos poucos, visivelmente, daquele corpo consumido pela febre. E era o que torturava mais o escultor: ver que ela teria de morrer, sem voltar à razão, sem conhecê-lo, sem pela última vez chamá-lo - pai!

No terceiro dia, mais fraca do que nunca, Branca amanheceu ardendo em febre. Tinha a pele abrasada, os olhos vermelhos, o corpo sacudido de calafrios.

- Paulo! meu Paulo! gemia de instante a instante...

O Satanás torcia as mãos, alucinado, à beira do leito. Ao cair da tarde, a febre baixou: e ela ficou serena, com um longo filete de sangue ao canto da boca, murmurando sempre:

- Paulo! meu Paulo!

O Satanás abriu as janelas: extinguia-se já o fogo do ocaso. A noite crescia sobre o mar. Um dilúvio de cinzas invadiu o céu. Tudo cinzento. Longe, no ponto em que o céu beijava as águas, a primeira estrela erguia a pálpebra de ouro. E uma grande tristeza saía de tudo, velando tudo para os funerais do dia. Ainda uma vez a voz de Branca suspirou dentro:

- Paulo! meu Paulo!

O Satanás, à janela, soluçava, com o rosto escondido nas mãos. Mas, de repente, uma gritaria confusa soou lá fora. Um magote do povo aproximava-se entre aclamações: a alma brasileira andava na rua, exultando e cantando, na aurora da emancipação. E aos ouvidos do escultor chegou distintamente a aclamação popular:

- D. Pedro! D. Pedro! D. Pedro!

- Paulo! meu Paulo! - gemia a pobre louca na sua agonia.

O Satanás foi ajoelhar-se aos pés do leito. Oh! era demais! era demais! o outro vencia, aclamado e forte, enquanto ela, a sua filha, morria!

- D. Pedro! D. Pedro! - gritava o povo mais perto.

- Paulo! meu Paulo! - ouviu-se a voz de Branca, ainda uma vez.

A voz saía-lhe agora difícil e fraca, soluçante, como um gemido, da boca que a hemoptise pintava a carmim, e que na alvura polar da sua face parecia a poética e misteriosa flor das neves da Lapônia.

- D. Pedro! D. Pedro!

Todo o corpo da moribunda estremeceu, inteiriçaram-se-lhe os braços, vidraram-se-lhe os olhos. Um último suspiro lhe saiu da boca:

- Paulo! - e ficou imóvel.

O Satanás atirou-se de bruços, com um grande grito de desespero. E o povo passava justamente sob as janelas do atelier: e a aclamação troou, violenta e vitoriosa, invadindo a sala:

- D. Pedro! D. Pedro! D. Pedro!

O temperamento do Satanás reagiu logo contra a sua grande dor sagrada.

Morta... Que lhe restava fazer? renunciar a luta, fugir para longe, para muito longe da terra maldita onde sofrera tanto, e ir preparar nas trevas do seu exílio voluntário, a obra sinistra da vingança, fazê-la amadurecer longamente, até que soasse a hora oportuna para fazê-la rebentar aos pés do príncipe... Mas não quis partir sem levar a filha consigo. Não a levaria viva, mas modelada na pedra dura, que, nas suas alucinações ele procuraria aquecer e animar, a custa de beijos e de abraços.

E atirou-se desesperadamente ao trabalho. Todo o seu talento, estragado e consumido pelo ócio e pelas orgias, voltou como por encanto, ao apelo da dor suprema que lhe vergastava a alma. Ao toque dos seus dedos, o gesso dócil se submetia, obedecendo-lhe aos caprichos da inspiração.

Toda a noite e toda a manhã seguinte, o escultor trabalhou sem descanso. O atelier, abandonado e poeirento, encheu-se de alegria e de vida. O sopro do trabalho animava tudo aquilo; e quando, de madrugada, o sol entrou vitoriosamente pelas janelas, vindo encontrar o artista embebido na sua obra piedosa, as estátuas pareciam sorrir...

Pouco a pouco, da massa informe do gesso, Branca saia, ressuscitada pelo amor do artista. Cercaram-lhe a fronte as ondas do cabelo, rasgaram-se-lhe os olhos, arqueou-se-lhe a boca dum sorriso inocente, empinou-se-lhe o colo virginal.

E ela aparecia assim aos olhos do escultor e ao coração do pai, tão pura e tão bela, como naqueles tempos felizes em que o alcoviteiro do príncipe ia purificar-se, ao seu lado, no pequeno santuário da rua do Conde...

Quando a estátua ficou pronta, o estatuário ajoelhou-se. Duas lágrimas rolaram pelas suas faces: e ele rezou, talvez pela primeira vez na vida.

Mas, acabada a oração, o Satanás transfigurou-se: era outra vez o mesmo espírito forte, o mesmo ousado e diabólico espírito da vingança e do ódio.

Levantou-se, olhou para o mar que se estendia infinito e calmo, ergueu o braço num juramento solene de nunca esquecer e nunca perdoar...

No outro dia, o Satanás fazia-se de vela, a bordo de um navio negreiro, para longe das terras do Brasil; e Branca ficava sob a lápide fria de uma sepultura do cemitério do Carmo, transformando a sua carne moça na seiva que mais tarde rebentaria em rosas na terra que ela purificara com a sua rápida passagem.
––––––––––––
continua…parte final

Soares de Passos (O Buçaco)

Oh! salve, irmão do Líbano,
Que altivo ergues a fronte,
Monarca destas serras,
Senhor da solidão!
Salve, gigante cúpula,
Que ostentas no horizonte,
Erguida sobre as terras,
A cruz da Redenção!

Em teus agrestes píncaros
O homem vive e sente
Mais longe deste mundo,
Mais próximo dos céus:
Por isso, nos seus êxtases,
O monge penitente
Aqui meditabundo
Se erguia aos pés de Deus.

Por largo tempo o cântico
Do pobre cenobita
Soou na ermida rude
Da tua solidão:
Hoje o silêncio lúgubre
Somente nela habita,
Silêncio d'ataúde
Em fúnebre mansão.

Porém se os coros místicos
Findaram sua reza,
Se a voz do santo hossana
Em ti já feneceu;
Tu vives, e inda incólume
Ao Deus da natureza,
Calada a voz humana,
Descantas o hino teu.

Oh! como és belo, erguendo-te
À luz do novo dia,
Que os mantos de verdura
Te banha de fulgor!
Quando o gemer dos zéfiros,
Das aves a harmonia,
Acordam na espessura
Louvando o Criador!

Mas quanto mais esplêndido
Serás quando a tormenta,
Sublime, rugidora,
Em teu regaço cai!
Quando de mil relâmpagos
Teu cume se apresenta
C'roado, como outrora
O fulgido Sinai!

Quando os tufões indómitos,
Rugindo nas escarpas,
Se abraçam às torrentes
Com hórrido fragor!
Depois, em negro vórtice,
Desferem nas mil harpas
De teus cedros ingentes
Um cântico ao Senhor!

Tu és grandioso; o ânimo
Que a sós aqui medita
Recolhe altas imagens
De santa inspiração.
Oh! porque veio túrbida
A guerra atroz, maldita,
Soltar nestas paragens
As vozes do canhão?

Dum lado eram as bélicas
Hostes de Bonaparte;
Do outro heróico e ufano
O povo português:
A liberdade e a pátria,
Ergueu seu estandarte,
E a história do tirano
Contou mais um revés.

Tudo passou: sumiram-se
Vencidos, vencedores;
Té mesmo do gigante
Soou a hora fatal;
Só tu, sorrindo impávido
Do tempo e seus furores,
Inda ergues arrogante
Teu vulto colossal.

E cada vez que fulgido
Renasce o novo dia,
De nova luz te banhas,
Despindo os negros véus;
E dizes, em teu júbilo,
Ao sol que te alumia:
– O rei destas montanhas
Saúda o rei dos céus.

Depois, ao vê-lo pálido
Nas vagas do horizonte,
Pareces ao mar vasto
Dizer com altivez:
Em teu regaço, ó pélago,
Tu lhe sumiste a fronte:
Avança, que de rasto
Virás beijar-me os pés.

Fonte:
Poesias de Soares de Passos. 1858 (1ª ed. em 1856). http://groups.google.com/group/digitalsource

Ditados Populares do Brasil (Letras G-H-I-J-L)

G

Gato escaldado de água fria tem medo.
Gostar de mulher é herança do meu pai.
Guiado por Deus e dirigido por mim.
Gosto não se discute.

H

Há males que vêm pro bem.
Há sempre um chinelo velho para um pé doente.
Homem é como fósforo, sem cabeça não vale nada.
Homem de juízo não diz o que faz, mas nada faz que não possa ser dito.
Hoje é melhor do que ontem e amanhã será melhor do que hoje.
Hoje vejo chorando quem riu de mim no passado.
Homem que bebe e joga, cachorro que pega bode e mulher que trai uma vez estão perdidos os três.
Homem velho e mulher nova resultam em corno ou cova.

I

Inflamável que só viúva moça.
Inimigo da vida é a morte.
Ir num pé e voltar no outro.
Isto são outros quinhentos.

J

Jogar conversa fora.
Justo como boca de bode, certo como pau de cambiteiro.

L

Ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão.
Lágrimas de crocodilo.
Lágrimas de herdeiros, sorrisos secretos.
Língua de sogra.
Língua não tem osso.
Longe dos olhos, perto do coração.

terça-feira, 19 de março de 2013

Aureliano Lessa (Poesias Escolhidas)

ENTUSIASMO

Away, away
Byron.


I

Muito bem, meu ginete brioso,
Morde o freio, sacode essas crinas,
E responda teu rincho fogoso
Ao rugido feroz do canhão!
Corre, voa por essas campinas
Alastradas de tropas imigas,
Que aí ceifarei como espigas
Da seara, coa espada na mão!

II

Voa, rasga esse muro de ferro
Com teu peito de ferro mais forte,
Que ele há de tombar como um perro,
E tu hás de esmagá-lo no chão;
Minha espada é a fouce da morte,
Teu galope é veloz como o raio;
São meus golpes letais: onde caio
Teu nitrido é a voz do canhão!

III

Eia, avante! Derruba por terra
Esse bosque enfeixado de lanças,
E mil crânios e ossos enterra
De teus rápidos pés ao tocar!
Que no mesmo caminho onde avanças
Após ti vem correndo a vitória!
Oh! Tu sabes ao porto da glória
Entre nuvens de balas chegar!

IV

Tua cauda orgulhosa é açoite
Que nas faces dos vis tu resvalas;
Tua cor é mais negra que a noite,
Minha espada é mais clara que o Sol!
São teus olhos flamívomas balas,
Nosso sopro é sulfúrea fumaça!
Quem de ver-nos tiver a desgraça,
Não verá mais clarão do arrebol.

V

Oh! Não dera estes campos medonhos
Pelos reinos que existem na terra;
Não trocara por jogos risonhos
Mil perigos que vêm de tropel!
O meu reino é o campo da guerra,
Minha espada é meu cetro e tesouro,
Minha c’roa é um ramo de louro,
O meu trono este bravo corcel!

A TARDE
II

Mãe da melancolia, ó meiga tarde.
Que mágico pintor bordou teu manto
Co'as duvidosas sombras do mistério!...
— Talvez são elas encantados manes
De nossos pais, que errando pelos ares
Vêm segredar co'a nossa consciência
Dúbios emblemas de celestes frases...
— Talvez são elas pálido reflexo
De um coro d'anjos que a milhões de léguas
Sobre uma nuvem d'ouro descantando
Ante a face do sol longínquos passam...
Não sei! Há dentro d'alma tantas coisas
Que jamais proferiram lábios d'homens...
Entretanto me ecoam pelo espírito
Etéreos sons de peregrina orquestra.
Um doce peso o coração me oprime.
Meu pensamento em sonhos se evapora.
Té de mim próprio sinto um vago olvido.
Um sereno rumor, que a alma dormenta.

III

Salve, filha dos raios e das trevas.
Melancólica irmã das noites pálidas!
Quem te não ama?... A natureza toda
Murmura ao teu passar místicas vozes
Repassadas de unção: — todos os olhos
Passeiam tuas tépidas campinas
Bafejadas de nuvens — té parece
Que a terra, suspendendo o giro, escuta
O adeus que o sol te envia além dos montes.
— Limpa o suór o peregrino errante.
E arrimado ao bordão mudo contempla-te
Esquecido do pouso: — sobre o cabo
Da rude enxada recostado cisma
Nos africanos céus o pobre escravo
Que exausto de fadiga te abençoa
Do fundo d'alma em bárbara linguagem.
Mensageira de amor, tu anuncias
A hora propícia aos sôfregos amantes
Da noturna entrevista; e a donzela
Erma de amor te acolhe pensativa,
Fantasiando quadros de ventura.
Que o vazio do coração lhe supram.
— Talvez agora na floresta anosa.
Proscrito errante, o índio americano
Pára e eleva-te um cântico selvagem
Nunca ouvido dos troncos que o circundam.
— Fadem os deuses pouso ao peregrino.
Liberdade ao escravo, amor à virgem.
E tardes, como esta, ao triste bardo.

ÊXTASIS
Quando, após longa e pensativa pausa
— Eu te amo — dizem teus sonoros lábios,
Baixa do céu e pousa na minha alma
Uma nuvem de ofertas tão suaves;
Como de um sonho os mágicos eflúvios...
— Em êxtases me embebo, e nem meus lábios
Podem ao menos sussurar
— Eu te amo! —

A tua voz percorre as minhas veias,
Banha-me o coração, cerca minha alma.
Enleia-me a existência, e — teu escravo —
Sofro, gemo, desvairo, e quase expiro...

MENSAGEM

(...)
Eu inocente,
Ora voando,
Ora pousando,
Para buscar
Meu alimento,
Não tinha assento.

Eu não podia
Pousar nas flores
De mais licores
Para os chupar;
O vento dava
E me levava...

Um desgraçado,
(De certo o era!)
Disse-me: espera.
Animal lindo,
Vem adoçar
Meu pranto infindo.

Conta a Augusta
Os meus amores,
Que colhe flores
Sem suspirar:
Quanto suspiro,
Quanto deliro.

Conta que viste,
Já sem encanto,
Meu rosto pranto
Triste banhar;
Ah! dize à bela
Que a causa é ela,

Conta que sorves
Da flor a vida
E que, bebida,
Vais divagar;
Que assim sem norte
Dá-me ela a morte.

Conta-lhe quanto
És inconstante
Sem um instante
Jamais parar:
Que tal, ingrata,
Ela me mata...

Co'as asas liba o pólen da cheirosa
Rosa
Que no jasmíneo seio a donzela
Zela,
Mostra-lhe esquivo perto o mais orlado
Lado
Das franjas tuas: se ela te demanda.
Manda
Veloz adejo aonde não percorre...
Corre
Para quem pressuroso aqui te aguarda:
Guarda
Contra ferros de amor laços amenos
Menos
Que os que meu extremo aqui prepara
Para
Uma paixão feliz que não se esvai.
Vai...

 O ECO
Quando eu era pequenino
Subia alegre e traquino
Da montanha o alto pino,
Para os ecos escutar;
Supondo ser uma fada
Que me falava ocultada,
Para ouvir sua toada,
Gritava à toa no ar.

(...)

Ouvir do eco eu queria
Todo o nome que eu dizia;
Mas o eco repetia
Só das palavras o fim;
De certo, o mesmo falando
Estava o mesmo pensando;
E o eco me confirmando,
Eu ia dizendo assim:

"Se o teu amiguinho
Fiel não te enfada,
Fada,
Vem já responder-me
Com tua voz linda,
Inda
Se as coisas bonitas
Que alguns me disseram,
Eram
Verdade ou mentira.

Meu peito esta tarde
Arde
Por saber se as fadas
Um belo condão
Dão,
Que faz criar asas;
Que vai se volvendo,
Vendo
Jardins de outras terras
Cheios de cheirosas
Rosas
Ao pé de uma fonte...
Oh! isto é assim?...
Sim!
Pois, dai-me umas asas,
Quero ir na corrente
Rente,
Ter a mãe das águas
Que está no profundo
Fundo;
E ver perto a nuvem
Que no céu desliza
Liza;

E ver se as estrelas
São frias, ou quentes
Entes:
Se há anjos na lua.
Se o sol tem cabelos
Belos...

TRISTEZA

Dizes que meu amor te encanta a vida
Teus alvos dias, teus noturnos sonhos:
Mas tens a face de prazer tingida,
Teus lábios são risonhos!

Não podem florescer o amor e o riso
Nos mesmos lábios da paixão o fogo
Mata as rosas do rosto, de improviso
Gera a tristeza logo.

Olha: minh'alma é pálida e tristonha.
Minha fronte é nublada e sempre aflita.
Entretanto, uma imagem, bem risonha
Dentro em minh'alma habita.

Mas esse ermo sorrir que tenho n'alma.
Não é como da aurora o riso ardente:
É o sorrir da estrela em noite calma.
Brilhando docemente.

Ah! se me queres a teus pés prostrado.
Troca o riso por pálida beleza:
Mulher! torna-te o anjo que hei sonhado.
Um anjo de tristeza!

 Fonte:
http://www.jayrus.art.br/Apostilas/LiteraturaBrasileira/Romantismo/Aureliano_Lessa.htm

Aureliano Lessa (1828 – 1861)

(Diamantina MG, 1828 - Conceição do Serro MG, 1861)

Iniciou, em 1847, o curso de Direito em São Paulo; no entanto, formou-se bacharel em Direito pela Faculdade de Olinda PE, em 1851.

Em São Paulo, conviveu com Álvares de Azevedo e Bernardo Guimarães.

Trabalhou com procurador fiscal da Tesouraria Geral de Minas, em Ouro Preto MG,  e advogado em Diamantina e Conceição do Serro MG.

Não publicou livros em vida; seus poemas foram reunidos no volume Poesias Póstumas, publicado em 1873, com nova edição em 1909.

Poeta da segunda geração do Romantismo brasileiro, Aureliano Lessa, segundo o crítico Augusto de Lima,  “escrevia principalmente para o povo, se é que ele não se preocupava simplesmente com as suas próprias impressões, dando-lhes a forma que mais convinha ao meio simples em que veio viver”.

Sabe-se que foi autor de modinhas, somente editadas por familiares após seu falecimento. Uma delas, "Lembranças do nosso amor", editada em 1865, foi muito cantada em Minas, rendendo duas versões: a de Laurindo Rabelo, "À minha mulher", é tida como previsão da própria morte desse compositor. Outra versão é a engraçada paródia de Bernardo Guimarães, publicada em 20 de junho de 1867, no jornal "Constitucional" de Ouro Preto.

Vês lá na encosta do monte,
Mil casas em grupozinhos,
Alvas, como cordeirinhos
Que se lavaram na fonte ?!...
Não vês deitado defronte
Qual dragão petrificado
Aquele serro curvado
Que mura a Cidadezinha,
Pois essa cidade é minha
É meu berço idolatrado!...

Ali meus olhos se abriram
À Luz matinal da vida,
Lá primeiro à Mãe querida
Meus lábios de Amor sorriram ...
Lá seu nome proferiram
Antes do nome de Deus !...
Lá tentei os passos meus
Da vida na estrada rude
Lá aprendi a Virtude
Minha Mãe, dos lábios teus.


Olha como ela se inclina
Pela esmeralda do monte
Molhando os pés numa fonte
De água fresca e cristalina.
Olha como ela domina
Esses serros alcantis
Com seus ares senhoris
Com seu cofre de Diamantes
No meio de seus Amantes
Distribuindo rubis.


Salve Atenas tão risonha
Da verde e saudosa Minas
Rainha dessas colinas
Que banha o Jequitinhonha
Teu vassalo; ele nem sonha
Quebrar-te o jugo real...
E vem, a um leve sinal,
Com seus Rubis, com seu Oiro
Derramar no teu tesoiro
O seu tributo anual.


Feliz quem no seio teu
O sopro da Providência
Faz brotar a Inteligência,
Pérola fina do Céu,
Como da Noite no véu
Faz mil pérolas fulgir
Tu tens ó rival de Ofir,
Outras jóias, outros brilhos
Teu tesoiro são teus filhos,
Tua glória é seu porvir.

Seu Porvir, sim, que amanhece
Lá nos longes do Futuro,
Não o meu, que um Fado escuro
De negros fios só tece...
Pátria! tudo me falece
Para erguer teu esplendor
Mas do pobre trovador
Terás o óbolo pobre
No peito um Coração nobre
Na lira um canto de Amor!...


Fontes:
http://www.jayrus.art.br/Apostilas/LiteraturaBrasileira/Romantismo/Aureliano_Lessa.htm
http://passadicovirtual.blogspot.com.br/2009/12/aureliano-lessa.html

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) 23. O Soneto

Se eu tivesse de fazer perante o vigário uma confissão minuciosa, raspando as voltas mais fundas do meu ser, não encontraria de certo explicação para o fato de o soneto de Gabriela me haver tornado, hoje, ao espírito-não à lembrança apenas, ao espírito, à alma. Só posso dizer que, ao vir-me o condutor cobrar a passagem, nem o senti chegar, estava absorvido na segunda quadra.

A vida é um céu que uma só vez se estrela;
toda estrelada e rutilante a viste...

Não me satisfizeram estes versos, nem como idéia nem como forma. Chamar céu à vida é sempre extravagância; demais, um céu que só se estrela uma vez, não pode ser senão um céu de papel pintado. A construção "a viste" era ambígua para o ouvido. Por fim, o período não dava liga. Modifiquei-o:

Contudo, a vida forte boa e bela:
sorriu-te, tanto quanto lhe sorriste.

Podia servir. O diabo era a continuação. Eu não tinha, na verdade, a mínima idéia assentada acerca do caso psicológico de Gabriela, nem sequer sabia que forma e que alma teria essa emanação possível do meu cérebro. Ao contrário de Minerva ao sair da cabeça de Júpiter, estava completamente desarmada. E nem mesmo queria acabar de sair. As casualidades da versificação é que me diriam afinal o que eu houvesse de pensar a respeito. Grande coisa, a versificação.

Contudo, a vida foi-te boa e bela:
a vida te sorriu, tu lhe sorriste...

Dados estes dois versos, o campo de exploração restringia-se. O problema fixava-se em três incógnitas: x) dois decassílabos, em ela e iste; y) que desenvolvessem o pensamento começado; z) tornando possíveis os tercetos com um fecho reluzente e forte.

Hoje, ela te maltrata, e tu caíste.

Aqui, o verbo caíste (le mont est créateur) sugeriu-me espontaneamente este quarto verso:

caíste, pobre moça, na esperança!

Não estaria mal, se eu quisesse fazer humorismo. Bastava modificar de leve os versos
antecedentes:

Outrora, a vida aparece-te bela;
acenou-te, sorriu. Tu lhe sorriste.
E a seus braços voaste. E enfim caíste,
caíste, pobre moça! na esparrela.

O mais engraçado desse humorismo é que a idéia em si é perfeitamente justa e muito séria. A vida, de fato, estende às almas jovens e sequiosas umas fatais urupucas, tentadoras e terríveis, onde elas se debatem e se magoam. Mas o "cair na esparrela" tornou-se cômico pela vulgaridade, e a vulgaridade é o sentido moral figurado. Sentidos profundamente imorais, estes sentidos morais, que apagam tudo quanto há de emoção poética e de pungente verdade humana em tantas metáforas enérgicas e felizes. -Como quer que seja, eu agora já queria bem à moça, como as mães já amam os filhos ainda no ventre, e detestei a idéia de impor à minha criatura um indumento grotesco. Nem que ela fosse real! Não, o soneto havia de ser afetuoso e nobre.

Outrora, a vida apareceu-te bela;
acenou-te, sorriu. Tu lhe sorriste.
E a seus braços voaste; e assim te viste
presa das graças lacerantes dela.

Ora, bem. Faltavam os tercetos. Estava a ensaiar-me para pescar os tercetos no vasto mundo das possibilidades ideais, quando o condutor me chamou ao mundo estreito das
impossibilidades ordinárias:

"O senhor volta para trás?"

O bonde tinha chegado ao ponto final e ia recomeçar o giro. Saltei dele e do sonho (assim chamam os poetas a estes exercícios, que são os mais conscientes e espertos de quantos se possam imaginar) e corri à repartição. -Talvez que disto fique dependendo a inexistência de mais uma obra-prima na literatura nacional. Mas, quem sabe? Ego dormio et cor meum vigilat.

Fonte:
Domínio Público

Antônio Carlos Ferreira de Brito [“Cacaso”] (Madrigal Para Um Amor)

"A maior pena que eu tenho,
punhal de prata,
não é de me ver morrendo,
mas de saber  quem me mata."
(Cecília Meireles)


        Luz da Noite Lis da Noite
        meu destino é te adorar.

        Serei cavalo marinho
        quando a lua semi fátua
        emergir de meu canteiro
        e tu tiveres saído
        em meus trajes de luar.

        Serei concha privativa,
        turmalina, carruagem,
        Mas só se tu, Luz da Noite,
        teu delírio nesta margem
        já quiseres desaguar.

        (Não te faças tão ingrata
        meu bem! Quedo ferido
        e meus olhos são cantatas
        que suplicam não me mates
        em adunco anzol de prata!)

        E quanto nós nos amamos
        em nossa vítrea viagem
        de geada e de serragem
        pelo meio continente!

        Luz da Noite Lis da Noite
        meu destino é te seguir.

        Meu inábil clavicórdio
        soluça pela raiz,
        e já pareces tão farta
        que nem sequer onde filtra
        meu lado bom te conduz:
        Minha amiga vou fremindo
        embebido em tua luz.

Eduardo Prado Coelho (Teolinda Gersão: O Silêncio)

No fim da primeira parte de Perto do Coração Selvagem, Clarice Lispector escreve pela voz da protagonista Joana: «Resvale, de uma verdade a outra, sempre esquecida da primeira, sempre insatisfeita. Sua vida era formada de pequenas vidas completas, de círculos inteiros, fechados, que se isolavam uns dos outros. (...) Continuo sempre me inaugurando, abrindo e fechando círculos de vida, jogando-os de lado, murchos, cheios de passado. Por que tão independentes, por que não se fundem num só bloco, servindo-me de lastro? É que eram demasiado integrais. Momentos tão intensos, vermelhos, condensados neles mesmos que não precisavam de passado nem de futuro para existir. Traziam um conhecimento que não servia como experiência – um conhecimento directo – mais como sensação do que percepção. A verdade então descoberta era tão verdade que não podia subsistir senão no seu recipiente, no próprio facto que a provocara, Tão verdadeira, tão fatal, que vive apenas em função de sua matriz. Uma vez terminado o momento de vida, a verdade correspondente também se esgota.»

Mobilizo o nome de Clarice, neste primeiro lance de aproximação de um livro, por vários motivos. Em primeiro lugar, porque Clarice Lispector é um nome que ocorre ao longo da leitura do livro de que falo. Mas também porque, na citação feita, se esboça uma teoria de narração de que a narrativa de Teolinda Gersão se torna exemplo: cada experiência, cada acontecimento, forma o seu círculo, o espaço da sua verdade evidente. Nenhum destes blocos se soma a outro, nenhum lastro se define: bloco a bloco, cada bloco justapõe-se, condensa-se na sua matriz, abre e fecha um círculo de vida, traz um conhecimento nómada que nunca se acumula num saber da experiência.

Utilizando a forma do círculo, Teolinda Gersão faz de cada um dos três blocos do seu livro um círculo de vida. Contar não é aqui sobrepor factos, mas alargar progressivamente o impacte da pedra ao cair na água. A forma circular fechada é aqui um modelo feminino de abertura: «continuo sempre me inaugurando». E é a nitidez de uma linha recta que nos surge como a forma masculina da clausura.

2

De um lado, Lívia. Do outro, Afonso.

Quando Lívia se imagina, o seu nome alarga-se também: Lavínia. O paradigma é o mesmo: «palavra esdrúxula, sobe até um ponto alto e parte-se de repente» (p. 18). Cada nome é um círculo que se abre e fecha. E por vezes se desdobra: «Lídia, íris, ígnia, um nome esdrúxulo» (p. 47). Ou, se preferirem, um olhar, um fogo, um círculo de fogo, um sol.

Do lado oposto, temos os nomes masculinos, ou o das mulheres que se incrustaram na ordem masculina: a primeira letra, o A, o paradigma dos nomes ordenados: Afonso, Alfredo, Alcina, Ana.

E ainda, intermediários, os nomes que começam por letras do meio: H. J. Mais concretamente, Herberto, Jorge.

E é tudo.

3

Se Lívia e Afonso se amam, se Lívia arranca Afonso a Alcina e vive com Afonso, mas foge, ao aperceber-se que Afonso segrega sempre a mesma relação («se não te deres conta e não lutares depressa, esta casa será, de repente, a outra, de onde procuraste, através de mim, uma saída» – pp. 83-84), o essencial da narrativa O silêncio está em que neste amor se cruzam dois mundos que se não tocam. Se quiserem, todo o livro de Teolinda Gersão modula o famoso aforismo lacaniano: «Il n'y a pas de rapport sexuel».

Mais do que contar experiências de acerto ou desacerto, exaltações ou simulacros, Teolinda Gersão mostra-nos a guerra dos mundos, «a tensão entro ambos, desde o início» pág. 33).

Assim, Lívia e Afonso são personagens reais e há deles uma história que se poderia desfiar. Mas aqui situamo-nos noutro nível, noutra instância de abordagem: entre os dois campos há relações de perigo e resistência, há agressão e invasão, há medo ou tréguas («limites tácitos a todas as palavras» – pp. 11-12). Há também momentos de vitória (p. 23), de defesa ou de aprisionamento («Porque era preciso defender-se contra ele, soube, sentindo que estava presa» – p. 61).

Todas as relações se estabelecem nestas fronteiras intensivas: «Pessoas-campos magnéticos, zonas de tensão, que se chocavam com outras, eram interrompidas por outras, lutavam com outras, originando novos campos de tensão» (p. 51). No limiar do amor, a tensão converte-se em violência: «violência apenas, dissera-lhe, ele exercia sempre violência contra ela (...) a tensão entre eles era assim entre as coisas imóveis e as coisas movediças, entre a ordem e uma desordem contra a qual, obscuramente, ele se defendia? (...) também ela exercia violência contra ele, estava de repente tão perto que ele caía no seu campo magnético, na sua zona de tensão, e se ela desse mais um passo, um único, ele ficaria subitamente vulnerável» (p. 86).

O amor («não há nada no amor, não há talvez o amor, há o desejo e a satisfação do desejo» – p. 60) desenha-se sobre este fundo de impossibilidade: a não-inscrição, no espaço simbólico da fala, do real da relação sexual. Ou, por outras palavras: «reconheceu que eles eram um homem e uma mulher que não se amavam, porque não conseguiriam falar nunca» (p. 109). De certo modo, o silêncio começa ai, onde a relação se faz não-relação, trabalho da morte sobre o corpo.

4

Mas Lídia imagina – as imagens multiplicam-se, proliferam os círculos do imaginário. Arrisquemos uma fórmula: o amor é o círculo imaginário da relação prevalecendo sobre a

não-relação, o precário triunfo do círculo sobre a recta, a (in)decidida linha que hesita e se

encurva. Como dirá Barthes noutro contexto: «Um homem não é feminizado porque é invertido, está apaixonado. (Mito e utopia: a origem pertenceu, o futuro pertencerá aos sujeitos em que há feminino)» (Fragments d’un discours amourex, p. 20).

Lídia imagina, Afonso rectifica. Mas a rectificação é recondução à recta. Por isso Lídia dirá: «e agora eu contarei de novo e se quiser mudarei tudo e mentirei se quiser, porque tu não estarás aqui para dizer que minto, e nada do que eu disser poderás rectificar – colocar em linha recta – agora as coisas podem girar livremente em círculo, em espiral, em leque, desprendem-se das mãos e transformam-se e ninguém irá prendê-las nunca, estou sentada no chão e vou traçando em verde-escuro uma figura que é apenas e sempre provisória, e devagar irei pensando coisas que o mais leve movimento modifica, uma escrita sobre a água, movimentos da água» (pp. 75-76).

E há mais círculos: uma vez é o «conjunto de pequenos jardins girando no espaço, uma espécie de sistema solar» (p. 13); outra vez, «ela era de repente redonda e luminosa, um corpo» (p. 45); mais tarde, é um guarda-chuva ou um guarda-sol: «ela abria um guarda-sol na varanda e sonhava debaixo do guarda-sol, ou abria um guarda-chuva na rua, e sonhava debaixo do guarda-chuva, onde ele não pudesse ver a sua cabeça e os sonhos que corriam dentro dela» (p. 57).

Lídia, disse Afonso voltando, chamando já de longe, e agora ele vinha subindo pela duna e quando chegasse seria de repente o fim do Verão, o vento começaria a varrer as folhas e uma aragem fria subiria do mar, na tarde rápida, seria preciso correr as cortinas, fechar as portadas das janelas, acender a lâmpada do tecto e colocar junto da porta as malas já fechadas (as cadeiras vazias, as jarras sem flores, um chapéu de palha dentro de um armário entreaberto), venha muito devagar, pediu, dentro de si mesma, debruçada à janela, venha o mais devagar que puder, o cheiro quente do mar, do tojo, de vento, do alecrim bravo, de coisas misturadas que existem brevemente, neste momento existem e amanhã estarão mortas, o vento levantando-se, uma nuvem, uma sombra, uma onda fétida, a morte do mar, as praias negras, pássaros caindo em pleno voo, assomou ao portão e em dois passos estava junto dela, e tarde, disse, e pegou numa das malas, venha o mais devagar que puder, o cheiro do mar, do vento, do alecrim bravo, de coisas misturadas que existem brevemente, neste momento existem, e já ficaram de repente para trás, uma casa de areia, uma casa de vento e de espuma.

Em torno de Afonso, Lídia traça o laço da captura, «e descrevendo em volta dele um círculo estreito, cada vez mais estreito, chegaria a um ponto em que ele não se defenderia mais» (p. 38).

5

Círculo aberto, Lídia existe incompleta e em movimento.

Por isso ela se define pela proliferação. Das suas mãos solta-se o inumerável. Passa um cardume negro. Afonso vê cem peixe – não os conta, claro, mas vê apenas o que imagina ser provável. Mas Lídia já não vê, imagina o que deseja – e por isso proclama: eram mil. Eram mil peixes, disse. Contei-os um por um e eram mil.» (p. 48). Milagre dos peixes: Lídia conta um por um o incontável do desejo.

6

Diremos que o espaço de Lídia é o infinito do deserto: «era como caminhar por um areal infindável, uma praia deserta e lisa, contando unicamente com o impulso do seu corpo andando» (p. 24). Por isso a areia a acompanha: «aproxima-se descalça, pisando a areia que se solta do seu corpo» (p. 22). Areia ou arroz: «abriu finalmente um frasco e retirou uma mão-cheia de arroz, deixou-o cair aos poucos, entre os dedos, como areia, escutou o ruído que fazia ao cair na porcelana fria» (p. 60).

Na relação Lídia/Afonso, o infinito de areia em que Lídia se move encontra em Afonso o seu limite: ilusão do suporte, do apoio, da barreira contra a loucura do ilimitado. Lídia dirá: «porque eu era vaga e difusa e sem fronteiras, igual a tudo e a nada» (p. 35). E por isso há uma razão de ser para Afonso: «Talvez porque eu procurava um enquadramento, um limite, uma forma, porque estava perdida na multiplicidade das coisas» (p. 34).

7

Todo o livro se constrói numa duplicidade: não propriamente entre o que se «pensa» e o

que se «fala», mas entre aquilo a que Deleuze chamaria as linhas molares da conversa e as linhas moleculares da conversa. Num primeiro plano, sempre esbatido, temos os grandes, blocos de um diálogo. E depois, num segundo plano, insistente, obstinado, o plano molecular das deslocações imperceptíveis, das grandes acelerações ansiosas, dos desprendimentos clandestinos, da poeira obscura das palavras. Todo o entendimento amoroso se equivoca nas calhas deste desentendimento fundamental – espaço de tensão que neste desequilíbrio se vai acumulando até à explosão final da narrativa no fio da terceira linha submersa: o curso desse, «pequeno animal cego», Lídia, que corre silenciosamente ao longo do livro, até partir de Afonso, até partir do livro, até de si mesmo se partir: nome que sobe até ao i, e nele se quebra.

8

Não é que não haja em Afonso um discurso também ele molecular. Simplesmente, as suas obsessões mestras são outras: o medo da morte ou o terror de ficar sozinho.

Algures diz Henry Miller no seu livro Sexus: «para alguém se tornar o grande amante, o magnetizador e catalisador, é preciso viver primeiro a sabedoria de ser apenas o último dos idiotas».

Clausura de Afonso: ser inteligente no amor. Por outras palavras, recusar toda a desordem, todo o risco, todo o ponto de ruptura, toda a queda no interior de si mesmo, no vazio desse interior. Ou ainda: querer chegar ao desejo sem aceitar a castração.

Lídia imagina: «entrar de repente em sua vida, levando atrás de si o rio, a noite, o vento, a água, a bruma, o obscuro milagre que no universo dele não existia – mas Afonso não punha nunca o seu próprio universo em causa, e não viria nunca ao seu encontro. Ele não aceitava risco algum» (p. 34). Para Afonso, «a vida é uma coisa sem brecha, não há nunca rotura nem milagre». E é aí, nessa exactidão, nessa segurança, que Afonso é mais desamparado do que nunca. Como diria Lacan, tanta inteligência falha, tanta arrogância claudica – «les non-dupes errent». Quando Afonso coloca a agulha do gira-discos sobre o disco, ele visa o ponto exacto da primeira nota de música, e sofreria imenso se não acertasse: e Lídia sorri, complacente – «até esse ponto ele era frágil, verificou, com um sorriso invisível», «porque ela era tão forte que aguentaria qualquer nota errada ou falsa, tão forte que aguentava repensar o mundo» (p. 37).

O feminino é o continente negro de que Afonso se esquiva: recusa a solidão última, o «despojar-se de tudo e também de si mesmo», recusa o ponto de ruptura para onde ela o arrastava, recusa o «partir do espelho e ficar defronte de um espaço negro, uma janela escura» (p. 87).

No universo angular, fechado e quadriculado, em que Afonso se move, no universo das palavras cruzadas em silêncio onde Afonso se fala, todo o desejo é sempre desejo de objecto, amparado na relação de objecto, no pequeno outro onde se agarra.

Lídia abre o espaço feminino do desejo. No homem predomina a função fálica – porque o falo é nele a garantia do um onde o sujeito se não perde ao comprometer-se na relação erótica. Por isso Afonso soma, isto é, estabelece igualdades, afirma a supremacia do Um: «a força dele sobre ela era assim uma força de identificação que a levava a perder os seus próprios contornos, somando-a, apenas, à vida que era a dele». Em Lídia, não: todo o amor é derrame do Um no Outro – queda interminável pelo sangue obscuro. «O seu desejo, que encontra na relação sexual um cume de prazer e um máximo de fruição, é, na realidade, um desejo sem objecto um desejo do desejo, mesmo se há um elemento que o desencadeia. E, por isso, por definição, não cessa. É aqui que se vê melhor o fracasso do objecto (o) na mulher. Ela oscila entre o retraimento total da libido (o não-investimento), por um lado, e um investimento total, por outro lado, mas de quê? De nada.» (Eugénie Lemoine-Luccioni, Le rève du cosmonaute, Seuil, p. 60).

Como se lê no livro de Teolinda Gersão:

«O absurdo de tudo isso, disse Afonso, a paixão da paixão, a procura da procura, o desejo em último caso sem objecto, porque o seu objecto é o desejo e nada do que você conta, ou diz, ou sonha, existe, o medo do amor, disse ela, o medo que você tem de ir até ao limite de si próprio, de destruir tudo o que fica para trás e criar em seu lugar outra coisa» (p. 97).

9

E tudo isto, é claro, incide sobre a própria escrita.

Teolinda Gersão escreve O silêncio usando justaposição de blocos frásicos que nunca perfazem uma soma, que nunca atingem uma saturação. São movimentos de captura que se definem pela insistência. E daí a construção em «e... e ...». Um exemplo, entre muitos: «e inventarão o espaço e a luz e o céu e o mar e o amor e o corpo, porque uma força interior amadurece lentamente e de súbito irrompe e é uma força de mudança» (p. 107). Escrita sem essências, sem polarizações estáveis, itinerante, móvel, nómada, infindável como a areia, onde o «é» dá lugar à força deslumbrante da enumeração, à energia do «e» – escrita rente ao corpo da terra, moldada à flutuação do real, «movimento na água», alegria terrena, empirismo eufórico. E ainda escrita que traz consigo a sintaxe elementar da infância, a música gramatical do circo, o anel aberto das palavras-cerejas: «os amantes repetiam talvez a eternidade e a infância» (p. 3 1).

Porque também de eternidade se trata pelo modo como o não-tempo do inconsciente atrai para o seu campo as formas do tempo: este livro usa, não apenas a repetição intemporalizante das cenas, de modo a adquirirem uma consistência fantasmática, como ainda aquilo a que Harald Weinrich chama «as formas verbais seminfinitas» – isto é, por exemplo, o gerúndio ou o infinito colocados em primeiro plano de tal modo que a informação se torna rarefeita «desprovidas de informação sintáctica que possa ancorá-las na situação de locução, estas formas nada têm de comum com os tempos» dirá Weinrich, Le Temps, Seuil, p. 284).

Assim se ergue a dimensão de investimento fantasmático – como se pode confirmar pela força do infinito: «Um bagageiro leva-lhe agora a mala, sobe no elevador a seu lado, e aminham ao longo do corredor, param diante da porta, ela despede-o rapidamente com uma moeda que tirou da carteira, bate na porta logo aberta, Herberto abraça-a, beija-a longamente na boca, despe-a devagar. Deitar-se contra o seu corpo.» (pp. 74-75).

10

Três verbos sustentam o dispositivo fantasmático de Lídia: correr, cair, partir.

Tempo de partir, descalça, nas manhãs, o corpo inundado pelo sol, tempo de giestas, de gaivotas, de trevo, tojo, plantas bravas. Escalar as dunas, transpirar subindo, agarrada a vegetação rasteira, parar arquejante a meio, o mar de repente encoberto pelo chapéu largo de palha, zumbido de abelhas bravas em volta do seu rosto, chegar finalmente ao cimo arrastando o corpo pela areia, sentar-se na primeira pedra e ver o mar, atirar o chapéu para o lado e levantar a cabeça contra o vento, gritar ou cantar ou ficar calada, olhando o mar, deixar passar as horas sem dar conta, voltar finalmente para casa sobraçando um cesto de flores e camarinhas bravas, empurrar a porta e reencontrar Afonso – o candeeiro aceso sobre a secretaria inglesa, um halo de luz sobre o seu rosto inclinado que ela não vê logo porque ele escreve de costas voltadas para a porta por onde ela acaba de entrar, só depois se volta e ela poisa ao acaso o cesto que acabara sempre por tombar e aproxima-se descalça, pisando a areia que se solta do seu corpo e as flores que se espalharam pelo chão. E a desordem é subitamente uma forma de amor, a sua forma de amor. Interromper Afonso como o mar entrando.

O Silêncio, p. 22

Correr, sim, como um animal. Este livro é atravessado por um incessante devir-animal: chamas-me bicho, chamo-te bicho. O gato, por exemplo, sempre pronto a transformar-se em lince – no salto, no gesto definitivo da captura. Ou ainda os ursos brancos, os dispersos animais do antigo circo: «caminha ao acaso, sem sentir coisa alguma, no meio de tranquilos animais soltos, ursos brancos» (p. 115). Correr, sim, como um pequeno animal cego – construir um animal novo na corrida.

Cair, também cair – descer ao sem fundo, interminável queda dentro de si mesma. E partir partindo-se. Quando Afonso não é mais do que «um animal enjaulado batendo contra as grades sem encontrar saída» (p. 119), Lídia proclama: «deixei tudo no lugar e vou-me embora». Tanto que o livro se fecha, abandonado, sobre o ponto de vista dele, Afonso. «E então ela partia, dentro de si mesma, numa direcção alta e aguda» (p. 51). Afonso confrontando-se finalmente com «o terror de ficar sozinho» (p. 104).

11

Diremos que a mesma força que impelia Lídia para Afonso é aquela que lhe permite escapar-se à tendência para a identificação que leva Afonso a reproduzir na casa outra a casa mesma. Lídia faz do mesmo o lugar provisório do Outro – a evidência esplendorosa do círculo. Afonso reconverte o Outro na estabilidade do mesmo – a monotonia da recta. Cada círculo abre-se no interior de si próprio – por ser demasiado Integral, como explica Clarice: «continuo sempre me inaugurando, abrindo e fechando círculos de vida.» Feminina aprendizagem da seda.

Porque – como diria Herberto Hélder – «cada lenço que se ata, / a própria seda do lenço / o desata. E o rosto que jorra do espelho / volta aos centros / arteriais» (Poesia Toda, p. 550).

Fonte:
http://www.jayrus.art.br/Apostilas/LiteraturaPortuguesa/Contemporanea/Teolinda_Gersao_O_SILENCIO.htm