sábado, 30 de março de 2013

Ernâni Rosas (Sonetos Escolhidos)

SALOMÉ

Ó Bailarina, oh! mariposa inquieta!
Aljofrada da gema de uma tarde.
És nume, Salomé, ágil goleta...
dentre o incenso da sombra que oura e arde...

Espectro errante de um cometa absorto
após a bacanal "saturniana"!...
(onde os nardos têm ócio do "Mar-Morto"!)
e ergue-se a lua irial, sibariana...

Chovem do céu os raios da nova aurora
sobre seu corpo d'âmbar colmado
da via Láctea que su'alma olora...

Numa auréola de Luz e alegoria
Esvaindo-Te em Sonho musicado,
para a glória do "Mal" que a irradia...

HORA DA INSÔNIA
Noite sem termo! A Lua erra em delírio,
Balbucío palavras sem querer...
Cismo no olor vernal d'alma de um lírio,
E sou memória d'algo a transcender...

Sofro-lhe a ausência. A carne é meu martírio,
Ressurjo... Amo a visão do meu Não-Ser!
Todo meu corpo é amorfa névoa--círio...
Volúpia de um perfume a se perder.

Cismo na errante estrela, que deslumbra
O vaso de teu ser dentre o relento
Num murmúrio de fonte que ressumbra!

Sou o olfato! Amo as horas de um jardim...
Sou uma vaga sonora em pensamento:
Eflúvio lirial que vens a mim!...

 RIMAS À LUA:

Dorme em lascivo leito, reclinada...
Repontando de Astros e fogueiras,
Ateias a coivara prateada
Dos caminhos desertos, pegureira...

Lua! Da meia noite, solitária,
Urna errante p'la nave do infinito...
Cravas o lácteo incêndio funerária,
Às montanhas geladas de granito...

Peregrinando em tua marcha hiante
E exausta de fadiga em água amara
Buscas o mar, o oceano o teu amante...

Artista, cuja tela, ao ver-Te aclara!
N'esse sonambulismo inebriante...
Em suas vagas verdes Te enlaçara...

LÚCIFER

No espelho encantado do destino
Mais de uma vez me vi transfigurado:
As horas tinham timbre cristalino
E erravam opalizadas no passado...

Não me fato de olha-las, no mistério
Tênues e loiras como a corda flébil
Do violino outonal do poente aéreo,
Que amortece em lilás num corpo débil...

Não me farto de olhar, erro inconsciente...
O solo é de diamante e o espaço um astro...
Vivem mármores d’alma no poente!

Foge-me a luz e se antecipam as horas,
No lago azul há cisnes de alabastro,
E o espelho em que me vi é tudo auroras!...

PERDI-ME... TODA UMA ÂNSIA...

"Perdi-me... toda uma ânsia me revela
sombra de Luz em corpo de olor vago,
a saudade é um passado que cinzela
em presente, a legenda desse orago".

"Errasse em densa noite de beleza,
pisasse incerto, um falso solo de umbra...
sonho-me Orfeu... o Luar, que me deslumbra...
é marulho de luz na profundeza!..."

Toda a alma do azul esvai-se em lua...
nimba-lhe a face um crepe de Elegia...
É alvor do dia numa rosa nua,

que as minhas mãos cruéis sonham colher...
mas ao tocar desfolha-se mais fria,
que a sombra de meus dedos a tremer...

O SONHO-INTERIOR

O Sonho-Interior que renasceste
era o Poema dum Lírio do Deserto,
o vinho de Outras-Almas que bebeste
fatalizou o meu destino incerto...

Depois por Ti em Sombras de degredo
encerrei a minha alma desolada,
tive a tua visão crepusculada
na Beleza fugaz do meu segredo...

Perdeu-se-me ao Sol-Pôr teu rastro amado!
qual Cipreste, no Poente agonizado, —
na demência autunal duma Alameda...

Velaram-se Sudários teus Espelhos...
ante o cerrar do teu Olhar de seda,
que era um descer de lua em cedros velhos

DEPOIS DE TE SONHAR...

Depois de Te sonhar Mistério ido
e .seguir-Te e ouvir-Te em Hora leda,
de vesti teu Ser a raios de Astro e Olvido,
de Antigüidade o teu perfil de Moeda.

Parei depois de haver corrido tanto
e amado e urdido Horas de Sonho-Asa?
constelada de azul fulgor de brasa
por Tardes enlaivadas de quebranto...

Sonho em Cristal teu corpo de Champagne?
mansa luz que morrendo sem alarde,
não há sol de crepúsculo, que a estranhe...

Acordas do teu Sono, para Mim!
nos meus olhos à sombra, para a Tarde...
por que surges em Sonhos num jardim?

NOITE DE VALPURGIS

Náufrago brigue do Éter e do Sonho,
Derramando um clarão tíbio e suicida...
O sol acena um áureo Adeus à Vida
E doura a imensa estrada ante-sonho!

Âmbito argivo em mármore de estranha
Visão de torres e cruzes brancas,
Onde passaram adejos de asas francas
Das aves, se o Luar neva à montanha...

Gotas nitentes pela luz douradas
São pérolas que um mar verteu um dia,
Junto às areias gris das alvoradas!

Exaurindo-se à Luz dentre a agonia,
Difunde-se qual tule em nuvem alada...
Para voar a tua fantasia!...

PENUMBRA DO LUAR

Noite de lua e noveiro, argente
Difunde-se o luar pela folhagem...
Com a mesma languidez vaga e dormente
Da chuva, quando cai sobre a ramagem...

Como a música ao longe e som dolente
Recorda todo esse abandono... E a aragem
Que passa, agita o olor suave e florente
Vindo das messes, da vernal paisagem...

E o luar cresce através de ermo arvoredo,
Noite chuvosa e triste a Lua ateia...
Fluida névoa de luz... Sonho... Segredo...

Ao ressurgir das coisas na saudade
Que o silêncio evocou... E à luz ondeia
Erra na morta e fria claridade...

SONETO

Vai alta a lua lírica e silente,
Toda paisagem em sonho se embebeu!
Narra a si-mesmo o eco, vagamente...
Paira a auréola da luz dentre os céus...

Parece madrugada! Um galo canta...
Uivam de tédio os cães, não chega o dia!
[pois] se o Luar turvou minha alegria...
E a noite toda de uma mágoa santa!

Outono! Vão-se as horas... E lacrimosa
É tão triste a vereda e a própria casa...
Traz saudades da vida religiosa!

Cada vez mais o luar neva e cintila...
Seixos em pranto à flux o areal abrasa,
E a água por ser ceguinha erra e vacila...

CREPÚSCULO

 Toda existência, é ocasional regresso...
Ali, a sombra do homem é grave e austera,
recai a tarde em cisma, à noute o espera
sossega a ceifa célere dos músculos...

É efêmero o viver do caminheiro
falsa visão do sonho p´la atmosfera
na demência da enxada do coveiro
que enterra as ruínas, mais as primaveras!...

Vida e ânsia vibrando num só verso
no transporte da serra ao éter puro,
é contato genial com o Universo...

Bruxuleia a minguar em céu escuro,
porque não crê, ficando submerso...
entre o oceano e o Nirvana do futuro!...

CONVALESCENTE

Convalesço dos males da Quimera
partindo sempre de um desejo rude,
a malograda sorte da galera
que aportar com delírio nunca pude...

Do amor, nada pretendo com veemência
pela vida misérrima que arrasto!
Eu sinto o frágil coração tão gasto
às futuras e rudes penitências...

Desconheço o rigor dessa ironia
Quando o sol tomba na água e eril centelha
sem n´a apagar em fulva alegoria...

Amo a noute, amo o espelho do Universo
nunca a chaga de um Deus que se avermelha
no sangue que palpita no meu verso!...

VISÃO

Agoirenta visão da luz gelada!
Que mistério possui tua Presença?
Quando desces à terra anuviada,
Vais a Jesus, a Deus pedir licença!...

E arrebatas as almas desgraçadas
às geenas do Mal, como sentença!
e a mim, me levarás pela alvorada
de tuas vestes lúgubres – e descrença!...

Louca hiena da fé bebes-me a vida,
na fria tentação do teu segredo!
no Tântalo falaz, como bebida...

Cerras-me os olhos, gelam-me teus dedos...
arrebatas-me o corpo a vão degredo
num só beijo de morte apetecida!...

A MORTE

 Sou dos ventres a lúbrica bacante,
a pantera em meus ócios de veludo:
fascino os corações, que enervante,
no languir dos aromas, sobretudo...

Serei do teu Amor, homem, o quebranto,
talvez, a morte em minha garra adunca,
sou bizarra no amor, não vejo nunca:
o que possa na dor causar espanto!

Venho meu corpo à alambra do oriente,
Lascivo riso exóticos perfumes...
Encarno a mancenilha em forma ingente!

Sou a sombra do Amor luxuriante.,
Inebrio as cabeças dos amantes...
Nunca amei, nem de mim não tive ciúmes!

Fontes:
Apostila 7 de Simbolismo - Literatura Brasileira, in www.jayrus.art.br
http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/rio_de_janeiro/ernani_rosas.html

Ernâni Rosas (1886 – 1954)

Ernâni Salomão Rosas Ribeiro de Almeida nasceu no Desterro (Florianópolis) em 31 de março de 1886. Filho do também poeta Oscar Rosas.

Trabalhou em cargos modestos e variadas e humildes atividades profissionais.

Viveu no Rio de Janeiro desde os 3 anos de idade. Chegou a entrevistar-se com poetas como Luiz de Montalvo, Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro, mas sua poesia é considerada simbolista, tardia. Viveu em Nova Iguaçu, onde morreu em condições difíceis, com o agravante da discriminação por ser gago e homossexual. Poeta em certo sentido hermético, de inspiração mallarmáica.

Dentre suas principais influências estão Eugênio de Castro e Cruz e Sousa.

Como observa Andrade Muricy: "O fato de ter ficado quase completamente desconhecido e não haver, por isso, tido influência histórica, não lhe invalida a precedência".

O poeta faleceu em 1954.

Fontes:
Apostila 7 de Simbolismo - Literatura Brasileira, in www.jayrus.art.br
http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/rio_de_janeiro/ernani_rosas.html

Alexandre Dumas (Caçada Russa)

O príncipe Troubetzkoi aproximou-se e deu-me a mão. Ele não vinha só para isso, mas também para me convidar a uma caça ao lobo no bosque de Gatchina, onde se diz que os lobos são tão abundantes como as lebres na floresta de Saint-Germain.

A caça aos lobos, juntamente com a caça ao urso, é uma das diversões favoritas dos russos. Apenas que, como os descendentes de Rourik gostam do perigo enquanto perigo, inventaram uma caçada que oferece dois perigos ao mesmo tempo: primeiro, o de ser devorado pelos lobos, como Balduíno I, imperador de Constantinopla; segundo, o de espatifar-se junto com o carro, como Hipólito, filho de Teseu.

Essa engenhosa invenção se realiza no inverno, é claro, época em que a falta de alimento torna os lobos ferozes. Entram numa troika três ou quatro caçadores, cada um com um fuzil de dois tiros. A troika é um carro qualquer (drojky, kibitk, caleça ou tarantass) com três cavalos atrelados. O nome lhe vem da atrelagem, e não da forma.

 O cavalo do meio não deve em nenhum momento deixar o trote, enquanto o da direita e o da esquerda não devem em nenhum momento deixar o galope. O do meio trota com a cabeça baixa, e é chamado comedor de neve. Seus dois parceiros, que não têm mais que uma rédea, são atrelados pelo meio do corpo ao varal do carro e galopam com a cabeça virada, um para a direita e o outro para a esquerda. São chamados furiosos. Assim conduzida, a atrelagem toma o aspecto de um leque.

 Um cocheiro que tenha segurança — se é que há no mundo um cocheiro seguro — conduz a troika. Detrás do carro, com uma corda ou uma corrente de uns dez metros, amarra-se um leitão. Inicialmente o leitão é cuidadosamente transportado dentro do carro, até a entrada do local onde se conta começar a caçada. Ali é descido, e o cocheiro solta os cavalos, que avançam, sendo o do meio trotando e os das alas a galope.

 O leitão, pouco habituado a essa marcha, lança queixas que degeneram logo em lamentações. A essas lamentações, um primeiro lobo mostra seu focinho e começa a ir ao encalço do porco, depois dois lobos, depois três, dez, cinqüenta lobos. Todos disputam o leitão e brigam entre si para se aproximar, um dando-lhe uma patada, outro uma dentada. Das lamentações o pobre animal passa aos gritos desesperados. Esses gritos vão despertar os lobos nas profundezas mais recônditas da floresta.

 Tudo o que há de lobo em três léguas ao redor acorre, e a troika vê-se perseguida por uma matilha de lobos. Nessa hora é importante ter-se um bom cocheiro. Os cavalos, que têm pelos lobos um horror instintivo, tornam-se aloucados. O que trota quereria galopar, os que galopam quereriam desembestar.

 Durante todo esse tempo os caçadores atiram ao léu. Nem há necessidade de apontar. O porco grita, os cavalos relincham, os lobos uivam, os fuzis troam. É um concerto que daria inveja a Mefistófeles no “sabbat”. Coche, caçadores, porco, matilha de lobos, são um turbilhão levado pelo vento. A neve voa em torno, como uma nuvem de tormenta deslizando no ar, lançando relâmpagos e raios.

 Enquanto o cocheiro é senhor de seus cavalos, por mais precipitados que sejam, tudo vai bem. Mas se ele perde o controle, se a atrelagem se detém, se a troika vira, então tudo acaba. No dia seguinte, no outro, ou oito dias depois, encontram-se os restos do carro, os canos dos fuzis, as carcaças dos cavalos e os ossos maiores dos caçadores e do cocheiro.

 No último inverno, o príncipe Repnin fez uma dessas caçadas, e pouco lhe faltou para que não fosse a última. Estava com dois de seus amigos, numa propriedade que limita com a estepe. Resolveram caçar lobos, ou melhor, fazer-se caçar pelos lobos. Preparou-se um amplo trenó, onde duas ou três pessoas podiam mover-se à vontade. Atrelaram-se três robustos cavalos, que foram confiados a um cocheiro nascido na região e muito experiente. Cada caçador tinha um par de fuzis duplos e cento e cinqüenta cartuchos.

 Os lugares foram distribuídos assim: o príncipe Repnin voltado para trás, e cada um de seus amigos voltado para um dos lados. Chegaram à estepe, ou seja, a um imenso deserto coberto de neve. Era uma caçada noturna. A lua, no seu pleno, reluzia com o mais vivo brilho, e seus raios, refletidos pela neve, difundiam uma claridade que podia rivalizar com a do dia.

 O porco foi baixado e o trenó partiu. Sentindo-se puxado contra sua vontade, o porco gritou. Alguns lobos apareceram, mas de início pouco numerosos, medrosos, conservando-se a uma grande distância. Pouco a pouco seu número aumentou, e à medida que aumentavam, aproximavam-se dos caçadores, que para iniciar não comunicaram à sua troika mais que uma marcha comum, apesar da impaciência medrosa dos cavalos. Eram vinte lobos, mais ou menos, quando se encontraram bastante próximos para começar o massacre.

 Um tiro de fuzil partiu, um lobo caiu. Um grande tumulto se fez, e pareceu aos caçadores que o bando ficara reduzido pela metade. Com efeito, contrariamente ao provérbio que diz que os lobos não se comem entre si, sete ou oito esfomeados ficaram atrás, para devorar o morto. Mas logo os vazios foram preenchidos. De todos os lados ouviam-se uivos respondendo a uivos; de todos os lados viam-se aparecer focinhos pontudos e faiscar olhos semelhantes a carvões acesos.

 Os lobos estavam ao alcance, e os caçadores faziam fogo continuamente. Mas por mais que os tiros acertassem, o bando ia sempre aumentando, em vez de diminuir. Em breve não foi mais um bando, foi uma matilha cujas fileiras cerradas seguiam os caçadores. Sua corrida era tão rápida que pareciam voar sobre a neve, tão ligeira que não fazia o menor ruído. A onda de lobos se aproximava sem cessar, como uma maré muda, e não recuava perante o fogo dos três caçadores, por mais nutrido que fosse. Formavam atrás da troika um enorme crescente, cujas duas pontas começavam a ultrapassar a linha dos cavalos.

 O número de lobos aumentou com tal rapidez, que se diria que saíam de debaixo da terra. Havia qualquer coisa de fantástico em sua aparição. Não se podia, com efeito, entender a presença de dois a três mil lobos no meio de um deserto onde, em toda uma jornada de viagem, descobrir-se-iam apenas dois ou três.

 Fizeram o porco cessar de gritar, puxando-o para dentro do trenó, uma vez que seus gritos redobravam a audácia dos perseguidores. O tiroteio não cessava, e já tinham usado mais da metade da munição. Restavam uns duzentos tiros, e estavam rodeados ainda por dois ou três mil lobos. Os dois cornos do crescente avançavam mais e mais, e ameaçavam fechar-se, formando um círculo do qual o trenó, os cavalos e os caçadores tornar-se-iam o centro.

 Se um dos cavalos caísse, tudo acabaria. Os cavalos, espantados, bufavam e davam saltos terríveis.

 — O que pensas disto, Ivan? — perguntou o príncipe ao seu cocheiro.

 — Penso que não está bem, meu príncipe.

 — Temes alguma coisa?

 — Os demônios provaram sangue, e quanto mais vós atirardes, mais seu número aumentará.

 — Qual é teu parecer?

 — Se vós permitirdes, meu príncipe, vou soltar rédeas aos meus cavalos.

 — Estás seguro deles?

 — Eu respondo por eles.

 — E de nós, tu respondes?

 O cocheiro não disse palavra. Era evidente que não queria se comprometer. Ele soltou rédea aos cavalos, em direção ao castelo. Lançados com todo fôlego, aguilhoados pelo terror, os cavalos dobraram a velocidade. A distância era literalmente devorada por seus ímpetos desesperados. O cocheiro os excitava ainda por um assobio agudo, ao mesmo tempo que faziam uma curva que devia cortar uma das pontas da meia-lua. Os lobos afastaram-se, para abrir passagem aos cavalos. Os caçadores iam disparar, mas o cocheiro gritou:

 — Por vossa vida, não atireis mais!

 Obedeceu-se ao cocheiro.

 Aturdidos com aquela manobra inopinada, os lobos permaneceram um instante indecisos. Durante esse instante a troika percorreu um quilômetro, e quando os lobos voltaram a persegui-la, já era demasiado tarde. Não a puderam alcançar.

 Um quarto de hora depois, estava-se à vista do castelo. O príncipe calculou que durante esse tempo os cavalos percorreram mais de duas léguas. No dia seguinte, visitou a cavalo o campo de batalha e encontrou as ossadas de mais de duzentos lobos.

 Como se vê, não faltam emoções nesse tipo de caçada.

Fonte:
Alexandre Dumas. En Russie: Impressions de voyage. Paris/France: Calmann-Lévy. Disponível em http://contosbemcontados.blogspot.com.br/search/label/ALEXANDRE%20DUMAS%20-%20Caçada%20russa

Antônio Martins de Araújo (História da Cidadezinha dos Palacetes de Porcelana)


Era uma vez pelos idos
 de mil seiscentos e doze
 uma rainha francesa
 também chamada Maria
 cujo sonho era enricar
 Maria pegou de seus
 dois tenentes-generais
 de Luís 13 de França
 e os mandou correr mar

 Sieur de Ia Ravardière
 e sieur de Rasilly
 que ouvirem melhor fizeram
 por via de João de Barros
 que era o dono de tuas terras
 passar a velhice honrada
 se importando com seus livros

 a fim de pagar as dívidas
 que o naufrágio que levou
 a seu filho sócio e haveres
 lhe criou pra todo o sempre
 enquanto a vida viveu
 e sabendo das andanças
 de espanhóis e genoveses
 uns pra cima outros pra baixo
 mas todos por estes lados
 puseram proa a noroeste
 e em Upaon-açu deram

 diz que antes por ti passaram
 piratas em rapinagem
 mas porém não te esposaram
 chantaram pelo teu ventre
 encanto e simplicidade

 ontem disse um jesuíta
 que também te muito amou
 e outra vez um filho teu
 que assim te viu e te vê
 seres tu por esses tempos
 do mundo a única filha
 rodeada de mil encantos
 e amor por todos os lados
 mas com toda a maranduba
 desde que foste inventada
 São Luís do Maranhão
 que tens sido cobiçada
 por tudo quanto é nação

 sempre vive de teus dias
 boiando na fantasia
 até Bernardes que nunca
 chegou a te conhecer

 recontou aquele fato
 famoso do julgamento
 das formigas que roubavam
 a farinha dos moirões
 da igreja dos barbadinhos
 de quantos anos atrás

 lá um dia em Guaxenduba
 mil seiscentos e quatorze
 português estava morrendo
 pelas balas dos franceses
 foi quando Nossa Senhora
 da Vitória apareceu
 viu com quem estava a paixão
 pois as balas dos soldados
 de Jerônimo de Albuquerque
 muito havia se acabaram
 ficou com pena dos fracos

 olhou toda aquela areia
 que eles próprios mal pisavam
 e a areia se transformou
 na pólvora com que expulsaram
 os franceses para a França

 o general Alexandre
 no outro ano ficaria
 com o forte de São Felipe
 que seria após cabeça
 do Maranhão-Grão-Pará
 outro tanto do Brasil

 os meus avós me contaram
 que os seus avós lhes contaram
 a estória da baronesa
 que quebrava com martelo
 os dentes de escravas suas
 quando seu marido achava
 os dentes delas bonitos

 outrora até baronesas
 cautelosas dos maridos
 quando as escravas moçavam
 endurecendo seus peitos
 de inveja destas furavam-nos
 com alfinetes queimados
 para seu encantamento
 vazar por aqueles furos
 e murchando ainda em moças
 os maridos não quererem
 ter qualquer coisa com elas

 em fundos vasos de alvacenta argila
 que hoje alguidares se chamam
 desde três séculos atrás
 que em ti se amassa juçara
 pra comer com camarão
 e farinha de mandioca

 já no século dezessete
 um almirante holandês
 te levou um coronel
 pra humilhar teu governo
 apeando-se na praia
 do Desterro e profanando
 a igreja e tua infância
 de menina inconcebida
 logo a maldição da história
 fez do bairro onde a maldade
 se fundou e amanheceu
 a zona donde a miséria
 nunca mais anoiteceu

 só depois é que vieram
 os dois Antônios da história
 que com raiva desterraram
 ao capitão holandês
 para os caminhos de Holanda

 Fonte das Pedras lá em baixo
 Carmo Novo aqui em cima
 e Oiteiro da Cruz lá longe
 trincheira onde os tetravôs
 cimentaram com seu sangue
 a areia de teus anais

 acontecido de ontem
 é a estória de nhá Jansen
 que rojava a escravaria
 sobre a lama das sarjetas
 pra sobre elas pisar
 quando as chuvas estiavam
 mas a carruagem rica
 da grande dona de escravos

 com a alma penada dela
 ainda hoje se arrasta
 com os pesados correntões
 toda meia-noite em ponto
 nas ruas sem uma gente
 de São Luís do Maranhão
 [...]

 e a grande história de amor
 que para quem não conhece
 até parece legenda
 do filho de branco e escrava
 das terras de Jatobá
 que por amor de um amigo
 deixou de fugir com a amada
 e serem ambos felizes
 mas que por isso não foram:
 “Enfim te vejo, enfim posso
 Curvado aos teus pés dizer-te
 Que não cessei de querer-te
 Pesar do quanto sofri...”

 São Luís do Maranhão
 tua história toda é feita
 de amor e libertação
 tu te lembras que Vieira
 pagou com ir para a cela
 e com a morte temporária
 a morte de não te ver
 a ousadia de haver
 tentado livrar os índios
 do sacrifício sem paga?

 tu te lembras que Aluísio
 foi largado nos teus braços
 por tua sociedade
 por ter achado que o negro
 é tão gente quanto o branco
 e humilhado te deixou
 para ser engrandecido
 por terras que não amou?

 mas tu te lembras também
 que algumas vezes tens sido
 não mãe mas quase madrasta
 por consentires que alguns
 de teus filhos atrasados
 não perdoem aos irmãos
 que sabem mais um pouquinho?

 tu te lembras certo dia
 voltou com anel da Bahia
 um certo filho doutor
 que desejou te ajudar
 e por causa da campanha
 que ele fez pela melhora
 de tua alimentação
 seus irmãos ignorantes
 passaram a lhe chamar
 de doutor Farinha Seca
 e ele voltou pra Bahia
 para ser Nina Rodrigues
 e com a ciência provou
 que os negros também são gente?

 mas outros que nem Mohana
 deixam seus ouros lá fora
 fazem voto de pobreza
 e voltam pra te servir
 és assim mesmo! teus filhos
 e até os que só te veem
 podem deixar-te de vez
 mas para nunca jamais
 te apagarão da memória
 com toda a maledicência
 de tuas águas azuis

 tens tudo pra vir a ser
 outra Atenas Brasileira
 no entanto foste o ceitil
 do mais possante rebanho
 de cegos surdos e mudos
 deste país sem fronteira
 deste gigante Brasil
 [...]

Fonte:
ARAÚJO, Antônio Martins. História da Cidadezinha dos Palacetes de Porcelana.  São Luís: Lithograf, 2012

Guimarães Rosa (Corpo Fechado)

(Conto de Sagarana)
–––––––––––––

Análise do Conto

Corpo Fechado é a antepenúltima das nove novelas que compõem Sagarana, romance inaugural da obra ficcional de Guimarães Rosa. Este é um dos contos no qual evidencia-se o universo primitivo e fantástico do autor.

Narrado em primeira pessoa, com o narrador participando da história e tendo visão limitada dos fatos que narra. Quem narra a estória é um médico de um vilarejo do interior. Corpo Fechado começa propriamente no final, com Manuel Fulô contando outros casos para o doutor.

A técnica narrativa do conto é em forma de entrevista. O “doutor”, no decorrer da história, vai entrevistando Manuel Fulô, um valentão manso e decorativo, como mantença da tradição e para glória do arraial.

O cenário é Laginha, arraial monótono do interior de Minas Gerais e o espaço do conto é variado, deslocando-se a ação de um lugar para outro.

Corpo Fechado continua a problemática apresentada em São Marcos: mundo de feitiçarias e bruxarias. Um curandeiro fecha o corpo e anulando a fragilidade do protagonista que, imantado pela fé, vence o vilão, brutal e valente, mas sem o amparo do sagrado.

Além dessa temática, sobressai também a saga dos valentões das gerais, principalmente com o temível Targino, e a saga dos ciganos, muito freqüente no interior.

Personagens

Médico - Narrador, mora num arraial do interior de Minas. Fez amizade com Manuel Fulô. Gostava de ouvir-lhe as conversas.

Manuel Fulô - Sujeito pingadinho, quase menino, cara de bobo de fazenda, cabelo preto, corrido. Não trabalhava. Gostava de moça, cachaça e conversa fiada.

Beija-Flor - Besta ruana, de cruz preta no dorso, lisa, lustrosa, sábia e mansa – mas só para o dono, Manuel Fulô.

Das Dor - Noiva de Manuel Fulô; moça pobre, mas muito bonita.

Targino - O valentão mais temido do lugar. Era magro, feio, de cara esverdeada. Dificilmente ria.

Antônio das Pedras-Águas - Era pedreiro, curandeiro e feiticeiro.

Resumo do conto

A amizade do narrador com Manuel Fulô nasceu do nada. Solidificou-se quando o narrador descobriu que Manuel comia cogumelo com carne. Manuel Fulô gostava de moças, de cachaça e de conversa fiada.

Beija-Flor era o orgulho de Manuel Fulô. Mais que isso: era uma espécie de complemento. Besta ruana, de cruz preta no dorso, lisa, lustrosa, sábia e mansa – mas só para o dono. Quando Manuel Fulô ficava bêbado – e isso acontecia todos os domingos – atracava-se ao pescoço de Beija-Flor, e a mula levava-o com todo o cuidado. Sabia abrir porteiras.

Manuel Fulô conta ao narrador que viveu uns tempos com uns ciganos só para aprender alguns truques. Os ciganos gostavam dele porque pensavam que ele era bobo de verdade. Com os ciganos, Manuel Fulô aprendeu tudo sobre cavalos. Sabia transformar animal ruim em bicho de valor em pouco tempo. Quando deixou os ciganos, passou a ganhar dinheiro negociando com animais.

Manuel Fulô contou ao narrador como conseguiu, certa vez, enganar os ciganos. Arranjou dois cavalos imprestáveis, preparou-os, fez-lhe maquiagens para disfarçar defeitos e trocou-os por dois cavalos bem melhores. Com isso, perdeu a freguesia. Ninguém quis mais negociar com Manuel Fulô porque ele era capaz de enganar até ciganos.

Uma noite, o narrador e Manuel Fulô estavam bebendo cerveja na venda. De repente, entrou Targino e caminhou na direção dos dois amigos. Pediu licença ao doutor: queria falar um particular a Manuel Fulô. Pura formalidade, pois Targino falou bem alto, na porta da venda, a três passos do narrador:

– Escuta, Mané Fulô: a coisa é que eu gostei da das Dor, e venho visitar sua noiva, amanhã... Já mandei recado, avisando a ela... É um dia só, depois vocês podem se casar... Se você ficar quieto, não te faço nada... Se não... – E Targino, com o indicador da mão direita, deu um tiro mímico no meu pobre amigo, rindo, rindo, com a gelidez de um carrasco.

Depois da ameaça, o doutor-narrador levou Manuel para a casa dele (do doutor). Que fazer? O próprio Manuel não via saída. Targino era valentão, ninguém podia com ele. No outro dia, enquanto Manuel ainda se recupera do porre, o doutor saiu à procura de ajuda. Primeiro, foi à casa do Coronel Melguério. O homem deu de ombros: se alguém tivesse coragem de enfrentar o Targino... Depois, foi a vez do vigário: prometeu rezar. De volta, o doutor encontrou a casa cheia: eram os parentes de Manuel Fulô. Pediam ao doutor que não fizesse nada. O correto era entregar para Deus. Maria das Dores estava sozinha com a mãe, chamando pelo noivo.

Chamava-se Antonico das Pedras ou Antonico das Águas. Era pedreiro, curandeiro e feiticeiro. No meio da aflição, foi ter à casa do doutor. Ali, com ar de pressa, trancou-se no quarto com Manuel Fulô. Um tempo depois, a porta abriu-se, e Manuel anunciou com cara de defunto: entreguem a mula Beija-Flor para seu Antônio. O feiticeiro pediu um prato fundo, brasas, linha e cachaça. Os apetrechos apareceram, e os dois se trancaram no quarto.

Enquanto isso, Targino saiu à rua deserta e caminhava em direção à casa onde estava a Maria das Dores, a noiva ameaçada.

Manuel Fulô, depois de algum tempo trancado no quarto com Antônio feiticeiro, saiu teso, cara de mau, olhar fixo. E assim, caminhou para a rua: ia ao encontro de Targino. Todos ficaram assustados. Antônio Feiticeiro explicou: Manuel Fulô estava com o corpo fechado. Arma de fogo não tinha poder sobre ele. A mãe de Manuel pediu que segurassem o filho dela, pois seu Toniquinho pusera-o doido. "Mas ninguém transpôs a porta". E lá estavam os dois, Targino e Manuel Fulô, frente a frente. Manuel falou primeiro, xingando a mãe do valentão. Mexeu na cintura e tirou dela uma faquinha quase canivete. Cresceu para cima de Targino. Foram cinco tiros, as balas zuniram. Manuel Fulô pulou sobre Targino e aplicou-lhe várias facadas pela altura do peito. O valentão capotou e morreu num átimo. Manuel Fulô ainda lhe deu mais facadas, sujando-se todo de sangue.

Manuel Fulô fez um mês inteiro de festa e até adiou o casamento, pois o padre teimou que não matrimoniava gente bêbeda. O narrador foi o padrinho.

Fonte:
http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/analises_completas/c/corpo_fechado_conto

O Nosso Português de Cada Dia (Pegadinhas do Português) 7

Pegadinha 35

Ele se acorda às seis horas todos os dias.

Nesta frase o pronome se está tornando a frase incoerente, isto é, o emprego desse pronome é inadequado. Em provas de vestibular e concurso público, esse tipo de ocorrência provoca a chamada incoerência textual ou linguagem inconsequente.

Ninguém acorda a si mesmo! Cada indivíduo, simplesmente, acorda ou, então, é acordado por alguém, algum som alto, um terremoto etc. Agora, decididamente, acordar a si mesmo é proeza que escapa à habilidade humana.

A frase equivocada, depois de corrigida, fica assim:

Ele acorda às seis horas todos os dias.

Pegadinha 36

O governo vai criar novos impostos.


A expressão criar novos é da mesma família de subir pra cima, descer pra baixo, chutar com os pés etc. Já que não é viável criar nada velho, escreva-se, pois, apenas criar, e pronto!

A frase inicial, depois de corrigida, fica assim:

O governo vai criar impostos.
Pegadinha 37

Não me importo que o Palmeiras perca.


Faz-se três construções com o verbo importar-se, sempre pronominal no sentido de ter importância ou interesse:

1 - quando o sujeito for uma oração introduzida pela conjunção integrante que, o verbo importar deve estar no subjuntivo (exclusivamente para casos como o da presente dica). Exemplos:

Não me importa que você discorde.
Não me importa que o partido perca.

2 - quando o sujeito não for uma oração, usa-se somente importa, sem a conjunção que:

Não me importa a derrota da Argentina.

3 - se ao verbo seguir a preposição com, emprega-se importo, forma do presente do indicativo. Exemplos:

Não me importo com tuas lamúrias.
Não me importo com frescuras.
Outros exemplos em outros tempos verbais:
Não me importará que ele vença a competição.
Não me importaria que Márcia dissesse a verdade.
Naquela época, não me importava que a economia fosse mal.
Não me importaram os elogios baratos.
Não me importou a vitória inglesa.
Não me importarei com divertimentos banais.
Não me importava com coisa alguma.

Depois da correção, a frase fica assim:

Não me importa que o Palmeiras perca.

Pegadinha 38

A palestra agradou os congressistas.


Esta é uma questão de transitividade verbal. O verbo agradar, usado como transitivo direto, significa fazer carinho, mimar, enfim fazer as vontades. Exemplos:

A mãe agrada o filho recém-nascido, a fim de que ele pare de chorar.
A namorada agrada o rapaz, com elogios e atenções desmedidos.

Conforme exposto acima, palestra nenhuma poderá agradar os congressistas ou quem quer que seja.

Uma boa palestra, mas só se for boa mesmo, poderá agradar aos congressistas (note a preposição a); pois o verbo agradar, usado como transitivo indireto, significa corresponder à expectativa, satisfazer, produzir agrado. Veja outros exemplos de frases com o verbo agradar, empregado como transitivo indireto. Exemplos:

O filme agradou aos estudantes.
A prova agradou aos candidatos.
O resultado não agradou a mim.

A frase inicial, depois da correção, se apresenta assim:

A palestra agradou aos congressistas.

Pegadinha 38

Ganho apenas um mil reais por mês.


Não se mistura um (singular) com mil (plural). Com mil só se usam os numerais dois, três, quatro e os que exprimirem valor superior. Exemplos:

Comprei mil quilos de farinha.
Vendemos mil quilos de peixe,
Transportamos dois mil suínos para o Nordeste.
Trouxemos seis mil sacas de cimento.

A frase inicial, depois da correção, fica assim:

Ganho apenas mil reais por mês.
Pegadinha 39

O time perdeu porque seu centroavante não chutou em gol durante toda a partida.

Neste caso, quem acaba perdendo, verdadeiramente, é quem diz ou escreve uma frase dessas, desperdiçando a oportunidade de calar-se. O verbo chutar admite as seguintes regências: chutar a, chutar para, chutar contra ou, simplesmente, chutar. Exemplos:

O jogador chutou a gol.
O jogador chutou para o gol.
O jogador chutou contra o gol.
O goleiro chutou para fora.
O jogador chutou acima da trave. (E não: ... em cima da trave.)

A expressão dar chutes pode ser usada, também, com a preposição em. Exemplos:

O jogador deu chutes na bola contra o gol adversário.
A criança dava chutes na porta.

A frase inicial, depois da correção, fica assim:

O time perdeu porque seu centroavante não chutou a gol durante toda a partida.
Pegadinha 40

Ninguém sabe aonde eu moro!


Aonde somente se emprega com verbos e expressões que indicam movimento:

E agora! Vamos aonde?
Determinaram sua ida aonde?
Já, para designar um local, usa-se onde:
Trabalho onde poucos teriam coragem de trabalhar.

A frase inicial, devidamente corrigida, fica assim:

Ninguém sabe onde eu moro!
Pegadinha 41

A obrigação do preenchimento da guia é do próprio contribuinte!


A palavra obrigação exige um tipo de preposição, conforme o elemento ao qual se refere. Referindo-se a nomes, no sentido de fazer uma determinada ação, obrigação exige a preposição a. Referindo-se a verbos, exige a preposição de. Já, referindo-se a nomes, usada sempre no plural (obrigações), no sentido de compromisso, exige a combinação das preposições para com. Exemplos:

A obrigação ao alistamento militar é intransmissível. (fazer o alistamento)
A obrigação de pagar as custas é do requerente.
Todo técnico de futebol tem obrigação para com seus jogadores.

A frase inicial, depois da correção, fica assim:

A obrigação ao preenchimento da guia é do próprio contribuinte!

Pegadinha 42

Toda a mulher casada deveria saber dirigir automóvel.


Toda a (note a presença do artigo) significa inteira. Depois desse entendimento, a frase parece esdrúxula da cabeça aos pés!

Toda (note a ausência do artigo) significa qualquer. Agora, sim, a frase passa a ter sentido, pois se quer referir, na frase inicial, a qualquer mulher, e não à mulher inteira.

Veja os seguintes exemplos:

Todo homem deveria falar uma língua além da materna. (qualquer homem)
Todo o homem tremia de frio. (o homem inteiro)
Toda a cidade festejou a vitória do time. (a cidade inteira)
Toda cidade tem problemas com drogas. (qualquer cidade)

A frase inicial, depois da correção, fica assim:

Toda mulher casada deveria saber dirigir automóvel.


Fonte:
126 Pegadinhas em Língua Portuguesa. www.softwareebookecia.com.

Luis Vaz de Camões (Caravela da Poesia XXII)

Sonetos

136
A fermosura fresca serra,
e a sombra dos verdes castanheiros,
o manso caminhar destes ribeiros,
donde toda a tristeza se desterra;

o rouco som do mar, a estranha terra,
o esconder do sol pelos outeiros,
o recolher dos gados derradeiros,
das nuvens pelo ar a branda guerra;

enfim, tudo o que a rara natureza
com tanta variedade nos ofrece,
me está (se não te vejo) magoando.

Sem ti, tudo me enoja e me aborrece;
sem ti, perpetuamente estou passando
nas mores alegrias, mor tristeza.

114

Ah! Fortuna cruel! Ah! duros Fados!
Quão asinha em meu dano vos mudastes!
Passou o tempo que me descansastes,
agora descansais com meus cuidados.

Deixastes-me sentir os bens passados,
para mor dor da dor que me ordenastes;
então nü'hora juntos mos levastes,
deixando em seu lugar males dobrados.

Ah! quanto milhor fora não vos ver,
gostos, que assi passais tão de corrida,
que fico duvidoso se vos vi:

sem vós já me não fica que perder,
se não se for esta cansada vida,
que por mor perda minha não perdi.

101

Ah! minha Dinamene! Assi deixaste
quem não deixara nunca de querer-te?
Ah! Ninfa! Já não posso ver-te,
tão asinha esta vida desprezaste!

Como já para sempre te apartaste
de quem tão longe estava de perder-te?
Puderam estas ondas defender-te,
que não visses quem tanto magoaste?

Nem falar-te somente a dura morte
me deixou, que tão cedo o negro manto
em teus olhos deitado consentiste!

Ó mar, ó Céu, ó minha escura sorte!
Que pena sentirei, que valha tanto,
que inda tenho por pouco o viver triste?

013

Alegres campos, verdes arvoredos,
claras e frescas águas de cristal,
que em vós os debuxais ao natural,
discorrendo da altura dos rochedos;

Silvestres montes, ásperos penedos,
compostos em concerto desigual,
sabei que, sem licença de meu mal,
já não podeis fazer meus olhos ledos.

E, pois me já não vedes como vistes,
não me alegrem verduras deleitosas,
nem águas que correndo alegres vêm.

Semearei em vós lembranças tristes,
regando-vos com lágrimas saudosas,
e nascerão saudades de meu bem.

080

Alma minha gentil, que te partiste
tão cedo desta vida descontente,
repousa lá no Céu eternamente,
e viva eu cá na terra sempre triste.

Se lá no assento etéreo, onde subiste,
memória desta vida se consente,
não te esqueças daquele amor ardente
que já nos olhos meus tão puro viste.

E se vires que pode merecer te
algüa causa a dor que me ficou
da mágoa, sem remédio, de perder te,

roga a Deus, que teus anos encurtou,
que tão cedo de cá me leve a ver te,
quão cedo de meus olhos te levou.

083

Amor, co’a esperança já perdida,
teu soberano templo visitei;
por sinal do naufrágio que passei,
em lugar dos vestidos, pus a vida.

Que queres mais de mim, que destruída
me tens a glória toda que alcancei?
Não cuides de forçar me, que não sei
tornar a entrar onde não há saída.

Vês aqui alma, vida e esperança,
despojos doces de meu bem passado,
enquanto quis aquela que eu adoro:

nelas podes tomar de mim vingança;
e se inda não estás de mim vingado,
contenta te com as lágrimas que choro.

005

Amor é um fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói, e não se sente;
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;
é um andar solitário entre a gente;
é nunca contentar se de contente;
é um cuidar que ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade;
é servir a quem vence, o vencedor;
é ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor
nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor?

042

Amor, que o gesto humano n'alma escreve,
vivas faíscas me mostrou um dia,
donde um puro cristal se derretia
por entre vivas rosas e alva neve.

A vista, que em si mesma não se atreve,
por se certificar do que ali via,
foi convertida em fonte, que fazia
a dor ao sofrimento doce e leve.

Jura Amor que brandura de vontade
causa o primeiro efeito; o pensamento
endoudece, se cuida que é verdade.

Olhai como Amor gera num momento,
de lágrimas de honesta piedade
lágrimas de imortal contentamento.

058

A Morte, que da vida o nó desata,
os nós, que dá o Amor, cortar quisera
na Ausência, que é contr' ele espada fera,
e co’ Tempo, que tudo desbarata.

Duas contrárias, que üa a outra mata,
a Morte contra o Amor ajunta e altera:
üa é Razão contra a Fortuna austera,
outra, contra a Razão, Fortuna ingrata.

Mas mostre a sua imperial potência
a Morte em apartar dum corpo a alma,
duas num corpo o Amor ajunte e una;

porque assi leve triunfante a palma,
Amor da Morte, apesar da Ausência,
do Tempo, da Razão e da Fortuna.

068

Apartava se Nise de Montano,
em cuja alma partindo se ficava;
que o pastor na memória a debuxava,
por poder sustentar se deste engano.

Pelas praias do Índico Oceano
sobre o curvo cajado s'encostava,
e os olhos pelas águas alongava,
que pouco se doíam de seu dano.

Pois com tamanha mágoa e saudade
(dezia) quis deixar me a que eu adoro,
por testemunhas tomo Céu e estrelas.

Mas se em vós, ondas, mora piedade,
levai também as lágrimas que choro,
pois assi me levais a causa delas!

Fontes:
  • CAMÕES, Luís Vaz de. Sonetos. A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro . Texto-base digitalizado por: FCCN - Fundação para a Computação Científica Nacional (http://www.fccn.pt) IBL - Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro (http://www.ibl.pt)
  • Imagem formatada com imagem obtida na internet, sem identificação do autor.

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) 28. Modéstia

Franklin Penha dera-me hoje a impressão de um grande fátuo. Viu-me no bonde e cumprimentou-me com excessiva amabilidade, com regozijada surpresa, como se tivesse descoberto em mim, de repente, algum encanto inédito. E eu nem sequer tinha a barba feita. O motivo não tardou a aparecer. O que Franklin pretendia era capturar a minha atenção e boa vontade para uma notícia de jornal que trazia recortada, no bolso, e lhe pesava como uma barra de ouro. A notícia era mais ou menos a seguinte:

"O Senhor Doutor Franklin da Costa Penha, conceituado advogado do nosso foro e futuroso cultor do nosso passado, acaba de ser nomeado sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Estado de..., por indicação, unanimemente aprovada, do eminente historiógrafo brasileiro Sr...."

-"Parabéns, bichão."

-"Oh!"

Apesar desse oh! Franklin estava realmente satisfeito, mais talvez do que o seu venerando xará depois que eripuit fulminen, etc. Guardou o retalho na carteira, quase a afagá-lo com as pontas dos dedos, como se fosse um aéreo tecido de seda; arrumou a carteira no bolso e, confidencial e grave:

-"Não; eu, de fato, para ser franco, fiquei muito contente. Eu sou assim. Tenho ainda alguma coisa do menino de colégio, que se ufana dos prêmios recebidos. Puerilidade. Pura, insofismável puerilidade. Eu podia contar-lhe esta nova assim com um arzinho de quem não ligava, negligentemente, como por uma lembrança de acaso. Podia ter-lhe dito que o fato me agradava por este ou por aquele motivo nobre; pelo prazer que teriam lá em casa, pela recomendação que estas distinções representam no seio de uma burguesia bobalhona... enfim qualquer coisa por esse gosto. Mas tudo isso não seria senão hipocrisia. A verdade pura é que fiquei contente por mim mesmo, pela própria distinção em si; contente deveras, cheio de contentamento como um balãozinho de goma elástica cheio de ar. Eu sou assim. "Mas também, amanhã ou depois, já estarei resfriado; nem me lembrarei mais de que fui eleito sócio correspondente. Depende de eu querer alcançar uma outra tetéia que no momento me seduza."

Franklin dizia-me estas coisas com tanta simplicidade e com um lume tão sincero nos olhos, que tudo lhe aceitei como vera confissão. E absolvi-o. Não, ele não é fátuo. É talvez mesmo o oposto do fátuo, um grande modesto.

Modéstia, afinal, não é isso? A verdadeira não é aquela que se proíbe a mínima expansão de vaidade. Os indivíduos que se proíbem a menor demonstração de vaidade são quase sempre os mais vaidosos dos vaidosos. Pretendem, sonham, invejam, sofrem e gozam tanto quanto os outros, com a única diferença de que põem abafos a isso tudo e, além de tudo, ainda querem fruir a reputação de ser extraordinariamente modestos. Há mesmo cidadãos que devem a maior parte do seu renome à sua modéstia ou à sua preguiça. O pouco que dão de si, dão como passatempo, como capricho ou brinco de um momento, como efeito de imposições alheias, como necessidade ocasional. Por si mesmos, não, não querem nada, querem sossego! Mas o seu maior gozo é quando os admiradores exclamam: "Ah! se este safado se resolvesse a trabalhar!" Vaidosos dobrados, têm várias vaidades lá dentro, presas e gordas como perus de galinheiro, e ainda por cima se deliciam, epicuristicamente, com a vaidade de não ter nenhuma vaidade, que é a mais vá, a mais falsa, a mais loucamente ambiciosa de todas.

O modesto verdadeiro não é o que se envergonha das suas vaidades, é aquele que lhes dá expansão, reconhecendo-as porém com bonomia como tais, sem lhes emprestar outros nomes, nem estar com rodeios e mentirolas. Somente, possuir a clara consciência delas é automaticamente reduzi-las. Dar-lhes expansão, assim, é rarefazê-las. É torná-las exteriores, superficiais e passageiras, como um suor, como escamazinhas eruptivas da pele, como secreções, coisas que a economia orgânica de um corpo são, normalmente engendra e rejeita. Uma limpeza, uma "catársis", um arejamento, um alívio.

Gozar as próprias vaidades com sincera e inocente imprudência é o melhor meio de lhes sentir a vacuidade, de as tornar inócuas, de acabar por desprezá-las e perdê-las. Permitir-lhes que levantem o vôo é deixar que se vão embora.

Alegrar-se alguém abertamente com os seus pequenos triunfos é um modo amável de se confessar bem gratificado. Saudável fusão de bonomia, conformidade e desprendimento: modéstia, enfim; a boa, a legítima, a pura. A única.

Todo o mal da vaidade está nos sentimentos e nos cálculos que se lhe ajuntam, que a mascaram, a pervertem, a envenenam, a entranham na alma, hipertrofiando-a, dando-lhe porvezes a figura hidrópica de virtudes austeras, dessas que merecem lápides em latim. -É assim que se formam esses veneráveis cavalheiros amargos que santamente odeiam todas as manifestações brilhantes e aladas da vida, esses grandes desambiciosos que se vingam em todo o mundo de não poderem confessar ambições, esses perpétuos caluniadores que enxameiam e zumbem, como varejeiras pesadas e tontas de sânie, em redor de cada desgraçado cujo nome não ficou soterrado como o deles na própria impotência.

Nietzsche teve razão – o que algumas vezes lhe acontece por maneira fulmínea -quando disse que as paixões, em seu estado puro, são boas. Apenas haverá nisso exagero. São boas porque são naturais, porque são o próprio homem. O que as torna más, corrompendo-as envilecendo-as, é a hipocrisia, que as dissimula intensificando-as no entanto; que as enfeita por fora, como serpentes, mas dá-lhes o veneno e a insídia; que as oculta e as desvia de seus fins imediatos, claros e geralmente saudáveis, para as pôr ao serviço de afetos nobres e de longos, tenazes e engenhosos ressentimentos.
Menos ousado, Augusto Comte apenas reconhece à vaidade -desejo de aprovação -direitos de cidade na sua moral sociocrática; mas...

... Mas que Nietzsche! que Comte! que Fulano ou Beltrano! Antes de todos eles, o Eclesiastes havia proclamado, para todo o tempo, que tudo é vaidade neste mundo.

Dessa e de outras afirmações se tirou apressadamente a ilação de que o cristianismo nascente votava um ódio entranhando à vida. Mas ele não fazia senão pôr o dedo na latejante verdade, na dolorosa e redentora verdade. Era uma libertação e um alívio que ele trazia: tornaram-no um torvo condenador da vida. Era uma reação contra o formalismo, a pedantaria, a artificiosidade hipócrita do judaísmo literalizante e manhoso, uma revolta do espírito, uma insurreição de veracidade heróica, alegre triunfal da nossa miséria".

Sim, tudo é vaidade; sim, o homem é mau; sim, somos o verme da terra. Pois, sejamos vaidosos, sejamos maus, sejamos vermes, francamente, de cara descoberta, de alma leve, com a lavada e impudente sinceridade da flor e da fera, à luz do Sol e à face de Deus, na perpétua humildade de uma confissão total e tranqüila! Não queiramos converter velhacamente a larga realidade comum da nossa pobreza em falsas opulências de exceção. Quem se abaixa é que será exaltado: só quem se reconhece tal qual é, ou tal qual somos, achará em si mesmo a verdadeira força purificadora e ascensional, que não mente nem quebra. Confessemo-nos sinceramente a Deus, e Deus a todos os humildes perdoa e sustém.

Como é que a tola perversidade humana pôde converter a clara e benéfica fonte de liberdade e de alegria, que há no fundo dessa viril visualização cristã da vida, nesta coisa sombria e horrenda, nesta mascarada de mistificações, neste pesadelo de atrozes artifícios, neste abominável Santo Ofício de idealismos hipócritas e peçonhentos e de mútua espionagem, que a sociedade instituiu dentro de si mesma e carrega no seio como um rolo esfervilhante de víboras?

Jesus claro, natural e harmonioso como a Verdade, até fabricou vinho em Caná para a jovialidade simples dos homens...

A modéstia é uma virtude imensuramente prezada pelo grande número. Todos a veneram. Todos a exigem dos outros. Por que? Mas, evidentemente, por ciúme e inveja. Não há ninguém mais modesto do que as velha chupadas, arrependidas... de não haverem pecado. – Não podendo suprimir os méritos de quem os tem, quer-se que ao menos o possuidor não os reconheça, ou finja não os reconhecer; quer-se diabolicamente aguar, estragar, atormentar com dúvidas, com acanhamentos, com terrores e com escrúpulos o prazer natural, irreprimível e capitoso que ele possa provar. Assim, mais ou menos, falou Zaratustra.

A moral social é uma formidável conspiração de todos contra cada um, para o triturar, perverter, o desvirilizar, o reduzir a um ser lamentoso e tortuoso, um aleijado sofredor, grotesco e malfazejo. O pátio dos Milagres! O envaidecido enrosca-se e enclavinha-se em si mesmo. Em vez de lançar ao vento as suas pequenas fatuidades e libertar-se delas, ele as recolhe, as acumula, as afunda lá dentro, e as recoze, e as cultiva em sigilo, como um fabricante de venenos, com toda a sorte de cautelas, de temores, de desculpas, de artifícios, de equívocos, de dissimulações, e aí temos uma franqueza quase inocente convertida, pelo farisaísmo da virtude, numa podriqueira secreta!

Só o indivíduo que experimenta prazeres de vaidade, sem se enganar sobre a natureza deles, assistindo a essas experiências do sentimento como um lúcido espectador de si mesmo, só este é capaz de modéstia. Se algum há que não os conheça, esse não é propriamente um modesto, é um que nasceu com uma falha psicológica, como outros nascem privados da vista ou com um pé atrofiado. Não tem mérito algum. Tem um defeito de nascença.

A modéstia é a vaidade que sorri de si mesma. E nesse sorriso vai o quantum satis de contra-veneno.

A boa modéstia é a vaidade que sorri de si mesma para não se rir das outras, e que às vezes arde e se sublima na chama do sorriso -como um balão de papel se destrói e desaparece na própria chama que o eleva.

A vaidade paga regiamente as suas culpas. Quantos artistas crucificados na sua obra, vertendo sangue e clarões!

A boa modéstia é aquela que doma as suas vaidades e as subjuga ao domínio de uma paixão forte e bela, como os tigres que puxavam o carro de Dionísios.

A serpente, às vezes, gasta o seu veneno em botes aos raminhos que bolem ou às sombras que passam, e assim se torna inócua ao picar uma rês ou um homem. A vaidade é muitas vezes como a cobra.

À vaidade parece dever-se também uma quantidade de horrores: assassínios, roubos, atrocidades, suicídios. Na realidade, ela desempenha apenas o papel de um purgante orgânico da comunidade social. Em muitos casos, se a uma só causa se podem filiar coisas tão complexas, é a modéstia que deve ser responsabilizada. Convertida em mandamento irretorquível, comprime e abate a natureza humana e a obriga a esses longos desvios e absurdas transferências da paixão inextirpável, a vontade de se afirmar. O excesso de modéstia pode prolongar-se até ao cinismo, e à delinqüência.

Fonte:
Domínio Público

Afonso Arinos (Assombramento) Parte 3

Manuel Alves, ao cair da noite, sentindo-se refeito pelo jantar, endireitou para a tapera, caminhando vagarosamente.

Antes de sair, descarregou os dois canos da garrucha num cupim e carregou-a de novo, metendo em cada cano uma bala de cobre e muitos bagos de chumbo grosso. Sua franqueira aparelhada de prata, levou-a também enfiada no correão da cintura. Não lhe esqueceu o rolo de cera nem um maço de palhas. O arneiro partira calado. Não queria provocar a curiosidade dos tropeiros. Lá chegando, penetrou no pátio pela grande porteira escancarada.

Era noite.

Tateando com o pé, reuniu um molho de gravetos secos e, servindo-se das palhas e da binga, fez fogo. Ajuntou mais lenha arrancando paus de cercas velhas, apanhando pedaços de tábua de peças em ruína, e com isso, formou uma grande fogueira. Assim alumiado o pátio, o arneiro acendeu o rolo e começou a percorrer as estrebarias meio apodrecidas, os paióis, as senzalas em linha, uma velha oficina de ferreiro com o fole esburacado e a bigorna ainda em pé.

- Quero ver se tem alguma coisa escondida por aqui. Talvez alguma cama de bicho do mato.

E andava pesquisando, escarafunchando por aquelas dependências de casa nobre, ora desbeiçadas, sítio preferido das lagartixas, dos ferozes lacraus e dos caranguejos cerdosos. Nada, nada: tudo abandonado!

- Senhor! Por que seria? - inquiriu de si para si o cuiabano e parou à porta de uma senzala, olhando para o meio do pátio onde uma caveira alvadia de boi-espáceo, fincada na ponta de uma estaca, parecia ameaçá-lo com a grande armação aberta.

Encaminhou para a escadaria que levava ao alpendre e que se abria em duas escadas, de um lado e de outro, como dois lados de um triângulo, fechando no alpendre, seu vértice. No meio da parede e erguida sobre a sapata, uma cruz de madeira negra avultava; aos pés desta, cavava-se um tanque de pedra, bebedouro do gado da porta, noutro tempo.

Manuel subiu cauteloso e viu a porta aberta com a grande fechadura sem chave, uma tranca de ferro caída e um espeque de madeira atirado a dois passos no assoalho.

Entrou. Viu na sala da frente sua rede armada e no canto da parede, embutido na alvenaria, um grande oratório com portas de almofada entreabertas. Subiu a um banco de recosto alto, unido à parede e chegou o rosto perto do oratório, procurando examiná-lo por dentro, quando um morcego enorme, alvoroçado, tomou surto, ciciando, e foi pregar-se ao teto, donde os olhinhos redondos piscaram ameaçadores.

- Que é lá isso, bicho amaldiçoado? Com Deus adiante e com paz na guia, encomendando Deus e a virgem Maria...

O arrieiro voltou-se, depois de ter murmurado as palavras de esconjuro e, cerrando a porta de fora, especou-a com firmeza. Depois, penetrou na casa pelo corredor comprido, pelo qual o vento corria veloz, sendo-lhe preciso amparar com a mão espalmada a luz vacilante do rolo. Foi dar na sala de jantar, onde uma mesa escura e de rodapés torneados, cercada de bancos esculpidos, estendia-se, vazia e negra.

O teto de estuque, oblongo e escantilhado, rachara, descobrindo os caibros e rasgando uma nesga de céu por uma frincha de telhado. Por aí corria uma goteira no tempo da chuva e, embaixo, o assoalho podre ameaçava tragar quem se aproximasse despercebido. Manuel recuou e dirigiu-se para os cômodos do fundo. Enfiando por um corredor que parecia conduzir à cozinha, viu, ao lado, o teto abatido de um quarto, cujo assoalho tinha no meio um montículo de escombros. Olhou para o céu e viu, abafando a luz apenas adivinhada das estrelas, um bando de nuvens escuras, roldando. Um outro quarto havia junto desse e o olhar do arneiro deteve-se, acompanhando a luz do rolo no braço esquerdo erguido, sondando as prateleiras fixas na parede, onde uma coisa branca luzia. Era um caco velho de prato antigo. Manuel Alves sorriu para uma figurinha de mulher, muito colorida, cuja cabeça aparecia ainda pintada ao vivo na porcelana alva.

Um zunido de vento impetuoso, constringido na fresta de uma janela que olhava para fora, fez o arneiro voltar o rosto de repente e prosseguir o exame do casara-o abandonado. Pareceu-lhe ouvir nesse instante a zoada plangente de um sino ao longe. Levantou a cabeça, estendeu o pescoço e inclinou o ouvido, alerta; o som continuava, zoando, zoando, parecendo ora morrer de todo, ora vibrar ainda, mas sempre ao longe.

- É o vento, talvez, no sino da capela.

E penetrou num salão enorme, escuro. A luz do rolo, tremendo, deixou no chão uma réstia avermelhada. Manuel foi adiante e esbarrou num tamborete de couro, tombado aí. O arneiro foi seguindo, acompanhando uma das paredes. Chegou ao canto e entestou com a outra parede.

- Acaba aqui - murmurou.

Três grandes janelas no fundo estavam fechadas.

- Que haverá aqui atrás? Talvez o terreiro de dentro. Deixe ver...

Tentou abrir uma janela, que resistiu. O vento, fora, disparava, às vezes, reboando como uma vara de queixada em redemoinho no mato.

Manuel fez vibrar as bandeiras da janela a choques repetidos. Resistindo elas, o arneiro recuou e, de braço direito estendido, deu-lhes um empurrão violento. A janela, num grito estardalhaçante, escancarou-se. Uma rajada rompeu por ela adentro, latindo qual matilha enfurecida; pela casa toda houve um tatalar de portas, um ruído de reboco que cai das paredes altas e se esfarinha no chão.

A chama do rolo apagou-se à lufada e o cuiabano ficou só, babatando na treva.

Lembrando-se da binga sacou-a do bolso da calça; colocou a pedra com jeito e bateu-lhe o fuzil; as centelhas saltavam para a frente impelidas pelo vento e apagavam-se logo. Então, o cuiabano deu uns passos para trás, apalpando até tocar a parede do fundo. Encostou-se nela e foi andando para os lados, roçando-lhe as costas procurando o entrevão das janelas. Aí, acocorou-se e tentou de novo tirar fogo: uma faiscazinha chamuscou o isqueiro e Manuel Alves soprou-a delicadamente, alentando-a com a principio, ela animou-se, quis alastrar-se, mas de repente sumiu-se. O arrieiro apalpou o isqueiro, virou-o nas mãos e achou-o úmido; tinha-o deixado no chão, exposto ao sereno, na hora em que fazia a fogueira no pátio e percorria as dependências deste.

Meteu a binga no bolso e disse:

- Espera, diaba, que tu hás de secar com o calor do corpo.

Nesse entremente a zoada do sino fez-se ouvir de novo, dolorosa e longínqua. Então o cuiabano pôs-se de gatinhas, atravessou a faca entre os dentes e marchou como um felino, sutilmente, vagarosamente, de olhos arregalados, querendo varar a treva. Súbito, um ruído estranho fê-lo estacar, arrepiado e encolhido como um jaguar que prepara o bote.

No teto soaram uns passos apressados de tamancos pracatando e uma voz rouquenha pareceu proferir uma imprecação. O arneiro assentou-se nos calcanhares, apertou o ferro nos dentes e puxou da cinta a garrucha; bateu com o punho cerrado nos feixos da arma, chamando a pólvora aos ouvidos e esperou. O ruído cessara; só a zoada do sino continuava, intermitentemente.

Nada aparecendo, Manuel tocou para diante, sempre de gatinhas. Mas, desta vez, a garrucha, aperrada na mão direita, batia no chão a intervalos rítmicos, como a úngula de um quadrúpede manco. Ao passar junto ao quarto de teto esboroado, o cuiabano lobrigou o céu e orientou-se. Seguiu, então, pelo corredor a fora, apalpando, cosendo-se com a parede. Novamente parou ouvindo um farfalhar distante, um sibilo como o da refega no buritizal.

Pouco depois, um estrépito medonho abalou o casara-o escuro e a ventania - alcatéia de lbos rafados - investiu uivando e passou à disparada, estrondando uma janela. Saindo por aí, voltaram de novo os austros furentes, perseguindo-se, precipitando-se, zunindo, gargalhando sarcasticamente, pelos salões vazios.

Ao mesmo tempo, o arrieiro sentiu no espaço um arfar de asas, um soído áspero de aço que ringe e, na cabeça, nas costas, umas pancadinhas assustadas... Pelo espaço todo ressoou um psiu, psiu, psiu... e um bando enorme de morcegos sinistros torvelinhou no meio da ventania.

Manuel foi impelido para a frente à corrimaça daqueles mensageiros do negrume e do assombramento. De músculos crispados num começo de reação selvagem contra a alucinação que o invadia, o arneiro alapardava-se, eriçando-se-lhe os cabelos. Depois, seguia de manso, com o pescoço estendido e os olhos acesos, assim como um sabujo que negaceia.

E foi rompendo a escuridão à caça desse ente maldito que fazia o velho casarão falar ou gemer, ameaçá-lo ou repeti-lo, num conluio demoníaco com o vento, os morcegos e a treva.

Começou a sentir que tinha caído num laço armado talvez pelo maligno. De vez cm quando, parecia-lhe que uma coisa lhe arrepelava os cabelos e uns animálculos desconhecidos perlustravam seu corpo em carreira vertiginosa. No mesmo tempo, um rir abafado, uns cochichos de escárnio pareciam acompanhá-lo de um lado e de outro.

- Ah! vocês não me hão de levar assim-assim, não - exclamava o arrieiro para o invisível. - Pode que eu seja onça presa na arataca. Mas eu mostro! Eu mostro!

E batia com força a coronha da garrucha no solo ecoante.

Súbito, uma luz indecisa, coada por alguma janela próxima, fê-lo vislumbrar um vulto branco, esguio, semelhante a uma grande serpente, coleando, sacudindo-se. O vento trazia vozes estranhas das socavas da terra, misturando-se com os lamentos do sino, mais acentuados agora.

Manuel estacou, com as fontes latejando, a goela constrita e a respiração curta. A boca semi-aberta deixou cair a faca: o fôlego, a modo de um sedenho, penetrou-lhe na garganta seca, sarjando-a e o arneiro roncou como um barra-o acuado pela cachorrada. Correu a mão pelo assoalho e agarrou a faca; meteu-a de novo entre os dentes, que rangeram no ferro; engatilhou a garrucha e apontou para o monstro; uma pancada seca do cão no aço do ouvido mostrou-lhe que sua arma fiel o traia. A escorva caíra pelo chão e a garrucha negou fogo. O arneiro arrojou contra o monstro a arma traidora e gaguejou em meia risada de louco:

- Mandingueiros do inferno! Botaram mandinga na minha arma de fiança! Tiveram medo dos dentes da minha garrucha! Mas vocês hão de conhecer homem, sombrações do demônio!

De um salto, arremeteu contra o inimigo; a faca, vibrada com ímpeto feroz, ringiu numa coisa e foi enterrar a ponta na tábua do assoalho, onde o sertanejo, apanhado pelo meio do corpo num laço forte, tombou pesadamente.

A queda assanhou-lhe a fúria e o arneiro, erguendo-se de um pulo, rasgou numa facada um farrapo branco que ondulava no ar. Deu-lhe um bote e estrincou nos dedos um como tecido grosso. Durante alguns momentos ficou no lugar, hirto, suando, rugindo.

Pouco a pouco foi correndo a mão cautelosamente, tateando aquele corpo estranho que seus dedos arrochavam! era um pano, de sua rede, talvez, que o Venâncio armara na sala da frente.

Neste instante, pareceu-lhe ouvir chascos de mofa nas vozes do vento e nos assovios dos morcegos; ao mesmo tempo, percebia que o chamavam lá dentro Manuel, Manuel, Manuel - em frases tartamudeadas. O arneiro avançou como um possesso, dando pulos, esfaqueando sombras que fugiam.

Foi dar na sala de jantar onde, pelo rasgão do telhado, pareciam descer umas formas longas, esvoaçando, e uns vultos alvos, em que por vezes pastavam chamas rápidas, dançavam-lhe diante dos olhos incendidos.

O arneiro não pensava mais. A respiração se lhe tornara estertorosa; horríveis contrações musculares repuxavam-lhe o rosto e ele, investindo as sombras, uivava:

- Traiçoeiras ! Eu queria carne para rasgar com este ferro ! Eu queria osso para esmigalhar num murro.

As sombras fugiam, esfloravam as paredes em ascensão rápida, iluminando-lhe subitamente o rosto, brincando-lhe um momento nos cabelos arrepiados ou dançando-lhe na frente. Era como uma chusma de meninos endemoniados a zombarem dele, puxando-o daqui, beliscando-o d'acolá, açulando-o como a um cão de rua.

O arneiro dava saltos de úgre, arremetendo contra o inimigo nessa luta fantástica: rangia os dentes e parava depois, ganindo como a onça esfaimada a que se escapa a presa. Houve um momento em que uma coréia demoníaca se concertava ao redor dele, entre uivos, guinchos, risadas ou gemidos. Manuel ia recuando e aqueles círculos infernais o iam estringindo; as sombras giravam correndo, precipitando-se, entrando numa porta, saindo noutra, esvoaçando, rojando no chão ou saracoteando desenfreadamente.

Um longo soluço despedaçou-lhe a garganta num ai sentido e profundo e o arneiro deixou cair pesadamente a mão esquerda espalmada num portal, justamente quando um morcego, que fugia amedrontado, lhe deu uma forte pancada no rosto. Então, Manuel pulou novamente para diante, apertando nos dedos o cabo da franqueira fiel; pelo rasgão do telhado novas sombras desciam e algumas, quedas, pareciam dispostas a esperar o embate.

O arneiro rugiu:

- Eu mato! Eu mato! Mato! - e acometeu com de alucinado aqueles entes malditos. De um foi cair no meio das formas impalpáveis e vacilantes. fragor medonho se fez ouvir; o assoalho podre cedeu barrote, roído de cupins, baqueou sobre uma coisa e desmoronava embaixo da casa. O corpo de Manuel, tragado pelo buraco que se abriu, precipitou-se e tombou lá embaixo. Ao mesmo tempo, um som vibrante de metal, um tilintar como de moedas derramando-se pela fenda uma frasqueira que se racha, acompanhou o baque do corpo do arneiro.

Manuel lá no fundo, ferido, ensangüentado, arrastou-se ainda, cravando as unhas na terra como um ururau golpeado de morte. Em todo o corpo estendido com o ventre na terra, perpassava-lhe ainda uma crispação de luta; sua boca proferiu ainda: - "Eu mato ! Mato! Ma..." - e um silêncio trágico pesou sobre a tapera.
–––––––––––-
continua…

Ditados Populares do Brasil (Letra P)

Pagar o pato
Paga o justo pelo pecador.
Pagar o pato.
Pago chorando o que prometi sorrindo.
Pancada de amor não dói mas cria calo.
Panela em que muitos mexem é sempre mal temperada.
Para cuspir rosas é preciso saber engolir espinho.
Para que seu marido não acorde com a macaca… Depile-se.
Para que tanta pose se o cemitério é o teu fim.
Pato e parente só serve para sujar a gente.
Para ser feliz basta ser bom.
Pensa no bem para ser feliz.
Perca um minuto na vida, mas não perca a vida num minuto.
Perto de quem ama, sem poder amar.
Peru quando faz roda quer comer minhoca.
Plantei amor e colhi saudade.
Pobre é como pneu; quanto mais trabalha, mais liso fica.
Pobre quando ganha ovo, está podre.
Pobre quando mete a mão no bolso só tira os cinco dedos.
Poeira é minha penicilina.
Por onde eu passo deixo saudade.
Por três coisas sou perdido: mulher, cavalo e baralho.
Precisa-se de uma empregada que durma neste emprego.
Precisa-se de uma empregada para o que der e vier.
Preferível ser covarde cinco minutos a ser defunto em um minuto.
Prefiro amar quem me odeia a odiar quem me ama.
Prego que levanta a cabeça, martelo nele.
Preguiçoso é o dono da sauna, que vive do suor dos outros.
Prestação e mini saia, quanto mais curta melhor.
Promessa de candidato não enche a barriga.
Pai rico, filho nobre, neto pobre.
Palavra de rei não volta atrás.
Palestra de cachorro é em porta de açougue.
Pancada grande é que mata cobra.
Panela no fogo, barriga vazia.
Panela que muitos mexem, não toma tempero
Panela velha é que faz boa comida
Pão de pobre só cai de manteiga para baixo.
Papagaio come milho, e periquito leva fama.
Papagaio velho não aprende a falar.
Para bom entendedor, meia palavra basta.
Para cavalo velho, somente milho novo.
Passado três, um gato vira tigre
Passar de cavalo a burro.
Passar manteiga em venta de gato.
Passarinho que come pedra bem sabe o cu que tem
Passarinho, que acompanha morcego, dorme de cabeça pra baixo.
Pau que nasce torto morre torto.
Pedra que rola não cria limo.
Peito lavado, nariz enxugado.
Peixe morre pele boca.
Pela boca morre o peixe
Pelo dedo se conhece o gigante.
Pelo rodar da carruagem, se sabe quem nela vem.
Pelos santos se beijam as pedras.
Pequena nuvem tapa um sol.
Perder o fio da meada.
Perder o latim.
Perder vela com mau defunto.
Perdido como cego em tiroteio.
Perdido por um, perdido por mil.
Perguntar não ofende.
Perto de quem come, longe de quem trabalha.
Pimenta nos olhos dos outros é refresco.
Pimenta nos olhos dos outros não doi
Pior a emenda que o soneto
Pior cego é aquele que não quer ver.
Pobre como Jó.
Pobre é que nem cachimbo, nasceu pra levar fumo.
Pobre só enche a barriga quando morre afogado.
Pode-se levar o burro à água, mas ele só bebe se quiser.
Poleiro de pato é no chão.
Pôr as cartas na mesa.
Pôr as mangas de fora.
Por causa de um grito se perde uma boiada.
Por cima de queda, coice.
Por fora bela viola, por dentro pão bolorento
Por fora como umbigo de vedete.
Pôr suspensórios em cobra.
Pra baixo todo santo ajuda
Pra burro velho, capim novo
Pra quem é, bacalhau basta
Praga de urubu magro não pega em cavalo gordo.
Praga de urubu não mata cavalo gordo
Prego batido, ponta virada.
Prejuízo pouco é tiquinho.
Presunção e óleo bento, cada qual toma a contento.
Pretensão e água benta cada um tem quanto quer
Primo e pinto são quem sujam a casa.
Promessa de feijão não dá para encher barriga.
Promessas não pagam dívidas.
Promessas, só santo ajudam.
Prudência e caldo de galinha não fazem mal a ninguém.
Pular da brasa pra cair na labareda.

sexta-feira, 29 de março de 2013

Pedro Emílio (Falecimento)


Pedro Emílio (1936– 2013)

Pedro Emílio de Almeida e Silva nasceu em Campo Alegre (Distrito de Cantagalo), no estado do Rio de Janeiro,em 09 de junho de 1936, filho de Jonas de Almeida e Silva e Austrealina Silva.

Formou-se como Bacharel em Direito.

Casou-se com Maria Paulina Sardenberg Silva, com quem teve 3 filhos.
 
Trabalhou no rádio e no jornal.

Foi Inspetor Seccional da Fazenda, cargo no qual aposentou-se em 1960.

Trovador e poeta, ocupava a cadeira nº 04 da Academia Fidelense de Letras, tendo por patrono Jayme Coelho.

Pedro Emílio, um dos baluartes da trova em São Fidélis, era um dos raros trovadores reminiscentes dentre os que conviveram com Luiz Otávio, J. G. de Araújo Jorge e Aparício Fernandes.

Faleceu em São Fidélis/RJ, ontem, 28 de março de 2013.

Pedro Emílio (Versos Diversos)

TROVAS

Ai, quem me dera morrer
à mercê dos meus desejos
– apertado nos teus braços,
afogado nos teus beijos!

A minha mãe se enternece
me embalando com o olhar,
compondo terços em prece
sem ser preciso rezar".

Ao mesmo tempo em que mata,
mata e faz viver também...
Saudade é dor que maltrata,
maltrata fazendo o bem!

Das esperanças que tenho,
duas não posso alcançar:
são as que vivem pousadas
no verde do teu olhar...

Desejar mulher alheia
é pecado sem perdão?
Mas... e se ela nos deseja,
comete pecado ou não?...

Eu não troco a minha vida
pela vida de ninguém,
que nenhuma é mais florida
que a minha, junto ao meu bem.

No cantar de uma cigarra
há tanta melancolia,
que parece ser a tarde
chorando a morte do dia!...

O destino, minha amada,
nos impõe coisas assim:
- Eu não te esqueço por nada!
Por nada... esqueces de mim...

O outono as árvores deixa
despidas completamente...
– Vontade de ser outono
no corpo de muita gente!

Planta um beijo em meu jardim,
meu amor, quando te fores,
que, ao ver teu beijo florir,
murcharão as outras flores!

"Que Deus te ajude!" - assim disse
um mendigo em minha porta.
- Quem dera que Deus te ouvisse,
infeliz que me conforta!

 POEMA PARA EMBALAR JOANA

Quando Joana nasceu,
todas as estrelas
acordaram com ela
e em ciranda cantaram:

“Existe Bela-Joana
Existe Joana-Bela!”

Duas gotinhas de céu
pingaram nos olhos dela,
Joana tem cor de alvorada
e cabelos de luar.

Duas résteas de manhã
disseram nos lábios dela:
“Bela-Joana”  é serra
“Joana-Bela” é mulher.

Quando Joana sorriu,
todas as cores sorriram,
sorriram todas as flores,
até a tristeza sorriu.

Quando Joana andou
pisou leve, mansinho,
mas a primavera acordou
e os passarinhos cantaram:

“Existe Bela-Joana
existe Joana-Bela
Bela-Joana é serra
Joana-Bela é mulher!”

Quando Joana falou,
Um poema estava mudo
Joana acordou o verso
E as palavras rezaram:

- Joana cheia de graça!
- Joana cheia de luz!
-------
SÃO FIDÉLIS
CANTIGA PARA TRÊS TEMPOS


Chuva amarela na Gamboa:
- O I T I S -
Na avenida, chuva doce:
- S A P O T I S -
Tapetes coloridos nas manhãs
Sob os pés de flamboiãs.
LUCAS e CAMBIASCA
- Freis pioneiros -
no silêncio do bronze
FIDÉLIS
- Santo Padroeiro -
na inércia da massa unicolor.
1840 .....1870 .......1970 ........
Vila ..... Cidade ... Saudade...
Maria
Cheia de graça
que passa.
na praça:
- cadência de passos
no espaço.
Dilma ..... Dilce...... Dilza.....
Diva....... Dolores ...... dores:
Verso pobre,
canto roucos.
Tudo é nada,
muito é pouco.
O que eu digo,
o que eu sinto
no canto pobre
no verso rouco
para dizer donde vens
para dizer o que tens,
é muito pouco,
é muito pouco.
Cajá, café, caju,
Casa, cachaça, .....Cacilda.
No leito,
o rio,
o estio,
dorme
ouvindo cantigas
de lendas antigas.
Lampião sem gás,
coreto sem "Jazz",
porto
morto.
Hinos, sinos, Banda.
Bogos, jogos, fogos.
A araponga gonga,
Fere fogo na forja
e aguça o agudo gume
perfuro - cortante,
do comerciante
especialista
- e até tratadista
em robalo.
Cores, flores,
gente, cachorro quente.
Vila!
Cidade!
Saudade.
-------------
MADRUGADA

Dois cigarros acesos no silêncio da madrugada
O meu e o teu cigarro
Uma tragada um beijo, um beijo uma tragada:
- Teu braço é o meu travesseiro quente e macio
Dois pássaros que a tempestade da noite separa
E se juntam em manhã dourada de estio
- Preciso partir, mas antes que eu diga mais nada
prende-me nos braços e entre beijos e abraços
pede-me para ficar
E como num delírio louco de amor
Começa a falar: Não, não vá embora
Deixe que o sol desponte e os pássaros comecem a cantar lá fora
Deixe que a névoa adormecida no colo azul das montanhas distantes
Desapareçam ao toque sutil da aurora.
-Que será do resto da manha se te fores,
não vês que ficarei sozinha morrendo de amores?
Esqueça a vida querido e me entregue a luz do teu olhar
Num sonho eterno e perdido
Somente agora o sol debruça em nossa janela
Com ar de malícia vem nos dar bom dia
Beijar nosso amor em eterna poesia
Louvar nosso amor nessa manhã tão bela
- Esqueça a vida querido e me entregue a luz do teu olhar
Num sonho eterno e perdido.
O que será do resto do dia se te fores,
Não vês que ficarei morrendo de amores?
Esqueça a vida querido...
O que será da tarde se te fores,
Não vês que ficarei sozinha morrendo de amores?
Deixe que a tarde caia serena
A encher de sombras e odores o caminho
Por onde há de passar sozinho
Esqueça a vida querido...
Somente agora a lua vem nascendo
Como um pintor em fina tela
Imagens vem tecendo...
Dois cigarros acesos no silêncio da madrugada
O meu e o teu cigarro…

O SAPO E A LUA

Os sapos, despertos,
saíam do mato
perto, com espanto,
da linha do trem.
Enquanto da noite,
logo após a chuva,
Penetrava o manto.

Na esquina a lua
na poça d’ água
boiava disforme...
A canção da rua
( que mágoa: )
a voz dos sapos
espiando a lua
afogada n’ água.

FLOR DE MARÇO

Floresces no outono
Rosa - de – Março
pálida e inocente?

Pequena flor de março
fria e sem cor
pendida num galho
solitário e triste...

Por que chegas, agora,
Fora do tempo
(do meu e do teu)
Rosa – de – Março
tímida e nervosa?

Só não sabes
o bem que tanto trazes
a um Jardim – de – Outono
solitário e triste…

QUERO-QUERO

À tarde nos campos
Dizem os quero-queros aos bandos
Quero-quero!...
Quero-quero!...
Quero-quero!...

Que “querem-querem”
Os quero-queros?
Pobres pedintes das beiras dos brejos!
Se eu soubesse
O quê o quê
Juro-juro
Dava-dava

 Pobre-pobre dos quero-queros
Sou estribilho
Um eco...
Eu também quero...
Também quero...
Também quero…

ROSA

Flor ou espinho?
- Um nome na lembrança
plena de solidão!
- imagem entalhada
pelo esquecimento!

( Rosa um espinho na garganta. )

Musa ou mulher?
-Um verso na boca
cheia de coração!
Uma canção emudecida
Morta de emoção

( Rosa uma cantiga de roda na rua:
Que se chama solidão...
Que roubou me coração... )

- O último ópio!

CACHOEIRA DO SALTO

Nas mãos do leito
Desce suave o rio.

Sussurra num jeito brisa
Nas copas das árvores centenárias.

Segue solene.

Teclas agudas, rotundas, disformes
Das submersas falésias ancestrais...

Cortam-se as águas,
Dilaceram-se, entrelaçam – se:
Murmúrios polissonoros freqüentes!

Elevam-se, embaraçam-se em tranças louras e disformes!

Seguem suaves e brandas
Os cabelos longos e serenos
Das águas milenares
Penetrando o oceano.
( até quando? )

VALENÇA
(poema dedicado à minha irmã Ana ao completar 80 anos)
Jardim de cima
Jardim de baixo...

Quando te encontro
É que me acho!

Do verso a rima
Da flor o Cacho!

Vale de cima
Vale de baixo...

Quando te encontro
É que me acho!

Do verso a rima
Da flor o cacho!

Na manhã de cinzas
Fênix ressurge...

Entre névoa que se evapora
Esplêndida aurora!

Cheia de amor, uma crença
Valei - me Valença!

CANÇÃO FINITA

Do primeiro canto da primavera
serão teus:
- o pássaro e a canção

Da primeira flor da primavera
serão teus:
- a cor e o perfume

Do primeiro verso da primavera
serão teus:
- o poeta e o poema.

Do último canto da primavera
de quem serão:
- o pássaro e a canção?

Da última flor da primavera
de quem serão:
- a cor e o perfume?

Do último verso da primavera
de quem serão:
- o poeta e o poema?

Murcha a flor...
quieto o pássaro...
morto o verso...

De quem será a primavera?

GAMBOA DE OUTRORA

Gamboa é a rua triste da cidade
Triste na expressão das árvores
Triste na expressão dos pássaros!

Gamboa rua da chegada,
Gamboa rua da partida ...

Quando chego é rua do abraço
Que me estende o peito úmido de saudade,
Quando parto é rua do adeus
Que me acena na primeira curva do caminho

Gamboa é a rua das lágrimas amarelas dos oitis
Choradas das calçadas ...
Rua das casas antigas debruçadas no tempo ...
Lamento das rezas dos pardais em tardes de cinzas,
Sombras das casas antigas debruçadas no tempo ...

Gamboa é a rua triste de minha cidade,
Triste só para mim, quem sabe ?

Lá, a gente chega na partida ...
Lá, a gente parte na chegada …

Fontes:
www.sardenbergpoesias.com.br
http://poeticasfulinaimicas.blogspot.com.br
http://www.saofidelisrj.com.br/
http://www.vendavaldasletras.wordpress.com

quinta-feira, 28 de março de 2013

A. A. de Assis (A Trova na Imagem 10)


Alberto Caeiro (Caravela da Poesia XXI)

Alberto Caeiro (heterônimo de Fernando Pessoa)

SE EU MORRER NOVO

Se eu morrer novo,
Sem poder publicar livro nenhum,
Sem ver a cara que têm os meus versos em letra impressa,
Peço que, se se quiserem ralar por minha causa,
Que não se ralem.
Se assim aconteceu, assim está certo.

Mesmo que os meus versos nunca sejam impressos,
Eles lá terão a sua beleza, se forem belos.
Mas eles não podem ser belos e ficar por imprimir,
Porque as raízes podem estar debaixo da terra
Mas as flores florescem ao ar livre e à vista.
Tem que ser assim por força. Nada o pode impedir.

Se eu morrer muito novo, oiçam isto:
Nunca fui senão uma criança que brincava.
Fui gentio como o sol e a água,
De uma religião universal que só os homens não têm.
Fui feliz porque não pedi cousa nenhuma,
Nem procurei achar nada,
Nem achei que houvesse mais explicação
Que a palavra explicação não ter sentido nenhum.

Não desejei senão estar ao sol ou à chuva —
Ao sol quando havia sol
E à chuva quando estava chovendo (E nunca a outra cousa),
Sentir calor e frio e vento,
E não ir mais longe.

Uma vez amei, julguei que me amariam,
Mas não fui amado.
Não fui amado pela única grande razão —
Porque não tinha que ser.

Consolei-me voltando ao sol e à chuva,
E sentando-me outra vez à porta de casa.
Os campos, afinal, não são tão verdes para os que são amados
Como para os que o não são.
Sentir é estar distraído.

SE DEPOIS DE EU MORRER

Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia,
Não há nada mais simples
Tem só duas datas — a da minha nascença e a da minha morte.
Entre uma e outra cousa todos os dias são meus.

Sou fácil de definir.
Vi como um danado.
Amei as cousas sem sentimentalidade nenhuma.
Nunca tive um desejo que não pudesse realizar, porque nunca ceguei.
Mesmo ouvir nunca foi para mim senão um acompanhamento de ver.
Compreendi que as cousas são reais e todas diferentes umas das outras;
Compreendi isto com os olhos, nunca com o pensamento.
Compreender isto corri o pensamento seria achá-las todas iguais.

Um dia deu-me o sono como a qualquer criança.
Fechei os olhos e dormi.
Além disso, fui o único poeta da Natureza.

SE O HOMEM FOSSE

Se o homem fosse, como deveria ser,
Não um animal doente, mas o mais perfeito dos animais.
Animal directo e não indirecto,
Devia ser outra a sua forma de encontrar tini sentido às cousas,
Outra e verdadeira.
Devia haver adquirido um sentido do "conjunto";
Um sentido como ver e ouvir do "total" elas cousas
E não, como temos, um pensamento do "conjunto";
E não, como temos, uma idéia, do "total" das cousas.
E assim — veríamos — não teríamos noção do "conjunto" ou do "total",
Porque o sentido do "total" ou do "conjunto" não vem de um total ou de um
conjunto
Mas da verdadeira Natureza talvez nem todo nem partes.

TAMBÉM SEI FAZER CONJETURAS

Também sei fazer conjeturas.
Há em cada cousa aquilo que ela é que a anima.
Na planta está por fora e é urna ninfa pequena.
No animal é um ser interior longínquo.
No homem é a alma que vive com ele e é já ele.
Nos deuses tem o mesmo tamanho
E o mesmo espaço que o corpo
E é a mesma cousa que o corpo.

TODAS AS OPINIÕES

Todas as opiniões que há sobre a Natureza
Nunca fizeram crescer uma erva ou nascer uma flor.
Toda a sabedoria a respeito das cousas
Nunca foi cousa em que pudesse pegar como nas cousas;
Se a ciência quer ser verdadeira,
Que ciência mais verdadeira que a das cousas sem ciência?

Fecho os olhos e a terra dura sobre que me deito
Tem uma realidade tão real que até as minhas costas a sentem.
Não preciso de raciocínio onde tenho espáduas.

TU, MÍSTICO

Tu, místico, vês uma significação em todas as cousas.
Para ti tudo tem um sentido velado.
Há uma cousa oculta em cada cousa que vês.
O que vês, vê-lo sempre para veres outra cousa.

Para mim, graças a ter olhos só para ver,
Eu vejo ausência de significação em todas as cousas;
Vejo-o e amo-me, porque ser uma cousa é não significar nada.
Ser uma cousa é não ser susceptível de interpretação.

UM DIA DE CHUVA

Um dia de chuva é tão belo como um dia de sol.
Ambos existem; cada um como é.

ÚLTIMA ESTRELA


Última estrela a desaparecer antes do dia,
Pouso no teu trêmulo azular branco os meus olhos calmos,
E vejo-te independentemente de mim;
Alegre pelo critério (?) que tenho em Poder ver-te
Sem "estado de alma" nenhum, sonho ver-te.
A tua beleza para mim está em existires
A tua grandeza está em existires inteiramente fora de mim.

UMA GARGALHADA

Uma Gargalhada de rapariga soa do ar da estrada.
Riu do que disse quem não vejo.
Lembro-me já que ouvi.
Mas se me falarem agora de uma gargalhada de rapariga da estrada,
Direi: não, os montes, as terras ao sol o sol, a casa aqui,
E eu que só oiço o ruído calado do sangue que há na minha vida dos dois
lados da cabeça

VERDADE, MENTIRA

Verdade, mentira, certeza, incerteza...
Aquele cego ali na estrada também conhece estas palavras.
Estou sentado num degrau alto e tenho as mãos apertadas
Sobre o mais alto dos joelhos cruzados.
Bem: verdade, mentira, certeza, incerteza o que são?
O cego pára na estrada,
Desliguei as mãos de cima do joelho
Verdade mentira, certeza, incerteza são as mesmas?
Qualquer cousa mudou numa parte da realidade — os meus joelhos
e as minhas mãos.
Qual é a ciência que tem conhecimento para isto?
O cego continua o seu caminho e eu não faço mais gestos.
Já não é a mesma hora, nem a mesma gente, nem nada igual.
Ser real é isto.

VIVE

Vive, dizes, no presente,
Vive só no presente.

Mas eu não quero o presente, quero a realidade;
Quero as cousas que existem, não o tempo que as mede.

O que é o presente?
É uma cousa relativa ao passado e ao futuro.
É uma cousa que existe em virtude de outras cousas existirem.
Eu quero só a realidade, as cousas sem presente.

Não quero incluir o tempo no meu esquema.
Não quero pensar nas cousas como presentes; quero pensar nelas
como cousas.
Não quero separá-las de si-próprias, tratando-as por presentes.

Eu nem por reais as devia tratar.
Eu não as devia tratar por nada.

Eu devia vê-las, apenas vê-las;
Vê-las até não poder pensar nelas,
Vê-las sem tempo, nem espaço,
Ver podendo dispensar tudo menos o que se vê.
É esta a ciência de ver, que não é nenhuma.

Fonte:
Poemas Inconjuntos (http://www.cfh.ufsc.br/~magno/inconjuntos.htm)
Imagem formatada com sobreposição de figuras modificadas com imagens obtidas na internet, sem identificação do autor.