segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Machado de Assis (Gazeta de Holanda) N.° 29 – 27 de setembro de 1887

A semana que há passado...
Deixe leitor que me escuse,
E de um falar tão usado
Abuse também, abuse.

Há passado, hão carcomido...
Hão, hão, hão, hão posto em tudo,
Hão, hão, hão, hão recolhido...
Estilo de tartamudo.

Ai, gosto! ai, cultura! ai, gosto!
Demos um jeito e outro jeito:
Venha dispor e há disposto
Venha dispor e há desfeito.

Mas usar de uma maneira
Até reduzi-la ao fio,
Não é estilo, é canseira;
Não dá sabor, dá fastio.

Porém... Já me não recordo
Do que ia dizer. Diabo!
Naveguei para bombordo,
E fui esbarrar a um cabo.

Outro rumo... Ah! sim; falava
Da outra semana. Cheia
Esteve de gente escrava,
Desde o almoço até a ceia.

Projetos e mais projetos,
Planos atrás de outros planos,
Indiretos e diretos,
Dois anos ou cinco anos.

Fundo, depreciamento,
Liberdade nua e crua;
Era o assunto do momento,
No bond, em casa, na rua.

Pois se os próprios advogados
(E quem mais que eles?) tiveram
Debates acalorados
No Instituto, em que nos deram

Uma questão — se, fundado
Este regime presente,
Pode ser considerado
O escravo inda escravo ou gente.

Digo mal: — inda é cativo
Ou statu liber? Qual seja
Correu lá debate vivo,
Melhor dizemos peleja.

Mas peleja de armas finas,
Sem deixar ninguém molesto:
Nem facas, nem colubrinas,
Digesto contra Digesto.

Uns acham que é este o caso
Do statu liber. Havendo
Condição marcada ou prazo,
Não há mais o nome horrendo.

Outros, que não são sujeitos
Ferozes nem sanguinários,
Combatem esses efeitos
Com argumentos contrários.

Eu, que suponho acertado,
Sempre nos casos como esses,
Indagar do interessado
Onde acha os seus interesses,

Chamei cá do meu poleiro
Um preto que ia passando,
Carregando um tabuleiro,
Carregando e apregoando.

E disse-lhe: “Pai Silvério,
Guarda as alfaces e as couves;
Tenho negócio mais sério,
Quero que m'o expliques. Ouves?”

Contei-lhe em palavras lisas,
Quais as teses do Instituto,
Opiniões e divisas.
Que há de responder-me o bruto?

— “Meu senhor, eu, entra ano,
Sai ano, trabalho nisto;
Há muito senhor humano,
Mas o meu é nunca visto.

“Pancada, quando não vendo,
Pancada que dói, que arde;
Se vendo o que ando vendendo,
Pancada, por chegar tarde.

“Dia santo nem domingo
Não tenho. Comida pouca:
Pires de feijão, e um pingo
De café, que molha a boca.

“Por isso, digo ao perfeito
Instituto, grande e bravo:
Tu falou muito direito,
Tu tá livre, eu fico escravo “.

Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.

Pedro Salgueiro (Aleine)

O caso se deu na época em que eu buscava desesperadamente Aleine. Desde o início da tarde haviam me expulsado, pois cometi a imprudência de perguntar por ela. Fui abandonado numa passagem de nível, quando o trem diminui a marcha, logo após aquele aguaceiro de fins de maio. Vaguei pela linha férrea, na esperança de escutar algum apito ou sentir qualquer chacoalhar nos trilhos; enfim desisti e tomei certo caminho secundário que descia rumo a um imenso vale — bem ao longe uma cordilheira azulzinha quase se confundia com a linha do horizonte. Demorei a encontrar sinal de vida, apurando o ouvido ao mínimo indício de vento; de vez em quando, esfriava a cabeça com água de um córrego ou subia numa pedra para buscar qualquer povoação.

Já no final da tarde distingui, de cima de um carvalho, a fumaça de uma chaminé — andei mais alguns quilômetros para avistar a torre de uma igreja. Apressei o passo, querendo chegar no começo da noite — planejava misturar-me com algumas vacas que seguiam na direção do vilarejo. Encontrava-me na entrada quando notei a placa de advertência: “Estamos de mudança”. Tudo tinha sido tão estranho — desde que fui obrigado a descer daquele trem — que não me dei conta do absurdo da situação: eu, procurando minha mulher que havia sumido misteriosamente, fui me deparar com um lugarejo perdido, e logo na entrada era recebido por tal advertência.

Esqueci pela primeira vez Aleine e perambulei por ruas escuras, apenas iluminadas com raros lampiões dependurados em árvores no meio da rua. Esgueirava-me pelas sombras dos muros, evitando assim a claridade — com medo de ser reconhecido (o que, hoje lembrando, seria mais um absurdo em meio a tantos: pois como poderiam me reconhecer se nunca eu havia andado por aquelas paragens, tão ermas e distantes da cidade em que nasci!?). Pareciam não me notar, apenas ficavam mais sérios — cerravam os olhos e carregavam o semblante, como certos pais ainda hoje fazem para repreender os filhos pequenos quando eles cometem qualquer danação. Paravam a conversa no meio, interrompiam jogos de cartas, mudavam de calçada ao ter de cruzar comigo — não se dirigiam a mim, é verdade, mas eu sentia neles um certo medo, um vago receio da minha presença. Subi em uma grande árvore para passar a noite — não me arriscava a dormir desprotegido em qualquer banco da praça. Não conseguia pregar olhos, o medo e a excitação dos últimos dias mexeram com meus nervos — e as noites não me permitiam um minuto de descanso. Aproveitei a calma da madrugada para pensar em Aleine, e já sonhava com um novo encontro quando ouvi vozes distantes: confabulavam, discutindo não sei que assunto, pois o vento de vez em quando mudava de direção para em seguida trazer novamente os sussurros; trepei num galho mais alto da árvore e então pude avistar ao longe uma pequena assembleia. Juntavam galhos, acendiam tochas (em quase todas as casas, sinais de mudança: malas nas calçadas, carroças sendo cobertas, mulheres ajeitando as crianças) — formavam uma enorme fogueira, enquanto discutiam apontando em várias direções.

De repente um medo tomou conta de mim, as pernas tremiam, o suor cobrindo meu corpo inteirinho: pensei rápido, um desespero invadindo meus pensamentos; saltei ligeiro da árvore e disparei na mais apressada carreira de que minhas pernas foram capazes, no rumo oposto ao da claridade. Corri a madrugada inteira, subi e desci serras, encontrei nova estrada — sempre me afastando.

Hoje não me arrisco a perguntar por Aleine, apenas observo disfarçadamente os rostos femininos em meio à multidão. Não olho muito para não despertar suspeitas, pois sei que — enquanto eu a procuro — muitos fariam de tudo para me impedir de chegar a ela.

(Pedro Salgueiro, Inimigos)

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) Pedro Salgueiro

Pedro Rodrigues Salgueiro (Tamboril, 1964) tem editados os livros de contos O Peso do Morto (1995), O Espantalho (1996), Brincar Com Armas (2000), Dos Valores Do Inimigo (2005) e Inimigos (2007), além de Fortaleza Voadora (2006), de crônicas. Premiado diversas vezes: Prêmio de Contos da Biblioteca Nacional para obras em curso, 1997; Osmundo Pontes de Literatura, 1997; Radio France Internationale (Concurso Guimarães Rosa de Literatura, 1999), e muitos outros. Participa de algumas coletâneas, como Antologia Literária da UECE (1996); Talento Cearense em Contos (1996); Geração 90: Manuscrito de Computador – Org. Nélson de Oliveira (2001); Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século – Org. Marcelino Freire (2004); Contos Cruéis: As narrativas mais violentas da literatura brasileira contemporânea – Org. Rinaldo de Fernandes (2006); e Quartas Histórias: Contos baseados em Narrativas de Guimarães Rosa, 2006). Organizou, em parceria, o Almanaque de Contos Cearenses (1997). Editor, com Jorge Pieiro, da revista Caos Portátil: Um Almanaque de Contos. Uma antologia de seus contos, Dos Valores do Inimigo, foi indicada pela Universidade Federal do Ceará para o vestibular em 2005 e 2006. Tem inéditos Inimigos (Premiado pelo I Edital de Literatura da Fundação Cultural de Fortaleza (2006) e Movimento Esperado.

Com o volume de contos Brincar Com Armas, assume Pedro Salgueiro lugar de destaque no conto cearense, embora O Peso do Morto e O Espantalho já tivessem merecido elogios de críticos do Ceará e do Brasil. Dividida em dois “livros”, o primeiro em seis partes, cada uma com quatro histórias, a obra apresenta unidade temática, de ambiente e de linguagem. Talvez seja equivocada a ideia de unidade temática em livro de contos. Apesar disso, pode-se ver neste terceiro compêndio de narrativas curtas de Pedro Salgueiro como temas primários a morte, a trama da morte, a proximidade da morte (a velhice, por exemplo), o medo da morte e o destino. A morte e as manifestações dela emanadas, como o medo, a paranoia, ou seus motivos, como a vingança. Em “A Volta” o protagonista “sabia que um dia eles o pegariam”. Eis nestas palavras o núcleo da narrativa: a morte, o destino, “o desfecho de tudo”. E a desgraça de fato aconteceu. O homem volta à cidade para morrer, para cumprir o seu destino. Por isso, nem “se assustou quando ouviu o primeiro estampido”. É o Destino das tragédias gregas, de Sófocles. Tinha de acontecer. O narrador-protagonista de “O Olhar” narra uma vingança: tarde morta, com gritos de crianças vindos de bairros distantes, a chegada de trem. Da janela da hospedaria avista a esquina da farmácia. As facadas e o olhar do morto. Em “O Pânico”, narrado na primeira pessoa do feminino, por uma repórter, mais uma vez a morte é o motivo da história, é o próprio enredo. Cenas rápidas de filme, em tempo breve, alguns minutos. O oposto de “Coronel, Coronel”, no qual se observa um drama interminável, uma situação de conflito duradouro e não uma só ação. A loucura instalada na vida de um antigo militar, a quem a meninada das ruas achincalhava aos gritos de “Coronel, coronel, cabeça de pastel”. Alguns contos tratam exatamente da velhice, da caduquice, da solidão dos idosos. Como a de Olga, em “Soluço antigo”. Os velhos são sempre abjetos, como em “Ausência”. Solitário, o velho já não podia dividir com a esposa a sombra do benjamim na calçada, nem o quarto do casal e muito menos espantar os meninos que roubavam goiabas no quintal. Tudo é passado: o tabuleiro de damas, o almanaque velho, as cadeiras de balanço, a caneca de alumínio no beiço do pote, o velho penico de ágata. Tudo é apenas solidão e velhice.

            O enredo de algumas histórias é subliminar, escondido, envolto numa espécie de casca, numa aura de mistério. Em “O Sobrado” o leitor se vê diante do inexplicável, para a ciência e para a fé: uma criança, um bebê, se assusta sem motivo aparente, ao ser conduzida por certa rua. Suas reações estranhas, de choro imotivado, são o ponto de partida da narrativa. Ao final sabe o leitor de uma tragédia ocorrida há tempos: um avô havia caído de uma janela naquela rua. No entanto, mesmo depois de “descoberto” o motivo do susto do bebê ainda se ouvia um choro baixo de criança. Igualmente estranha é “Na Estrada”. Às vezes não se trata exatamente do “estranho”, de que fala Todorov, porém do não-explícito, como no final de “No Carnaval”. Em outras páginas do livro se pode ler uma crônica do patético e do humorístico, como em “A Catraca”.

Exceção feita a alguns contos “policiais” ou de acidentes fatais, como “O Pânico”, “A Rosa Encarnada” e o que dá título ao volume, mais urbanos, o ambiente das narrativas de Brincar Com Armas é quase sempre o “lugarejo” do sertão, a pequena cidade e seus arredores, poucas vezes nomeado, a não a mítica Papaconha, do Livro Segundo. Gumercindo Freire, o protagonista de “A Volta”, entrava pela rua principal de uma cidadezinha. No seu passeio em busca do passado (ou do destino), avista a praça vazia, um benjamim, as calçadas. Caminhava para o desfecho de sua história. Há toda uma descrição-narração do trajeto do personagem, desde o trem, quando avistou os primeiros telhados pela janela do trem.

 Em quase todos os contos há uma rua empoeirada e deserta, a bandinha, a festa do padroeiro, um galo a cantar, a copa de um benjamim, o mercado, a mercearia, a torre da igreja vista da janela do trem, a estação, a calçada, lamparinas de querosene nas casas, uma bodega no final da rua, o cajueiro torto no meio da praça. O velho militar de “Coronel, Coronel” saía para a calçada para enxotar os moleques. Fazem parte deste cenário todo um passado sertanejo: o leite mugido, o açude, as mudas de roupa, as cangalhas e jiraus do alpendre, a trave da janela, a cacimba, a lua da sela do cavalo.

            No Livro Segundo, que se pode chamar do “ciclo Papaconha”, todo narrado em primeira pessoa, as narrativas estão ambientadas num fim de mundo, num sovaco de serra, na mata, num lugarejo escondido no sopé de uma serra, numa cidadezinha insignificante. Embora sejam diversos os narradores, ao leitor parece estar diante de um só narrador épico. Os contos, mesmo se lidos fora da ordem no livro, são como capítulos de romance.

            Um dos narradores estocou armas, montou um observatório. Outro cavou trincheiras no jardim, um túnel, à espera do inimigo. Na verdade, um inimigo imaginário, lendário. “O inimigo imaginário que aguardavam desde o começo dos tempos”, e que “jamais viria, pois ele estava dentro deles mesmos, em seus medos”. Tudo obsessão, como se vê na narração de três semanas de busca da verdade sobre o desvio da linha férrea. Minuciosa busca em antigos papéis na prefeitura (“O Trem”). A busca dos inimigos do passado. Para tanto, o personagem escreveu Os Cadernos da Papaconha. Um “lunático daqui” montou um observatório e havia mais de três anos observava o suposto inimigo. Havia anos planejava novas estratégias. Em “Os Prisioneiros” o narrador vê espiões nos vagabundos, que são presos e açoitados com galhos de urtiga. Como se vê, os personagens-narradores quase sempre se julgam lúcidos, em busca da verdade, enquanto para eles os outros são doidos, lunáticos. Na verdade, são todos loucos ou narram como se loucos fossem. Em “O Batedor” o narrador reconhece que “estava perdendo o juízo”. São todos paranoicos. O título geral, se se tratasse de um romance, até poderia ser “Homens Assustados” ou “O Paranoico” ou simplesmente “Paranoia”.

            Pode-se ver a raiz destas histórias numa espécie de síntese, como se fosse um apontamento do próprio contista, na página 168: “Transcrevi alguns dos fatos com minha letra para que não fossem totalmente destruídos pelo tempo; também havia histórias incompletas que busquei completar com outros achados mais ou menos coincidentes em assunto, grafia e até na maneira de contar, depois costuradas para parecerem uma sequência; na verdade eram descontínuas e retratavam várias versões do mesmo problema, pois, pelo que tudo indicava, foram muitos os indivíduos que se ocuparam em registrar falatórios, lendas e fofocas a cerca do ocorrido (se é que um dia realmente aconteceu algo)”.

            E a aldeia móvel? Em “Os Loucos da Papaconha” os habitantes “arrastam” a aldeia no rumo dos povoados. Como o faziam os índios brasileiros, em fuga ou em busca de lugares mais seguros, mais propícios à vida. Ou em busca do paraíso, da terra-sem-mal. No entanto, em que tempo viviam esses personagens das histórias de Pedro Salgueiro? Possivelmente no início do século XX, pois alguns deles seguiram o bando de Lampião. No entanto, na maior parte do livro não se vislumbra nenhum indício de tempo histórico. Seria, então, um tempo mítico, lendário, não real, o tempo da espera do inimigo que costumava ser confundido com mendigos e até ciganos. Todo estranho na cidade poderia ser um espião. A desconfiança, o medo, a paranoia estão presentes em todos os narradores.

Os contos de Brincar Com Armas são narrados ora na primeira, ora na terceira pessoa, quer seja ela testemunha, quer narrador onisciente ou escondido. Os diálogos são exceções, como em “Na Estrada”, no qual se encontram diálogos internos dentro da narração. Em “A Culpa” há até uma explicação para a ausência de diálogos. “Os dois não se falavam desde o triste dia: ele com suas dores e seus cabelos brancos; ela com suas vergonhas, suas culpas. Calaram-se, como se houvessem compreendido a inutilidade das palavras, o quanto elas poderiam agravar tudo aquilo”. Por isso, o silêncio dos personagens dentro de casa, na amplidão da casa, sempre a vagar (o rapaz) pela casa noite adentro.

                A linguagem é a da narração espontânea, sem rodeios, objetiva, seja na primeira, seja na terceira pessoa, sem descrições longas e enfadonhas e sem aqueles tradicionais e vulgares diálogos diretos, tão frequentes na literatura regionalista ou regionalizada de alguns prosadores.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

domingo, 26 de janeiro de 2014

Carolina Ramos (Delimitando Santos)



Formatação do poema sobre:
Pintura a óleo sobre tela, por Linaldo Cardoso. Barco de pesca na Ponta da Praia/Santos
A concha é Cidade de Santos, em 1888, por Benedito Calixto.
 
Fontes:
Artmajeur (tela de Linaldo Cardoso)
Museu Benedito Calixto
Carolina Ramos. Destino: poesias. SP: EditorAção, 2011.

Carolina Ramos (Crônica Poética à Cidade Amada: SANTOS – Terra da Liberdade e da Caridade)

 Vem, forasteiro! Desce comigo a Serra. Olha lá para baixo. Não...não é miragem! Há de fato, uma linda cidade escondida por detrás da neblina. A minha cidade! E com que orgulho digo que esta cidade, que é minha, é também encantamento, história e tradição!

Um dos mais importantes pedaços do nosso Brasil! Por que? A ti, que vens de fora, evito falar dos seus encantos. Hás de travar contato com eles, daqui a um nada!

Disse-te que a minha cidade é História. Sim, foi lá que muita coisa começou! Muita coisa de suma relevância para o destino da nacionalidade.  Para  o meu...e para o teu destino!

Minha terra natal tem sangue índio – Enguaguaçu era chamada, antes que lhe dessem o nome protetor de Todos os Santos. Por fim, sei que adivinhaste, chamaram-na simplesmente Santos – A Princesa do Mar! Desse mar que se amansa e que lhe beija os pés de areia, cobrindo-os de rendas, enciumado do abraço do sol e de seu carinho ardente!

Santos! Berço augusto de tanta gente ilustre! Não, não citarei nomes, cujo rol transcende os limites desta folha. Filhos insignes que carregam consigo a nobreza do berço!

Ninho de poesia, minha Santos gerou poetas da mais alta inspiração! Que menos não lhe permitiria o festival de mago encantamento que musa lhes oferecia.

Ah! As auroras rosadas desta linda Santos, prenúncio dos mais cálidos e luminosos dias! E os crepúsculos incomparáveis?! E as noites?! Veludosas noites refulgentes de jóias! Noites feitas para os idílios, para os sonhos! Noites feitas para o amor!

Santos! Terra excelsa dos Andradas! Que fidalgo lugar te reservam os anais da História! Basta lembrar que em teu seio germinou a semente da liberdade, cujo grito eclodiu à beira do Ipiranga e o eco estendeu aos quatro cantos do nosso imenso Brasil! Santos abolicionista, empenhada em quebrar algemas e a secar o pranto de uma raça valorosa e sofrida!

“Porta aberta para o mar...” Braços amplos, escancaradamente abertos a quantos adentrem seus limites, em busca de abrigo ou, simplesmente descontração, nas horas preguiçosas que o leito morno e amplo de suas praias lhes oferece. Lá no alto, a Senhora do Monte Serrat abençoa a paisagem, emoldurada de jardins floridos, e abençoa também a todos que desfrutam dessas benesses e as respeitam.

O porto de Santos? Turbulento, embora, é, nada mais, nada menos, que o primeiro e maior porto da América Latina! Onde  navios encostam seus cansaços, após a faina incessante de transportar sonhos que alimentam esperanças de um povo raçudo e laborioso, de alma sempre empenhada em vencer.

 Nosso brasão, afirma convicto: “Á Pátria ensinei Caridade e Liberdade”.

Pode haver mais nobre lema, para pautar a conduta dos filhos desta terra privilegiada e muito especial?!

Fecha os olhos, forasteiro... Fecha os olhos a tudo que te pareça de algum modo negativo. Perfeito mesmo, só Deus! E, entre Deus e os admiráveis encantos que nos legou, impossível evitar a ação de criaturas, por Ele mesmo criadas, nem sempre corretas, nem sempre santistas e não raro, nefastas. Esquece-as, por favor! É assim em qualquer canto da terra!

            Creio que basta, Se abusei das exclamações admirativas, perdoa-me, também.  Hás de convir, leitor amigo, que não poderia ser diferente. E não me chames de piegas, peço-te. O excesso de amor pode, sim, conduzir a pieguismos, mas, põe-te no meu lugar. Farias certamente o mesmo! Duvidas? Então vem comigo. Desçamos a Serra juntos. Terás certeza de que não exagero.

            Minha Santos  pode não ser a “ Cidade Maravilhosa”, contudo, que maravilhosa cidade é a minha Santos! 

            Vem!... Mas... pisa com respeito este chão santista! E, principalmente, pisa com muito ... muito Amor!

 Vem!...
 
(Santos -  468 anos)
 
Fonte:
Cronica enviada pela autora
Imagem = http://www.issoesantos.com.br

Marcial Salaverry (Jardins de Santos)

Jardins da praia de Santos...
Por vezes o homem colabora com a Natureza,
aumentando a natural beleza...
Pelos jardins santistas passeando,
a beleza dos gramados admirando,
o incrível colorido das flores apreciando...
As fontes... os repuxos d’água... induzem a meditar...
Existem locais para dançar...
Bucólicos recantos, convidam a namorar...
Locais para entretenimento,
fazendo a felicidade
para as crianças de qualquer idade...
Seus playgrounds com brinquedos,
recebendo as crianças em seus folguedos...
As mesas para jogos mais avançados,
para alegria dos aposentados...
Pelos jardins de Santos passear,
é algo para o turista sempre relembrar...
Em seus bancos sentar...
Não apenas para descansar,
mas para o misterioso mar apreciar...
As garças... gaivotas... em seu lindo voar...
O por do sol aguardar,
para os olhos deliciar ...
E também para namorar...
O fim da tarde... induz ao romance...
Jardins de praia de Santos...
Não é atoa que são chamados,
tidos e havidos como os maiores
e mais belos do mundo...
Viver em Santos...
Estar em Santos...
Sempre será um privilégio…

Eunice Tomé (Canais de Santos – Nossas referências)

 Praia José Menino - 1902
Pintura de Benedito Calixto.
Todas as cidades têm seus ícones. Entre os vários marcos que Santos possui, sem dúvida alguma, os canais são os mais referenciais. São como colunas vertebrais que sustentam a parte física de seu traçado, vindas de dentro para fora, do centro para a orla.

Engendrado o projeto pelo engenheiro sanitarista Saturnino de Brito, solução para o fluxo de águas servidas, seu criador nem imaginava que, por outro lado, suas funções seriam ampliadas como outros meios: de comunicação, de marco simbólico, de brincadeiras e de visual urbanístico.

Vale a pena trabalhar com essa idéia e pensar a obra com olhos poéticos e saudosistas. Quem foi criança em tempos idos, teve, principalmente os meninos, a oportunidade de pegar peixinhos no interior dos canais, pular de um lado para outro e de se perder na longitude de suas águas que avançavam para o mar em dias de maré cheia e de chuva. Esse é um dos registros memoráveis de uma geração inteira, que fugia aos olhos da mãe e, curtindo a liberdade, entrava naquele espaço de prazeres sem fim, inclusive viajando nos barquinhos de papel que chegavam até a barra e atingiam os oceanos.

Na fase juvenil, as beiras ou pontes do canal eram os pontos de encontro dos garotos, que sentavam nas grades para jogar conversa fora e trocar as suas experiências de descobertas de um mundo novo. Era como um santuário, onde eles confessavam que já eram homens adultos, com todos os hormônios a aflorar. Nem tudo era pureza, mas comparando com o momento atual, sem dúvida, eram sacanagens permitidas.

Como marco de comunicação, os santistas costumam dizer que moram no canal 1, 2, 3..., quando na verdade residem em ruas próximas, transversais ou paralelas aos canais. É uma forma de situar, como se dissessem o nome do bairro ou da região. Isso também acontece com os turistas que pouco conhecem o desenho do município, mas acabam por localizar-se pelos canais que cortam toda a avenida da praia.

A sua numeração define ainda, em seu entorno, alguns points marcantes e conhecidos de todos e acabam por ser referências de baladas, de esportes, lazer, ginástica, gastronomia e, bem recentemente, de passeios ciclísticos. Turmas e grupos de jovens também são denominados e conhecidos por esses marcos simbólicos, às vezes havendo até disputa entre eles.

Embora todos os sete canais (sem contar alguns menores que deságuam nos principais) tenham semelhanças em seu visual, cada qual conta com suas diferenças – um tipo de árvore que o ladeia (os jamboleiros do canal 3), uma altura maior mais, uma abertura mais ampla, maior ou menor quantidade de pontes para pedestres e veículos, que cruzam de um lado a outro, e outros tantos detalhes característicos. Todos com sua personalidade própria, completamente integrados ao aspecto urbano.

Os moradores mais velhos, aqueles que têm tempo de refletir sobre a vida e seus enigmas, param para olhar aquelas águas passadas e que, repetidamente, chegam ao mar, em fluxos e refluxos, levando não só dejetos, mas tantos sonhos, lembranças e alegrias. É como um ritual de passagem, onde pela canalização fossem ocorrendo fenômenos de purificação e renovação.

Tudo vai mudando, inclusive as gerações. Só os canais ficam como personagens oculares e guardiões da cidade, nesses cem anos de existência. Seus traçados, como vimos, são mais que marcos físicos. São como veias que singram o corpo e a alma dos santistas.

Fonte:
http://www.geocities.ws/maniadeler_1/cronicas.html

Diego Galluzzi (Poema para Minha Cidade)

Porto de Santos 1888. Pintura de Benedito Calixto
Aquela pequena porção de água
Que contornava a orla e cobria a areia
Trazia junto de mim e a beira de ti
Aquele segundo de canção eterna
A melodia da minha vida inteira
Dizia no instante que eras única ali
Aqui, ali, somos!

E até hoje Santos, eu não sabia...
Que tu me dizias tanto!

Do último andar das tuas pedras
Ergue-se os teus últimos olhos
Colados no papagaio que sobe
E nessa passagem eu sinto
Que tu passas dentro de mim
O sol se põe e apareço crescendo
Nas fotos dos teus jardins...

Ah Santos, como é bom
Ser pouco diante de tanto!

Se é desse chão que a poesia brota
Nos teus canais e abraços ao mundo
Como brilha o Sol nos orvalhos de tua manhã
Sobre os senhores e as senhoras do teu coração
A palavra só, a ti não comporta
Mas lança uma flecha para o amanhã
Assim, por aqui te vejo, cresço e me lanço...

Por que Santos...
Não te amar tanto?

Fonte:
http://praladomundo.blogspot.com.br/2008/01/poema-para-minha-cidade.html

Marcial Salaverry (Orquidario Municipal)

Santos... cidade charmosa e gostosa...
Além de suas praias... seus jardins,
em prosa e verso cantados...
Encontramos um lindo local...
O Orquidário Municipal...
Em suas aléias passear,
para poder apreciar
o que tem a Natureza,
em sua total beleza,
para nos mostrar...
Árvores frondosas... centenárias...
Animais de origens várias...
Tucanos coloridos... voam atrevidos...
Temos o dourado mico leão ...
que se livrou da extinção...
gansos... marrecos... cisnes...
peixes multicores...
Os macacos brincalhões,
sempre conquistam corações...
Ah!!! As exposições de orquídeas...
Em suas formas e cores extasiantes...
Verdadeiros encantos fascinantes...
O Orquidário Municipal conhecer...
É com a Natureza conviver...
É mais feliz o dia ter...
Não podemos nos esquecer,
de que é necessário a Natureza amar...
E no Orquidário passear...
É esses laços de amizade estreitar…

Cora Coralina (Cidade de Santos)

Pintura de Benedito Calixto
Sombras de Martim Afonso.
Brás Cubas, Navarro, Anchieta.
Mangue pestilento.
Tabas do íncola bravio.
Brasil novo, minha gente.

Revivo os dias do Brasil passado,
nestas praias de Santos,
batidas de sol e beijadas pelo Atlântico.

Evocação do burgo, inicial e rude.
Uma coroa de terra, ressaindo do escuro charco,
cerrada de morros inóspitos, agressivos.
Pântano, mangue, praias submersas, o lagamar.

A bota ferrada do conquistador
avança imperativa e audaz.
Na baliza do trabuco alçado
a planta firme do negro,
os artelhos ágeis e sutis do índio.
Apontando o mostrador do Tempo.
Traçando rumos à História do futuro,
os vultos austeros de Nóbrega,
José de Paiva, Anchieta.

O descobridor valente avança destemido.
Vence Paranapiacaba e, alargando trilhas,
sobe lentamente, decidido.
Conquista a serrania imensa.
Firma-se no Planalto,
e gesta Piratininga.

Revejo os dias do Brasil passado
nesta cidade autêntica no estilo lusitano.
Nestas velhas igrejas de barroco original.
Nestas ruas estreitas, desiguais.
Nestas frentes vestidas de azulejos.
Nos portais de pedra destas casas de beirais.

Revivo as eras do Brasil primevo
nestas ruas de Santos, de nomes legendários:
Manoel da Nóbrega, Brás Cubas,
Fernão Dias, Tibiriça, Anchieta.
Escola de Sagres... Caravelas e veleiros.
Naus do descobrimento.
Mestres marinheiros,
reis dos mares oceanos.Marujos e gajeiros.
Velho Portugal de meus avós.
Rudo tronco ancestral, genealólico.
Minas e bandeiras, cidades e forais.
Unidade de raça, de língua, de ética, de costumes.

Heredos e atavismos, nômades e sedentários...
Assimilação e repulsa.
Afro, luso, ameríndio.
Tateio entre as raças donde provenho
para o desconhecido dos destinos.

Combatendo a mim própria,
procuro conjugar estranha sensação
de ser e de não ser...
Afro, lusitano e bugre
- sou a herança hesitante de vós três.
Praias de Santos...
Íncolas e lusos.
Fidalgos e plebeus.
Negros da Costa d'África.
Piratas e salteadores.
Traficantes e bastardos.
Frades e judeus
pisaram estas areias
e se acoitaram nestes recantos.

Imagem:
Braz Cubas lê o foral de vila, documento régio que eleva Santos à categoria de vila.

sábado, 25 de janeiro de 2014

Teófilo Braga (Contos Tradicionais do Povo Português) O Surrão

Recolhido no Algarve

Era uma vez uma pobre viúva, que tinha só uma filha que nunca saía da sua beira; outras raparigas da vizinhança foram-lhe pedir, que na véspera de S. João deixasse ir a sua filha com elas para se banharem no rio. A rapariga foi com o rancho; antes de se meterem no banho, disse-lhe uma amiga:

– Tira os teus brincos e põe-os em cima duma pedra, porque te podem cair na água.

Assim fez; quando estavam a brincar na água passou um velho, e vendo os brincos em cima de uma pedra, pegou neles e deitou-os para dentro do surrão.

A rapariga ficou muito aflita quando viu aquilo, e correu atrás do velho que já ia longe. O velho disse-lhe que entregava os brincos, com tanto que ela os fosse buscar dentro ao surrão. A rapariga foi procurar os brincos, e o velho fechou o surrão, com ela dentro, botou-o às costas e foi-se de vez. Quando as outras moças apareceram sem a sua companheira, a pobre viúva lamentou-se sem esperança de tornar a achar a filha. O velho, ao passar a serra, abriu o surrão e disse para a pequena:

– Daqui em diante hás de me ajudar a ganhar a vida; eu ando pelas ruas, a pedir, e quando disser:

Canta surrão,
Senão levas com o bordão…

– Tens de cantar por força. Toma tento.
   
Por toda a parte onde o velho passava todos ficavam admirados daquela maravilha. Chegou a uma terra, aonde já chegara a notícia de um velho que fazia cantar um surrão, e muita gente o cercou para se certificar. O velho depois que viu que já estavam bastantes curiosos, levantou o pau e disse:

– Canta surrão,
Senão levas com o bordão…

Ouviu-se então um canto que dizia:

– Estou metida neste surrão,
Onde a vida perderei;
Por amor dos meus brinquinhos
Que eu na fonte deixei.

As autoridades tiveram conhecimento daquele caso, e trataram de ver onde é que o velho pousava; foram ter com uma vendeira, que se prestou a deixar examinar o surrão quando o velho estivesse dormindo. Assim se fez; lá encontraram a pobre rapariga, muito triste e doente, que contou tudo, e então é que soube do caso da viúva a quem tinham furtado a filha. A pequena saiu com as autoridades, que mandaram encher o surrão de todas as porcarias, de sorte que quando o velho foi ao outro dia mostrar o surrão, este não cantou; deu-lhe com o bordão, e então derramou-se pelo chão toda aquela porcaria que o povo lhe obrigou a lamber, sendo dali levado para a cadeia, e a menina foi para casa de sua mãe.
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Notas Comparativas

A lenda cristã de Sta. Margarida, engolida por um Dragão, representa a luz solar escondida pela noite. Pertence a este ciclo, como observa Tylor, a história do Petit Chaperon rouge, em França e Inglaterra: «Na Alemanha as velhas conservam-no com toda a sua pureza. Segundo a sua narrativa, o lobo engole a encantadora criança, vestida com o seu brilhante manto de cetim vermelho, e a sua avó; mas elas saem incólumes da barriga do animal que um caçador abriu enquanto ele dormia. Acha-se um conto parecido na coleção de Grimm, em que se pode igualmente reconhecer o mito do sol. Como no Petit chaperon rouge, abre-se a barriga do lobo e enche-se-lhe de pedras». Tylor, Civilisation Primitive, t. I, p. 390.

Aparece em francês nos Contes populaires lorrains de Emm. Cosquin, L'homme au pois; e em Fernán Caballero, El zurrón que cantaba. Sobre o caráter mítico deste conto, aplicamos o dito de Gubernatis:

«O saco representa um importante papel na tradição do herói escondido ou perseguido; este saco é a Noite, ou a nuvem (o inverno), etc.» Mythologie Zoologique, t. I, p. 255 e seg. E em outra passagem, acrescenta: «Achamos aqui não somente a heroína é a Aurora...» (p. 259).

Nos romances populares portugueses há donzelas metidas em esquifes de vidro ou deitadas ao mar em cofres. Nos costumes domésticos, as crianças são intimidadas com a ameaça de um velho que as leva em um saco. O surrão é o saco de couro das tradições indo-europeias e dos costumes jurídicos da penalidade simbólica medieval.


Fonte:
Wikisource

Irmãos Grimm (Rapunzel)

Era uma vez um casal que há muito tempo desejava inutilmente ter um filho. Os anos se passavam, e seu sonho não se realizava. Afinal, um belo dia, a mulher percebeu que Deus ouvira suas preces. Ela ia ter uma criança!

Por uma janelinha que havia na parte dos fundos da casa deles, era possível ver, no quintal vizinho, um magnífico jardim cheio das mais lindas flores e das mais viçosas hortaliças. Mas em torno de tudo se erguia um muro altíssimo, que ninguém se atrevia a escalar. Afinal, era a propriedade de uma feiticeira muito temida e poderosa.

Um dia, espiando pela janelinha, a mulher se admirou ao ver um canteiro cheio dos mais belos pés de rabanete que jamais imaginara. As folhas eram tão verdes e fresquinhas que abriram seu apetite. E ela sentiu um enorme desejo de provar os rabanetes.

A cada dia seu desejo aumentava mais. Mas ela sabia que não havia jeito de conseguir o que queria e por isso foi ficando triste, abatida e com um aspecto doentio, até que um dia o marido se assustou e perguntou:

- O que está acontecendo contigo, querida?

- Ah! - respondeu ela. - Se não comer um rabanete do jardim da feiticeira, vou morrer logo, logo!

O marido, que a amava muito, pensou: "Não posso deixar minha mulher morrer… Tenho que conseguir esses rabanetes, custe o que custar!"

Ao anoitecer, ele encostou uma escada no muro, pulou para o quintal vizinho, arrancou apressadamente um punhado de rabanetes e levou para a mulher. Mais que depressa, ela preparou uma salada que comeu imediatamente, deliciada. Ela achou o sabor da salada tão bom, mas tão bom, que no dia seguinte seu desejo de comer rabanetes ficou ainda mais forte. Para sossegá-la, o marido prometeu-lhe que iria buscar mais um pouco.

Quando a noite chegou, pulou novamente o muro mas, mal pisou no chão do outro lado, levou um tremendo susto: de pé, diante dele, estava a feiticeira.

- Como se atreve a entrar no meu quintal como um ladrão, para roubar meus rabanetes? - perguntou ela com os olhos chispando de raiva. - Vai ver só o que te espera!

- Oh! Tenha piedade! - implorou o homem. - Só fiz isso porque fui obrigado! Minha mulher viu seus rabanetes pela nossa janela e sentiu tanta vontade de comê-los, mas tanta vontade, que na certa morrerá se eu não levar alguns!

A feiticeira se acalmou e disse:

- Se é assim como diz, deixo você levar quantos rabanetes quiser, mas com uma condição: irá me dar a criança que sua mulher vai ter. Cuidarei dela como se fosse sua própria mãe, e nada lhe faltará.

O homem estava tão apavorado, que concordou. Pouco tempo depois, o bebê nasceu. Era uma menina. A feiticeira surgiu no mesmo instante, deu à criança o nome de Rapunzel e levou-a embora.

Rapunzel cresceu e se tomou a mais linda criança sob o sol. Quando fez doze anos, a feiticeira trancou-a no alto de uma torre, no meio da floresta.

A torre não possuía nem escada, nem porta: apenas uma janelinha, no lugar mais alto. Quando a velha desejava entrar, ficava embaixo da janela e gritava:

- Rapunzel, Rapunzel! Joga abaixo tuas tranças!

Rapunzel tinha magníficos cabelos compridos, finos como fios de ouro. Quando ouvia o chamado da velha, abria a janela, desenrolava as tranças e jogava-as para fora. As tranças caíam vinte metros abaixo, e por elas a feiticeira subia.

Alguns anos depois, o filho do rei estava cavalgando pela floresta e passou perto da torre. Ouviu um canto tão bonito que parou, encantado.

Rapunzel, para espantar a solidão, cantava para si mesma com sua doce voz.

Imediatamente o príncipe quis subir, procurou uma porta por toda parte, mas não encontrou. Inconformado, voltou para casa. Mas o maravilhoso canto tocara seu coração de tal maneira que ele começou a ir para a floresta todos os dias, querendo ouvi-lo outra vez.

Em uma dessas vezes, o príncipe estava descansando atrás de uma árvore e viu a feiticeira aproximar-se da torre e gritar: "Rapunzel, Rapunzel! Joga abaixo tuas tranças!." E viu quando a feiticeira subiu pelas tranças.

"É essa a escada pela qual se sobe?," pensou o príncipe. "Pois eu vou tentar a sorte…."

No dia seguinte, quando escureceu, ele se aproximou da torre e, bem embaixo da janelinha, gritou:

- Rapunzel, Rapunzel! Joga abaixo tuas tranças!

As tranças caíram pela janela abaixo, e ele subiu.

Rapunzel ficou muito assustada ao vê-lo entrar, pois jamais tinha visto um homem.

Mas o príncipe falou-lhe com muita doçura e contou como seu coração ficara transtornado desde que a ouvira cantar, explicando que não teria sossego enquanto não a conhecesse.

Rapunzel foi se acalmando, e quando o príncipe lhe perguntou se o aceitava como marido, reparou que ele era jovem e belo, e pensou: "Ele é mil vezes preferível à velha senhora…." E, pondo a mão dela sobre a dele, respondeu:

- Sim! Eu quero ir com você! Mas não sei como descer… Sempre que vier me ver, traga uma meada de seda. Com ela vou trançar uma escada e, quando ficar pronta, eu desço, e você me leva no seu cavalo.

Combinaram que ele sempre viria ao cair da noite, porque a velha costumava vir durante o dia. Assim foi, e a feiticeira de nada desconfiava até que um dia Rapunzel, sem querer, perguntou a ela:

- Diga-me, senhora, como é que lhe custa tanto subir, enquanto o jovem filho do rei chega aqui num instantinho?

- Ah, menina ruim! - gritou a feiticeira. - Pensei que tinha isolado você do mundo, e você me engana!

Na sua fúria, agarrou Rapunzel pelo cabelos e esbofeteou-a. Depois, com a outra mão, pegou uma tesoura e tec, tec! cortou as belas tranças, largando-as no chão.

Não contente, a malvada levou a pobre menina para um deserto e abandonou-a ali, para que sofresse e passasse todo tipo de privação.

Na tarde do mesmo dia em que Rapunzel foi expulsa, a feiticeira prendeu as longas tranças num gancho da janela e ficou esperando. Quando o príncipe veio e chamou: "Rapunzel! Rapunzel! Joga abaixo tuas tranças!," ela deixou as tranças caírem para fora e ficou esperando.

Ao entrar, o pobre rapaz não encontrou sua querida Rapunzel, mas sim a terrível feiticeira. Com um olhar chamejante de ódio, ela gritou zombeteira:

- Ah, ah! Você veio buscar sua amada? Pois a linda avezinha não está mais no ninho, nem canta mais! O gato apanhou-a, levou-a, e agora vai arranhar os seus olhos! Nunca mais você verá Rapunzel! Ela está perdida para você!

Ao ouvir isso, o príncipe ficou fora de si e, em seu desespero, se atirou pela janela. O jovem não morreu, mas caiu sobre espinhos que furaram seus olhos e ele ficou cego.

Desesperado, ficou perambulando pela floresta, alimentando-se apenas de frutos e raízes, sem fazer outra coisa que se lamentar e chorar a perda da amada.

Passaram-se os anos. Um dia, por acaso, o príncipe chegou ao deserto no qual Rapunzel vivia, na maior tristeza, com seus filhos gêmeos, um menino e uma menina, que haviam nascido ali.

Ouvindo uma voz que lhe pareceu familiar, o príncipe caminhou na direção de Rapunzel. Assim que chegou perto, ela logo o reconheceu e se atirou em seus braços, a chorar.

Duas das lágrimas da moça caíram nos olhos dele e, no mesmo instante, o príncipe recuperou a visão e ficou enxergando tão bem quanto antes.

Então, levou Rapunzel e as crianças para seu reino, onde foram recebidos com grande alegria. Ali viveram felizes e contentes.

Fonte:
http://www.grimmstories.com/pt/grimm_contos/rapunzel

Machado de Assis (Gazeta de Holanda) N.° 28 – 20 de setembro de 1887


Quando tudo em paz corria
Cai uma nuvem prenhada
De chuva e de ventania,
De saraiva e trovoada.

E cai lá naquela banda
Do paço dos senadores,
O melhor paço da Holanda,
Boa pedra, arminho e flores.

Inda se fosse no paço
Dos deputados, vá feito;
Embora sendo embaraço,
Caía no próprio leito.

Pois se este paço figura
Ao pé do velho senado,
Que afigura e transfigura,
Como ele, o que lhe é levado,

Certo é que é mais dada a zona
Aos temporais desabridos;
Quem lá vai mete-se em lona,
Oleado e outros tecidos.

Mas, no senado, em verdade,
Posto não seja o primeiro
Exemplo de tempestade,
Nem talvez o derradeiro,

Causa espanto, porque tudo
Parecia que ia andando,
Não inteiramente mudo,
Mas lentamente calando.

Vai então, como eu buscasse
Saber por algum amigo,
Maneira com que explicasse
Este singular perigo,

Achei um vizinho, um magro,
Um que não tem este olho;
Chamá-lo-ia Meleagro,
Di-lo-ia autor de algum molho,

Se não parecesse abuso
Esse recurso mofino,
Mofino, mas não escuso...
Os versos têm seu destino!

Tenho sido belo, às vezes,
Só por exigi-lo a rima;
Chama-se a um homem Menezes
Quando não passa de um Lima.

Mas, qualquer que seja o nome
Do vizinho consultado,
Fui lá p'ra matar a fome
E saí esfomeado.

Procurei-o, como disse,
E no meio da palestra
Aconteceu que surgisse
Uma questão grave e mestra:

Se o senado é que governa
Ou a câmara. O sujeito,
Querendo passar-me a perna,
Tira estas vozes do peito:

“— Dizem que a câmara baixa,
Conforme a prática inglesa,
Assim como tem a caixa
Da receita e da despesa,

“Rege a política, e forma
Os homens à sua imagem,
Que é essa a única norma
Da parlamentar viagem.

“Sendo, porém, cousa certa
Que os ingleses querem antes
Achar sempre a porta aberta.
Dos comuns representantes.

E comuns há que padecem,
Se a boa sorte lhes falta,
E após os pais que falecem
Vão para a câmara alta,

“Onde é menor o trabalho,
Sessões curtas, pouca vida,
Galho do poder, mas galho
De folha amarelecida;

“Cá buscamos o senado;
E se o que há mais forte e fino
Tem ali lugar marcado
É que ali mora o Destino”.

Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.

Paulo de Tarso Pardal (O Dorso do Livro)

Comi uma barata inteira. Ouvi o estado da morte quando a esmaguei com o pé. Juntei os pedaços na palma da mão, separei pata por pata e distribui-as pelas bordas do prato. A gelatina amarela e as asas ficaram no centro, formando um girassol, que girava com o meu olhar na solitária escura.

Estou aqui a trinta e dois milhões de traços. Tenho uma terrível angústia quando percebo que não existe mais espaço para fazer um só risco na parede. Conto o tempo por esses traços. Cada sono é um risco. Existem trinta e dois milhões de traços que conto a cada quatro sonos. É o que posso fazer para não ficar doido. Não sei a quantos dias equivalem os trinta e dois milhões de traços. Nos primeiros trinta e dois mil, eu ainda sabia o equivalente em dias. Mas tive que me abster de contá-los porque os traços, a partir de um certo sono, passaram a ser mais vitais para mim do que os dias. Por isso, não sei há quantos anos estou. Sei que há trinta e dois milhões de riscos.

Os traços na parede são a minha vida. Lembro que nos dez mil traços recordei a última rua por onde passei antes de vir para cá. Todos os acontecimentos que ocorreram naquele dia eu marquei com um risco. Tenho uma traço para o poste, outro para o ônibus, outro para a calçada, outro para o cigarro, outro para dono do bar, outro para uma mulher que bebeu comigo, outro para o balcão, outro para o sangue. Com eles fiz o meu universo – o mundo são riscos. Não posso ficar sem eles. Acho que ainda sei pensar porque tenho os traços, por isso eles são mais importantes do que os dias, que não sei mais como são. Não sei o que fiz para estar aqui. Sei que existe um traço no meio da parede, maior do que os outros, que deve significar algo importante, mas não me lembro mais. Devo ter, agora, só um pedaço do cérebro – aquele que sabe contar os trinta e dois milhões de riscos a cada quatro sonos: não sei pensar além disso.

Depois que eu comer a barata, vou dormir pensando no prazer de fazer mais um traço na parede.

Eles pensam que já morri: há trinta e dois traços que não me mandam comida: por isso comi uma barata inteira: azar dela!

Eles têm medo de mim. Acham que virei bicho, que não precisam mais gastar comida com um bicho.

Acho que daqui a trinta e dois riscos eles vão abrir a porta que há trinta e dois não abrem e, neste momento, vou mordê-los e engoli-los, como faço com esta barata. Daqui a trinta e dois traços, vou ficar livre de gritos do meu pensamento que ecoam desesperadamente nestas paredes, e eles vão notar que ainda não morri.

Daqui a trinta e dois gritos, depois que eu comer o primeiro homem, vou fazer o segundo contar os trinta e dois milhões de traços trinta e duas milhões de vezes. Só assim, poderei matá-lo também.

Enquanto os trinta e dois riscos não chegam, vou mastigar a última perna da barata que está no prato: trinta e duas milhões de vezes.

 (Paulo de Tarso Pardal, Margem Oculta)

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) Paulo de Tarso Pardal

Paulo de Tarso Vasconcelos Chaves (Russas, 1955) é contista, artista plástico, crítico literário e músico. Licenciado em Letras e mestre em Literatura Brasileira, pela Universidade Federal do Ceará. Professor de literatura em colégios e faculdades, atua na imprensa cearense como ficcionista e crítico literário. Tem editados os livros de contos Margem Oculta (Fortaleza: Edição Gráfica Oficina, 1995), Difícil Enganar os Deuses (Sobral: ASEL, 1999) e Do Pitoco (Fortaleza: Edições Livro Técnico, 2006); além da dissertação de mestrado O Espaço Alucinante de José Alcides Pinto (Fortaleza: UFC Edições, 1999), dos ensaios Pensaios (Fortaleza: O Curumin Sem Nome, 2000), Discurso do Imaginário (Fortaleza: Edições Livro Técnico, 2003) e Autores do Vestibular da UFC (Fortaleza: Edições Livro Técnico, 2005 e 2006), dos livros Sonetos (Fortaleza: Edições Livro Técnico, 2000), de poesias, e Pirralho (Fortaleza: Edições Livro Técnico, 2002), de partituras.

Os temas mais frequentes nas 27 composições das duas primeiras coleções de Paulo de Tardo Pardal são a loucura, a solidão, a passagem do tempo. O protagonista de “A asa que ri” se vê perseguido por asas-de-fogo. O narrador de “O dorso do livro” está preso “numa solitária escura”. O tom da narração, embora haja lógica na elaboração das frases, é o de quem raciocina pelas linhas tortas da loucura: “Comi uma barata inteira”; “Estou aqui há trinta e dois milhões de traços”; “Eles têm medo de mim”; “depois que eu comer o primeiro homem”. O ser fictício de “(Re)Verso” é chamado ora de poeta, ora de louco: “Anda pelo banheiro como uma barata tonta”. Cercado de sombras, vaga pela solidão da casa.

Há uma galeria ampla de personagens solitários nas peças ficcionais de Pardal. Além dos já mencionados, destacam-se o pintor de “Ludo ou lapidação do branco”, o ser fictício da obra intitulada “?”, o de “Água salgada” (“Tive a impressão de que só eu existia no mundo”.)

Em algumas composições o tempo é caótico; noutros, congelado, parado ou apenas lento. Há também um tempo acelerado. Nestes casos, os tempos verbais se misturam, se enredam, como se passado, presente e futuro fossem um só tempo. Em “O olhar” os dois personagens (Dona Maria José e ele) se perdem num labirinto de tempos verbais diversos: “Talvez ele nunca esqueça”; “ela entenderia”; “se ela precisasse”; “ele ficaria ali”; “teve vontade”; “talvez dormisse”; “estava quieta”. Há elaborações frasais curiosas, como no segundo parágrafo de “O sonho do gato”, em que os verbos não aparecem, como se o tempo tivesse parado: “O gato branco em cima do muro de três tipos de tinta: o branco do gato: o branco do cinza do muro: o branco da sombra brilhante dos pontos vermelhos”. Como se fosse uma pintura.

Às vezes a trama se dilata no tempo, como na peça “Margem oculta”: “de vez em quando”, “nunca teve”, “passou a percebê-lo”, “Kátia não foi bonita a vida toda”, “quando a conheci”, “quanto tempo durou”, “demorou anos”, “depois de algum tempo”. Há, ainda, o caso especial de “Camile”, cuja protagonista tem dúvidas até sobre o próprio nome: “Acho que me chamo Camile”. Sua dúvida maior, no entanto, é quanto à idade: “Devo ter dezessete anos”; “Quando ouço essa voz, disso eu tenho certeza, tenho cinco anos”.

Alguns seres fictícios de Pardal estão sempre sonhando, lembrando sonhos, vivendo em função deles ou do passado. Veja-se o poético conto “A menina do sonho azul”, no qual “todos tiveram o mesmo sonho”. Em “Difícil enganar os Deuses”, Mariana ora sonha com escuridão e vozes, ora “com todos os sonhos passados”. Nos seus sonhos estão as respostas para as suas dúvidas e dos outros. Finalmente “sonhou que ia morrer no sétimo dia”. Outro protagonista que vive em razão dos sonhos é o mendigo-louco Chico Galo Preto, de “O homem que conheceu o Inferno”. Após pedir um cafezinho ao padre, revela: “O meu sonho vai ser com o Galo Preto que vem me beliscar toda noite”. Há até uma narrativa intitulada “Sonho”. E gatos que sonham.

Os seres fictícios de Paulo de Tarso Pardal são prisioneiros da sociedade ou de si mesmos. Uns são mendigos; outros, maníacos e assassinos. O narrador de “O dorso do livro” vai enlouquecendo a cada risco que grava na parede, para significar um ato, um momento, “algo importante”. A protagonista de “Rastros de uma serpente” está presa e fala a advogado, provavelmente: “Sabe doutor, eu nunca matei ninguém não”. Camile está presa a uma pedra, no meio da porta da casa, agarrada a uma boneca. Como se não quisesse deixar de ser criança. O protagonista de “Mania”, sem nome explícito, se aprisionou a Mariana, se anulou, se perdeu de si mesmo: “Quando estou com Mariana, não penso, não sei onde estou”.

Há, ainda, pintores, que são retratistas dos outros, de paisagens, como se quisessem paralisar o tempo. Estão sós num mundo de cores e traços, como o narrador de “O mito da caverna” ou o de “Ludo ou lapidação do branco”.

O vento e a chuva, às vezes, são quase personagens, como fantasmas a rondarem os seres vivos. Camile insiste em ver a chuva, embora tenha medo de trovão. Da janela vê a chuva engrossar e um clarão no céu.  Em “A cidade mais eterna do mundo” Seu Salomão chorou tanto, quando soube da morte de Safira, que suas lágrimas aguaram todos os campos. Mais tarde, “um vento verde invadiu a sala, tomou conta de toda a casa, espalhou-se pela cidade inteira”. Em “A vida perdida de Lu” certa vez “caiu uma chuva de rosas vermelhas. Passaram três dias chovendo flores vermelhas”. Em “Difícil enganar os deuses” “o vento era cortante e forte”.

Os dramas se desenrolam em cidade grande ou lugarejos do Nordeste brasileiro, como o pequeno povoado de Nossa Senhora do Bom Parto, em “A visita de Sara”. Aqui e ali narradores pintam trechos de paisagens dessa região. E não esquecem o vocabulário regional (vassoura e uru de palha de carnaúba, siriguela, incelência, gasguito, embiocado), os costumes do sertão (plantações de milho, feijão e mandioca), sem que haja nisto nenhuma concessão ao velho regionalismo.

E, assim, tudo levaria o escritor a se apegar somente a esquemas neonaturalistas. Mas Pardal trafega também, e com muita competência, pelo realismo mágico, sobretudo no segundo volume.  Em “A cidade mais eterna do mundo”, ambientada no sertão, havia um homem de cento e oitenta e seis anos. Quando morreu Safira, a prostituta mais querida da cidade, o ancião chorou tanto que “não precisou inverno para as plantações”. O insólito se estabelece de vez, quando “um vento verde invadiu a sala” e “os meninos começaram a flutuar, a um palmo do chão: – Pai, eu estou voando!” Em “A menina do sonho azul” o clima estranho se instaura desde o início da narração: “Todos pressentiram que alguma coisa ia acontecer naquela noite”. O leitor é preparado para ler uma história estranha: “Naquela noite, todos tiveram o mesmo sonho: o mundo estava ficando azul”. Em “A vida perdida de Lu” o personagem-narrador se dirige a um ouvinte anônimo, um jornalista, chamado de senhor. Refere-se sempre à personagem Lu: “Quando os homens fazem amor com ela, eles se transformam em passarinhos”. E, como se também se dirigisse ao leitor, explica: “Sei que o senhor não acredita nisso, mas é verdade”. Isto é, o fantástico se mostra na primeira frase e se explica na segunda: um fato estranho à realidade, impossível de se realizar, mas real para o narrador. Mais adiante o personagem faz outra afirmação absurda: “Eu gosto mesmo é de me transformar em beija-flor. Fico bitocando (sic) as flores vermelhas”. Em “A visita de Sara” também desde o início o leitor pressente o fantástico, quando um imenso balão colorido caiu perto da igreja. E se encorpa a seguir: “Na hora em que Sara chegou em seu imenso balão de fogo, os homens sentiram uma necessidade imensa de fazer amor com suas mulheres”. O final da narrativa é o inverso do início: “Sara entrou no balão, no meio do fogo” e partiu. Em outra composição, Pardal presta homenagem ao contista Moreira Campos, citando exatamente o seu mais fantástico conto: “Dizem que os cães veem coisas”.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Acruche Collection - Trova 16


Teófilo Braga (Contos Tradicionais do Povo Português) O velho Querecas

Eram três irmãs, muito pobres, que viviam do seu trabalho aturado. Naquela terra havia uma casa em que ninguém queria morar porque lá dentro ouviam-se de noite grandes gritos e terrores; as raparigas, para pouparem o aluguel, foram pedir para as deixarem morar naquela casa. A mais nova, como mais animosa, foi morar para o último andar.

Uma noite, mal ela se tinha acabado de deitar, ouviu uma voz gritar:

– Eu caio!

– Pois cai! – respondeu-lhe a rapariga. De um buraco do teto caiu uma perna. Depois soou de novo o mesmo grito:

– Eu caio!

– Pois cai! – repetiu a rapariga; e assim foram caindo os braços, o tronco, até que ela achou diante de si um homem já muito velho e calvo. O velho chegou-se próximo da rapariga, e perguntou-lhe:

– Não tens medo de mim?

– Não.

– Fazes muito bem; és a primeira e única pessoa que resiste ao medo de me ver. Em paga da tua coragem toma lá esta bolsa, e quando te vires nalguma aflição diz sempre: Valha-me aqui o velho Querecas.

O dinheiro da bolsa nunca se acabava, e as três irmãs começaram a viver com largueza. No entanto a mais nova começou a sentir que por mais que se fechasse no seu quarto parecia-lhe que sentia meter-se alguém na cama com ela. Lembrou-se se seria o velho Querecas, e teve uma certa repugnância; mas para certificar-se, uma noite acendeu de repente a luz, e viu deitado ao pé dela um mancebo formoso, que estava adormecido. Estava tão embebida a olhar para ele, que lhe caiu um pingo de cera na cara. O mancebo acordou de repente, e disse:

– Ah! Desgraçada, o que fizeste; dobraste-me o encantamento, que estava quase no fim! Agora não me tornas mais a ver.

A menina chorou muito, e ainda mais quando conheceu o estado em que se achava. Lembrou-se então do segundo dom, e disse:

– Valha-me aqui o velho Querecas.

– Aqui estou já, e bem sei porque me chamas. Há só um modo de remediar o mal que a ti mesma fizeste. Toma lá estes três novelos, e vai andando sempre, sempre até onde eles se acabarem; onde quer que seja pede que te deem aí pousada do ar da noite.
   
A rapariga chorou por ter de deixar as irmãs, mas o que ela queria era quebrar o encantamento daquele moço; foi andando, andando até ir dar ao fim de muito tempo a um palácio cercado de um rico jardim. Espreitou pelo buraco da chave, e viu lá dentro uma sala com muitas mulheres trabalhando em lindos vestidos de noivado, e fazendo as roupinhas de uma criança. Teve receio de bater àquela porta, e foi rodeando o palácio, até que encontrou o hortelão, a quem pediu pousada. O hortelão respondeu-lhe:

– Você sabe em casa de quem está para vir assim pedir pousada?

– O que sei é que já me não tenho de cansada; e é por uma esmola.

O hortelão teve dó da rapariga e deu-lhe um canto no palheiro; ela deitou-se mais morta que viva, e ali mesmo deu um menino à luz. Tudo aquilo se transformou num quarto muito asseado e rico. Quando o hortelão veio ao outro dia, ficou pasmado com o que viu. Foi dar logo parte à rainha, que também quis certificar-se da maravilha. Quando chegou ao lugar em que estava a menina deu um grito ao ver a criança:

– Oh senhora! Quem é o pai deste menino?

A rapariga ficou muito envergonhada por não poder logo dizê-lo; no meio da sua confusão contou o caso do velho Querecas. Foi então que a rainha se lembrou:

– Esse menino é o retrato de meu filho, que me desapareceu, sem nunca mais saber dele nova má nem boa.

A rainha levou a rapariga para o palácio, tratou de lavar a criança, e quando a despiu achou-lhe nas costas um grande sinal. Reparou, e viu que era um pequeno cadeado com uma chavinha. Quis ver se o abria, mas com receio disse à mãe que experimentasse a ver se dava volta àquela chavinha. Logo que a mãe pegou na chave abriu o cadeado, e imediatamente se quebrou o encantamento do príncipe que deveu a sua liberdade ao ânimo daquela rapariga com quem casou logo.
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Notas Comparativas

À parte os episódios comuns a muitos contos, é este uma das formas do mito de Psique.

Gubernatis, na Mythologie zoologique (t. I, p. 437), traz uma variante deste conto coligida em Fucecchio, na Toscana, em que o desencantamento do príncipe é devido à coragem da donzela. As circunstâncias episódicas divergem e pertencem a outro ciclo novelesco.

Um conto coligido em Cosenza, na Calábria, por Greco, traz o episódio do ruído noturno, do pingo de cera que acorda o mancebo, e do novelo que deve guiar a menina à busca do amante. (Gubernatis, op. cit., t. II, p. 301, nota 2).

Estas uniões misteriosas acham-se ainda com carácter mítico, no Harivansa, entre Urvasi e Pururavas, e no Mahabahrata, entre Çantana e a ninfa das águas; na lenda grega de Psique, Eros desaparece, quando acorda por causa do pingo de azeite que caiu da lâmpada a cuja luz foi visto.

Bruyere, nos Contes populaires de la Grande Bretagne, p. 183, cita contos pertencentes a este ciclo na coleção sueca de Cavallius e Stephens, Svenska Folksagor och äventyr, traduzida por Thorpe, e na coleção norueguesa de Asbjørnsen e Moe, traduzida por George Webbe Dasent, aparece o episódio do pingo de cera.

Sobre o evidente caráter mítico destas tradições, acrescenta Bruyere: «Em todas estas narrativas a felicidade dos amantes não é de longa duração, porque, apesar da fé jurada, a promessa é sempre violada, e aquele dos amantes a quem o outro faltou à palavra, é forçado a desaparecer, apesar do ardente amor que o consome. M. Cox demonstra que as lendas desta natureza são a representação do mito celeste do Sol seguindo a Aurora, ou reciprocamente. Muitas vezes depois da violação da promessa e da separação dos amantes o mito continua.» (Op. cit., p. 184).

Em um artigo sobre a História do Japão, cita-se também a lenda análoga à de Psique: «Uma parenta do imperador era a esposa do deus Omonomichi. Ele jamais aparecia aos olhos da princesa, pois não se encontrava com ela senão nas trevas. Uma noite ela lhe disse: — Ainda me não foi dado olhar para a tua face; rogo-te que fiques comigo até pela manhã, para eu ter a felicidade de te contemplar.

«Tanto lhe rogou, com tal ternura e tais carinhos, que o esposo cedeu e prometeu-lhe que ficava. Por fim, as primeiras claridades da Aurora entraram no aposento da impaciente princesa, mas qual foi o seu espanto quando ela descobriu, no leito, uma serpente enroscada! Soltou um grito de pavor, e a serpente transformou-se logo num jovem formosíssimo, que lhe disse com expressão de dolorosa melancolia: — Nunca mais, agora, hei de poder estar contigo. E desapareceu. Abatida por tristeza incurável a esposa solitária foi pouco a pouco decaindo até falecer de paixão.» (Do viajante português Mesnier, Actualidade, n.º 241, do IX ano).

O despertar por meio de um raio de luz é frequente, como na Bella Aurora (Spoleto) e La Bella Rosalinda dai capelli d'ori e na novela dinamarquesa de Grandtovig. (Stanislao Prato, Quattro novelline, pp. 156 e 157).

Sobre as origens míticas indo-europeias deste conto, vide Gubernatis, Piccola Enciclopedia indiana, p. 175, em que discute a simultaneidade da representação da Aurora e da Nuvem que desaparecem quando o Sol se mostra. Este ciclo do Amor e Psique foi estudado por F. Liebrecht, Zur Volkskunde (Amor und Psyche).

Na versão do Algarve há o episódio do corpo que cai aos pedaços, para experimentar a coragem da menina; é comum a vários contos, e acha-se na lenda de Atenodoro (ap. Alexander ab Alexandro, lib. III, cap. 12), que o padre Manuel Consciência traduziu na sua Academia Universal de Erudição, p. 545.


Fonte:
Wikisource

Irmãos Grimm (Os Doze Irmãos)

Era uma vez um rei e uma rainha que viviam felizes e em harmonia e que tinham doze filhos, sendo todos garotos. Então, o rei disse para a sua esposa:

- "Se a décima terceira criança que você está para trazer ao mundo for uma garota, os doze meninos devem morrer, para que os bens dela sejam maiores, e para que o reino possa ser dela somente."

Então, ele ordenou que doze esquifes fossem fabricados, os quais já estavam cheios de pedaços de madeiras, e em cada um havia um pequeno travesseiro para o morto, e os caixões tinham sido levados para uma sala fechada, e ele deu a chave para que a rainha guardasse, e pediu para que ela não falasse sobre isso com ninguém.

A mãe todavia, se sentava e lamentava o dia todo, até que o filho mais jovem, que estava sempre com ela, e a quem ela chamava de Benjamin, nome esse que foi tirado da Bíblia, disse a ela:

- "Querida mamãe, porque você está tão triste?"

- "Querido filhinho," respondeu ela, "Não posso lhe dizer." Mas ele não a deixava sossegada até que ela foi e abriu a sala, e mostrou a ele os doze caixões que estavam terminados e cheios de pedacinhos de madeiras. Então, ela disse:

- "Meu querido Benjamin, teu pai mandou fazer estes caixões para ti e para os teus onze irmãos, pois, se eu trouxer uma garotinha no mundo, você será morto e sepultado com eles."

E enquanto ela ia dizendo isso, ela chorava, e o filho a consolava e dizia:

- "Não chore, querida mãezinha, nós vamos nos salvar, e sairemos daqui." Mas ela disse:

- "Vai para a floresta com os teus onze irmãos, e faça com que um fique permanentemente sobre a árvore mais alta que puder ser encontrada, e fique atento, olhando para a torre aqui do castelo.

Se eu der a luz a um filhinho, eu colocarei uma bandeira branca, e então, vocês poderão se arriscar a voltar, mas se eu der a luz a uma menina, eu levantarei uma bandeira vermelha, e então, vocês deverão fugir o mais rápido que puderem, e que Deus possa proteger todos vocês. E eu todas as noites levantarei e farei uma oração para vocês - no inverno, para que vocês possam se aquecer perto de uma fogueira, e no verão, para que vocês não desfaleçam com tanto calor."

Depois que ela abençoou os filhos, eles seguiram para a floresta. Todos eles, no entanto, ficavam atentos, e se sentavam no pé de carvalho mais alto da floresta e ficavam olhando em direção à torre. Quando onze dias tinham se passado, e tinha chegado a vez de Benjamin, ele viu que uma bandeira tinha sido hasteada. Não era, no entanto, uma bandeira branca, mas uma bandeira vermelha, a qual anunciava que todos eles deviam morrer.

Quando os seus irmãos souberam daquilo, eles ficaram muito bravos, e disseram:

- "Todos nós devemos sofrer por causa de uma garota? Juramos que todos nós iremos nos vingar! - quando encontrarmos uma menina, o sangue vermelho dela deve jorrar."

Então, eles penetraram mais fundo na floresta, e no meio dela, que era a parte mais escura, eles encontraram a pequena cabana abandonada de uma feiticeira, onde não havia ninguém. Então, eles disseram:

- "Vamos ficar aqui, e tu, Benjamin, que és o menor e o mais fraco, tu ficarás em casa e cuidarás dela, nós outros vamos sair para conseguir alimento."

Então, eles foram para a floresta para caçar lebres, cervos selvagens, pássaros e pombos, e qualquer coisa que houvesse para comer, eles levavam um pouco para Benjamin, que tinha de arrumar a casa para eles, para que eles pudessem matar a fome. Juntos viveram eles na pequena cabana durante dez anos, e o tempo não parecia longo para eles.

Apequena garota, que a rainha, a mãe deles, tinha dado a luz, já tinha crescido, ela era boa de coração, e tinha um rosto encantador, e na testa dela havia uma estrela de ouro. Uma vez, quando houve uma grande arrumação no palácio, ela viu doze camisas de homens entre as coisas que estavam lá, e perguntou a sua mãe:

- "A quem pertencem estas doze camisas, porque elas são pequenas demais para serem do papai? Então, a rainha respondeu com o coração dolorido:

- "Querida filhinha, estas camisas são dos teus doze irmãos." Disse a garota, então:

- "Onde estão meus doze irmãos, nunca ouvi falar deles?" A mãe respondeu:

- "Só Deus sabe onde eles estão, eles estão andando pelo mundo." Então, ela pegou a pequena e abriu a sala para a garota, e lhe mostrou os doze caixões cheios de pedaços de madeiras e com os travesseiros para a cabeça.

- "Estes caixões," disse ela, "estavam destinados para os teus irmãos, mas eles foram embora escondidos antes que tu nasceste," então, a garotinha disse:

- "Querida mãezinha, não chore, eu irei procurar os meus irmãos."

Então, ela pegou as doze camisas e partiu, e seguiu direto para a grande floresta. Ela caminhou o dia todo, e a noitinha ela encontrou a casinha da feiticeira. Então, ela entrou na casa, e encontrou um jovem garoto, que perguntou:

- "De onde você veio, e para onde você vai?" e ficou atônito como ela era linda, e usava trajes reais, e tinha uma estrela na testa.

E ela respondeu:

- "Eu sou filha da rainha, e estou procurando meus doze irmãos, e eu irei até o fim do céu azul para encontrá-los." Ela também mostrou a ele as doze camisas que um dia havia pertencido a eles. Então, Benjamin compreendeu que ela era sua irmã, e disse:

- "Eu sou Benjamin, teu irmão caçula." E ela começou a chorar de alegria, e Benjamin chorou também, e eles beijaram e se abraçaram um ao outro como muita ternura.

Depois disto ele disse:

- "Querida irmãzinha, há ainda mais um problema. Nós fizemos um acordo que toda garota a quem encontrássemos deveria morrer, porque nós fomos obrigados a deixar o nosso reino por causa dela!"

Então, ela disse:

- "Morrerei com prazer, se morrendo puder salvar os meus doze irmãos."

- "Não," respondeu ele, "tu não morrerás, fique sentada aqui debaixo deste barril até que os nossos doze irmãos cheguem, e então, eu conseguirei entrar num acordo com eles."

Ela fez o que ele pediu, e quando a noitinha os outros irmãos chegaram da caça, o jantar deles estava pronto. E quando eles estavam todos sentados na mesa, e estavam comendo, eles perguntaram:

- "Quais são as novidades?"

Benjamin respondeu: - "Vocês não souberam de nada?"

- "Não," responderam eles. Ele continuou:

- "Vocês foram para a floresta e eu fiquei em casa, no entanto, eu sei mais do que vocês."

- "Diga-nos, então," exclamaram eles.

Ele respondeu: - "Me prometam primeiro que a primeira garota que nós encontrarmos não irá morrer."

- "Sim," exclamaram todos eles, "ela terá misericórdia, mas, conte-nos logo."

Então, ele disse:

- "A nossa irmã está aqui," e ele levantou o barril, e a filha do rei apareceu com seus trajes reais e com uma estrela na testa, e ela era linda, delicada e meiga. Então, todos eles ficaram felizes, e a abraçaram, e a beijaram e a amaram de todo o coração.

Agora ela ficava em casa com Benjamin e o ajudava no trabalho doméstico. Os onze foram para a floresta para caçar veados, pássaros e pombos, para que eles pudessem se alimentar, e a irmãzinha junto com Benjamim cuidavam da preparação da caça para eles.

Ela procurou na floresta ervas e vegetais para cozinhar, e colocou as panelas no fogo para que o jantar ficasse pronto quando os onze chegassem. Ela também mantinha a ordem na pequena casa, e colocava lindos lençóis limpos e brancos nas caminhas, e os irmãos estavam sempre felizes e viviam em grande harmonia com ela.

Um dia os dois que ficavam em casa, haviam preparado uma bela surpresa, eles se sentaram e comeram e beberam e estavam todos felizes. Havia, porém, um pequeno jardim que pertencia à casa da feiticeira onde ficavam doze pés de lírios, os quais também são chamados de "estudantes." Ela queria fazer uma surpresa para os seus irmãos, e colheu as doze flores, e pensou em presentear cada um deles com uma flor durante o jantar.

Mas no exato momento que ela colheu as flores os doze irmãos se transformaram em doze corvos, e voaram pela floresta, e a casa e o jardim desapareceram também. E agora, a pobre garota estava sozinha na floresta virgem, e quando ela olhava ao redor, uma velhinha estava sentada perto dali e disse:

- "Minha criança, o que você fez? Porque você não deixou que as doze flores brancas crescessem? Eles eram teus irmãos, que agora para sempre foram transformados em corvos." A garota disse, chorando:

- "Não existe uma maneira de libertá-los?"

- "Não," disse a mulher, "só existe uma maneira no mundo todo, e isso é tão difícil que você jamais conseguirá libertá-los desse jeito, porque você precisa ficar muda durante sete anos, e não pode falar nem rir, e se você falar uma palavra, e somente uma hora dos sete anos estiver faltando, tudo estará perdido, e os teus irmãos serão mortos por causa dessa palavra."

Então, a garota falou de coração:

- "Eu tenho certeza de que libertarei os meus irmãos," e foi e procurou uma árvore bem alta e se sentou no topo dela e ficava tecendo, e não falava nem ria. Ora, aconteceu que um rei estava caçando na floresta, ele tinha um grande cão galgo que correu até a árvore onde a garota estava sentada, e pulava em torno da árvore, ganindo e latindo para ela.

Então, o rei se aproximou e viu a bela princesa que tinha uma estrela de ouro na testa, e ficou tão encantado com sua beleza, que ele a convidou para que fosse sua esposa. Ela não respondia, mas fazia pequenos acenos com a cabeça. Então, ele mesmo subiu na árvore, trouxe-a para baixo, colocou-a em seu cavalo e a levou para o seu palácio. Então, o casamento foi festejado com grande festa e muita alegria, mas a noiva não falava nem sorria.

Quando eles tinham vivido felizes juntos durante alguns anos, a mãe do rei, que era uma criatura perversa, começou a difamar a jovem rainha, e disse ao rei:

- "Ela é uma mendiga vulgar que trouxeste da caça contigo. Quem sabe que coisas horrorosas ela não faz às escondidas!"

Ainda que ela seja muda, e não consiga falar, ela poderia sorrir pelo menos, mas aqueles que não riem, tem consciências pesadas." A princípio, o rei não quis acreditar nela, mas a velha falava disso o tempo todo, e a acusava de coisas tão assustadoras, que por fim o próprio rei se deixou convencer e ela foi condenada a morte.

E aconteceu que uma grande fogueira foi acesa no pátio do palácio, onde ela deveria ser queimada, e o rei ficou em cima na janela e via tudo com lágrimas nos olhos, porque ele a amava muito. E quando ela foi amarrada bem forte à fogueira, e o fogo começou a lamber as suas roupas com sua língua vermelha, o último momento dos sete anos havia se expirado. Então, um ruflar de asas foi ouvido no ar, e doze corvos vieram voando em direção à fogueira, e pousaram, e quando eles tocaram a terra, eis que eram os doze irmãos dela, que ela tinha libertado.

E lhes apagaram totalmente a fogueira, extinguiram as chamas, libertam a irmã que amavam tanto, e beijaram e a abraçaram. E agora, que ela podia abrir a boca para falar, ela contou ao rei porque ela tinha ficado muda, e nunca podia ter dado um sorriso. O rei dava pulos de alegria ao saber que ela era inocente, e todos eles viveram em grande harmonia até o fim da vida deles. A madrasta má foi levada para o tribunal, e colocada dentro de um tonel com óleo fervente e cobras venenosas, e teve uma morte cruel.

Fonte:

Machado de Assis (Gazeta de Holanda) N.° 27 – 13 de setembro de 1887

Se Deus me dissesse um dia:
— Que desejas tu, Malvólio?
Castelos na Normandia?
Uma biblioteca in-fólio?

“Um punhado de brilhantes,
Grandes como ovos de pomba?
Um batalhão de elefantes,
Marfim puro e extensa tromba?

“Moças, com as quais cantasses
A vida, e pelo estio,
Cantigas velhas que achasses,
Como esta, no peito frio:

“Cajueiro pequenino,
“Carregadinho de flores
“Eu também sou pequenino,
“Carregadinho de amores.

“Ou tendo espíritos altos,
Ir correr desejarias
Perigos e sobressaltos
De Rússias e de Turquias,

“Pegando, com alma icária
E braços impacientes
A coroa da Bulgária,
E defendê-la das gentes?”

Responder-lhe-ia eu, contrito:
— Não desejo, ó verdadeiro
Deus grande, Deus infinito,
Ser castelão nem livreiro,

Nem ter pedras preciosas,
Nem legiões de tamanhas
Alimárias pavorosas,
Vindas de terras estranhas,

Nem bonitas raparigas
Com quem eu cantar pudera
Algumas velhas cantigas,
Cantigas de primavera,

Menos inda, muito menos,
Correr sem mais nada, à toa,
Pequeno entre os mais pequenos,
A apanhar uma coroa.

Não, o que eu quisera, ó divo
Senhor, que mandais a tudo,
O meu desejo mais vivo,
Que me corrói, longo e mudo,

Era entrar pela janela
Do senado... Olhai, não digo
Pela porta. A porta é bela,
Porém já não vai comigo.

A porta, traz como agora,
Obrigações superfinas;
Li-as em prosa canora,
Sobre as eleições de Minas.

A primeira é que resida
O candidato na terra,
Pois se acaso a própria vida
A outra terra o desterra,

Perca as tristes esperanças
De conservar eleitores.
Se há exemplos, são carranças,
Outra quadra, outros amores.

Olindas, Celsos, Correias,
Nabucos e Zacharias,
São estragadas candeias,
De outros homens e outros dias.

Agora, quanto à segunda
Obrigação do diabo,
É igualmente profunda...
Não se quer nenhum nababo,

Que ande assim, como um tesouro,
Em carruagens de prata,
Cavalos ferrados de ouro,
Um jantar em cada pata;

Mas se o candidato é pobre
E passa a vida lidada,
Não entra em funduras. Dobre,
Amigo, dobre a parada.

Ora, eu que há muito suspiro
Pelo senado, e aqui moro,
Lidando, que mal respiro,
Sem o vil metal que adoro,

Uma noite adormecia
Lendo alguma velha história
De Veneza ou da Turquia,
E acordava em plena glória,

Diante do presidente
Aparecia sentado.
Ai, Deus justo, ai, Deus clemente...
Janela... curul... senado...

Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.