domingo, 8 de setembro de 2013

Isabel Pakes (Poesias Avulsas) II

Pintura de Francisco Javier Rodriguez (O Poeta)
Às candeias do amanhã

Ausente do meu toque, feito um anjo ou feito um bruxo,
me olhas do alto da lua, me beijas através da brisa
e nas rosas que admiras me mandas lembranças tuas.
Pareces estar vibrando em tudo quanto me envolve,
até nos livros que leio, como se teus mensageiros,
contam-me histórias de amor iguais à tua e a minha.

E isso não te bastando, interceptas meus pensamentos,
seduzes meus argumentos e, de pronto,
te colocas porta adentro dos meus sonhos.
De tal forma te embrenhas em minha mente
que não há como fugir dos teus enleios e nem tenho eu por quê.
Se às vezes me exasperas pelo ontem que adiaste,
outras vezes me comoves, muito, profundamente,
quando feito a canção que mais gosto,
vens, manso e cativo, aninhar-te no meu peito.

Alheio ao tempo e à distância
por onde vou me alcanças trespassando dimensões,
alongando os teus sentidos aos menores dos meus gestos,
guardando-me em calmaria, às candeias do amanhã,
em noite de turbilhão.

Se és um anjo ou um bruxo, não sei.
Se me guardas ou me enfeitiças, não sei.
Talvez em mim só preserves o alento em cuja sombra repousas.
Mas estás aí, é o que importa!
Estás aí e me ouves devotado
e sem que te apercebas, minha alma embevecida
por um breve instante me escapa para abraçar-se à tua.

Anjos na Terra

Eu sei de um anjo. Eu sei de muitos anjos!
Não desses de belas faces e olhares plácidos
que povoam as páginas dos livros sacros
e as abóbadas das catedrais. Não desses.
Anjos de verdade, que posso tocar e sentir.
Anjos que, corporeamente, me livram do mal
da vaidade, do orgulho, da ambição...
Que me dizem do quanto sou feliz
com o que tenho e o que sou.
Anjos que trazem as asas atadas
e caminham a passos lentos e difíceis,
pelas barrancas que ladeiam o caminho por que vou,
a fim de que eu possa passar livremente e sem demoras.
E que se mostram a mim, sem reservas,
para que eu possa me pensar e dizer:- Obrigada, Deus,
por me conceder os meios com que exercitar o amor.
Anjos. Anjos do Senhor, na terra.

Estes anjos que sei,
trazem o céu dentro de si.
Às vezes, são como crianças grandes,
mas sempre puros como os pequeninos.
Jamais se abrem às ilusões do mundo.
Não vivem senão à vontade do Pai.

E pensar que, um dia, eu me julguei perfeita...
Eu! Que sempre fui tão vulnerável às tentações
e preciso deles como escoras
para suster minha pretensa evolução.

Estes anjos de que falo, existem por aí,
em todas as partes do planeta
e para reconhecê-los nem preciso aguçar minha visão.
São tão evidentes e tanto se parecem
nos rostos, nos gestos, na autenticidade do carinho,
no jeito excepcional de amar!
A quem de coração de entender, ou não.

Amor, substantivo concreto

Você é o amor feito criança!
Amor substantivo concreto
que tomo nos braços,
afago, aperto...

Quando olho pra você
esqueço-me em sua serenidade
sentindo-me alongar
no estado do meu ser.

E deixo-me ficar assim, agigantada!
Abandonada à sua angelical figura.
É tão doce esta paz de que me inundo
que me custa acreditar que o céu
é além divisas deste mundo.

É quando minha alma transparece
e minha voz te adormece
feito canção de ninar.

Sobras de amor

Há sobras de amor
rolando pelos cantos das casas inférteis
enquanto crianças, órfãos de afeto,
se abortam pelas sarjetas.

Não, isto não é poesia,
apenas um pensamento,
um desconforto da alma
num ter que viver terreno.
Igual quando vejo laranjas
apodrecendo nas árvores,
enquanto um espantalho mesquinho
afugenta os sanhaços.

Cerquilho - Cidade menina

Quando passeio meus olhos por tuas ruas e praças
tuas rosas me saúdam e fico orgulhosa de ti!
Lembro-me de que nasceste de um humilde vilarejo
onde abrigavas tropeiros que na calidez do teu colo
descansavam seus quebrantos...

Lembro-me dos estrangeiros, audaciosos lavradores
chegados na Estação, trazendo de além-mar
nada mais que garra e força, nada mais que amor e fé
e tuas terras verdejaram, vestindo-as de cafezais!

Lembro-me dos saber adentrando tuas portas;
tua primeira professora, teus primeiros aprendizes,
teu burburinho infantil no velho grupo escolar!

Lembro-me do teu grito quando a dor te estilhaçou,
do teu pranto, do teu luto, das tuas flores soterradas...
E de como renasceste, como a hera entre as ruínas,
tímida, assustada, mas ansiosa por viver!

Quantas lágrimas te banharam! Quanto suor te regou!
Mãos de aço, incansáveis, te soergueram das cinzas
e te fizeram mais forte, mais vigorosa ainda!

Lembro-me de como cresceste vitoriosa!
Do verde-cana mesclando-se ao verde-cor do café...
Das tuas indústrias ativando suas rodas
para nunca mais parar.

Lembro-me dos teus filhos, trabalhadores devotos
que honram teu padroeiro, teu amado São José!
Dos teus filhos cujos braços sempre abertos
acolhem quem te procura buscando o teu amparo
e cujas mãos se entrelaçam, unificados na prece,
entoando louvor e glória à providência dos céus!

Lembro-me da tua bandeira que baila com a brisa,
toda vaidosa ostentando os frutos do teu trabalho,
margeando de azul anil as páginas da tua história!
Ah... Minha cidade menina!

Tão robusta, mas menina. Radiante, graciosa!
Exalas essência de rosas e provocas dentro em mim
algo que não explico, porque não sei definir.
Só sei que estou orgulhosa, muito orgulhosa de ti!

Cerquilho - Cidade menina II

Remodelam a cidade.
Derrubam-se as minhas saudades-
- lugares meus da infância, da mocidade...
Santuários onde algum dia,
cheia de fé, rezando as minhas esperanças,
fiei quimeras e amoldei meu íntimo,
(entulhos agora) demovem-se do tempo,
desaparecem...

Fico triste. Choro...
Porém, num processo mágico,
talvez por maternal instinto,
as lágrimas que verto converto em seiva
para vitalizar meus novos ideais.

E a cidade se afigura sorridente!
Assume ares diferentes
qual menina adolescente preocupada em se enfeitar.
Diante dos meus olhos cada vez se faz mais bela
e, vaidosa, sempre cheirando à rosas,
ainda mais me envolve, ainda mais me seduz!
E mais ainda me induz
a me orgulhar sempre dela!

Minha eternidade

Conduze-me ao teu infinito!
Deixa-me romper-te
como o sol rompe a noite.
Eu quero afugentar os teus temores,
teus pesares, tuas dores...
Eu quero iluminar-te em larga aurora
num eterno amanhecer!
Quero-te claro como o dia,
sem segredos, inteiro!
Quero-te na plenitude do teu ser.

Conduze-me ao teu infinito!
Deixa-me lançar-me em tua vida
como uma aeronave no espaço etéreo.
Eu quero desvendar os teus mistérios,
descobrir-te como um novo mundo
e exilar-me em ti, confiar-me a ti,
compor contigo uma unidade,
esquecer-me em teu amor
como se fosse a minha eternidade!

É preciso

É preciso, antes do replante, revolver a terra;
retalhar raízes que, irreverentes, se torceram,
se tramaram... perderam-se das origens;
demover as ervas que, daninhas, se embrenharam nos trigais.

Que a seiva retorne ao seio.
Que vicejem as espigas
e se multiplique o pão!

É preciso alentar a terra;
lancetar as chagas, remover as pedras, dar vazão às lavas...
Dissolver as nuvens, destilar as águas, saciar-lhe a sede.
Que se refrigere!

Que essa febre cesse,
essa dor se aquiete,
que se cicatrize!

É preciso temperar a terra,
afastar as sombras, dar passagem à luz
que se lhe adentre no cansado ventre
e o restabeleça do desconforto da nossa inconsequência.
Que outra vez fecundo possa germinar a paz!

Sobretudo, é preciso cultivar a fé e preservar virtudes,
até que, preparada a seara, venha o lavrador
selecionar as mudas.

Bom tempo

Acendi o sol dentro de mim
hoje de manhãzinha,
depois da chuva que passou
e levou os meus entulhos
com as folhas mortas,
na enxurrada.

Revivescência

 Deixa refluir o vento...
Depois, quando no limiar da hora
for se desintegrando a noite
aos primeiros raios da esperada aurora,
há de a tempestade amainar-se
e se fazer bom tempo!

E há de brilhar o sol
como se, do eterno, na manhã primaz!

E soprará a brisa,
renascerão as flores,
revoarão os pássaros...
Toda a natureza se pontuará de luz!

E na memória,
nada a se lembrar do que foi mal passado,
nenhum resquício.
Porque aos ares da bonança
profundamente se alteram
as sementes dos abrolhos.

Tudo será novo,
como no despertar do sétimo dia!

E haverá calma e doçura...
a quem de boa vontade.

Fontes:
Portal CEN http://www.caestamosnos.org/
Blog da Autora. http://belpakes.blogspot.com/

Aluísio Azevedo (O Coruja) Parte 34

CAPÍTULO IV

Depois desta cena, Branca fazia o possível por familiarizar-se com o Coruja. Procurava pô-lo à vontade, converte-lo em uma espécie de parente velho, rompia com ele sem cerimonias que não usava para com mais ninguém, e para as quais, força é confessar, não lhe sobrava jeito, pois que ela já por temperamento, como por educação, era uma dessas criaturas frias e reservadas, cujos sentimentos nunca se deixam trair na fisionomia ou nas palavras.

Mme. de Nangis, como toda a mãe adotiva, transmitira-lhe as suas maneiras, o seu gosto, o seu estilo, mas não lhe tocara na alma, porque esta só a própria mãe sabe educar.

Felizmente a alma de Branca era boa por natureza, e, se não se aperfeiçoou por falta de educação, também não se corrompeu com a moral da professora. André ficou extremamente surpreso quando notou que a encantadora senhora era para com ele muito mais dada e expansiva do que com qualquer dos outros amigos do esposo. E foi aos poucos se habituando a vê-la e a falar-lhe sem ficar constrangido, até sentindo já por fim um certo gosto quando a tinha a seu lado, tão tranqüila, tão feliz e tão distinta.

Ela, muita vez, ao vê-lo triste e apoquentado da vida, chamava-o para junto de si e procurava animá-lo com boas palavras de interesse. Dizia-lhe por exemplo:

— Então, meu amigo, que ar terrível tem hoje o senhor... Veja se consegue enxotar os seus diabinhos azuis e leia-me alguma coisa. Olhe! Dê-me notícias de sua obra, diga-me como vai a sua querida história do Brasil... Terminou afinal aquele episódio dos guararapes, que tanto o preocupava? Vamos! Converse!

Coruja sorria, muito lisonjeado por debaixo da sua crosta de elefante, mas remancheava para não mostrar o que escrevera.

— Ora... Aquilo era um trabalho tão frio, tão desengraçado, que não podia interessar o espírito de uma senhora.

Contudo, se Branca insistia, ele acabava por ir buscar os seus caderninhos de apontamentos históricos e lia-lhe em voz alta aquilo que dentre eles se lhe afigurava menos insuportável.

Eram fatos colhidos por aqui e por ali, em serões da Biblioteca Nacional, escritos num estilo compacto, muito puro, mas sem belezas de colorido nem cintilações de talento. O que lhe falecia em arte e gosto literário sobrava-lhe não obstante em fidelidade e exatidão; as suas crônicas eram de uma frieza de estatística, mas sumamente desapaixonadas, simples e conscienciosas. Entre aquela infinidade de páginas, abarrotadas de letrinha miúda e muito igual, não havia um só adjetivo de luxo ou uma frase que não fosse de primeira necessidade.

Teobaldo gostava de fazer pilhéria com os alfarrábios do amigo; mas, passando a falar sério, citava-os com respeito, se bem que deles não conhecesse uma linha ao menos.

— Obra de fôlego! Dizia, engrossando a voz; e afirmava que no meio de toda aquela papelada havia coisas magníficas.

Quando Branca estava aborrecida, durante pequenas viagens comerciais do marido, André, em lugar da enfadonha historia, lia-lhe alguns dos seus poetas mais prezados, clássicos na maior parte, entre os quais se destacavam Camões e Garrett, por quem ele sentia verdadeiro fanatismo. Outras vezes tomava da flauta e punha-se a tocar para a distrair; quase nunca, porém, o conseguia, porque o desgraçado tocava mal e sem inspiração.

Para ser agradável a Branca, para entreter, ele estava sempre disposto a tudo, menos a apresentar-se na sala de Teobaldo em noites de recepção ou acompanhá-los ao lírico. Adorava a boa música, mas não podia ajeitar-se com o frenético burburinho das platéias e a nervosa vivacidade dos saraus. Quando lhe dava na cabeça para ver uma ópera, o que era raríssimo, comprava um bilhete de torrinha e metia-se lá em cima, muito só, muito escondido de todos e pedindo a Deus que ninguém o notasse.

Entretanto o que Branca sentia por ele era menos estima do que uma certa espécie de condolência, que todo o coração feliz e farto costuma voltar aos desfalecidos da fortuna. E, se por vezes brilhava nas suas palavras ou nos seus gestos qualquer centelha de afeição, seria talvez alguma gota escapada do grande transbordamento do seu amor pelo marido; Coruja, por muito ligado a este, participava do luminoso eflúvio.

Tanto assim que, entre todas as relações de Teobaldo, antigas ou recentes, era essa a única que merecia da formosa criatura semelhante distinção; as outras, nem isso tinham.

O velho Hipólito e mais a mulher causavam-lhe tédio; ele com a sua eterna mania de criticar a Deus e a todo o mundo, com sua avareza mal disfarçada e com a sua proa de ricaço; &a com aquele gênio de querer governar sempre e dirigir a vida das pessoas com quem se dava e querer impor a sua opinião a propósito de tudo. Quanto ao Sampaio, esse felizmente poucas vezes aparecia e outro rastro não deixava de sua passagem além de meia dúzia de banalidades e algumas pontas de cigarro lançadas fora do cinzeiro. Era porco.

Depois do Coruja, o mais freqüentador da casa era o Afonso de Aguiar. Apresentava-se regularmente nos dias de recepção e surgia uma vez por outra à hora do jantar, sem ser esperado. A sua atitude ao lado da mulher do amigo, na aparência, a melhor e mais correta que se poderia desejar: chegava com o seu passinho miúdo, um sorriso de bom rapaz à superfície dos lábios, e ia logo apertar-lhe a mão com todo o respeito, perguntando-lhe cheio de doçura "como passava a sua querida prima e em seguida ia ter com Teobaldo e punha-se, até à ocasião de sair, a conversar com este sobre negócios e um pouco sobre política. Estas conversas tanto e tanto se repetiram e foram por tal forma tomando um caráter expansivo e intimo, que Teobaldo, contra todo o seu sistema de atração, já de último lhe confiava algumas particularidades da sua vida comercial. O outro, cuja posição na praça era bastante próspera e secura, animava-o com palavras de amigo e prometia estar sempre ao lado dele e ao seu dispor, quando por acaso Teobaldo encontrasse alguma séria dificuldade na sua carreira. Independente disso parecia admirar-lhe por tal modo o tino e o talento, que ao lado dele se fora aos poucos convertendo em um desses louvaminheiros constantes, que em geral acompanham os homens excepcionais, e para os quais reservam estes uma certa proteção amistosa, cheia de apreço e reconhecimento, mas com quem, no fundo, são de uma indiferença à toda a prova.

Como todo homem egoísta e vaidoso, Teobaldo gostava de ouvir elogios, viessem esses de quem quer que fosse, e o finório do Aguiar, compreendendo isso mesmo, não perdia ocasião de lhe queimar incenso defronte do nariz. Tudo, por mais simples, que fazia o marido de Branca, representava para o velhaco novos pretextos de entusiasmo. Um discurso à sobremesa ou em alguma outra reunião, um parecer em qualquer questão comercial, um artigo na imprensa, tudo era motivo de louvor e pasmo.

— Não há outro! Exclamava o primo de Branca. Não há um segundo Teobaldo! O ladrão reúne em si todas as qualidades que se podem desejar em um homem! Maneiras, talento, caráter, figura, tudo o que há de bom, de belo e de grandioso! E demais um verdadeiro fidalgo: ninguém como ele para saber cativar a quem quer que seja; para cada pessoa tem sempre um assunto especial que a interessa particularmente, que a prende. Se está defronte de um ministro, só conversa em política e, ouvindo-o, ninguém acreditaria que ele durante toda a sua vida, tivesse outra preocupação além da política; se fala a um homem de ciência, faz logo pasmar a todos com a sua despretensiosa erudição; se a pessoa com quem ele conversa é um artista, um músico, um poeta, um pintor ou um ator, então a sua palavra privilegiada chega a causar delírios de entusiasmo: as idéias, as frases, as belas imagens literárias, saem-lhe da boca em borbotão. E note-se que tão facilmente discorre pela arte moderna, como remonta à de três séculos atrás; tão à vontade se acha falando sobre os pintores da renascença, como falando da escultura pagã, como do teatro grego ou da poesia hebraica. Seu milagroso talento, sem fazer especialidade de coisa alguma, abrangeu tudo e de tudo se apoderou.

Nada do que existe no orbe intelectual escapou à sua grande faculdade de apanhar de um salto aquilo que os outros levam muitos anos para conquistar. Com a mesma facilidade com que compõe uma valsa, escreve uma poema, desenha uma paisagem, faz um discurso, escreve uno artigo político, engendra um folhetim de crítica, canta uma parte de barítono, sustenta a conversação de uma sala, dirige um cotilhão, inventa um feitio de chapéu para senhora, um prato esquisito para o jantar e tão pronto está para fazer uma lista dos melhores vinhos do mundo, como para fazer a classificação de todos os sistemas filosóficos até hoje conhecidos.

Teobaldo, com efeito, era um desses espíritos que tanto tem de inconstantes e fracas para aprofundar e conservar qualquer coisa, como de prontos e fortes para assimilar o que passa defronte deles com a carreira mais vertiginosa. Tudo conseguia apanhar em um lapso instantâneo, mas não conseguia estudar seriamente qualquer coisa; conhecia tudo e nada conhecia ao mesmo tempo, porque tudo percorrera de passagem; era enfim um homem superficial, um habilidoso, incapaz de qualquer trabalho de fôlego ou de qualquer concepção verdadeiramente individual, mas como ninguém apto para imitar em um relance tudo aquilo que os outros, os especialistas, conceberam e aperfeiçoaram durante uma existência inteira.

Por várias vezes representara em teatrinhos particulares e tão bem copiava o ator que ele escolhia para modelo, que chegaram a julgá-lo um gênio na arte dramática; quando pela primeira vez apareceu na corte o introdutor da copofonia, Teobaldo arranjou logo uma dúzia de copos de cristal, afinou-os e, tanto fez que, no fim de alguns dias já tocava, não com a perfeição do outro, mas enfim tocava, e isso era o bastante para satisfazer a sua fantasia. Depois de ver o Hermann, entregou-se durante três meses à mania da prestidigitação e conseguiu fazer maravilhas nessa especialidade; vendo um célebre jogador de bilhar, que em certa época se andava mostrando ao público do Rio de Janeiro, quis competir com ele e conseguiu fazer trezentas carambolas de uma tacada.

Para estas passageiras manifestações de habilidade, incontestavelmente era como ninguém. Entendia um pouco de tudo; sabia tirar retratos fotográficos, jogar todos jogos de cartas e mais os de exercício, contando a esgrima, o tiro ao alvo, a péla, a bengala, o bilboquê; e cada novidade que surgia, fazendo impressão no público, encontrava nele o maior e também o menos constante dos entusiastas. Assim, durante algum tempo, só o ouviram falar em magnetismo, e parecia resolvido a não pensar em outra coisa, daí em diante; depois veio o espiritismo, e Teobaldo durante outro período foi o mais fervoroso discípulo de Allan Kardec; depois passou a dedicar-se à astronomia; depois à maçonaria e, entre os vinte e os trinta anos, pertenceu sucessivamente àquilo que mais estivesse em moda. Foi materialista com Buckner; foi ateu com Renan; socialista com Saint-Beuve; evolucinista com Spencer; psicólogo com Bain; positivista com Littré e Augusto Comte; mas nenhum deles conseguiu estudar a sério; entusiasmava-se momentaneamente e de cada filósofo conhecia apenas os livros mais espetaculosos, mais vulgares, sem nunca entrar pela obra profunda dos sábios. De Buckner, por exemplo, conhecia tão somente Força e Matéria, de Renan a Vida de Jesus, de Jacolliot a Bíblia na Índia, e assim por diante; notando-se que de muitas obras conseguia ler apenas uma pequena parte, ou alguma notícia crítica, ou qualquer citação, ou um simples a-propósito.

No entanto falava de todas elas, nomeando autores modernos e antigos, discutindo-os, atribuindo-lhes até pensamentos e frases que jamais lhes pertenceram, chegando a sua temeridade ao ponto de citar em falso ou de orelha as mais respeitáveis autoridades, para justificar o que ele na ocasião negava ou afirmava. Esta prodigiosa faculdade de tudo assimilar sem nada digerir era tamanha em Teobaldo que muita vez discutindo com o Coruja, ele apanhava no ar os argumentos deste e apresentava-lhes em defesa própria, já transformados e desenvolvidos. E o mais curioso é que, posto André estivesse senhor da matéria em discussão e arrazoasse-la conscienciosamente, citando autores que o outro desconhecia, era sempre levado à parede e tinha de render-se, porque o contendor com sua afoita verbosidade lhe arrebatava todas as armas.

Seu espírito, de uma agilidade acrobática, saltava de um ponto a outro, fazendo as mais difíceis cabriolas; tão depressa Teobaldo se sentia mal seguro em um terreno, puxava logo a conversa para o lado oposto, sem que aliás ninguém desse por isso, tão presos ficavam todos à sonora corrente de suas palavras. E, sempre irrequieto, sempre em constante fermentação, aquele sutil e maleável espírito a tudo se amoldava, em tudo se informava, torcendo, singrando e penetrando por caminhos da ciência inteiramente desconhecidos para ele. E às vezes, sem conhecer de certos autores mais do que o nome, citava-os de todas as nacionalidades, de todas as classes e de todas as épocas.

Os ignorantes, ouvindo-o, comiam-no por sábio; um sábio se o ouvisse, havia de julgá-lo um louco. Afonso de Aguiar não o considerava nenhuma dessas coisas; mas bem lhe conhecia a parte vulnerável do caráter — A vaidade e, por ai contava invadir-lhe o coração e apoderar-se dele. E, no empenho de conquistar a confiança de Teobaldo, já por fim tanto lhe glorificava os dotes intelectuais e as simpáticas exterioridades de sua pessoa, como ainda lhe gabava as qualidades morais.

— Que coração! Segredava ele a todo aquele que pudesse levar suas palavras ao marido de Branca. Que coração de ouro! É capaz de despir a camisa para socorrer a um pobre! Da esmolas, sem contar o dinheiro e, dantes, quando não tinha para dar, sofria mais do que o próprio necessitado. Em solteiro, muita vez empenhou o relógio só para servir a algum amigo; muita vez teve de pedir emprestado dinheiro, que não era para ele; muita vez pagou dívidas, que não eram suas!

E o Aguiar, abaixando a voz, acrescentava quase sempre:

— E sem precisar ir muito longe, aí está o fato do Coruja…

— Que Coruja? Perguntavam.

— Ora! Aquele rapaz que ele tem em casa, um pobre diabo, sem eira nem beira, um tipo esquisitório, que teria levado o diabo, se não fosse ele!

Então passava a contar uma história a respeito do Coruja, e, sempre engrandecendo as qualidades do outro, resumia:

— Pois é como digo! E note-se que ele faz tudo isso somente porque o tal sujeito foi seu companheiro de colégio!

Esta calculada e constante glorificação de Teobaldo, feita pelo suposto amigo, foi afinal encontrando eco nos grupos em que ela caía, e o festejado esposo de Branca viu surgir aos poucos em torno de seu nome uma grande reputação de homem ilustrado, de homem de talento e de homem generoso. Isto, ligado à sua fama de rico, era tudo quanto ele desejava. E mais: todas as vezes em que Teobaldo ouvia elogiar o seu procedimento para com o Coruja e tentava provar que o não merecia, tanto mais se assanhavam os propagadores de sua fama e tanto mais o fato era engrandecido e apregoado.

Um deles exclamou cheio de entusiasmo:

— Além de tudo é modesto! Que homem! Nega a pé junto a esmola que faz como qualquer negaria um obséquio recebido que o humilhasse!

Branca, porém, revoltava-se com tamanha injustiça feita ao melhor amigo do seu Teobaldo. Este, pensava ela, tem de sobra com que merecer elogios e não precisa enfeitar-se com as penas que lhe não pertencem!

Sofreu, pois, uma enorme decepção, quando, falando a esse respeito ao esposo e dizendo que achava indispensável esclarecer bem aquele ponto aos olhos de todos, lhe ouviu declarar frouxamente:

— Não sei, minha flor, não acho muito prudente agitar essa questão mais do que já está... Com semelhante resolução talvez apenas conseguíssemos chamar sobre mim algum ridículo...E bem sabes que um homem na posição em que me acho deve temer o ridículo sobre todas as coisas!.

Branca não opôs uma palavra às do marido, mas intimamente sentiu estremecer, posto que de leve, o entusiasmo pelo seu ídolo, pelo seu amado, pelo seu esposo, pelo seu Deus: entusiasmo que ela até aí mantinha sereno e inalterável como uma estátua de ouro.

Foi o primeiro ponto escuro que descobriu no astro, e procurou logo enganar a vista, fazendo por convencer-se de que "aquilo" não passava de "uma venial fraqueza".

Ah! Mas a primeira mancha nunca vem só, e Branca tinha de sofrer ainda outras decepções mais amargas e mais difíceis de esquecer!

Todavia, uma vez ao lado do Coruja, não se pode dominar e falou-lhe abertamente sobre o fato.

Ah!... Respondeu o professor sem se alterar; eu já sabia... Fui até já várias vezes interrogado sobre isso…

— Como? Pois já chegaram a lhe falar?

— Sim, alguns amigos de Teobaldo.

— E o senhor explicou tudo, não é verdade?

— Não, não valia a pena... Que mal pode haver em que suponham semelhante coisa? Muito mais quando isso tem o seu fundo de verdade!...

— De verdade? Pois o senhor quer me convencer também a mim de que Teobaldo é quem lhe fornece os meios de subsistência?

— Ora, se os não fornece agora, já o fez por muito tempo, e quem sabe se não virei ainda a precisar disso?...

Branca, defronte destas palavras, ficou ainda mais surpresa de que quando ouviu as próprias do marido. Ela sabia já que o Coruja era um singular exemplo de abnegação e de boa-fé, mas nunca o julgou capaz de tanto.

E seu espírito, ainda puro, religioso e casto, principiou instintivamente a voltar-se mais e mais para aquela figura feia, resignada e melancólica, aquele pobre diabo carcomido pelo trabalho e pelo sacrifício, que todos repeliam, e para o qual ninguém sabia ter uma única palavra de amor e consolação.
––––––––
continua…

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Mensagens em Imagens n.4 - Antoine Saint-Exupery


Caldeirão Poético de Tocantins

FRANCISCO PERNA FILHO
Miracema do Norte/TO


VISGO

As pernas daquela moça eram longe
e distantes de tudo;
Longínquas
e humildes.
As pernas dela
souberam dos meus olhos,
ignoraram distâncias.
Fechamos a porta.

ESTADO

Embora presa,
a água borbulha solta na chaleira
efervescente.
É de fora
a sua natureza líquida.
Não há fôrma que a aprisione,
não há temperatura que a molde.

Embora verso,
embora prosa,
A poesia sabe-se leve,
sabe-se solta.
Amorfa,
não se prende ao vocábulo.

GUTEMBERG GUERRA
Marabá/TO


A QUESTÃO

 Deu um tiro no peito
por ser cidadão com direito à busca
da (in)felicidade,
conforme o seu sentimento.

Morrer ou não é outra.
Ser ou não ser é uma.
A dor é
          a questão.

Deu um tiro no peito!

HIRAN CÉLIO DE MONÇÃO
Marabá/TO (1922-1941)


A VIDA
Devassa prostituta do destino,
filha bastarda e má da Divindade;
Es o resíduo amargo do intestino
dessa pantera horrenda- a Humanidade!

Degenerado aborto adulterino
da Criação! Essência da maldade
desde o existir da vida intra-uterina,
és o instrumento da fatalidade!...

No desespero da existência incalma
maldigo os deuses que me deram alma
e me entregaram, sem defesa, à vida!

É felizardo o que já nasceu morto;
não lhe manchara abençoado aborto
dessa Lucrécia, a mãe prostituída!

EU

Filho da carne putrefata e impura
estátua podre de excremento e barro,
trago no crânio o estigma da loucura
e o pus da morte existe em meu escarro.

Desta fumaça azul do meu cigarro
fogem bacilos da garganta escura.
Meu peito é um cofre imundo de catarro
onde se esconde um velho mal sem cura.

Milhões de germes trago no organismo
que em miserando e infame comunismo,
vão destruindo, aos poucos, meus tecidos.

Trago no corpo gangrenoso a essência
de toda podridão que há na excrescência
-glândulas, nervos, sangue apodrecidos…

ISABEL DIAS NEVES
Tocantinópolis/TO


P(OMAR) DE NÓS

         Para Marcelina Dias Neves, minha mãe

 É doce e vão esse pomar;
sombra feita,
flores fartas,
frutos gerados
sensualizam a boca.

Pomar que se almeja e conta
é o que se planta.

Sombra firme - reduzida,
flores novas - raras,
frutos fartos - racionados.
Tudo à mão - sem suor
 nem invenção.

Pomar que se almeja e planta
 é o que conta.

O trabalho com a terra
é um gesto de promessa:
molha a raiz com pranto e riso,
canta o plantio e a colheita,
sonha e arde a todo canto.

Pomar que se planta e conta
é o que se canta.

ORESTES BRANQUINHO FILHO
Araguaina/TO


LUCIDALUSÃO

Pensei que a camisa
Fosse o canto da parede
Como a janela seminua
Me olhando pela mulher
Segurando um coração.

Peguei a cortina
E a vesti correndo
Como se fosse cair,
Aí me deu um rosto
E sai morrendo pelo armário.

Encontrei seus restos rotos
E senti não estar morto
Em querer ser harmonia.

Corri terr´adentro noutro
Dentro em rins atrofiados,
Me doeu clastrofobia.

Moas mascam goma
Moscas mascam moças
Moças mascam mascam
Moscas moscas moscas.

Agora sol, o nublar ferve
Do teu corpo exalo verve
Que me urge e conduz.

Sinto rente à tua sina
Algo novo, longo zoom
Intuindo todo lume.

PEDRO TIERRA
(Hamilton Pereira)
Porto Nacional/TO


A HORA DOS FERREIROS

Quando o sol ferir
com punhais de fogo
                   e forja
a exata hora dos ferreiros,
varrei o pó da oficina
e a mansidão dos terreiros,
libertai a alma dos bronzes
e dos meninos
desatada em som
e nessa aguda solidão
que em ondas se apazigua
— ponta de espinho antigo —
na carne
         do coração.

Convocai enxadas,
foices, forcados, facões,
grades, cutelos, machados,
a pesada procissão dos  ferros
afeitos ao rigor da terra
                   e da procura
e, por fim, as mãos,
                   resignadas,
multiplicadas no cereal maduro.

Mãos talhadas em silêncio
                   e ternura,
que plantam a cada dia
sementes de liberdade
e colhem ao fim da tarde
celeiros de escravidão.

Esgotou-se o tempo de semear
e inventou-se a hora do martelo.
Retorcei na bigorna outros anelos
e a força incandescente deste mar
de ferros levantados.

Esgotou-se o tempo de consentir
e pôs-se a andar
a multidão dos saqueados
contra os cercados do medo.

Homens de terra
e relâmpago!
Convertei em fuzis vossos arados,
armai com farpas e pontas
a paz de vossas espigas!

LURDIANA ARAÚJO
Filadélfia/TO

CÁLICE


Se o amor acabou,
traz-me o cálice
que finda esta vida,
transforma minha alma
nas flores, na lua.

Se o amor acabou,
acabou-se a lida.
Traz-me o cálice
sem despedida.

Esquece as juras
Sob a luz da lua,
esquece que minh’alma
desejava a tua.

Esquece o silêncio
na madrugada fria,
minh’alma partiu,
sem despedida
pra longe da tua.

XAVIER SANTOS
Marabá/TO

INFÂNCIAS

O mundo fez piruetas
Com o pé de manga-rosa
Pintou as bolas-de-gude
Com as sobras do arco-íris.
Brincavam de amarelinhas
Felizes muricizeiros.
Curiós, xexéus e sanhaços
Faziam o maior furdunço
Nas frutas, nos arvoredos.

Os anos de todos eles
A gente contava nos dedos.

Com argamassa dos sonhos
A terra forjava os homens:
Era Bruno, Erick, Carol e Rafa
Brincando de lobisomem.

ZACARIAS MARTINS
Gurupi/TO

POLIVALENTE


Conserto quase tudo
mesmo que às vezes
possa provocar
alguns estragos.

Fazer o quê?
Ninguém é perfeito!

SORRISO ENIGMÁTICO

À noite,
ficava horas a fio
com aquele sorriso maroto,
mergulhada em seus pensamentos.
Jamais se conformou por ser apenas
uma dentadura num copo d´água!

SONHÓDROMO
Não me impeçam de viver o meu sonho.
Também tenho o direito de sonhar,
mesmo que às vezes,
isso incomode muita gente
por causa do barulho.

Fonte:
Antonio Miranda. Poesia dos Brasis.  http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/tocantins/tocantins.html

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Luiz Otávio e Carolina Ramos (Trovas Apaixonadas)

Em 1973, Luiz Otávio e Carolina Ramos trocam, em trovas, palavras de amor:

Que a este amor me consagre
– amor distante e sem calma -
e agradeço este milagre
de viver sem ter mais alma!
(LUIZ OTÁVIO)

Por te amar, tenho sofrido,
mas, não me arrependo: Vem!
– Quem ama as rosas, querido,
ama os espinhos, também.
(CAROLINA RAMOS)

Telefono… sempre em ânsia…
e ao ouvir a tua voz,
sinto que a longa distância
fica menor entre nós…
(LUIZ OTÁVIO)

Minha queixa é tão dorida,
ouve-a, suplico, Senhor!
Corta ao meio a minha vida,
dá metade ao meu amor!…
(CAROLINA RAMOS)

Um suplício que me aterra
e me torna quase incréu:
ter de perder-te na terra
para assim ganhar o Céu…
(LUIZ OTÁVIO)

Quando os meus olhos levanto,
vendo os teus junto dos meus,
vejo encanto em cada canto,
à luz do Amor, vejo um Deus!
(CAROLINA RAMOS)

Teus olhos nunca beijados,
terão, agora, a ventura,
de ver, embora orvalhados,
a Vida com mais ternura…
(LUIZ OTÁVIO)

Um amor que nada pede,
puro, intenso sublimado,
é benção que Deus concede
e não pode ser pecado.
(CAROLINA RAMOS)

Conversa com Deus, em prece…
Confiante enfrenta a procela!
– “Sempre o mau tempo parece
pior, se o vês da janela.”
(LUIZ OTÁVIO)

Tão rica eu sou… que ventura!
Deste-me um rico tesouro,
– um tesouro de ternura
que vale bem mais do que ouro!
(CAROLINA RAMOS)

No Céu, em vida mais bela,
na terra, seja onde for,
se eu estiver longe dela,
é tudo Inferno, Senhor!…
(LUIZ OTÁVIO)

Adormeceste em meus braços…
e eu pude ter a ventura
de ninar os teus cansaços,
no meu berço de ternura…
(CAROLINA RAMOS)

Eu tinha medo de amar,
previa que fosse assim:
minha alma e a vida entregar
sem limite sem ter fim…
(LUIZ OTÁVIO)

Quando a saudade me embala,
o teu nome a repetir,
o silêncio tanto fala,
que não me deixa dormir!
(CAROLINA RAMOS)

Em dois versos se resume
a nossa esplêndida história:
– amor que é sonho e perfume!
– amor que é cruz e que é glória!
(LUIZ OTÁVIO)

Nosso amor… e quem o entende?
– Sublime e grandioso amor!
Tão ferido, não se rende,
e é maior envolto em dor!
(CAROLINA RAMOS)

Fonte:
RAMOS, Carolina. Príncipe da Trova. SP: EditorAção, out 1999. p. 142-145.

Noordyne Mussa (A Menina que paria pássaros)

Uma doce e poética narrativa do moçambicano Noordyne Mussa, participante de oficina de escrita criativa, de Marcelo Spalding. Neologismos como "se sozinhava" e um tom de realismo mágico representam bem a estética da literatura luso-africana, que tem Mia Couto como seu expoente maior.
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Um dia, ela foi vista na varanda dos seus aposentos – sem burca. O expressivo rosto de olhos verdes denunciava sua tristeza. Abiba ouvia de longe a felicidade das primas já casadas, mas ela ainda se sozinhava. Essa exclusão tingia o espelho da sua alma com a ânsia da esperança.

Um casal vivia numa remota aldeia e não se misturavam com outras raças. E com o problema da guerra civil, ficou complicado viajar e estabelecer contactos para prepectuarem a sua raça. Quando a guerra acabou, a esperança renasceu nos corações da família.

O casal tinha uma filha – Abiba. Ela não ia à escola porque todos, incluido os professores viviam nas palhoças de barro e capim. E a escola era debaixo duma árvore. Os alunos, sentados na areia cheia de matequenhas . Abiba cresceu gradeada dentro de casa – aprendendo o comércio da família. A menina tinha vestes de variadas cores, excepto a preta, embora o seu cabelo fosse preto. Quando ela via a cor preta, imaginava o sujo de um cadáver e se sentia nauseada. A menina crescia, a curiosidade nela também e os pais ficavam cada vez mais impossibilitados de correspondê-la. Ela não entendia a escuridão da noite e até dormia acordada como o coelho, porque o sono também era escuro. E a fome era tanta… Nem vacas. Nem gazelas. Os animais, sumidos com a guerrilha. Um dia, a menina perguntou à sua mãe, porque não comiam o cão:

- A carne de cão é preta.

Abdul não quis saber mais. Ultimamente, a sua filha Abiba andava esquisita – já falava de amor e paixão. Aquelas palavras eram proibidas para raparigas da sua idade. Várias vezes, Abiba fora avistada com um rapaz albino, o único que para ela era branco – assim como a noite e o dia. E a mãe, assustada, indagou-lhe onde ela aprendera a palavra loiro. A miúda calou, mas tinha alguma coisa lhe minhocando na cabeça. Fábio tinha pele branca e portanto, como a mãe lhe ensinara outrora, ele era branco. Mas a mãe da Abiba frisou mais uma vez, sua repugnância em relação ao albinismo:

- Rochas nascem rochas.

Abiba ficou com a ideia que a raça de Fábio era uma doença contagiosa. Ela foi proibida de sair para a rua. Um dia, acesa de fogos, Abiba enganou os guardas e fugiu – algo estranho lhe movia dentro do seu peito adolescente. Pouco depois, ela e o Fábio foram encontrados com os seus pais, sentados num banco do parque. Em casa, cada pai reprimiu seu filho. E disse a mãe de Fábio:

- Nós somos a última raça depois dos índios.

Raça perseguida nos últimos tempos e em extinção devido à superstição – as pessoas eram caçadas e mortas para gerar riqueza. E se Fábio se metesse com Abiba, traria azar para a família dela e os pais não estavam dispostos às consequências. Os pais da Abiba conversaram os derradeiros planos devido à desobediência dela. O senhor Abdul, já tinha decidido:

- Vamos colocar expulsamento nela.

- Expulsá-la?

Não. Um pássaro para lhe guardar. Naquela zona havia um medicamento tradicional que os pais usavam para proteger suas filhas contra a gravidez precoce, bem como o relacionamento com pessoas erradas. No dia seguinte, Abiba tomou o medicamento sem notar, estava dissolvido na sua adorada sopa. Só que os pais não sabiam que aquele medicamento, também era afrodisíaco – um efeito secundário que dava comichão nas bundas, nos pés e obrigava à prática de nudismo: Abiba já não parava em casa.

Ela passou a ser vista com saias curtas e calções jeans apertadíssimos. Mas Fábio já se tinha ido embora – destinado ao externato, situado a uma longa distância dali. Dada a gravidade do problema, os pais da Abiba arranjaram um noivo para ela. Um alguém da mesma cor – um homem trinta anos mais velho que ela. Era tradição da família. Abiba foi casada.

Então, no dia das núpcias, os dois já na cama, o guarda surgiu – um pássaro saiu voando dentre as pernas abertas da Abiba, estragando todo clima do casal. Alarmado, o homem apanhou um infarto e caiu, morto. Ela ficou sozinha. E assim foram os restantes dias da Abiba.

Nenhum lúcido a queria como esposa, ficou famosa por parir pássaros e matar homens. Para contrariar, era assim a sua miserável vida: se maquiava e pousava ali na varanda, sozinha e sorrindo às aves. As pessoas não entendiam aquela sua vaidade. Ela devia é chorar e tratar do seu sofrimento passarinhado. Os pais, preocupados, lhe indagaram o motivo da felicidade, e ela respondeu:

- Sou uma gaivota no alto mar.

Janelando, ela desfrutava, lá do céu, a esfericidade do planeta. Diferentemente das outras gaivotas, ela voava noturnamente. Então deu-se que o corpo bem nutrido da Abiba desaparecia noite após noite. A palidez e o sofrimento, se gravavam no seu rosto. Ela inventara uma receita para dieta. Já não usava burca. Virou modelo, pousava para fotógrafos e assim aumentava a renda familiar, uma vez que o pai estava já muito velho, e o comércio não atravessava os melhores dias. Um dia, a mãe lhe pediu o segredo de voar. Abiba hesitou, mas depois disse:

- O voo é meu homem.

Os voos eram únicos que lhe podiam saciar a fome de sexo. E a mãe sabia dos casos com os voos. Mas o senhor Abdul, já não fazia voar a sua esposa. E a mãe queria ter o corpo da filha, leve, aerodinâmico, voando com a brisa do mar, passarelando a passarinho como Abiba. Então, a moça elucidou a mãe de que o seu corpo era resultado de muitos voos, diferentes casos de voos – os velozes, os acrobáticos, incluindo a planagem.

Um dia, arrumaram-se e saíram. E foi sempre assim, o corpo da mãe dela passarinhava, mãe e filha pareciam irmãs. Como era possível emagrecer tão rápido assim? Abdul, desconfiado, seguiu-as escondido na escuridão das árvores das ruas, e chegaram no local – uma rua coberta de bares lado a lado, uma rua com gente cada vez mais parecida uma da outra. Lá, os pretos é que conduziam os voos. Abdul descobriu que a filha e a mulher eram prostitutas. Regressou à casa e suicidou-se.

Fonte:
http://escritacriativaonline.blogspot.com.br/search/label/Contos

Luiz Eduardo Caminha (Poesias Escolhidas) II

Reflexões poéticas ou nada poéticas sobre o Inverno

Inverno 1


Cruel,
Sisudo,
Padrasto.

De mim?

Carrancudo,
Casmurro,
Sofrido.

Teu corpo?

Se amolda,
Me aquece,
Me envolve,
Me cobre.

Só tu,
Mulher,
Podes ser
Meu Sol!

Inverno 2

Frio intenso.

Na estepe
De minha mente
Nada cresce.

Nem mesmo
Um poema -
Que me aquece –
Que me aqueça!!!

Porventura...

Inverno?
Não rima
Com estéril?

Deveria!

É isto
Qu’ele faz:

Até a mente
Tolda,
Congela,
Nada produz!

MÍNIMO

Tu és,
Mulher,
No
Inverno,
Meu
Sol.
Meu
Verão.

AMENIDADES

Coisas boas do Inverno:
Uma cama bem quentinha,
Um ar quente no máximo,
Um café de pelar a boca
...

Só prá continuar
Debaixo dos cobertores.

Nada disto é melhor
Que a areia leito de uma praia,
Um Sol de verão,
Uma água de coco bem gelada,
De doer os dentes.

...

Quem gosta de frio e neve
É pinguim, urso polar e esquimó!

LUA INVERNAL

Até a lua,
Amante dos boêmios,
Companheira dos notívagos,
Se acoberta;
Agasalha-se de nuvens,
Névoa,
Neblina;
Esconde-se
Do frio gelado.
Mas está lá!
Pronta, à espera,
O poeta sabe.

ORFANDADE

Eu não imaginava
Ficar órfão tão cedo.
Aliás, eu nunca
Imaginei-me um órfão.

Estou nos cinqüenta e oito,
Quase cinqüenta e nove,
Primeiro meu pai,
Tristeza, melancolia.
Depois um irmão,
Dor, sentimento.
Mas ainda tinha uma mãe.
O fel da dor compensava!

Daí... ela resolveu partir,
Bateu asas
Como um pássaro,
Uma borboleta
Foi ao encontro dos seus,
Do outro lado.

O velho útero,
Sacrário dos filhos,
Já não vivia.
O cordão umbelical
Definitivamente se partira.
Um silêncio ensurdecedor,
Eco de uma ausência.

Foi aí que senti a orfandade.
Ficou fácil entender saudade.
Tão fácil! Tão amarga!
Sem graça, senti-la!

A Hamilton e Edy, meus pais, 1 ano depois que ela partiu para encontra-lo e reverem, juntos, meu irmão!

ESPECTRO

Foto noturna,
Riscos de luzes,
Rasgos melancólicos,
Soturnas lembranças.

Lúgubres sombras,
Espectros famélicos,
Andanças perdidas,
Descoloridas!

Uma tela disforme
Retrata a fome.
Miséria cansada
Da exclusão.

Quem vai parir o amanhã?
Quem vai colorir a vida?
A Esperança? Último grito de Pandora?
Ou a certeza? Dum triste futuro possível?

A argamassa, massa dos pobres,
Pão amanhecido, amolecido
Pelo suor diário de desatinos.
Faina diuturna, sede insaciável
De Justiça... e Paz, enfim!

Um Sepulcro futuro e garantido,
Repleto de sonhos, sussurros,
(Caiado pela hipocrisia)
Resta como digno descanso!

SONHOS

Estás louco poeta?
Queres tu imaginar,
Que o imponderável
Acontece?

Sonha, sonha, oh! Poeta.
Ainda bem que dormes,
Melhor: existes.
E sonhas...
Poesias!

Fonte:
http://caminhapoetando.blogspot.com.br/search/label/meus%20poemas

Isabel Furini (Livro Bom, Livro Ruim)

Na oficina Como escrever um livro, que oriento há muitos anos, houve uma discussão quando uma aluna disse: Comecei a ler o Senhor dos Anéis, um livro muito mal escrito. Um colega contra-argumentou: Eu gostei do livro. Se você não gostou, é um problema seu, isso não quer dizer que não seja um bom livro, só que não agrada a todos os leitores.

E eu tive que desafiar o grupo com uma pergunta:

- Será que existe um livro que agrada a todos os leitores?

Uma senhora respondeu: - A Bíblia.

Um rapaz retrucou: - Será que ateus gostam de ler a Bíblia? (Risos)

Alguém disse: - Machado de Assis.

Apoiou um senhor idoso: - Isso mesmo.

Um aluno não esteve de acordo: - Minha tia não gosta de Machado de Assis, porque uma professora obrigou-a a ler O Alienista no colegial, na época que havia colegial...

- E os Lusíadas de Camões?

Silêncio na sala. Por fim, um rapaz disse: - Será que todos leram Os Lusíadas? Eu nunca vi esse livro na lista dos mais vendidos. E será que todos aqueles que leram apreciaram o livro? Ou alguns têm medo de falar que não gostaram e de parecer burros?

A discussão continuou por algum tempo. Por fim, eles mesmos chegaram à conclusão de que existe um livro aceito por todos os leitores. Existem livros aceitos pela maioria dos leitores, os best-sellers. Existem livros aceitos pela maioria dos intelectuais, em geral, livros que ganham prêmios importantes. Mas sonhar que um livro será apreciado e aplaudido por todos os leitores é algo muito difícil de acontecer. Talvez impossível em um país livre. Cada cabeça é um universo. Tem suas nuances. Sua história pessoal. Seu olhar único.

É tão fácil criticar o trabalho de outrem e tão difícil criar e realizar uma obra de arte que o aforismo fala “a crítica é fácil, a arte, difícil”. É assim mesmo, ver o erro no trabalho dos outros não leva muito tempo, por exemplo, observar um quadro e criticar pode levar questão de minutos.

Ler um texto e sentir desagrado também não leva muito tempo, em geral depende da dimensão do texto a ser lido. E, às vezes, nem isso. O leitor começa o texto e nem dá chances... já forma uma opinião ao focar as primeiras frases. E é muito interessante que a maioria das pessoas não fala: eu gostei, ou eu não gostei do texto, ela afirma: “está muito bem escrito”, “está mal escrito”, ou pior ainda, “esse é um bom escritor”, “esse escritor é ruim”, como se umas poucas frases fossem suficientes para julgar a obra completa de um autor.

“Eu não gostei desse livro” é uma frase honesta. “Esse livro é ruim” é uma frase fruto da arrogância, que tenta mostrar que a opinião dessa pessoa tem valor universal. Parece que ela está gritando: “Ei! Não leiam esse livro! Eu não gostei e ninguém deve gostar dele. Eu já falei, esse livro é ruim. Escutem meu recado”.

É comum em concursos literários haver pessoas insatisfeitas, aqueles que não ganharam, logicamente. Algumas dessas pessoas, ao conhecer os poemas ganhadores, enviam e-mails dizendo: “O poema que ganhou o primeiro lugar não é bom”. E não adianta. O poema precisa ser bom para os jurados. Às vezes eu também não fico contente com um trabalho que conquista o primeiro lugar, mas fico em silêncio pensando que cada ser humano tem vivências e ideias diferentes e que é preciso aprender a respeitar a escolha dos outros.
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Isabel Furini é escritora e poeta premiada, autora de “,,, E OUTROS SILÊNCIOS” que foi lançado em 08 de julho/12.

Fonte:
http://livrodoescritor.blogspot.com/feeds/2000808209209305748/comments/default

Raquel Ordones (Poesia em Gotas) II


AMO-TE

 Amo-te desde sempre e além do fim
Antes da essência da estrela e do céu
Após a curva do infinito de onde vim
Em circuito inicio, meio e fim do anel.

Amo-te com a carne e de toda a alma
Na tua presença e na minha saudade
Amo-te em vendaval que me acalma
Em todo instante é minha eternidade.

Amo-te, simples assim naturalmente.
Com a emoção; sem nem um segredo.
Amo-te; amo-te, digo isso sem medo.

Amo-te desde antes do nascer do mar
Maciço é o desejo quem vem na onda
Amo-te, ininterruptamente me ronda.

ÀS VEZES UM ABRAÇO É TUDO

Sabe quando você se sente só na multidão?
Ou quer caminhar por uma estrada sem fim?
Quando uma conversa baixa é um turbilhão?
Ou não entende a diferença entre não e sim?

Sabe quando você se sente sem importância?
E tudo o que você faz em nada surpreende?
E quando o espelho a você não dá confiança?
Quando parece que o mundo não lhe entende?

Sabe quando a lágrima vem e pelo rosto corre?
E sabe aquele dia que do quarto não quer sair?
Que nem um palhaço consegue lhe fazer sorrir?

Então, esse momento sempre existe no coração
Creio que nós mesmos nos impelimos no espaço
E tudo que carecemos é do silêncio e do abraço.

SAUDADE

Saudade é apreciar um passado que não transpôs
É uma tatuagem no coração com tinta irremovível
Algo que jaze dentro gente que alguém fez ou pôs
É uma condição só nossa, uma coisa intransferível.

Saudade é dentro da essência o não desligamento
Histórico que mora mesmo com tempo decorrido
Persiste na alma o sorriso e martela pensamento
Um presente flor que o passado nos deu colorido.

Saudade é a recusa de apagar o que na alma mora
Reprise que surge em qualquer lugar sem demora.
Prática do pensamento de uma coisa que faz bem

Saudade é algo mágico que nos transporta e além
Pó de perlimpimpim quase vivo, de todas as cores
De todos os gêneros, todas as superfícies e amores!

O VALOR DE TER VINDO AO MUNDO

A minha frente balança a folha
Dança a borboleta
Da água de sabão voa a bolha!
A poeira se levanta sem escolha
Bailam as flores
O vento carrega seus olores!
Ascende a pipa: um espetáculo
A pena voa
Para o vento não há obstáculo!
Tudo se transforma em orquestra
Cabelos valsam
Com a brisa que entra pela fresta!
E tudo é vida nessa inquietude
Na constância do vento
Se resume em retrato colorido
Inda que sem ser visto é sentido
Ante esse cenário
Vale a pena ter nascido!

BORBOLETEANDO POESIA

Adejo de encontro às palavras, enfim
E sinto a fragrância que delas exalam
Letra por letra eu arquiteto um jardim
Os versos em pétalas ali se instalam.

O gosto do néctar imprime essência
Sentimento com vitamina de ternura
Torna-se a razão da minha vivência
A dedicação se aduba ruma a altura.

Se solta o casulo e vontades voejam
Nas transparências que vem da alma
Borboleteando poesia, imo se acalma.

Ventos levam e trazem, as folhas bailam
Bebida de Deuses desanda em desejo
Verso em botão se abre poesia e beijo.

CASTELO DE NÓS

Construí um castelo real com partículas de nós
Com supinos paredões edificados com respeito
Sem divisas, sem porões, sem cacos e sem pós
Com plantios de carinho de tudo quanto é jeito.

Um riacho nasceu com fluidez de cumplicidade
Flores se ergueram a sua margem e fragrância
Abissais janelas se acendem discerne a amizade
Nesse cenário existe um infinito em abundância.

Degraus de confiança, galgados um de cada vez
O acordo das portas que aos poucos se abrem
Conceito: quereres a compreender: não cabem

Há um encanto que chuvisca nos jardins, enfim
Pássaro ali pousa sem cobrança sem promessa
Castelo de nós: instante a instante sem pressa!

DAS MÁSCARAS

Indiscutível tua existência, em qualquer canto.
No festejo da vida fazem folias a todo instante
Incapaz de imaginar o quão determina o pranto
Adorável, tem lucidez dentro do jeito farsante.

Ideologia: a que veio com tão meiga aparência?
Quase chega a ter um aspecto espúrio, engana
Superficial... Isenta de toda e qualquer essência
Mas se acha com vantagens faz da alma insana.

E o que faz aqui tão bem vestida essa máscara,
Se não tem cerne, é absolutamente desconexa,
De mãos dadas à mentira tua concubina anexa?

Diverge no que fala e no que faz; é um desastre.
Em teu pensamento onírico seduz e enclausura
Torna-se precipício e sem paraquedas na altura.

DE INICIO, UM SUSTO... ENORME!
Entre o verde das folhas e o bruto galho
arrisquei colocar o meu rosto a espreitar.
Em um alfobre logo adiante vi roseiras,
tonalidades tantas de permutar a visão;
Borboletas e raios chamejantes do sol,
o vento a embalar a natureza existente
E do outro lado vi uma sombra, gigante
De inicio, um susto... Enorme, abissal!
Eu olhei para o galho e bem no seu alto
avistei um casulo sendo ninado pela brisa
projetando no chão uma corporatura viva!

Fonte:
http://raquelordonesemgotas.blogspot.com/

Aluísio Azevedo (O Coruja) Parte 33

CAPÍTULO III

Fazia dolorosa impressão ver sair todas as manhãs, pelos fundos da chácara de Teobaldo, aquele vulto sombrio todo envolvido em um velho sobretudo, a tossir esfalfado de trabalho e sem querer incomodar com a sua tosse os criados que ainda dormiam.

A nova existência do amigo como que o fizera ainda mais triste e mais só. Dantes tinham os dois sobeja ocasião para estar juntos, para se falarem, para trocarem entre si as suas confidencias; e agora mal se viam uma vez ou outra, casualmente, porque André insistia no escrúpulo de desfear o radiante aspecto daquelas salas, carregando para lá com o seu vulto desalinhado e feio. À noite, quando apareciam visitas, o que era muito freqüente, não havia meio de arrancá-lo do sótão.

Demais, para que iludir-se? Teobaldo não fazia grande empenho em apresentá-lo aos seus amigos, chegava até em presença destes a tratá-lo com uma certa frieza. — interesse em obrigá-lo a aceitar um canto de sua casa, não passava de um dos muitos rompantes de generosidade, que ele às vezes tinha quase que inconscientemente, e dos quais se arrependia logo sem nunca se queixar de si, mas do seu obsequiado.

Isto não quer dizer que Teobaldo agora estimava menos o Coruja; ao contrário — jamais intimamente o colocou tão alto no seu conceito; apenas, como homem vaidoso, não queria incorrer no desagrado de seus sequazes impondo-lhes um; tipão daquela ordem.

A borboleta, desde que lhe saem as asas, não gosta de ir ter com as antigas companheiras que se arrastam no chão.

— Não é dele a culpa... considerava André, sempre disposto a perdoar. — A borboleta precisa de sol, precisa de flores... Quem tem asas — voa; quem as não tem fica por terra e deve julgar-se muito feliz em não ser logo esmagado por um pé.

E, a contragosto, fazia-se mais e mais retirado e macambúzio.

Ao lado de Branca então chegara o seu acanhamento a causar dó; quando a formosa senhora lhe dirigia a palavra, ele parecia ficar ainda mais selvagem, mais desajeitado, atarantava-se, fazia-se estúpido, não encontrava posição defronte daquele primor de beleza, e conseguia apenas uivar algumas vozes confusas e quase sem nexo.

E no entanto sentia por ela um afeto extremamente respeitoso, uma espécie de adoração humilde e tácita; quando Branca passava por junto dele, Coruja reprimia a respiração, contraía-se todo, como se receasse macular o ambiente que ela respirava; e só se animava a encará-la enquanto a tinha distraída ou de costas, e isso com um profundo olhar de terna veneração.

— Achas-la bonita, hein? perguntou-lhe uma vez Teobaldo, batendo-lhe no ombro.

— É uma imagem... respondeu André.

— Entretanto, ela se queixa de ti...

— De mim?

— E verdade, desconfia de que não te caiu em graça.

— Ora essa!...

— Supõe que antipatizas com ela...

— Eu?...

— Sim e, vamos lá, coitada, não deixa de ter o seu bocado de razão: quase nunca lhe dás uma palavra e, quando acontece te achares ao lado dela, ficas por tal modo impaciente, que a pobrezinha receia ser importuna e foge.

— Bem sabes que infelizmente esse é o meu feitio; sou assim com todo o mundo, à exceção de ti.

— Sim, mas o que eu não admito justamente é que, para ti, minha mulher faça parte de todo o mundo! Quero que ela participe da exceção aberta para mim, que a trates pelo modo por que me tratas.

— Não é por falta de vontade, crê; mas não está em minhas mãos! — Procuro ser amável, ser comunicativo, e as palavras gelam-se-me na garganta, o pensamento estaca e uma cadeia de chumbo enleia-me todo, tirando-me até os movimentos; então sinto-me ridículo, arrependo-me de me haver mostrado; suo, lateja-me o coração e em tais momentos daria o resto de minha vida para sair de semelhante apuro. Outras vezes quero aproximar-me dela, dizer-lhe alguma coisa que lhe faça compreender o quanto a estimo, mas de tal modo me falece a coragem, que não consigo fazer um passo, nem encontro uma palavra para lhe dar.

— És um tipo!

— Sou um asno! Ah! Que se eu tivesse a tua presença de espírito, as tuas maneiras, os teus recursos.

— Com esse gênio, serias ainda mais infeliz!

— Não, seria ao menos compreendido; porque não sei que diabo tenho eu comigo, que ninguém além de ti percebe as minhas intenções ou acredita nos meus atos. Às vezes, quero ser meigo, quero mostrar que não estou contrariado, quero manifestar a minha simpatia ou o meu entusiasmo por alguém ou por alguma coisa e, em vez disso, consigo apenas convencer a todos de que estou aborrecido e que só desejo que ninguém se aproxime de mim, que não me fale, que não me incomode! E, todavia, não sou mau e todo o meu empenho é ser melhor do que sou.

— Ser melhor do que és?... Oh! Então é que serias deveras um tipo insuportável! Acredita, meu bom Coruja, que o teu defeito capital é a tua extrema bondade. A maior parte dos homens não te pode tomar a sério, porque não te compreende e porque te supõe um louco. Tens atravessado a existência a espalhar pelo chão, à toa, sem contar as sementes, punhados e punhados de boas ações. Pois hein! Qual foi de todas essas sementes a que vingou? — Nem uma única! Não porque não fossem perfeitas e sãs, mas porque não encontraram terra em que pudessem medrar! És um excêntrico, um aleijado, um monstro, tens o coração defeituoso, porque ele não é como o coração típico dos mais. E como, em semelhantes condições, queres ter amigos; queres ser ao menos suportado entre os homens? Já viste porventura uma pomba atravessar impunemente por entre um bando de corvos?... Se queres ser bem recebido no meio dos homens, se homem como eles ou pior; desculpa-lhes os vícios — imitando-os; afaga-lhes o amor-próprio, fingindo que os admiras; e dessa forma, se fores um forte hás de desfrutálos, e se fores um vulgar hás de viver com esse lado a lado, na mais doce harmonia e na mais deliciosa felicidade. Isso é a vida!

— Oh! Não me pareces o mesmo; nem acredito que abraces tão cínicas teorias; são falsas, nunca te pertenceram!

— Enganas-te, meu visionário, essas teorias foram sempre as minhas e nunca me conheceste outra, desde que caminhamos juntos por entre a enorme corja de nossos semelhantes; a diferença única é que dantes elas se manifestavam por outro modo, visto que eu me achava ainda no período da vida em que todo o homem, por pior que seja, tem no coração uma grande dose de altruísmo e belas aspirações...Eram efeitos dos vinte anos! Acredita, porém, que todas as aparentes generosidades que me viste praticar, todo o meu desprendimento por umas tantas coisas, todas as minhas abnegações, todas as minhas boas obras, todos os meus atos de heroísmo, e tudo que fiz e faço de nobre, de superior e digno, tudo foi e é feito para que eu melhor viva entre os meus semelhantes, a quem detesto, à exceção de ti e de Branca. Detesto-os, mas faço-me amar por eles; sei que me humilhando serei pisado; então, nem só me humilho, como ainda os rebaixo quanto posso! E contigo sucede justamente o contrário: amas todo o mundo e não consegues te fazer amar por ninguém. Humilhas-te por bondade; e eles respondem a isso — desprezando-te. A humanidade, meu amigo, em geral é baixa e vil, logo que encontra alguém que a respeita, julga esse alguém ainda mais baixo e mais vil do que ela; para lhe merecer alguma consideração é indispensável fazer o que eu faço e o contrário do que tu fazes — é necessário desprezá-la e só aceitar das mãos dela aquilo que serve para nos elevar e engrandecer-nos, rebaixando-a. O homem tudo perdoa aos seus semelhantes, menos o bem que estes lhe façam, porque — dever um obséquio é dever gratidão, e a gratidão jamais vem de cima para baixo, mas sempre vai de baixo para cima! Aceitá-la é aceitar uma atitude inferior. A grande filosofia da vida consiste, pois, em saber aproveitar todo o bem que nos queiram fazer, fingindo sempre que tão pouca importância lhe ligamos, que nem dele nos apercebemos, e fechar o coração a todos, para não obrigar quem quer que seja a nos ser grato!

Coruja ficou a refletir por alguns instantes, e depois disse:

— Estava bem longe de esperar de tua boca tais idéias, e confesso que te fazia na conta de meu amigo...

— E sou efetivamente; mas tu, repito, não és um homem e nem eu te falaria com toda esta franqueza se tivesses alguma coisa de comum com eles. Não me arrependo de haver aceitado os muitos obséquios que recebi de tuas mãos; juro-te, porém, que jamais terias ocasião de os praticar se eu em qualquer tempo chegasse a descobrir em ti a intenção de me fazeres grato ou reconhecido. Aceitava-os, confesso, porque tu, pela tua excepcional bondade, entendias que eu, só com recebe-los, prestava-te um grande serviço.

— E era.

— Não, em verdade não era; mas era como se assim fosse, porque tu assim o entendias.

— E o que não serei eu capaz de fazer para continuar a ser teu amigo?... Só a idéia de que não me repeles e não me condenas como todos os outros, todos, até mesmo a minha noiva; só essa idéia é já uma grande consolação para mim. Não imaginas meu Teobaldo, quanto me dói cada vez mais esta terrível antipatia que inspiro a toda a gente. Ainda há pouco, enquanto me falavas de tua mulher, dizia eu comigo: "Para que hei de aproximar, para que me hei de chegar para ela, se tenho plena certeza de que minha presença lhe é fatalmente penosa, e aborrecida?"

— Exageras! Respondeu Teobaldo. E para o que, vais ver!

E correu a tocar o tímpano.

— Que fazes? Perguntou o Coruja, aflito.

— Verás, disse o outro, e acrescentou para um criado que entrava:

— Pergunte A senhora se pode chegar até aqui.

— Não faças semelhante coisa... Exclamou André, entre suplicante e repreensivo, e muito sobressaltado: — Que não irá supor D. Branca!

— Suporá que endoideceste se continuas a fazer esses trejeitos e esses gatimanhos.

— Mas eu agora não posso me demorar... Voltarei daqui a pouco...

— Não seja criança! Espera.

Nessa ocasião, Branca assomava à porta do gabinete em que conversavam os dois amigos. Vinha deslumbrante de simplicidade e de beleza; não se lhe via uma jóia no corpo, nem uma só fita no vestido inteiriço, de cambraia; mas a sua pequena cabeça altiva e dominadora estava a pedir um diadema e as suas belas espáduas um manto de rainha.

Coruja, ao vê-la, abaixou os olhes e começou a respirar convulsivamente, como um criminoso que vai ouvir a sentença.

— Vem cá, minha flor! Disse Teobaldo, fazendo um gesto à mulher, senta-te aqui perto de mim.

Branca obedeceu e ele acrescentou:

– Muito bem. Agora tu, Coruja, senta-te deste outro lado.

Coruja adiantou-se muito vermelho procurando sorrir.

– Ora muito bem! repetiu aquele dirigindo-se à esposa; sabes para que te chamei? Para acabarmos por uma vez com unia tolice que observo entre vocês dois. Tu supões que o Coruja, o meu único amigo, não gosta de ti, e ele, o idiota! pensa que tu embirras com ele. Expliquem-se!

– Ora! sempre tens umas brincadeiras!... Resmungou André, muito atrapalhado; isto é coisa que se faça?...

– Pois eu, atalhou Branca sorrindo, não desgostei da brincadeira, porque receava, com efeito, que o Sr. Miranda...

— Chama-lhe Coruja, interrompeu o marido.

— Que o Sr. Miranda, continuou Branca, houvesse antipatizado comigo.

— Oh! Minha senhora ... Por amor de Deus... Longe de mim semelhante idéia ... Ao contrário, eu... Sim... Quero dizer...

— Então! Fez Teobaldo.

— Eu gosto muito da senhora...

— E creia que é pago na mesma moeda, respondeu Branca.

— Ora até que afinal! E agora, vamos! Um abraço! Exigiu Teobaldo.

A esposa ergueu-se imediatamente, e o Coruja, cada vez mais vermelho e comovido, caminhou contra ela com os braços moles, ofegante e sem encontrar uma palavra para dizer.

Foi necessário que a formosa senhora se resolvesse a ir em socorro dele e lhe cingisse os braços em volta das costelas.

— Bom! Concluiu o dono da casa, creio que agora estão feitas as pazes, e espero que de hoje em diante não terei de aturar as queixas de nenhum dos dois!
–––––––––––
continua…

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Juliana Dummel (Atirei o pau no gato)


Aluna da Oficina de Escrita Criativa, de Marcelo Spalding
–––––––––––––––––––
Meu nome é João, João de Santo Cristo. Nasci no Natal de 97 e minha mãe me chamou João. Foi a enfermeira da sala de parto que quis colocar o Santo Cristo.

Mas minha vida começou de verdade no dia 26 de dezembro de 2002, o dia que atirei o pau no gato. É. Fui eu que atirei o pau no gato, o gato amarelo da Dona Chica.

Dona Chica é tia-avó da minha mãe, tem 85 anos, e mora na minha casa desde que seus 9 filhos foram para o nordeste trabalhar em uma temporada de corte de cana. Prometeram voltar em 5 meses, mas desde então não tivemos notícias. Foi Dona Chica quem me alimentou até os 5 anos de idade. Depois disto, além de comida me deu um bocado de instrução.

Minha mãe é faxineira no Hospital Geral do Exército do Rio de Janeiro e com este trabalho sustenta a família que somos eu, ela, Dona Chica e o gato. Minha mãe trabalha todos os dias da semana. Quando não está no seu horário, está cumprindo o serviço de colegas. O que mais lhe rende é tirar o serviço dos feriados, Natal e ano-novo são os mais caros. E minha mãe sempre aceita trabalhar, pelo dinheiro.

No meu primeiro aniversário ela estava de serviço. No segundo, no terceiro e no quarto ela tirou o serviço de colegas e recebeu um dinheiro que valia a pena. Quando completei 5 anos ela estava em casa, mas desejei que  estivesse. Ela fez faxina em casa e xingou a Dona Chica de “porca imunda” vinte e nove vezes. E ninguém lembrou do Natal e nem do aniversário.

O dever de Dona Chica era não me deixar com fome.  Minha mãe deixava a comida preparada e ela colocava o prato para mim.  O resto do tempo ela gastava sentada em sua poltrona de chenille, em frente à televisão, acariciando o gato amarelo.

O meu dever era sentar ao lado da Dona Chica, no meu banquinho de madeira, e me comportar. Comportar-se  significava não derrubar nem um único grão de arroz na mesa, não me arrastar no chão para não ficar com pelo de gato na roupa, não falar para não atrapalhar o  programa de televisão, não espiar pela janela e não judiar do gato. Caso houvesse alguma falha na minha conduta, Dona Chica alertava com sua alta e grossa voz: “Menino malcriado, olha a porquice na mesa!”, “Menino malcriado, cala essa boca!”, “Menino malcriado, te arranca da janela!”.

Até que no dia posterior ao meu quinto aniversário eu atirei um pau de madeira no gato da Dona Chica. O gato deu um berro estridente de dor. Dona Chica admirou-se, enfureceu-se e saltou para cima de mim: “Menino malcriado, os bichos são como gente, eles também sentem!”.  Esta foi minha primeira aula. Desde então, Dona Chica decidiu me dar educação. E eu passei a ganhar mais do que comida.

Não sei ao certo se, o que mudou a minha história, foi o pau que atirei no gato ou o “também” do berro da Dona Chica. Só sei que se comenta muito sobre o berro do gato: miau!

Fonte:
http://escritacriativaonline.blogspot.com.br/search/label/Contos

Alfredo Santos Mendes (Livro de Sonetos) II


HALLOWEEN

É noite de Halloween, o medo impera.
Há muita bruxa à solta em cada esquina.
No seu modo ancestral, fica à bolina.
Seu rosto de menina esconde a fera!

Tendo a presa na mão, tudo se altera…
Deixa cair seus ares de menina.
Se metamorfoseia de felina…
E aos poucos nosso corpo dilacera!

O meu, foi sendo aos poucos desmembrado.
Meu coração ficara aprisionado,
Àquela feiticeira alucinada!

Passado o Halloween fui surpreso.
Aquela bruxa má, à qual fui preso,
Era a mais deslumbrante e linda fada!

HERESIA

Talvez minha garganta revoltada.
Espinhosa ficasse, e enrouquecesse.
Ou para meu castigo enlouquecesse,
Por a manter tão muda, tão calada!

Quero falar, a voz sai embargada,
Como se algum mal eu lhe fizesse.
Eu juro que não fiz, e isso acontece.
Minhas cordas vocais fiquem paradas!

Eu preciso gritar minha revolta,
Engolir todo o mal que não tem volta,
E na glote se encontra aprisionado!

Eu quero ler a minha poesia.
Limpar do meu passado, a heresia,
Engolir as tristezas do meu fado!

   IGUALDADE

Indiferente ao credo à própria raça,
O ser humano nasce, modo igual.
A sua formação conceptual,
É dádiva de Deus, divina graça!

Não traz no nascimento uma mordaça.
Um sórdido ferrete, ou um sinal!
É apenas um ser, e tal e qual,
Igual a qualquer ser que nos enlaça!

O seu direito à vida, ao mundo, enfim!
Ao colo maternal, ao frenesim,
É ganho mal acaba de nascer!

E toda a dignidade adquirida,
Só deverá um dia ser perdida…
No dia em que seu corpo fenecer!

MADRE TERESA DE CALCUTÁ

Partiste para junto do Senhor,
Após Tê-lo servido humildemente.
Fizeste uma vida de indigente!
Teu património era: muito amor!

Do amargo, conheceste o mau sabor.
O sofrimento atroz de tanta gente.
Nunca viraste o rosto a um doente,
Enquanto não sanasses sua dor!

E ficou Calcutá, inda mais pobre,
Perdeu a sua filha! A mais nobre:
Na virtude, no amor e na grandeza!

Ficou uma lacuna neste mundo!
Aquele amor que davas, tão profundo...
Ninguém esquecerá, MADRE TERESA!

MÁSCARA

Por que se escondem vós, forças do mal?
Abandonai de vez vosso covil!
Por que escondeis o vosso rosto vil,
atrás de um rosto puro, angelical?

Já chega de prosápia assaz banal,
de tanto fingimento, vão, servil!
Há muito conhecemos vosso ardil,
p’ra  tudo conseguirem no final!

Pois mal se apanham donos do poder...
Só querem seus discursos esquecer,
e não cumprir promessas propaladas!

E enquanto o Zé povinho vai sofrendo,
vós, tubarões, os bolsos vão enchendo,
sem nenhum preconceito, às descaradas!

MÚSICA DIVINA

É música divina o chilrear,
De uma ave que voa, solta ao vento!
É música divina, doce alento…
Se alguém nos diz baixinho: eu vou te amar!

É música divina o sussurrar,
Que o mar provoca em cada movimento.
Divina melodia, o açoitamento;
Que a onda nos difunde, ao se espraiar!

É música divina, quando o amor,
É cântico divino, sedutor;
Lembrando Pierrot e Columbina!

Até o próprio vento em noite escura,
Sibilando estridente na lonjura…
Nada mais é, que música divina!

O DILEMA

A concepção da vida, é um poema…
Que se compõe, sem nunca se escrever!
É um bailado a dois, que irá fazer,
Um musical de amor…um sonho…um tema!

Um tema transformado num dilema,
Que terão de enfrentar, de resolver!
Mais uma personagem vai haver,
Há que pôr no guião, mais uma cena!

Um corpo de mulher em movimento.
Um cântico de amor. Um nascimento.
Actores desempenhando um novo lema!

Vai ter mais um compasso, a melodia.
Vai ter mais uma estrofe, a poesia.
Mas tem final feliz, este dilema!

O EMBRIÃO

Mãe! Por que não me deixas ver teu mundo?
Por que acabas assim com minha vida?
Por que será que estás tão decidida,
a praticar tal acto tão imundo!

Mãe! Eu não sou um ser nauseabundo!
Não sou uma doença contraída!
Faço parte de ti, fui concebida!
Sou vida no teu útero fecundo!

Não queiras destruir-me por favor!
Não transformes em ódio, aquele amor,
do momento da minha concepção!

Eu sei que não pensavas conceber...
Mas, por favor mãe, deixa-me nascer,
eu sou um ser humano em formação!

O MEU DIÁRIO

Peguei no meu diário envelhecido,
um velho confidente meu amigo!
Que eu fiz das suas folhas meu abrigo...
Meu fiel conselheiro enternecido!

No diário se encontra redigido:
O meu sentir. A dor que não mitigo,
que vive aboletada e não consigo,
retirar do meu peito tão sofrido!

Suas capas afago com amor!
Elimino alguns fungos de bolor,
que o tempo e a idade provocaram!

Há manchas; caracteres indefinidos!
São sinais indeléveis produzidos,
p’las lágrimas, que os olhos derramaram!

O PALCO DA VIDA

Peguei no meu viver, pus nos dois pratos…
Da balança que pesa a minha vida.
Ficou a baloiçar, enlouquecida,
Perante a imensidão de tantos factos!

Desesperei. Quis ver quais os relatos,
Que a deixaram assim, enfurecida!
Teria ela ficado ressentida...
P’lo turbilhão perverso, dos meus actos?

Eu fui mais um actor que desfilou!
Que fez o seu papel, representou!
Que foi palhaço. Herói. E foi guerreiro!

Se errei alguma vez no meu percurso.
Por certo não havia outro recurso,
Terão de condenar, o mundo inteiro!

Fonte:
Carlos Leite Ribeiro. Portal CEN 

Aluísio Azevedo (O Coruja) Parte 32

CAPÍTULO II

Teobaldo, ao instalar-se mais a esposa em Botafogo, convidou logo o Coruja a ir morar com eles.

— Ora!... Opôs vacilante o amigo.

— Ora, que?

— Receio incomodá-los; vocês tem lá os seus hábitos de grandeza... estão acostumados a certo modo de vida, a certo luxo, entre o qual o meu tipo esquisito havia de ser uma nota dissonante...

— Não admito que te separes de mim! Foi a única resposta de Teobaldo.

Mas, como o outro ainda recalcitrasse, ele acrescentou:

— Também era só o que faltava: era que tu me abandonasses pelo simples fato de me haver eu casado. Tinha graça! Enquanto me vi atrapalhado e sem meios de viver, éramos companheiros de casa e mesa; agora queres desertar. Não deixo!

— Mas...

— Não aceito razões. Hás de ir morar comigo! Coruja cedeu um tanto contrariado, porque previa não se ajeitar àqueles requintes de luxo. O que para Teobaldo representava o encanto e a delícia de uma bela existência, para ele seria nada menos do que um martírio de todos os instantes.

Cedeu, mas com a condição de que iria ocupar um sótão que havia nos fundos da casa.

— O sótão?! Exclamou Teobaldo. Ora essa! Pois eu consentiria lá que fosses para o pior lugar da casa, havendo aí outras acomodações tão boas e que de nada me servem?

— Não sei; a ter de ir, só irei para o sótão, e desde já te previno de que não me separo dos meus cacaréus.

— Pois faze o que entenderes, contanto que fiques em minha companhia.

Não era sem razão que o Coruja opunha aquela resistência ao convite do seu querido Teobaldo. Desejava estar junto deste, oh! Se desejava! Desejava vê-lo e falar-lhe todos os dias, porque o idolatrava, porque no seu espírito inalterável e escravo dos hábitos Teobaldo se constituíra em ídolo; Teobaldo fora a sua primeira afeição, o seu primeiro amigo, o seu primeiro protetor; André habituara-se a vê-lo crescer no seu reconhecimento e dentro da sua estima, como o único e legítimo senhor; mas também não queria abrir, sem mais nem menos, com o programa de vida que ele próprio traçara, jurando a si mesmo cumpri-lo rigorosamente porque assim entendia o cumprimento do dever.

Havia coisa de dois anos resolvera o Coruja ir pondo de parte as economias que pudesse, para ver se lograva realizar afinal o seu casamento, cuja transferencia de ano para ano já o apoquentava deveras. E com efeito, depois da morte de Ernestina, conseguiu ajuntar aqueles oitocentos mil réis que serviram para abrandar as iras de Leonília; Teobaldo, em casando, pagou-os logo; mas ainda não foi desta vez que o pobre Coruja viu efetuado o seu desiderato, porque uma nova contrariedade se lhe pôs de permeio.

Foi a seguinte:

Uma noite entrava às horas do costume em casa da noiva, quando esta lhe apareceu muito triste, dizendo entre suspiros que a mãe, desde pela manhã, se queixara de dores na cabeça e fora piorando com o correr do dia, a ponto de ter de largar o serviço e meter-se na cama, já ardendo em febre. André passou logo ao quarto da velha e encontrou-a em uma grande sonolência e quase sem dar acordo de si. Observou-a em silêncio por alguns segundos, depois tomou de novo o chapéu e foi buscar um médico seu conhecido. O doutor declarou que a velha tinha varíola de muito mau caráter e que
precisava de um bom tratamento.

Daí a pouco toda a vizinhança de Margarida sabia já do fato e começava a alvoroçar-se. Só Inês não se preocupou com ele.

— Para que estar com medos?... disse entre dois muxoxos. Se eu tiver de pegar as bexigas, hei de pegar ainda que fuja para o inferno!

E com a sua filosofia de fatalista, afrontou impavidamente a moléstia da mãe. No dia seguinte Coruja alugou um enfermeiro, e o médico principiou a visitar a doente com toda a regularidade. As bexigas foram das piores, pele de lixa, o tratamento muito dispendioso e demorado. Durante a moléstia nada faltou à velha; mas, quando esta se pôs em convalescença e foi para a Tijuca à procura de novos ares em casa de uma amiga, André não tinha mais um só vintém das suas economias.

— Sim, disse ele, para se consolar, gastei tudo é verdade; mas também agora estou desembaraçado de certas despesas e posso mais facilmente ajuntar algum pecúlio.

E, nos quatro meses que se seguiram à enfermidade da velha, entregou-se ele ao trabalho com tal fúria, que, ao entrar no quinto, sua saúde começou de alterar-se consideravelmente.

Apareceram-lhe então terríveis dores na espinha e na caixa do peito; veio-lhe uma tosse seca e constante; e à noite, quando o tempo ia refrescando, sentia ameaços de febre e uma prostração aborrecida que lhe tirava o gosto para tudo.

— Ó Coruja! Dizia-lhe o amigo, tu precisas descansar! Dessa forma dás cabo de ti, homem! Olha! Pede uma licença ao colégio e deixa-te ficar aí em casa por algum tempo. Que diabo, não te faltará nada!

Bastava, porém, ao desgraçado lembrar-se do seu compromisso com Inês para não lhe ser possível ficar tranqüilo. Além disso, D. Margarida, cuja força de gênio aumentara com a moléstia, cercava-o já com frases desta ordem:

— Também você não ata, nem desata, seu Miranda! No fim de contas vejo que não tratei com um homem sério! Ora pois!

A própria Inês, até aí tão passiva tinha agora de vez em quando as suas  rabugens e acompanhava já o serrazinar da velha. Coruja enfraqueceu afinal; principiou a trabalhar menos e a faltar constantemente às aulas.

— Recolhe-te por uma vez! Gritava-lhe Teobaldo. Mas o teimoso fazia ouvido de mercador e lá ia para a frente, ganhando os magros vencimentos de professor e procurando sempre por de parte alguma coisa para o casamento.

— Querem ver que ele agora dá para morrer!... Grunhia a velha cada vez mais enfurecida. Se em bom não conseguiu casar, quanto mais doente! Ah! Este homem foi uma verdadeira praga que nos caiu em casa!

— E foi mesmo!... Confirmava já a moleirona da filha, que sentia ir-se encaminhando para a velhice a passos de granadeiro: foi mesmo uma praga!

E, quando ele lhes aparecia muito pálido, a tossicar dentro do cache-nez, saltavam-lhe ambas em cima:

— Então, então, seu Miranda! Acha que ainda é pouco o debique?

— Tenham um pouco de paciência! Um pouquinho mais de paciência. Agora estou fraco; juro, porém, que em breve levantarei a cabeça e tudo se arranjará. Descansem!

— Ora! Quem se fiar no que você diz não tem o que fazer! Diabo do empulhador!

Para as tranqüilizar um pouco, enviava-lhes presentes e dava-lhes o dinheiro que podia.

E sempre bom, escondendo de todos as suas privações e os seus desgostos, procurando ocupar no mundo o menor espaço que podia, e sempre superior aos outros, sempre além da esfera de seus semelhantes, atravessava a existência, caminhava por entre os homens sem se misturar com eles, que nem um pássaro que vai voando pelo céu e apenas percorre a terra com a sua sombra.
–––––––––––-
continua…

terça-feira, 3 de setembro de 2013

Adriana Falcão (Palavras ao vento)

A primeira letra do alfabeto é também a primeira letra da palavra amor e se acha importantíssima por isso! Com A se escreve "arrependimento" que é uma inútil vontade de pedir ao tempo para voltar atrás e com A se dá o tipo de tchau mais triste que existe: "adeus"... Ah, é com A que se faz "abracadabra", palavra que se diz capaz de transformar sapo em príncipe e vice-versa...

Com B se diz "belo" - que é tudo que faz os olhos pensarem ser coração; e se dá a "bênção", um sim que pretende dar sorte.

Com C, "calendário", que é onde moram os dias e o "carnaval", esta oportunidade praticamente obrigatória de ser feliz com data marcada. "Civilizado" é quem já aprendeu a cantar ´parabéns pra você` e sabe o que é "contrato": "você isso, eu aquilo, com assinatura embaixo".

Com D , se chega à "dedução", o caminho entre o "se" e o "então"... Com D começa "defeito", que é cada pedacinho que falta para se chegar à perfeição e se pede "desculpa", uma palavra que pretende ser beijo.

E tem o E de "efêmero", quando o eterno passa logo; de "escuridão", que é o resto da noite, se alguém recortar as estrelas; e "emoção", um tango que ainda não foi feito. E tem também "eba!", uma forma de agradecimento muito utilizada por quem ganhou um pirulito, por exemplo...

F é para "fantasia", qualquer tipo de "já pensou se fosse assim?"; "fábula", uma história que poderia ter acontecido de verdade, se a verdade fosse um pouco mais maluca; e "fé", que é toda certeza que dispensa provas.

A sétima letra do alfabeto é G, que fica irritadíssima quando a confundem com o J. G, de "grade", que serve para prender todo mundo - uns dentro, outros fora; G de "goleiro", alguém em quem se pode botar a culpa do gol; G de "gente": carne, osso, alma e sentimento, tudo isso ao mesmo tempo.

Depois vem o H de "história": quando todas as palavras do dicionário ficam à disposição de quem quiser contar qualquer coisa que tenha acontecido ou sido inventada.

O I de "idade", aquilo que você tem certeza que vai ganhar de aniversário, queira ou não queira.

J de "janela!, por onde entra tudo que é lá fora e de "jasmim", que tem a sorte de ser flor e ainda tem a graça de se chamar assim.

L de "lá", onde a gente fica pensando se está melhor ou pior do que aqui; de "lágrima", sumo que sai pelos olhos quando se espreme o coração, e de "loucura", coisa que quem não tem só pode ser completamente louco.

M de "madrugada", quando vivem os sonhos...

N de "noiva", moça que geralmente usa branco por fora e vermelho por dentro.

O de "óbvio", não precisa explicar...

P de "pecado", algo que os homens inventaram e então inventaram que foi Deus que inventou.

Q, tudo que tem um não sei quê de não sei quê.

E R, de "rebolar", o que se tem que fazer pra chegar lá.

S é de "sagrado", tudo o que combina com uma cantata de Bach; de "segredo", aquilo que você está louco pra contar; de "sexo": quando o beijo é maior que a boca.

T é de "talvez", resposta pior que ´não`, uma vez que ainda deixa, meio bamba, uma esperança... De "tanto", um muito que até ficou tonto... De "testemunha": quem por sorte ou por azar, não estava em outro lugar.

U de "ui", um ài" que ainda é arrepio; de "último", que anuncia o começo de outra coisa; e de "único": tudo que, pela facilidade de virar nenhum, pede cuidado.

Vem o V, de "vazio", um termo injusto com a palavra nada; de "volúvel", uma pessoa que ora quer o que quer, ora quer o que querem que ela queira.

E chegamos ao X, uma incógnita... X de "xingamento", que é uma palavra ou frase destinada a acabar com a alegria de alguém; e de "xô", única palavra do dicionário das aves traduzida para o português.

Z é a última letra do alfabeto, que alcançou a glória quando foi usada pelo Zorro... Z de "zaga", algo que serve para o goleiro não se sentir o único culpado; de "zebra", quando você esperava liso e veio listrado; e de "zíper", fecho que precisa de um bom motivo pra ser aberto; e de "zureta", que é como fica a cabeça da gente ao final de um dicionário inteiro.